PROCESSOS DE IDENTIDADE VERSUS PROCESSOS DE ALIENAÇÃO: ALGUMAS INTERROGAÇÕES.

Artigo publicado na Revista Identidades, em 2012

O ser humano é um ser de projeto

José Ivo Follmann*

Artigo publicado na Revista IDENTIDADE! Escola Superior de Teologia – EST, v. 17, n.1, 2012, pp. 83-90.

Sempre que se fala em identidades ou, melhor, em processos de identidade, vêm à mente, em primeiro plano, ideias de singularidades diferentes, de alteridades e de processos alternativos ou, mesmo, de processos de oposição. Muitas vezes isto desvia a nossa atenção de uma questão chave que são os processos de alienação. Trata-se de algo fundamental termos presente que estes processos são, a rigor, a negação (ou esvaziamento) dos processos de identidade. O exercício de reflexão para construir o conceito de processo de identidade nos ajuda a não deixarmos este aspecto de lado.

A. Touraine (1993) quando trata deste tema em sua teoria sobre os movimentos sociais, nos reporta à seguinte reflexão: “os movimentos sociais (…), o da classe superior e o da classe popular, (…), não estão em relação de igualdade, não estão na situação de dois cavaleiros (nas mesmas condições) se opondo em um torneio. A situação de conflito é, também, em seu início, uma relação de dominação.” (p.339) O autor conclui: “a consciência popular pode ser dominada pela alienação; ela o é quando não se forma um movimento social”. (p.339)

Nesta perspectiva, encontramos, também, ricas sugestões nas reflexões feitas por T. Evers (1984), quando ele em seus estudos sobre os movimentos sociais na América Latina contrapõe à ideia de identidade a ideia de alienação. O autor faz desta oposição um dos pontos centrais em um artigo em que se interroga sobre o “novo” dos “novos movimentos sociais” na América Latina.

Isto nos reporta a P. Berger (1971), o qual nos lembra da importante oposição entre a dinâmica do “opus proprium” e do “opus alienum”.(1) O ser humano, quando se percebe apenas como sujeitado a projetos de outrem, não suporta, ou seja, não se realiza e não desenvolve a sua autoestima enquanto sujeito. Também não se pode falar em construir processo de identidade dos outros ou para os outros… Para nós, um processo de identidade não existe a não ser na forma de manifestação da capacidade autônoma dos indivíduos e grupos na construção de sua história.

A luta pela “autonomização” de identidade expressa uma insubmissão aos processos que são dados, rejeitando, também, todo o tipo de alienação, seja ela prática ou teórica (Chauí, 1982). A identidade não pode ser encontrada dentro de estruturas autoritárias e, mais que isso, exclui a uniformidade: só pode se desenvolver na diversidade, que requer um cenário político no qual ‘todas as vozes, todas’ (como diz uma canção chilena) possam ser escutadas (Evers, 1984).

Com a ideia de processo de identidade, supera-se a simples oposição entre o “passado” e o “futuro”, entre as “trajetórias” e os “projetos”. Segundo F. Debuyst (1992), identidade não é somente a herança histórica, mas é também a maneira com que esta herança é atualizada, comportando reações próprias frente aos desafios atuais. Na verdade, a relação entre a dimensão projetiva, ou seja, da busca e abertura para o futuro, e a história passada, com tudo o que isto significa em termos de experiências acumuladas, é fundamental para a análise das realidades sociais mais diversas.

No que diz respeito ao processo de identidade, isto toma, contudo, uma significação ainda mais acentuada. É na maneira com que um indivíduo ou um grupo (uma coletividade) estabelece a relação entre seu futuro e seu passado ou, ainda, entre seus projetos e suas trajetórias, que temos, de forma particular, as indicações principais para desvendar quais são os definidores de seus processos de identidade. Pode-se definir processo de identidade como a busca constante de estabelecer coerência lógica entre as experiências vividas e aquilo que se tem como objetivo (Remy; Voye; Servais, 1991 e Ruscheinsky, 1990).

