EDUCAÇÃO CATÓLICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: UMA HISTÓRIA DE INTERROGAÇÕES PARA PRÁTICAS EM SALA DE AULA

Publicado como capítulo em livro no Chile ‘EDUCACIÓN CATÓLICA EN LATINOAMÉRICA: UN PROYECTO EN MARCHA’ em 2019

Uma das formas de produção do conhecimento acontece no próprio processo de educação

José Ivo Follmann (janeiro de 2019)

Introdução

Tomei como ponto de partida, na redação deste capítulo, uma vivência pessoal em sala de aula em uma instituição católica de elite, em nível de educação básica, no ano de 1970, quando por causa do uso de determinados materiais didáticos fui motivo de convocação de “reunião de pais e mestres”, gerando um diálogo ideológico de certa forma constrangedor.

Ancorada, em seu início, na narrativa pontual biográfica, a redação do capítulo transita por diversos caminhos e atalhos, atenta aos impactos sociais, culturais e educacionais, em contextos em permanente mudança e de fortes debates ideológicos, a partir, sobretudo, da década de 1960, cujos ecos nos acompanham até hoje. São pontuadas também três outras atenções especiais: A organização nacional da educação católica em um contexto de forte competividade de mercado; A educação católica em um contexto de diversificação religiosa acelerada conjugada com a afirmação sempre maior da laicidade na sociedade; E, por fim, um recente debate sobre as formas mais apropriadas de práticas de inclusão socioeducativa de entidades educacionais católicas e similares. O capítulo é concluído por “notas não conclusivas” sinalizando algumas provocações para avançar no processo de reflexão sobre as práticas de sala de aula na educação católica.

  1. A Segunda Metade do Século XX: uma contexto de grandes mudanças

Vou iniciar com o relato de um evento pessoal. Em 1970 eu lecionava em uma escola católica jesuíta, conhecida como sendo de elite, no sul do Brasil. A disciplina era “Cultura religiosa”. Fui orientado a utilizar, em sala de aula, um material didático muito em voga e bem adequado ao novo momento que a igreja católica vivia a partir do Concílio Vaticano II e do engajamento social cristão no contexto desafiador que o Brasil e toda América Latina estavam vivendo. As aulas tinham grande sucesso, contando com boa adesão e participação dos estudantes de sétima série do ensino fundamental. No entanto, um dia fui surpreendido com a convocação da direção do colégio para uma reunião com um grupo de pais. O assunto era: a orientação ideológica dos materiais usados em sala de aula. (1) Naquele material eram explicitados, de forma bastante equilibrada e dentro do alcance da faixa etária dos estudantes, aspectos da realidade social e cultural, que na opinião dos pais não estariam sendo adequados. Eu era um jovem principiante, no meio caminho de minha formação jesuítica, na época estudante de Ciências Sociais, na Universidade Federal local. Me vi no constrangimento de ter que explicar para alguns daqueles pais que a logomarca da Sono-Viso do Brasil, (2) que estilizava um S e um V não tinha nada a ver com Foice e Martelo e que a estrela de Belém (guia dos Reis Magos) que aparecia em uma imagem não tinha nada a ver com eventuais estrelas presentes em bandeiras de países comunistas. Me senti tremendamente provocado por aqueles constrangimentos totalmente inesperados. Foi, com certeza, um grande aprendizado.

Sem ficar preso ao anedótico desta narrativa, creio que ela é tremendamente simbólica, refletindo todo um contexto que se vivia, sobretudo, a partir da segunda metade do século XX, mais precisamente as reviravoltas políticas, culturais e sociais, a partir da década de 1960. Foi um contexto que deixou marcas profundas tanto para a sociedade como para a igreja católica e diversas outras igrejas cristãs e, consequentemente, para a educação católica e cristã. Segundo Danilo R. Streck e Aldino L. Segala (2007: 165), “Uma nova forma de ser igreja implicava na crença de que uma outra sociedade era possível; a sociedade onde todas as pessoas pudessem ter pão suficiente e a sede de justiça pudesse estar saciada”. (3)

No mesmo artigo é feita menção especial ao papel importante exercido pelo Concílio Vaticano II e sua repercussão intensa na igreja católica na América Latina. Este último aspecto aparece como o ponto fulcral na grande virada acontecida, nesse contexto, em termos teológicos e pedagógicos, que é o foco do texto dos autores.

Paulo Freire proclamava que a educação promovida pelas igrejas devia ser concebida e realizada com raízes na história e cultura do povo. Segundo ele, “o papel educacional das igrejas não pode ser entendido como alheio às condições da realidade concreta na qual elas estão presentes”. (Freire, 1977, p.105, apud Streck e Segala, 2007, p.165)
Alguns documentos do episcopado, na época, foram de grande importância, destacando-se, sobretudo, os documentos da Conferência Episcopal Latinoamericana – CELAM, do encontro de Medellin, Colômbia, em 1968 e de Puebla, México, em 1979. (4)

Pontos de destaque, no texto de Streck e Segala (2007), são, também, as comunidades eclesiais de base – CEBs e a educação popular. Foi um período extremamente fértil, particularmente em termos de atividades relacionadas com a educação popular, fora do sistema formal de ensino, em grande parte lideradas pela igreja. A par disto, grandes debates eram vividos dentro do sistema formal, haja visto o grande evento em Buga, Colombia, 1967 um ano antes da conhecida do encontro dos bispos em Medellín, 1968.

A ideia de libertação e educação libertadora, proclamada e aprofundada em Buga, Colômbia, foi assumida no documento de Medellín, Colômbia. As principais características dessa educação foram retomadas, posteriormente, no documento de Puebla (1979), que as sintetiza em três pontos: – criar no ser humano espaço para a boa nova cristã; – impulsionar o exercício da função crítica inerente à educação verdadeira; – e promover o educando como sujeito do desenvolvimento próprio e dos outros. Em suma: – educação para humanizar; – educação para a justiça; – educação para o serviço.

A educação católica no Brasil tinha uma grande presença no Ensino Médio. Oscar Beozzo (1993: 69) relata que, no final da década de 1950, no Brasil, 80% dos estudantes deste nível eram de instituições católicas de educação. O acesso era mais favorecido às classes média e alta, devido às anuidades elevadas. Por um lado, grandes tensões ideológicas internas eram vividas gerando conflitos no âmbito da gestão e das práticas em sala de aula. Por outro lado, também estavam sendo travados debates sobre a democratização do ensino, apontando inclusive para a importância de se destinar recursos públicos para as iniciativas educacionais privadas.

O direcionamento, no entanto, foi bem outro. Houve um grande incremento na rede pública de educação e as escolas privadas foram gradualmente excluídas do acesso a subsídios públicos. Impossibilitadas de acolher estudantes da população mais pobre, a crise ideológica que já estava instalada, tendeu a crescer nas instituições católicas. A nova forma de ser escola, que vinha na carona da nova forma de ser igreja, parecia ter-se tornado um discurso longínquo, em um quadro onde a sobrevivência das escolas e de suas práticas em sala de aula necessitavam estar ajustadas ao horizonte de consumo das elites dominantes.

