NEGROS E BRANCOS NO BRASIL: TRÊS PONTOS DE REFLEXÃO.

Artigo publicado na Revista Identidade!, em 2011. O texto foi elaborado em coautoria com Adevanir Aparecida Pinheiro.

Falar de raça é urgente e necessário, no Brasil

Artigo publicado em coautoria em 2011 pela Revista IDENTIDADE! e disponível em: http://www.est.edu.br/periodicos/index.php/identidade

Adevanir Aparecida Pinheiro (*)
José Ivo Follmann (**)

RESUMO

O artigo pretende ser uma provocação para a reflexão, pontuando três aspectos de fundamental relevância para ajudar a balizar a Educação das Relações Étnico-Raciais no Brasil: o medo do desconhecido, a ação afirmativa e a questão do branco. No final os autores arrematam apontando para o exemplo perverso da Europa xenofóbica.

No Brasil, por muito tempo, tentou-se resolver o futuro das relações étnico-raciais através do esquecimento. Hoje, finalmente, com muita lucidez, vivemos políticas que colocam em primeiro plano a memória. Não se trata da memória oficial, mas da memória que, por muito tempo, foi cultivada e conseguiu sobreviver nos subterrâneos da nossa história.

A história do Brasil escamoteou e continua a escamotear o longo período de quase quatro séculos de escravidão de milhões de africanos negros, fazendo com que a negritude, a branquitude (e branquidade) e a relação entre negros e brancos, sejam questões falseadas e insuficientemente resolvidas. Deve-se ter presente, sobretudo, que até hoje não se conseguiu dar conta de fazer a narrativa completa das implicações sociais envolvidas na forma como foi realizada a abolição da escravatura e as políticas afirmativas com relação à população de imigrantes brancos, em que esse processo esteve envolvido.

Carecemos, no Brasil, de educação para lidar de maneira justa e lúcida com as conseqüências disso na sociedade e cultura. Isto é tão verdade que foi necessário reformular (formular melhor) a Lei 9.394 (Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 1996) através da Lei 10.639 (2003) no que diz respeito especificamente às temáticas da história e cultura dos afrodescendentes e sua obrigatoriedade nas instituições de ensino. (1)

Eliane Cavalleiro, em escrito publicado em Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais, do Ministério da Educação (2006), na condição, então, de Coordenadora Geral de Diversidade e Inclusão Educacional, afirma: os 118 anos que nos separam da Lei Áurea não foram suficientes para resolver uma série de problemas decorrentes das dinâmicas discriminatórias forjadas ao longo dos quatro séculos de regime escravocrata. Ainda hoje, permanece na ordem do dia a luta pela participação de negros e negras nos espaços da sociedade brasileira, e pelo respeito à humanidade dessas mulheres e homens, reprodutores e produtores de cultura. (BRASIL, MEC-SECAD, 2006, p.14-15)

O patrimônio histórico e cultural trazido pelos africanos negros é tão vigoroso, que conseguiu sobreviver e representar um incomparável e marcante legado para a sociedade brasileira. No mesmo texto aqui citado, a autora assim se expressa: Nas formas individuais e coletivas, em senzalas, quilombos, terreiros, irmandades, a identidade do povo negro foi assegurada como patrimônio da educação dos afro-brasileiros. Apesar das precárias condições de sobrevivência que a população negra enfrentou e ainda enfrenta, a relação com a ancestralidade e a religiosidade africanas e com os valores nelas representados, assim como a reprodução de um senso de coletividade, por exemplo, possibilitaram a dinamicidade da cultura e do processo de resistência das diversas comunidades afro-brasileiras. (BRASIL, MEC-SECAD, 2006, p.14)

A ausência da temática dos afrodescendentes negros nas escolas, em todos os níveis, continua sendo gritante, no Brasil. O desconhecimento com relação à África, sua história e cultura, chega a ser escandaloso, quando sabemos quão rica e genuína é a sua contribuição e a de seus filhos e filhas na construção do Brasil e da brasilidade. E, sobretudo, quando sabemos quão duras foram as condições de exploração, exclusão e agressão à dignidade humana, em que se deu essa rica e genuína contribuição.