Além desta permanente busca na construção da coerência lógica entre as experiências vividas e os rumos da vida que vão sendo traçados, os processos de identidade se dão dentro de uma complexa relação entre as individualidades e as coletividades, que acontecem por meio das mais diversas esferas de sociabilidade ou dimensões da vida social. Uma das esferas de sociabilidade ou dimensões mais profundas da vida social é a esfera ou dimensão das relações étnicorraciais. Muito já se debateu a respeito dos movimentos e organizações dos afrodescendentes no Brasil. O debate acumulado e os diversos estudos deveriam permitir que a temática pudesse fluir mais facilmente, hoje, tanto no meio acadêmico como no convívio cotidiano, mas não é o que acontece. Não acontece porque subsistem questões não resolvidas. Uma dessas questões não resolvidas tem a ver com problemas de acesso à autocompreensão dos próprios processos de identidade. Ou, talvez, formulando em termos mais radicais, tem a ver com processos de alienação sofridos. Estamos referindo “processos de identidade” e “processos de alienação” tanto de negros como de brancos…(2)

Muitas vezes já se ouviu falar dos diversos mecanismos e práticas voltados para o esquecimento e alienação da população de escravos. Entre esses mecanismos e práticas devem ser destacados três: a chamada “árvore do esquecimento”,(3) a imposição de uma nova religião oficial e forçada dispersão e separação das famílias e culturas. Sabemos como, no bojo de cada um desses mecanismos e em reação aos mesmos, foram geradas resistências inteligentes e muito consistentes. Esses movimentos e práticas de resistência só não tomaram maior visibilidade e vigor nos processos de identidade da população afrodescendente no Brasil, porque o forte entrave, por um lado, da forma perversa como as teorias racistas foram usadas para atingir a alma dos escravos e ex-escravos e, por outro lado, do embuste das políticas de branqueamento provocadas pelas mesmas teorias racistas, representou um freio perverso e dobrado. (Pinheiro e Follmann, 2012)

Retomando a formulação da noção de identidade que apresentamos em um artigo anterior (Follmann, 2001), e levando em conta novos avanços em nossas reflexões e estudos, sublinhamos aqui que processos de identidade envolvem dinâmicas coletivas, dinâmicas individuais e dinâmicas que expressam interações entre o nível individual e o nível coletivo, colocando em permanente diálogo valores socialmente propostos ou disciplinados e valores pessoalmente buscados ou reivindicados.

São processos que se dão tanto para outrem como para si mesmo, tendo por resultado sempre uma “costura” de uma parte, entre o que é “herdado” e o que é “almejado” e, de outra parte, entre o que é “atribuído” e o que é “assumido”. Em nossa tese doutoral (Follmann, 1993) procuramos demonstrar que um caminho para abarcar os aspectos essenciais de tudo isso seria o de se colocar os projetos, os motivos, as práticas – as estratégias – e as trajetórias vividas, em permanente relação, nos três níveis acima apontados. Esses processos acontecem nas diferentes esferas de sociabilidade ou dimensões da vida social. Neste sentido podemos falar em “processos étnicorraciais de identidade” assim como em “processos religiosos de identidade”, “processos regionais de identidade” ou “processos profissionais de identidade”, etc.

É oportuno que lembremos toda a complexidade envolvida nos processos de identidade… Eles acontecem na “permanente interação entre os sujeitos, diferenciando-se e considerados diferentes uns dos outros ou assemelhando-se e considerados semelhantes uns aos outros, e carregando em si as trajetórias vividas por estes sujeitos, em nível individual e coletivo e na interação entre os dois, os motivos pelos quais eles são movidos (as suas maneiras de agir, a intensidade da adesão e o senso estratégico de que são portadores) em função de seus diferentes projetos, individuais e coletivos.” (Follmann, 2001, p.59)