A crise ideológica nas escolas foi acompanhada por duas outras crises. Em primeiro lugar estava a própria crise na vida religiosa consagrada, com uma diminuição significativa do número de vocações para este estado de vida. Em segundo lugar, pesou também forte a política estatal de investir maiores recursos, por um lado, nas escolas públicas, e de facultar, por outro lado, a possibilidade do surgimento de um mercado voraz de empreendimentos privados de ensino, pautados no negócio e no lucro.

Estes últimos dois aspectos trouxeram em seu bojo um agravamento sem precedentes para as condições de sustentabilidade econômico-financeira das escolas católicas e outras escolas confessionais e comunitárias. Paradoxalmente estas instituições são as que mais estão focadas no serviço público à sociedade. Como agravante do paradoxo, talvez se possa dizer que o poder de intimidação das famílias pagantes, neste contexto, passa a ser ainda mais rigoroso com relação às práticas em sala de aula.

  1. Educação Católica no Brasil: Organização nacional e competitividade.

O século XXI iniciou com um cenário totalmente desfavorável à sustentabilidade econômico-financeira de instituições católicas de educação e outras iniciativas educativas similares. Segundo Manoel Alves (2006), este cenário tornou visível, também, as fragilidades de gestão interna da maioria dessas instituições. Para o autor, isto não era algo notável em tempos favoráveis e sem concorrências, mas mudanças radicais aconteceram e o contexto se tornou desfavorável, sobretudo, ao longo das últimas duas décadas do século XX.

No entender do mesmo autor, não faz mais sentido buscar explicações externas ou esperar a melhoria das condições externas. Em termos de ensino católico é necessário investir forte na liderança interna, pois “só se tem possibilidade de prosperar se o negócio educacional pelo qual ele responde, for eficazmente gerido”. (Alves, 2006: 130). Parece que as instituições de educação católica foram muito lentas em se adequar ao novo momento vivido pela humanidade que é a “sociedade do conhecimento”.

Para fazer face a estes grandes desafios a educação católica no Brasil deu passos importantes em termos de organização nacional. Finalmente de 2007 instaurou-se definitivamente o processo de instituição oficial da Associação Nacional da Educação Católica – ANEC, superando a situação de evidente desarticulação anterior. (5) Esta entidade de representação nacional única da educação católica no Brasil, caracteriza-se dentro de três eixos principais: – representação política e defesa dos interesses das associadas; – assessoria às associadas; – apoio na gestão das instituições.

“Como representante única e legítima da educação católica no Brasil, a ANEC é referência no importante papel de prestação de serviços a centenas de associadas e milhares de unidades de ensino, assim como promotora de eventos educacionais para o aperfeiçoamento da educação e da gestão. Ao todo, são praticamente 400 Mantenedoras católicas associadas, cerca de 2 mil escolas, 90 instituições de Ensino Superior e 100 obras sociais. A ANEC está presente em todos os estados da Federação, representa 2,2 milhões de alunos e 100 mil professores e funcionários”. (6)

A crise, que constituía a reviravolta teológica e pedagógica vivida pela igreja católica, somada à drástica redução do quadro de religiosos/as consagrados/as e à mudança radical no contexto de espaços para a educação católica e de outras confissões, não é tudo o que deve ser observado de fundamental. Sinalizou-se acima o desafio da articulação de forças em nível nacional para criação de amparo e sinergia comuns e, dentro da frenética corrida da inovação tecnológica e pedagógica nas salas de aula e nos espaços educativos como um todo, não sucumbir à perda dos valores centrais que movem a educação católica.

No entanto, é também necessário que nosso olhar se volva para as transformações radicais vividas dentro da própria esfera religiosa brasileira, a sua acelerada diversificação e a drástica diminuição relativa da presença católica. O Estado Brasileiro veio dando passos de amadurecimento em sua laicidade e a sua relação se dá com a esfera religiosa como um todo, mais do que com os interesses desta ou daquela religião. Neste sentido busco, na sequência, trazer alguns elementos para ajudar a avançar nesta discussão.

2. A Diversificação da Esfera Religiosa Brasileira e a Laicidade do Estado.

A esfera religiosa brasileira sofreu, ao longo das últimas décadas, um processo muito acelerado de inflexão nas forças: de um Brasil predominantemente católico está-se caminhando para um Brasil onde a força do segmento evangélico pentecostal e neopentecostal e a diversificação religiosa em geral, tendem a conquistar espaços sempre maiores.

Em termos de diversificação na esfera religiosa os dados oficiais consolidados em nível nacional são fornecidos pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, de 1940 a 2010. Neste período o quadro estatístico dá conta da queda numérica sensível daqueles que se declaram católicos e do aumento acelerado, daqueles que se declaram evangélicos, bem como aumento grande daqueles que se declaram “sem religião”, incluindo, neste último grupo, os descrentes ou ateus. Constata-se também a multiplicação do número de religiões que se somam no quadro das “outras religiões”.

Tudo indica que em 2020 a população católica no Brasil estará abaixo de 50%. (7) A explosão da diversidade religiosa, que assistimos no Brasil contemporâneo, por si só, não gera espírito pluralista ou de convívio democrático. Ao contrário, muitas vezes, também, são geradas radicalizações fundamentalistas. Tem-se, assim, um movimento duplo contraditório gerado pela diversificação: crescimento do espírito de convívio democrático pluralista, de um lado, e aumento de radicalizações fundamentalistas, de outro. Da mesma forma é perceptível um duplo movimento em nível de Estado: ao mesmo tempo em que são constatáveis movimentos de amadurecimento da laicidade no sentido de garantir o direito à diversidade e pluralidade de expressão religiosa de todos, existem, também, movimentos de busca de vantagens eleitorais contando com o apoio desta ou daquela confissão religiosa.

O conhecimento exerce papel importante no processo de identidade religiosa. O que falta muito na sociedade brasileira é conhecimento com relação ao mundo das religiões e das religiosidades. Hoje este “mundo” se ampliou muito no Brasil devido, também, a uma presença mais visível, mesmo que estatisticamente muito reduzidas, de vertentes islâmicas, judaicas, budistas e outras tradições religiosas históricas fortes e milenarmente consolidadas. Um componente fundamental nos processos de identidade religiosa é a relação sadia com o outro, com o diferente. Pode-se dizer que o diálogo inter-religioso é a nossa tábua de salvação.

É de consenso que cabe ao Estado laico criar as condições para que se eduquem as consciências religiosas em sua diversidade e seu reconhecimento mútuo. Acreditamos, também, como afirmamos acima, que uma laicidade maduramente vivida e administrada pelo Estado é condição para que a esfera religiosa possa exercer o seu papel na construção da sociedade democrática.