O medo do desconhecido

Como primeiro ponto de reflexão, retomamos uma inspiração encontrada em Carlos Rodrigues Brandão. Este autor, em um de seus livros no qual retratou a história de Paulo Freire (O Menino que Lia o Mundo), destacou que esse menino que lia o mundo, aprendeu a perder o medo porque começou a entender as coisas e o mundo. Nós em geral temos medo frente ao que não entendemos. Quando não se entende de determinado assunto, tem-se muito medo de entabular conversa sobre o mesmo.

Talvez possamos dizer que a temática dos afrodescendentes negros no Brasil está muito ausente nas escolas porque existe um grande desconhecimento em torno da mesma. Muitos professores e professoras têm medo de abordar o assunto.
Às vezes se ouve falar que tocar nesse tema pode acender as brasas que estão mortas debaixo das cinzas da história, despertando indesejados conflitos raciais. Trata-se do medo associado ao desconhecimento, pois, no caso específico da temática dos afrodescendentes negros, no Brasil, gera menos conflito proporcionar o conhecimento, do que sonegar o conhecimento.

O campo religioso pode ser considerado uma referência exemplar neste sentido. Os ressentimentos e conflitos tendem a crescer na medida em que imperam a desinformação e o desconhecimento mútuos. Ao contrário, a harmonia, o convívio fraternal, o respeito e o diálogo começam a vigorar na medida em que cresce o conhecimento de par a par. No desconhecimento as religiões tendem a se demonizar mutuamente e a afirmar a superioridade de sua proposta e missão com relação às demais.

Hoje estamos longe do tempo em que o padre católico batizava os escravos africanos negros, dando-lhes a “identidade” de católicos, ato contínuo à ordem do comprador dos mesmos que mandava marcar com o ferro em brasa (o selo da posse) as suas novas mercadorias, como peças de trabalho. Apesar dessa sistemática violência, a cultura religiosa dos afrodescendentes persistiu em sua riqueza e diversidade. Hoje em dia se pode conversar honesta e tranquilamente sobre isto. Podemos presenciar diversas situações de diálogo e reconhecimento mútuos envolvendo lideranças católicas e lideranças de religiões de matriz africana junto com representantes de diversas outras denominações e confissões religiosas para desenvolver propostas comuns.

Um Grupo Inter-religioso de Diálogo que existe na UNISINOS, dentro do Programa Gestando o Diálogo Inter-religioso e o Ecumenismo – GDIREC é um testemunho vivo disto… Foi exatamente a partir de desejos expressos neste Grupo que foi desenvolvido com mais atenção o trabalho de inclusão dos sujeitos afrodescendentes e da proposta de Educação das Relações Étnico-Raciais na Universidade. Este Grupo havia levado a sério a necessidade de superar os medos internos que nele subsistiam, partindo para a busca de um maior conhecimento e reconhecimento mútuos.

A importância da ação afirmativa

Como segundo ponto de reflexão, fazemos um convite para olharmos de frente a grave questão ideológica, no Brasil, o falseamento, o mito da democracia racial, os esquecimentos e obstruções da memória, que fazem das escolas e dos professores, veiculadores e reprodutores de explicações fáceis ou de “não explicações”, ajudando a sonegar sutilmente as raízes dos processos de identidade dos afrodescendentes negros em nossa sociedade.

É necessário propor, também em sala de aula, com honestidade, o debate público sobre a questão da grande dívida social que o Brasil tem com relação aos afrodescendentes negros que constituem em torno de 50% da população brasileira.

