QUANDO O ESPÍRITO DE DEUS CHOROU, EU ESTAVA DE ANIVERSÁRIO.

Pequena crônica escrita em 25 de janeiro de 2019.

Trata-se de um registro biográfico muito impactante

José Ivo Follmann sj

(Crônica escrita no dia 25 de janeiro de 2019)

Era 25 de janeiro de 2019. Eu estava no terceiro dia do meu retiro espiritual, fazendo os Exercícios Espirituais Inacianos de oito dias. É uma prática anual nossa, como jesuítas, de fortalecimento na espiritualidade. Repleto de agradecimento e contentamento, era um dia muito especial para mim, pois estava completando 72 anos de vida e 44 anos de exercício da função sacerdotal na Igreja Católica.

Nosso retiro, neste ano teve um foco ecológico, pautado na ecologia integral. Foi para mim de crescimento na percepção e convicção de que o grande caminho de reencontro da humanidade com ela mesma, é o caminho da espiritualidade. Ou seja, só teremos condições de criar juízo ao nos depararmos com o Espírito de Deus.

Este pensamento se confirmara dentro de mim com muito vigor. Eu reconstruía saborosamente as minhas narrativas pessoais.

Era um dia de graça plena. Crescera tremendamente em mim a convicção de que a transformação pessoal não é uma questão de esforço, mas de agradecimento. Os nossos esforços são muitas vezes tão idiotas, autossuficientes e inconstantes. O sabor da ideia que espelhava o Amor incondicional, total e pessoal, inebriava a mente e o coração.

Minha mente e meu coração estavam em festa. Uma festa pessoal para mim! Lembrava também gostosamente todas as pessoas que fazem parte de minha história. Foi quando uma notícia triste caiu como um raio. Estava me preparando para presidir a eucaristia. Afinal, eu havia sido escolhido, por ser meu dia de festa! Um colega se aproximou de mim e disse: Aconteceu uma tragédia! Acho que será pior que a de Mariana. É em Minas Gerais. Liga o celular, vais ver! Liguei o celular, meio assustado e um pouco incrédulo. O que poderia ser tragédia maior que a de Mariana!?

As postagens eram muitas. Algumas confusas, sem ter informações adequadas. Mas o fato estava aí. Cru e nu! Escancarado! Jorrando lama. Enlameando. Afogando. Matando. Risco de gravidade maior que o da tragédia anterior. É tragédia? Tragédia não! Crime de lesa humanidade! Onde ficaram os aprendizados tidos? Não é possível que Mariana não tenha ensinado nada! Somos uma sociedade de idiotas! A que ponto pode chegar a irresponsabilidade humana! Foram gritos que automaticamente se levantaram em meu íntimo.

Fiquei confuso. Tentei me concentrar. Afinal estava me preparando para a celebração da eucaristia e teria que falar um pouco da minha trajetória vocacional. Era também a festa da Conversão de São Paulo, baluarte da Igreja. Apresentei um perfil inspirador sobre São Paulo, mas, depois, confesso que fiquei confuso, pois estava falando de coisas da origem da Igreja e de coisas pessoais totalmente secundárias, quando aquele momento deveria ser focado em algo que estava abalando os alicerces da humanidade e do Brasil. Quando me dei conta, vi que tinha falado tempo demais. Quis acrescentar uma reflexão sobre aquele horroroso impacto do momento, mas a pressão do horário me fez calar, sufocando algo muito sério dentro de mim. Estava perturbado porque eu via o Espírito de Deus chorando, mas não era capaz de expressar o que deveria.

Eu vi o Espírito de Deus chorando e eu mal balbuciei um pedido de oração pelas vítimas da tragédia. O Espírito de Deus chorou por causa de nossa insensatez e incapacidade de retribuir amor e agradecer. O Espirito de Deus chorou porque barragens se rompem quando não existe cuidado com a segurança, a vida e a dignidade de quem vive nas redondezas. Assim como permanentemente chora o Espírito de Deus por não sermos capazes de nos assumir como irmãs e irmãos, de não nos reconhecermos radicalmente em nossa dignidade por dentro das diferenças étnico-raciais, religiosas e tantas outras diferenças que são objeto de discriminação, violência, exclusão e morte.O Espírito de Deus chorou por causa da prepotência ingrata e usurpadora dos interesses do dinheiro que se colocam acima do ser humano. O Espírito de Deus chorou pela vida de milhões de seres que trabalhavam e brincavam em seu jardim e repentinamente se viram envenenados, sufocados e afogados, mais uma vez, na lama envenenada pela cobiça e irresponsabilidade humanas.

Obrigado Senhor, por ter renascido pelo batismo, um batismo de sangue, um batismo de lama, neste dia 25 de janeiro de 2019. A celebração dos 72 anos de vida e 44 anos de ministério sacerdotal, neste ano foi um presente especial.

Não, não estou agradecendo pelo crime dos responsáveis das empresas e dos órgãos públicos de controle e proteção. Os responsáveis deverão ser chamados à responsabilidade e responder em juízo. A minha gratidão é porque nunca mais vou esquecer, que no dia do meu aniversário, o Espírito de Deus chorou.

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