Mencionei acima a instalação do Estado laico, dentro do mesmo processo proclamação da República. Já se passaram 125 anos desde a primeira Constituição Republicana, que foi em 1891, e a laicidade do Estado ainda está longe de uma consolidação amadurecida. A história do século XX e também da primeira década do século XXI está repleta de exemplos que trazem à luz do dia o “fantasma” do catolicismo como religião oficial. Isto foi, sobretudo, acentuado durante todo o longo período do governo Vargas, mas que de certa forma retornou durante o governo Lula. (8)

No Brasil, este tempo histórico da laicidade do Estado presenciou dois fenômenos complementares: A forte carga de preconceitos e perseguições (repressões) às religiões de matriz africana e outras, que, comumente, foram desclassificadas enquanto religião, não aceitáveis pela racionalidade cristã acidental (Monteiro, 2009); O crescente aumento das igrejas evangélicas pentecostais e, na sequência, as neopentecostais, ao longo da segunda metade do século XX, acompanhadas de um forte trabalho de lobby político e de oposição à influência católica.

A contaminação religiosa do Estado laico no Brasil não é muito diferente de outros países, porque, de fato, não se conhecem exemplos concretos de total isenção ou neutralidade do Estado frente às diferentes religiões. (Mariano, 2005). O que devemos ter muito claro é que tudo isto repercute, sobretudo, no sentido da educação católica, passando pelo desafio do “fazer educativo” como serviço público, da necessária participação na cultura do diálogo com as outras religiões e o esforço renovado de cultivo dos espaços próprios de cultivo dos processos de identidade católica ao mesmo tempo em que se deve contribuir para preservar o exercício da função laica do Estado.

3. Diálogos Recentes sobre Práticas de Inclusão Sócio-Educativa.

Historicamente a legislação brasileira facultava às instituições católicas de educação e outras similares, contempladas pela lei da filantropia, o destino para práticas sociais de 20% do volume total da receita correspondente a isenção de tributações oficiais. Muitas instituições praticavam bolsas de estudo destinadas à população economicamente mais vulnerável. A legislação a este respeito sofreu permanentes inovações. A partir de 2012, no entanto, a legislação enrijeceu, obrigando as instituições educativas a realizarem a relação de uma bolsa de estudos para cada cinco alunos pagantes. Afirmou-se claramente o controle do Ministério da Educação com relação a estas práticas.

A novidade, apesar de conter um fator agressivo de limitação da autonomia das instituições, oportunizou que fosse gerado um ambiente fecundo de soluções que fossem suficientemente seguras, tanto para a sustentabilidade econômico-financeira, quanto para a ampliação da efetivação dos valores da educação católica e de outras entidades símiles. Como venho lidando com a discussão das entidades filantrópicas, o novo ambiente criado muito me mobilizou e iniciei a esboçar uma pesquisa de opinião junto a gestores de instituições católicas de educação. A questão da pesquisa: qual a eficácia educacional segundo os valores das instituições católicas de educação, da realização das bolsas exigidas por lei dentro das próprias instituições ou em instituições criadas, à parte, em contextos sociais mais vulneráveis.

É sabido que, com os novos movimentos da legislação, algumas instituições passaram a praticar modalidades diversas de realização das bolsas para poderem atender ao mesmo tempo às exigências legais sem perder o foco nos seus valores institucionais e, também, garantir a viabilidade econômico-financeira.

A partir de uma simples pergunta dirigida a gestores de educação básica em instituições católicas, sobre vantagens e limitações das diferentes modalidades, foram colhidas algumas contribuições importantes, que ajudam a avançar na reflexão:

Existe uma forte convergência na afirmação de que “não é o administrativo que deve fundamentar as opções pedagógicas”, pois “números podem camuflar rostos”. Deve ser “opção pensada como política pedagógica”. Existe, no entanto, a percepção de que na prática, apesar de as instituições alegarem a fidelidade à missão como motivação central, muitas vezes pesam implicitamente outros argumentos, inclusive ligados a não causar prejuízo ao conforto das famílias pagantes, preservando suas presumidas expectativas.

O modelo de praticar bolsas internas à própria instituição que atende público pagante, parece não ser rejeitado sempre que viável, até afirmado que seria o modelo “mais próximo do melhor”. Pois constitui-se, segundo opinião de alguns, em um dos elementos que contribui para que a qualidade da educação também seja equidade na educação. Isto estaria “agregando valor social e intelectual”, pois “aprendemos mais com o outro, estando juntos, do que oportunizando que apenas um contexto se desenvolva isoladamente”. Há quem lembra que devemos evitar estar contribuindo para o “confinamento das periferias” e promover a prática da troca, pois é muito importante para os que vem da periferia “se perceberem enquanto seres inteligentes e iguais a todos os demais”. Ademais, “a convivência do público pagante com o público bolsista gera um mútuo crescimento e mostra concretamente para a comunidade o trabalho social que a escola desenvolve”.

Privar as instituições de público pagante da presença de bolsistas provindos de meios sociais mais vulneráveis, estaria ajudando a reforçar a já “carência e déficit de diversidade” que marca estas escolas em geral. Estas “correm o risco de serem instituições de alunos ‘perfeitos’, ou seja, brancos, (…) de uma mesma classe econômica”, quando os alunos ‘problema’ são “eliminados já no processo de seleção”. A “riqueza do convívio na diversidade” é “um importante elemento para a educação integral”.

A prática de destinar os recursos para instituições externas, e não aplicar dentro da própria instituição, “a longo prazo, favorece a dimensão administrativa, mas pedagogicamente segrega a sociedade afirmando o que o sistema prega”. A reprodução de escolas especiais para a elite e escolas de formadoras de servidores dos que dominam. Trata-se de um alerta muito repetido: “Existem vantagens de grande impacto social, mas também aparecem perigos de segregar”. No entanto também apresentam uma importante convergência de opiniões favoráveis, sobretudo ressaltando o seu impacto social nas comunidades locais. “Possibilitar oportunidades a populações necessitadas”, “dar oportunidade a populações de áreas de carência sócio econômica”, “fortalecer a comunidade local” são expressões associadas à importância de uma “política pedagógica intensa”, (…) “inserida na comunidade com proposta sócio política e educativa parra além dos seus muros, trabalhando as famílias mais de perto.

Alguns mencionam também o argumento financeiro, no sentido da oportunidade de fazer mais com menos, pois os custos para manter bolsista em instituições de maior porte são muito maiores do que os custos em uma escola de menor porte e torna-se possível beneficiar um público muito maior. Neste argumento subjaz também a ideia de que, para garantir a manutenção dos índices de avaliação da instituição, seria necessário um investimento muito grande nos alunos bolsistas, de difícil praticabilidade econômico-financeira.

A convergência que predominam nos gestores ouvidos é de que as duas opções são importantes. Se reconhece que a opção por fazer as bolsas na própria instituição de público pagante é a opção mais complexa. Seria fundamental mantê-la, sempre que viável, não excluindo, no entanto, a opção por efetivar bolsas em instituições nos meios populares mais vulneráveis. “Ambas as proposições de oferta de bolsas de estudo são legítimas e agregam para a construção de um país com mais justiça social, garantindo o acesso a uma educação de qualidade, que forme integralmente o sujeito”.

O ideal seria que a própria instituição de público pagante pudesse ter uma interação com uma comunidade carente na circunvizinhança. O distanciamento geográfico facilmente estará associado ao enfraquecimento dos “laços sociais e agravando o processo de elitização da instituição” de público pagante.