Trata-se da metade da nossa sociedade cujos ancestrais foram vítimas de um dos mais longos períodos de escravidão conhecidos na história humana: quase quatro séculos de escravidão de africanos negros no Brasil. Para sermos mais precisos é necessário lembrar que segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, através do Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2011), temos no Brasil 50,7% de autodeclarados pretos e pardos (ou seja, negros, como normalmente é consenso nas classificações mais usuais); no Rio Grande do Sul temos 16,1% de autodeclarados pretos e pardos (ou seja, negros) e em São Leopoldo temos 13,7% de autodeclarados pretos e pardos (ou seja, negros). Normalmente a discriminação tende a ser mais sentida, mesmo que invisível, naqueles contextos em que o percentual de afrodescendentes, por uma série de fatores históricos, é mais baixo. É exatamente nestes contextos que o esforço das ações afirmativas deve ser mais lúcido e vigoroso.

Não faz sentido trabalhar a temática dos afrodescendentes negros no Brasil em sala de aula, se persistir a gritante ausência dos mesmos afrodescendentes nas Universidades. Às vezes são feitas comparações com a situação racial nos Estados Unidos, onde a política afirmativa teve a sua época e hoje já está superada. É importante sabermos que, naquele país, os afrodescendentes negros representam 12,6% da população e, depois de um esforço lúcido e vigoroso em termos de políticas afirmativas, hoje são numerosos os que já conseguiram posições de destaque na sociedade.

As políticas de ação afirmativa são necessárias para recuperar as enormes desvantagens sofridas por um segmento da sociedade com relação a outro, mas elas nunca devem significar abrir mão da exigência no preparo técnico e na qualidade. Devem significar formas criativas e inovadoras de proporcionar acesso ao preparo técnico e à qualificação.

A questão dos brancos

Somos facilmente vítimas de um jogo secreto que desvia a atenção do verdadeiro foco. Segundo Pinheiro, que em sua tese de doutoramento (Pinheiro, 2011) discutiu o conceito de “branquidade”, distinguindo-o de “branquitude”,(2) fala-se sempre em “questão do negro” ou “questão do índio”, quando de fato é uma “questão do branco”, em primeira instância… Se os estudos das relações étnico-raciais não tiverem um olhar atento para esse jogo secreto, continuando focados apenas nas etnias historicamente inferiorizadas, eles poderão ser novamente “um tiro no próprio pé”. Estaremos correndo o risco de redobrar as mesmas escamoteações históricas já conhecidas no Brasil.

Este é o terceiro ponto de reflexão: um convite a que nos associemos à linha de reflexão, que traz ao centro do debate a questão do embotamento da consciência branca eurocêntrica. É uma consciência que permanece, muitas vezes, algemada no seu (auto)senso de superioridade. São inúmeros os aspectos históricos relacionados a isto, aos quais se deu pouca atenção no contexto social e acadêmico brasileiro. Esses aspectos muitas vezes são camuflados para não mostrar ou evidenciar as fragilidades e as vergonhas da parte da população sempre (auto)considerada superior.

Como já apontamos no início deste texto, o Brasil, até hoje, não conseguiu dar conta de fazer a narrativa completa das implicações sociais envolvidas na forma como foi realizada a abolição da escravatura e as políticas afirmativas com relação à população de imigrantes brancos, em que esse processo esteve envolvido. Deve-se destacar que políticas afirmativas, que teriam sido humana e racionalmente necessárias, foram sonegadas à população dos afrodescendentes, no período pós-abolição da escravatura. E mais: os grupos que costumam assumir atitudes de “escândalo” ou de desacordo frente às políticas afirmativas com relação aos afrodescendentes, que hoje estão sendo colocadas em pauta, mesmo que isto aconteça de uma forma tímida e com muita dificuldade, em alguns contextos, talvez nem conheçam as políticas afirmativas executadas naquela época com relação aos brancos acolhidos em nosso país… Ou se têm conhecimento delas, pouco se importam, porque, afinal de contas, tudo isso estava pautado para garantir o “branqueamento” da sociedade brasileira…