Alguém um dia, em uma Oficina com Afrodescendentes (em Projeto de Extensão da Universidade), levantou uma questão que nos deixou muito pensativo: “quais são os projetos dos afrodescendentes”? Não estariam os negros sendo, simplesmente, reduzidos a viver segundo os projetos de uma sociedade branca? A pergunta pairou no ar… E nós passamos a ampliar a questão: onde reside efetivamente o “opus proprium” e o que é “opus alienum” no seu modo comportamental? Por que os afrodescendentes em um meio como o de São Leopoldo, por exemplo, têm tanta dificuldade de se afirmarem como afrodescendentes? E mais, quais são os projetos individuais e coletivos em função dos quais se orientam seus processos de identidade? O que dizer dos processos de interação entre os afrodescendentes e a relação dos mesmos com os que não são afrodescendentes, no passado e no presente, considerando os complexos caminhos de aproximações e distanciamentos e considerando as estratégias envolvidas nesses processos? Por que é tão difícil ser um afrodescendente neste país que é a segunda maior população negra do mundo?

Educação das Relações Étnicorraciais significa, sobretudo, dar conta dessas e de outras questões, para denunciar, por um lado, os processos de alienação e desvelar, por outro, os processos de identidade, que formataram a história de nossa sociedade. Só assim se terá efetivas condições para a construção consistente de um futuro cidadão.

Notas.

  1. A coisa própria (de iniciativa e controle próprios) e coisa alheia (de iniciativa e controle do outro). Ver P. Berger (1971).
  2. Estritamente no que se refere a processos de alienação, é importante anotar que os mesmos não acontecem em uma via só. Normalmente são reforçados por processos de abafamento, descaso, desconhecimento da parte dominante, que também se ancoram em processos de alienação mais amplos. Os indivíduos se veem orientados mecanicamente por concepções de origem alheia ao próprio controle e compreensão. (Esta reflexão se apoia em Follmann, 2001; Berger, 1971; Touraine, 1993; Evers, 1984)
  3. Durante grande parte do período de tráfico dos africanos escravos para o continente americano, e especificamente para o Brasil, eles eram submetidos a um ritual antes de serem embarcados. Era um ritual para esquecerem o seu passado… Eram obrigados a dar voltas em redor de uma árvore, a chamada “árvore do esquecimento”. Ao serem capturados e importados do continente africano para outros países e para o Brasil, eles eram obrigados a fazerem o ritual de esquecimento, ou seja, os homens tinham que dar nove voltas em torno da árvore do esquecimento e as mulheres davam sete voltas. Esta “árvore do esquecimento” continua, depois, se repetindo sob as mais diferentes formas ao longo do processo de escravidão e pós-escravidão… (Ver mais em Pinheiro e Follmann, 2012)

AUTOR:

(*) Doutor em sociologia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

Referências bibliográficas:

BERGER, P. (1971). El dosel sagrado: elementos para una sociología de la religión. Buenos Aires: Amorrortu.

CHAUI, M. (1982). Notas sobre la crisis de la izquierda en Brasil, Nueva Sociedad, n. 61.

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PINHEIRO, Adevanir Aparecida (2011). Identidade Étnico-Racial e Universidade: A dinâmica da visibilidade da temática afrodescendente e as implicações eurodescendentes, em três instituições de ensino superior no sul do País. Tese Doutorado em Ciências Sociais. São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

PINHEIRO, A.A.; FOLLMANN, J.I. (2012). Trabalho de Extensão Universitária com Afrodescendentes: refazendo laços e desatando nós. (Artigo enviado para publicação Forum de Extensão das Universidades Comunitárias, FOREXT, 2012).

REMY, J.; VOYE, L.; SERVAIS, E. (1991). Produire ou reproduire: une sociologie de la vie quotidienne. Vol. I: Conflits e transaction sociale (1978). Bruxelles: De Boeck Université.

RUSCHEINSKY, A. (1990). A emergência de atores coletivos: o movimento dos trabalhadores sem-terra. Rev. Cadernos do Cedope, N. III – 3.

TOURAINE, A. (1993). Production de la societé. (Primeira edição em 1973). Paris: Ed. Le Seuil.

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