Todas estas questões estão em pauta num rico debate e que demanda aprofundamento. Envolve, sobretudo, a questão das práticas pedagógicas em sala de aula para grupos diversificados socio culturalmente ou não. Trata-se de um desafio tremendo para instituições que tem no centro de sua missão, a fraternidade, ou seja, a inclusão e a equidade.

Notas não Conclusivas

O grande desafio das instituições católicas de educação e todas as demais que estejam alinhadas a propósitos similares, está em encontrar e preparar professores/as que efetivamente tenham condições de dar conta da criação de um ambiente em sala de aula, suficientemente adequado às inovações tecnológicas reinantes e às exigências sempre mais desafiadoras de lidar com a diversidade ou ao menos, de provocar a radical rejeição à cultura elitista e excludente.

No que diz respeito à confessionalidade das instituições é necessário sublinhar o desafio do diálogo inter-religioso é sem dúvida uma pauta importante e cultivada em muitas instituições. Este diálogo é uma grande escola de aprendizagem. Ele só se faz possível se aqueles que dialogam entre si sabem cultivar sinceramente os seus próprios processos de identidade religiosa e cultivarem ao mesmo tempo um grande reconhecimento dos processos de identidade religiosa dos outros. Neste o apelo e desafio apresenta uma face dupla: 1) proporcionar condições efetivas para um real ambiente de educação para as relações inter-religiosas harmônicas e de reconhecimento mútuo; 2) proporcionar condições efetivas para um real ambiente que possibilite o crescimento no processo de identidade católica para todos os que buscam esta orientação.

A confessionalidade também deve ser vista em relação ao Estado laico? Talvez o melhor caminho seja levar efetivamente a sério a própria expressão “educação católica”: Educação é o substantivo e católica é o adjetivo. A educação não é um meio de proselitismo da própria religião, mas sim é um serviço público de preparação de profissionais e cidadãos para a sociedade. A educação é católica não por usar o nome católico como marca impressa na tradição, mas enquanto este serviço público é iluminado por princípios, valores e práticas cristãos professados pela igreja católica.

Por fim, mas não em último lugar, está o grande desafio da compatibilidade entre sustentabilidade econômico financeira e um efetivo trabalho de inclusão socioeducativa. Isto passa pela busca de sólida organização de apoio nacional, que proporcione sinergia nos esforços comuns pela boa gestão e inovações tecnológicas, como também passa pelo aprendizado mútuo a conjunto a partir das melhores práticas em sala de aula tanto em nível tecnológico quanto em nível de avanços pedagógicos no lidar com a diversidade e com os impactos de uma cultura hegemônica perversamente excludente.

Notas:

  1. Tratava-se de uma produção inovadora em termos de catequese. As chamadas FICHAS CATEQUÉTICAS organizadas sob a coordenação do especialista na área Ir. Antonio Cechin (da Congregação dos Irmãos Maristas). O próprio Ir. Antonio em uma de suas últimas entrevistas em vida, se refere a este material: “As fichas catequéticas foram o fato divisor de águas de minha vida que pode ser separada em duas partes inteiramente diferentes uma da outra. Autores que fomos do sonho maior de minha irmã Matilde e meu, concretizado nessas fichas desencadeadoras de uma Catequese Nova e Libertadora, o continente latino-americano se transformou em nosso calvário mais dolorido”. O Ir. Antonio relata a surpresa e o espanto pessoal que teria tido em 1969, ao ver o Coronel Jarbas Passarinho, Ministro da Educação, brandindo na televisão estas fichas catequéticas e vociferando tratar-se de material altamente subversivo destinado à lavagem cerebral dos pré-adolescentes para o comunismo. “… referia-se aos colégios católicos como os principais disseminadores dessas ideias…”. http://www.ihu.unisinos.br/?id=516685 (acesso: 08/07/2018).
  2. Entidade contratada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, para a primeira impressão daquele material.
  3. O esquema de base de presente texto reproduz a mesma lógica de outra publicação recente, com o título “Brazil, Catholic religion and education: challenges and prospects” (Follmann, 2017), na qual tive a oportunidade de sintetizar na primeira parte a contribuição do Streck e Segala (2007), aqui referida. Retomo aqui algumas passagens do artigo de 2017, com a novidade, por um lado, da reflexão sobre os impactos na e da sala de aula e, por outro lado, do acréscimo do recente debate sobre as formas mais apropriadas de práticas de inclusão socioeducativa.
  4. O documento que, hoje, melhor expressa toda a trajetória e avanços vividos em termos de igreja na América Latina nas últimas décadas e sua situação atual é o documento de Aparecida do Norte, Brasil, em 2007. Ver neste sentido Jaci de Fátima Candiotto. A Educação Cristã na atual Cultura a partir do Documento de Aparecida. XI Congresso Nacional de Educação – EDUCERE, 2013, PUC-PR.
  5. Em 30/10/2007, aconteceu incorporação da ABESC – Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas e da ANAMEC – Associação Nacional de Mantenedoras das Escolas Católicas, na AEC – Associação de Educação Católica, que passou a denominar-se Associação Nacional da Educação Católica do Brasil – ANEC, em funcionamento, com este nome, a partir de 2008. Deu-se a partir daquele ano um processo de ajustes desta, superando-se em definitivo a situação desarticulada de três instâncias, como vinha sendo anteriormente. O seu estatuto social data de 25 de setembro de 2012.
  6. http://www.curtanaeducacao.org.br/realizacao/anec/ (Acesso 09/07/2018).
  7. Pesquisa do Instituto Data-Folha de julho de 2018, São Paulo, Brasil mostra 51% católicos e 33% evangélicos. Além da explosão visível do número de evangélicos, outros aspectos devem ser considerados, pois subsistem controvérsias em relação às metodologias de pesquisa, podendo a diversidade ser ainda maior devido à multiplicação de “dupla identidade religiosa”, misturando segmentos de matriz africana e das práticas espíritas com a “fachada” externa católica.
  8. O que sempre mais pesou para estas “recaídas” são os “espaços consideráveis nas áreas da saúde, educação, lazer e cultura” (Mariano, 2001, p. 146) que a igreja católica continuava e continua ocupando. Um evento recentíssimo foi particularmente perturbador na evolução harmônica das relações do Estado laico com a esfera religiosa no Brasil. Trata-se do Acordo entre o Estado Brasileiro e a Santa Sé assinado em 2008. Foi um acordo bilateral solenemente assinado em 13 de novembro de 2008 entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao estatuto jurídico da igreja católica no Brasil, onde os signatários foram o Presidente Luiz Ignácio Lula da Silva e o Papa Bento XVI. Trata-se de um Acordo muito polêmico e gerou grandes perturbações no avanço de uma compreensão harmônica da função do Estado laico. Em resposta a este Acordo foi gestada a Lei Geral das Religiões apresentada em 2009, por um Deputado Federal, Pastor da Igreja Universal do Reino de Deus (Igreja Neopentecostal). O teor principal desta Lei é tornar o conteúdo do Acordo em questão, extensivo às outras denominações religiosas. Segundo a pesquisadora Fischmann (2009) trata-se de uma “tentativa de corrigir um erro incorrigível”.