As raízes históricas disto são profundas e é necessário cavar muito para chegar e elas e arrancá-las. Um dos caminhos que vislumbramos é o de assumir a causa do outro. Em um recente texto (abril 2006), elaborado por uma equipe internacional e intercultural de jesuítas sob a coordenação do Secretariado de Justiça Social da Ordem dos Jesuítas (Companhia de Jesus), que circulou no meio dessa Ordem durante a preparação da 35ª Congregação Geral (Órgão Máximo de Governo da Ordem dos Jesuítas), havia, entre outras, a seguinte recomendação: é recomendável que cada jesuíta se empenhe em defender ao menos uma cultura, que não seja a sua! Esta formulação não entrou em nenhum texto oficial, mas é com certeza altamente inspiradora. Trata-se de uma ótima fórmula para um branco romper as algemas de seu embotamento racial, colocando-se na efetiva defesa do negro e fazendo de sua prática cotidiana uma “prática afirmativa” deste outro tão espezinhado em nossa história.

Para concluir: um pensamento a partir da Europa…

Talvez hoje o grande pecado da Europa seja o de não fazer nada pela África!, clamou um dia alguém. Todos nós sabemos que a Europa é rica, graças, em grande parte, a tudo o que conseguiu conquistar e saquear de outros continentes, entre os quais está, sobretudo, a África. Essas conquistas e esses saques não foram algo pacífico… Um rápido passeio pelo continente europeu nos faz lembrar diversos dos seus principais países, envolvidos, em outros tempos, em ações clamorosas contra o patrimônio dos povos africanos e contra a sua dignidade. São muitos os relatos registrados e que sempre voltam à tona em conversas espontâneas, lembrando saques, espoliações, depredações, atrocidades e mortandades no Congo, Kênia, Namíbia, Senegal, África do Sul, Costa do Marfim, Angola, Rodésia, Moçambique e outros países. Ao ouvir tudo isso, ficamos horrorizados ao vermos as notícias sobre uma Europa, que se dá ao direito e ao luxo de repelir, com violência, pobres e famigerados africanos, amontoados em precárias embarcações, tentando entrar pela costa sul, na desesperada busca da sobrevivência.

Se a Europa fosse conseqüente e coerente com suas próprias políticas de direitos humanos, teria que acolher de braços abertos aos africanos e, de joelhos, suplicar o seu perdão, oferecendo-lhes com solicitude compartilhar algo de tudo aquilo que lhes foi tirado. Trata-se de uma mensagem anônima distribuída eletrônicamente. No corpo da mesma mensagem, está mencionado Frederico Mayor Zaragoza, com a sentença seguinte: Não é com o esquecimento que se resolverá o futuro. É com a memória!

Inspiramo-nos nesta observação com relação à Europa xenofóbica para, também, dizer: Não é com o esquecimento do passado que o Brasil construirá o seu futuro. É com a memória!

Notas:

  1. Mais tarde, esta reformulação da LDB foi ampliada pela Lei 11.645 (2008), incluindo também mais explicitamente a história e a cultura dos povos indígenas, no mesmo sentido.
  2. Pinheiro (2011) estabeleceu importante distinção entre branquitude e branquidade: a primeira (branquitude) referindo-se aos brancos que demonstram uma atitude clara negativa ou positiva com relação aos negros; a segunda (branquidade) referindo-se aos brancos, que às vezes são em grande número, que simplesmente ignoram a questão da relação racial como algo inexistente, ou seja, trata-se de algo totalmente bloqueado ou obstruído. A autora se baseia em Maria Aparecida Bento (2002) em Vron Ware (2004) e outros.

Referências bibliográficas:

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(*) Assistente Social; Dra. Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – NEABI; Professora da UNISINOS.
(**) Padre Jesuíta, Dr. Sociologia pela Université Catholique de Louvain La Neuve, Bélgica; Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNISINOS.

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