Referências Bibliográficas

Alves, M. (2006). Perspectivas para o Ensino Católico no Brasil. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, Brazil, Vol. 6, n.19.

Beozzo, J. O. (1993). A Igreja no Brasil. In J. O. Beozzo (Ed.), A Igreja Latino-americana às vésperas do Concílio: História do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo, Brazil: Paulinas.

CELAM (1968). Os cristãos e a Universidade (Seminário de Peritos e Encontro Episcopal, Buga, 1967). Perópolis, Brazil: Vozes.

CELAM (2007). Documento de Aparecida: Texto Conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo, Brazil: Paulus.

Fischmann, R. (2009). Acordo contra a Cidadania. Disponível em: ˂http://silncioerudoasatiraemdenisdiderot.blogspot.com.br/2009/06/enviado-por-roseli-fischmann.html˃. Acesso em 03/03/16.

Follmann, J.I. (2017). Brazil, Catholic religion and education: challenges and prospects. International Studies in Catholic Education. Routledge – Taylor &Francis Group, 9:1, 77-88. http://dx.doi.org/10.1080/19422539.2017.1286912

Mafra, M. C. (2002) Na Posse da Palavra: religião, conversão e liberdade pessoal em dois contextos nacionais. Lisboa, Portugal: Imprensa de Ciências Sociais.

Mariano, R. (2005). Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. São Paulo, Brazil: Edições Loyola (2ª ed.).

Streck, D. R.; Segala, A. L. (2007). A theological-pedagogical turning point in Latin America: a new way of being school in Brazil, in G.R.Grace and J.O’Keefe (Eds.), International Handbook of Catholic Education – Challenges for School Systems in the 21st Century. Vol.2, Dordrecht, The Netherlands: Springer, 2007.

O PAPEL DO INTELECTUAL: 22 ANOS DEPOIS…

Publicado em livro do PPG de Educação “Os 25 Anos do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos: Trajetórias e Perspectivas” em 2019

Uma das formas de produção do conhecimento acontece no próprio processo de educação

José Ivo Follmann

Introdução

Em março de 1997 fui convidado para proferir uma “aula inaugural” no Curso de Mestrado em Educação. O Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos estava ensaiando os primeiros passos, em seu terceiro ano. Na época, a palestra “O Papel do Intelectual no Mundo Atual: Uma Reflexão com Educadores”, representou um desafio muito grande. Via-me como um “estranho no ninho”, um sociólogo no meio de especialistas em educação. Encarei o desafio e creio que consegui atender a expectativa. A palestra foi reproduzida em forma de artigo na Série Educação da Revista Estudos Leopoldenses. (1)

Agora, o mesmo Programa de Pós-Graduação me surpreendeu ainda mais com o convite para escrever “O Papel do Intelectual: 22 Anos Depois…”, integrando a presente publicação comemorativa. Sem dúvida, o desafio encarado em 1997, assume, nos dias de hoje, contornos mais estimulantes. Frente a um Programa que se tornou referência em produção de conhecimento dentro do campo da educação, tenho todas as razões para continuar me considerando um “estranho no ninho”, em uma reflexão com educadores dentro deste tema. Com certeza, cresci na percepção e consciência dos meus limites. No entanto, ao reler o texto de 22 anos atrás, fiquei, em um primeiro momento, surpreso por sua curiosa pertinência para os dias de hoje. A saída mais cômoda e fácil seria a sua “reedição”, com algumas adequações e ampliações. Escolhi, porém, talvez por “audácia irresponsável”, um caminho mais difícil, o de fazer um novo texto, reproduzindo, inicialmente, uma síntese de algumas contribuições do escrito e fala de 1997. A “audácia irresponsável” se deve, sobretudo, ao fato de formular um texto que extrapola da competência sociológica, partindo para um paradigma decididamente transdisciplinar, no qual se mesclam percepções sociológicas e depoimento testemunhal, temperados com sonhos, valores e convicções vivenciados no meu dia a dia.

Os caminhos que trilhei de 1997 até hoje, justificam essa decisão mais difícil e mais estimuladora. Escrevo a partir de um lugar de múltiplas referências, como professor e pesquisador em sociologia (2) , como gestor em instituição de educação superior (3), como integrante assessor de atividades de educação das relações étnico-raciais na Universidade (4) , como integrante articulador de grupo inter-religioso de diálogo (5) , como articulador de promoção da justiça socioambiental da congregação religiosa dos jesuítas no Brasil, tendo como referência o paradigma da “ecologia integral” (6), e, obviamente, como religioso sacerdote católico jesuíta. Algumas temáticas me mobilizaram ao longo desses anos: a própria prática transdisciplinar, as relações étnico-raciais, o diálogo inter-religioso, o processo da sociedade brasileira e, sobretudo, a relação da universidade com a sociedade. São temáticas que ajudaram na “composição do lugar” para a elaboração do presente texto.

Dentro do contexto de explícitas manifestações de recuo obscurantista, que presenciamos no momento atual, senti-me impelido a referir a minha reflexão a dois motes fundamentais: o primeiro é o grande avanço que a humanidade teve com a declaração universal dos Direitos Humanos, feita pela Organização das Nações Unidas – ONU, em 1948, como uma espécie de pacto da verdade humana contra o obscurantismo; e o segundo, é o testemunho do Papa Francisco, nos dias de hoje, conclamando-nos profeticamente a não ficarmos mais insensíveis/indiferentes frente ao risco que a humanidade está correndo, de se afundar no obscurantismo e na desumanização.

O texto está estruturado no formato de cinco pequenos subtítulos, na sequência da presente introdução, constituindo o corpo da reflexão proposta: 1) A retomada sintética de contribuições de 1997; 2) O saber cosmopolita e o papel da universidade; 3) A descolonização das mentes; 4) O Brasil, uma intelectualidade de brancos? 5) A linha da dignidade e os intelectuais. A conclusão leva o título de: “Palavras para (não) concluir”…

Os dois motes fundamentais do texto, acima referidos, trazem em seu bojo a minha crença pessoal com relação ao papel dos/das intelectuais – me refiro aos/às intelectuais das universidades -, como portadores/as de condições privilegiadas para despertar e crescer na sensibilidade, cultivando a dignidade do ser humano e combatendo todas as formas de indiferença e insensibilidade em referência às situações de ausência ou obstrução a condições de vida com dignidade. “Condições privilegiadas”, para mim, sempre soou e soa como dever! O texto deve ser lido nesta perspectiva, ou seja: de defender a importância dos/as intelectuais na defesa do pacto com a verdade humana. Lembremos que aquele pacto de 1948 (declaração universal dos Direitos Humanos) não foi um pacto de sangue, mas um pacto que nasceu do escândalo frente ao inominável derramamento de sangue de que a (des) humanidade tinha sido capaz.

1) Retomada sintética de contribuições de 1997

Em 1997, iniciei o texto referindo que ser intelectual é ajudar a recolher e organizar, por um lado, os caminhos andados no passado e, por outro, as sinalizações existentes em vista do futuro, tendo os pés, o coração e a cabeça muito responsavelmente assentados no presente como preocupação principal. Foi o que orientou basicamente o debate realizado na sequência daquela fala/aula inaugural. Sinalizei que isto pode assumir os mais diversos teores. Apontei, de passagem, a classificação sugestiva feita por Horácio Gonzalez, em sua obra O que são intelectuais (1984).

As sinalizações iniciais do texto, ou melhor, daquela fala, foram temperadas com pitadas de crítica ao que chamei de “patologia acadêmica”. Associando-me a Henry A. Giroux (1990) e Antonio Gramsci (1974), evidenciei minha posição de total desacordo com certas práticas acadêmicas que acabam formando gente inadaptada, “pessoas que se consideram superiores ao restante da humanidade” pelo simples fato de serem vistos/as e se fazerem ver como “intelectuais”. Ressaltei a importância da organicidade social da produção intelectual. Ser intelectual significa ser criador/a e organizador/a da cultura. Mesmo que, a rigor, todo ser humano contribui para tal, o foco naquele texto estava nos/as intelectuais do mundo acadêmico, os/as quais têm uma vocação especial de serviço à cultura e sociedade. Este foco continua sendo, também, a preocupação central do presente texto.

Complementei aquela fala de entrada com a narrativa de uma “conversa de chimarrão” com um morador da vila popular onde eu residia, na época. O meu interlocutor dissera que, no meio onde ele morava, em vez de cultura, o que mais existia era “curtura”… “De cultura não tem nada”. Ele se referia à facilidade com que as pessoas se esquivavam de dar opinião quando perguntadas sobre determinados trabalhos na comunidade, dizendo não estarem preparadas, mas “quando outros tomam a iniciativa e fazem algo, eles tascam o pau em cima”.

Comentei, no meu texto, o quanto aqueles comentários do meu interlocutor popular haviam despertado em mim maus pensamentos a respeito da “curtura” das pessoas cultas. Eu pensava, é claro, nos/as intelectuais da academia, que muitas vezes são “enciclopédias ambulantes” em sua área, mas dificilmente assumem o risco de dar uma opinião quando estão envolvidos diferentes interesses políticos ou sociais. É sempre mais cômodo, permanecer num nível não imputável e de superioridade preservada.

Naquele meu comentário não cheguei a explicitar isto. Apenas enunciei genericamente esses “terríveis maus pensamentos”. Preferi fazer uma breve menção à ideia explicitada por Karl Mannheim (1976), da “freischwende Intelligenz” (inteligência sem vínculos ou amarras). Ressaltava que ser intelectual, nesse sentido, implicava no “cultivo de espírito livre, não diretamente vinculado a organizações e interesses ideológicos, políticos e econômicos muito determinados”. Essa postura é importante, mas estou tendendo sempre mais a pensar que é uma postura inócua ou, talvez, melhor, inoportuna. Pois, no afã de se preservar, o intelectual acaba sendo uma presa fácil dos interesses dominantes.

O corpo principal do texto de 1997 reproduziu aspectos de minha tese doutoral de sociologia, na qual eu havia introduzido um esquema teórico a partir de uma tríplice perspectiva com Alain Touraine (1984), Pierre Bourdieu (1971), Guy Bajoit (1992) e outros, trabalhando simultaneamente a “lógica dos movimentos sociais”, a “lógica dos campos de atividade” e a “lógica do sujeito e da dinâmica pessoal”.

Trata-se, obviamente, de uma simplificação, pois a complexidade não é fácil de enquadrar. Sempre percebi, no entanto, um grande poder heurístico nesse modo simplificado de tratar a questão, pois ao tratar do nível da “lógica do sujeito e da dinâmica pessoal” no cotidiano, fica evidenciado que as lógicas do conflito central na autoprodução societária e as lógicas dos campos de atividades, dão corpo e substância à grande parte deste cotidiano que é movido por sujeitos com suas luzes e sombras pessoais, suas liberdades e seus preconceitos, suas intuições e seus dogmas. O mesmo exercício podemos fazer com os outros dois “níveis” ou “recortes”. Prestar atenção particular à tríplice perspectiva, procurando entender às três lógicas próprias, nos fornece uma chave sociológica muito consistente.

Na sequência, tomando como referência Edgar Morin (2002), destaquei que o ser intelectual tem muito a ver com movimentar-se com liberdade no meio da complexidade do mundo atual; ajudar a humanidade a dar conta da complexidade; ajudar a humanidade a organizar-se, de tal forma que as pessoas não acabem esfaceladas e estraçalhadas.

Nos últimos parágrafos do corpo principal do texto de 1997, referi dois breves lembretes conclusivos. Num primeiro, inspirado em Agnes Heller (1970), sublinhei que o fazer-se em interação na complexidade do cotidiano ajuda o desabrochar do ser intelectual, dando-lhe mil oportunidades diárias para colocar entre parênteses os próprios dogmas e preconceitos. O ser intelectual se faz na medida em que houver esta coragem.

Num segundo lembrete, inspirado em Max Weber (1959), referi a importância de distinguir entre as responsabilidades funcionais dos intelectuais e as suas convicções e valores pessoais. Isto envolve duas “direções éticas” – a da responsabilidade e a da convicção -, irredutíveis, mas que devem ser, sábia e organicamente, integradas. Segundo o meu orientador da tese doutoral Jean Remy (1984), – de saudosa memória, grande admirador e seguidor de Max Weber -, o indivíduo, na concepção sociológica weberiana, é um indivíduo puxado ou assediado tanto pela intensa racionalidade expressa na ética da responsabilidade, quanto por uma certa dose de responsabilidade expressa na ética da convicção. Em uma sessão de orientação, na época, o Prof. Jean Remy me marcou profundamente, com as seguintes palavras: “Nenhuma religião subsistiria se os que estão à sua frente reduzissem todas as suas decisões a apoios fornecidos pelo conhecimento técnico-científico. Como também nenhum empreendimento técnico-administrativo ou de estratégia política subsistiria se os que estão à sua frente se deixassem arrastar pelas crenças e convicções religiosas suas ou dos outros”.

O texto de 1997 ainda sinalizou diversos fenômenos como características da cultura de nossa sociedade, considerados reveladores dos desafios propostos para os/as intelectuais de nossa história e foi concluído com uma rica e fecunda troca de ideias com os/as professores/as e mestrandos/as presentes.

2) O saber cosmopolita e o papel da universidade

Muitas vozes já se levantaram ao longo da história de academia brasileira denunciando os limites inerentes às categorias e métodos cultivados nessa academia. Trata-se de uma academia euro-referente em sua constituição inicial, evoluindo posteriormente para uma referência norte-americana. Suas categorias e métodos são demasiado redutores e limitados para darem conta da complexidade revelada na sociedade brasileira. E, com um agravante: esta complexidade sofria e sofre de um viés colonialista e racista, jogando a academia na vala fácil da reprodução deste viés. A expressão mais patente disso era e é que, por exemplo, negros/as, mesmo quando bem formados/as na academia, continuavam e continuam sendo vistos/as e tratados/as como problema e objeto de pesquisa, e não como protagonistas, sujeitos de produção do conhecimento. (7)

Existe um vigoroso despertar em relação aos limites do mundo acadêmico acompanhados de forte crise epistemológica. Talvez quem melhor conseguiu pautar esta questão tenha sido o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2002; 2007), internacionalmente conhecido e aceito. Trata-se de alguém que nos ajuda a refletir sobre a incapacidade que herdamos para gerar um presente e um futuro condizentes com o que a humanidade espera. Nossas categorias e nossos métodos são insuficientes para dar conta da complexidade da experiência humana. Já não se tem segurança para dar respostas categóricas. (8)

Mais do que uma época de mudanças, estamos vivendo uma mudança de época. Esta assertiva tornou-se um verdadeiro “mantra” repetido ao longo das últimas décadas, a partir das reflexões de Ilya Prigogine (2002) a respeito da ciência cujos paradigmas clássicos atingiram os seus limites exigindo nova visão de ciência e de realidade. Outros pensadores e outras pensadoras fizeram coro a essas constatações. Se estivesse amparando a minha reflexão na filosofia, teria que colocar, sem dúvida, em primeiro plano o filósofo brasileiro P. Henrique de Lima Vaz. No entanto, como a referência de base é a sociologia, devo destacar o português Sousa Santos, aqui referido, que muito transita no Brasil. No pensamento dele fica clara a atenção à mudança de época em termos de epistemologia. Este sociólogo é certeiro ao propor que estamos passando da razão indolente característica do paradigma da ciência moderna, para a razão cosmopolita característica do paradigma emergente.

Ou seja, aquilo que se supunha que estaria sempre mais sob nosso controle e comando, parece tornar-se de mais a mais, um “mundo em descontrole”. A repetição cômoda (indolente) da lógica disciplinar não dá conta da explosão da novidade emergente. Existe uma “linha abissal” entre a reprodução acadêmica cômoda e redutora e a necessária interlocução entre os diversos saberes. O autor nos propõe uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências e fala da importância do trabalho de tradução.

De uma forma, talvez caricatural, ouso ensaiar que Sousa Santos, quando fala das ausências, se refere a todos aqueles “mundos” que foram tornados invisíveis pelo processo civilizatório colonialista. Quando fala das emergências, se refere às múltiplas resistências, iniciativas e criações que foram ignoradas no passado ou não mereceram o registro que lhes era devido ou que despontam e se afirmam nas sociedades em ebulição que vivemos. Quando fala em tradução, se refere ao esforço de romper com a estreiteza epistemológica, lançando pontes de diálogo fecundo entre os saberes “disciplinados” e “não disciplinados”.

Este autor consagrou a concepção de “ecologia dos saberes” (9), apontando para o significado profundo daquilo que outros denominam de “transdisciplinaridade” (10) ou “teoria da complexidade” (11) . A sua reflexão conduz a uma crítica radical ao modo de ser da academia, em geral, quando se fecha sobre si, não deixando fluir por dentro dela a vida da sociedade em sua complexidade, ou seja, quando deixa de ter sintonia e compromisso com os problemas, os movimentos e as expectativas da sociedade. Ele também sinalizou uma postura crítica certeira contra as práticas de extensão da universidade, quando estas não repercutem na própria vida e modo de produzir conhecimento da mesma. Ficou consagrada uma frase dele, em epígrafe na apresentação do texto do Plano Nacional de Extensão:
Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino. (12)

Mudando de registro, mas sem sair do foco, quero fazer três menções, que considero oportunas e relevantes, para encerrar o presente item: Em primeiro lugar, a contribuição de Jabier Gorostiaga sj, um economista jesuíta, que conheci quando ele atuava como secretário executivo no Planejamento Estratégico da Associação das Universidades Jesuítas de América Latina – AUSJAL. Ele liderou, nos inícios dos anos 2.000, o processo de planejamento em pauta, no contexto do qual foram formuladas três perguntas-chave: – Que tipo de sociedades queremos? – Que sujeitos precisamos para que essa sociedade aconteça? – Como devem ser nossas universidades, em vista disso? (13) Estas perguntas ficaram registradas profundamente no meu horizonte. Cultivei um grande apreço por Gorostiaga e a maneira concreta como ele e os demais envolvidos no Planejamento da AUSJAL se empenharam em aplicar para a América Latina as orientações para a educação da Companhia de Jesus. Trata-se de uma educação cujo fim não está nela mesma, mas no serviço à sociedade, na construção de uma sociedade inclusiva e justa onde o centro de tudo está no ser humano e sua dignidade. Isto exige que o nosso foco como intelectuais envolvidos/as em universidade, nesse contexto, seja o ser humano e sua dignidade.

Em segundo lugar, de forma complementar, jogando-nos de cara na realidade brasileira, as importantes provocações dos textos e falas do sociólogo Jessé Souza (2015; 2017; 2018a,b), talvez o sociólogo mais em evidência nos últimos anos no Brasil, quando ele faz uma crítica consistente à universidade brasileira, atrelada em grande parte, de forma geral não consciente, à reprodução do modelo de educação e de produção do conhecimento, alinhado ao serviço de uma perspectiva de desenvolvimento que constrói um Brasil insensível, de 20% da população de “gente bem”, sem gerar mecanismos efetivos de inclusão dos demais 80% submetidos/as às mais diversas formas de privação e de exclusão. Segundo o autor:
Pelo menos 90% do que se passa por científico nas ciências sociais e costuma ser ensinado nas universidades não passa de mera confirmação de um conjunto de preconceitos que visa eternizar a dominação social de uns poucos sobre muitos. (SOUZA, 2018b, p.11)

O mesmo autor, em termos que caracterizo como “denúncia profética”, nos fornece um comentário complementar, afirmando ainda que:

O essencial é constatar o papel do conhecimento como um capital tão importante para o funcionamento do capitalismo quanto o próprio capital econômico. O próprio dinamismo econômico do capitalismo advém de seu aproveitamento sistemático da ciência e do conhecimento nos meios de produção”. (SOUZA, 2018b, p.69-70)

Em terceiro lugar, ao falar em “gente bem” e falando da intelectualidade das universidades, cabe uma nota e uma interrogação a respeito da meritocracia hipócrita, da qual o mesmo autor fala repetidamente em suas obras. Existe, na sociedade brasileira, uma cultura de classificação e hierarquização intelectual por méritos curriculares, baseada em indicadores, imputados como universais. Estes mecanismos, embora possam ser, sem dúvida, impulsionadores de “produção acadêmica”, apresentam aspectos questionáveis. Uma revisão nessa prática se faz urgente, caso o país queira livrar-se dos seus próprios vícios estruturais geradores de desigualdade e exclusão porque a chamada meritocracia está aí para premiar os já premiados e, sobretudo, legitimar a distinção dos premiados. Assim, vantagens e privilégios herdados de berço, em geral sem esforço, acabam sendo revestidos e mascarados como “méritos”. Quem não herda as vantagens e privilégios de berço tem a sua trajetória intelectual prejudicada de raiz.

Que sociedade queremos? Uma sociedade que exclui a maioria de sua população das condições de vida digna, ou uma sociedade onde todos/as tenham chances e condições de vida digna? Uma sociedade onde os indivíduos possam exercer os seus dons naturais, independente das condições de herança? Quais os apelos que devemos dirigir aos/às intelectuais que consubstanciam a vida das universidades brasileiras? Que critérios além dos existentes, devem ser considerados na classificação e hierarquização da intelectualidade na sociedade?

3) A descolonização das mentes (14)

O Papa Francisco, em um de seus gestos, alguns meses depois de assumir como bispo de Roma e líder máximo da Igreja Católica, visitou, em 08 de julho de 2013, a ilha siciliana de Lampedusa, local que testemunhava a tragédia cotidiana de grupos de africanos, buscando desesperadamente entrar em território europeu. “Vivemos em uma globalização da indiferença”, clamou o Papa. Com palavras duras contra a insensibilidade humana que impera, o Papa orou, dizendo: “Peçamos ao Senhor que nos dê a graça de chorar por nossa indiferença, pela crueldade que existe no mundo, dentro de nós e naqueles que, no anonimato, tomam decisões socioeconômicas, a nível mundial, que levam a dramas como este”. (15)

A palavra chave no combate à insensibilidade e indiferença é o reconhecimento. A insensibilidade e a indiferença com relação ao outro e à outra só são superadas com atitude decidida de reconhecimento deste/a outro/a em sua dignidade. Inspirados no Papa Francisco, talvez devamos dizer que a epidemia mais forte, vivida pela humanidade, hoje, é a insensibilidade/indiferença frente às condições indignas vividas por segmentos sempre mais amplos da população mundial. A falta do reconhecimento concreto dos sujeitos desses segmentos clama por nossa responsabilidade. Clama pela responsabilidade das universidades e dos/as intelectuais que as consubstanciam. É algo que não pode ficar fora dos indicadores de avaliação de um/a intelectual em nossos dias.

Trata-se de um apelo desafiador para os/as intelectuais das universidades brasileiras uma vez que é conhecido que o Brasil vem gerando uma das desigualdades sociais mais iníquas e escandalosas. Devemos perguntar-nos: Como lidar com este apelo, quando sabemos que somos vítimas de mecanismos e vícios, que, de forma perversa, facilitam o trânsito da insensibilidade e da indiferença irresponsáveis? Talvez entre esses mecanismos e vícios o mais tremendo e fatal seja a estreiteza hipócrita da já referida meritocracia, na forma como é praticada em nossa sociedade, às vezes não conseguindo disfarçar o próprio racismo que ainda impera nesta sociedade. Ou, talvez, sejamos presas fáceis das soluções hipócritas e interesseiras tanto de “direita” como de “esquerda”?

A mentalidade colonial permanece muito acesa em grande parte dos âmbitos de nossa sociedade, que leva a marca de uma elite branca que se cega em seus privilégios e “méritos”. Continuamos tendo sinais vivos do racismo colonial hipócrita e mal disfarçado no Brasil, sempre que prestamos atenção aos grupos marginalizados de negros, indígenas e outros, que seguem sendo empurrados para as classes inferiores da sociedade, assim como o foram ao longo de todo processo histórico. Este processo foi e continua sendo um processo de branqueamento. Descolonizar as mentes embranquecidas da sociedade brasileira, é, sem dúvida, um dos primeiros desafios do/a intelectual nas universidades de nossa sociedade.

Um dos motes mais vigorosos nas reflexões de Petronilha Beatriz Gonçalves da Silva sobre a Educação das Relações Étnico-raciais – ERER é a importância e urgência da “descolonização das mentes”. (16) Podemos dizer, talvez, sem receio, que na medida em que o Brasil souber levar a sério o processo de educação das relações étnico-raciais tal como está prevista na Lei de Diretrizes e Bases – LDB (1996), através de instituição da lei complementar 10.639/2003 e 11.645/2008, a sociedade brasileira não será mais a mesma. Os/as intelectuais estarão libertos/as dos constrangimentos mesquinhos no convívio com falseamentos e embustes, no que diz respeito aos preconceitos e discriminações étnico-raciais e outros, ainda profundamente presentes na mente e no coração da maioria.

4) Brasil, uma intelectualidade de brancos?

Segundo Jessé Souza, vivemos em uma sociedade que conseguiu trazer até nossos dias com muito sucesso e praticamente intacta a marca ideológica da estrutura escravocrata, gestada ao longo dos quase quatro séculos. É a estrutura mental de uma sociedade dividida entre “senhores” e “escravos”, entre cidadãos/ãs e não cidadãos/ãs, entre os que “naturalmente” merecem ser incluídos/as e os que “naturalmente” são excluídos/as. Esta estrutura mental transita tranquila, acobertada e dissimulada pela ideologia perversa de um povo alegre e pacífico e pelo mito da “democracia racial”. Nem mesmo a violência que desponta por todos os lados, parece alertar suficientemente para o desafiante embuste ideológico que caracteriza a sociedade de classes, que é o Brasil, e que marca todo processo vivido por nossa sociedade. As classes dominantes no Brasil efetivamente tiveram sucesso na sua elaboração ideológica. Isto se deu, sobretudo, porque a intelectualidade brasileira pendeu para o reforço dessa ideologia de reprodução colonial. (17)

Este autor faz críticas severas ao papel das universidades e dos/as intelectuais, dentro delas, por não terem contribuído suficientemente para romper esse esquema. Pelo contrário, como já foi referido anteriormente, serviram de reforço e reprodução do mesmo. Ele dirige as suas críticas a diversos autores de renome na história da sociologia brasileira (18) , cujas contribuições, às vezes geniais, acabaram reforçando mais a reprodução da estrutura de dominação do que a instauração de processos de transformação e superação da herança colonial.

As críticas de Jessé Souza são consistentes, sobretudo, quando demonstram a perversidade de ideias veiculadas na academia, na mídia falada e escrita, na política e na sociedade em geral, reproduzindo ou usando de forma simplificada e caricatural concepções elaboradas, dentro do meio acadêmico. As críticas incidem, sobretudo, no descuido intelectual com relação à estrutura de desigualdade social, gerada pela ganância desmedida da elite econômica brasileira, mas também incidem na forma, ingênua ou não, de acobertar ou dissimular esta mesma estrutura.

Somos uma sociedade cuja história veio sendo sistematicamente falseada e reproduzida, onde a mentalidade em geral tende a permanecer desgraçadamente obtusa e colonizada. Somos uma sociedade na qual a questão racial habita no cerne da questão social. No entanto, é necessário estarmos atentos: em geral, quando se fala da marca racial dentro das relações de classe a atenção se volta para a população negra, como objetos de análise. A professora Adevanir Aparecida Pinheiro (2018), mesmo reconhecendo o importante mérito de Jessé Souza, pela forma genial de pensar o Brasil, destacando os quatro séculos de estruturação da sociedade brasileira sob a marca da escravidão, ensaia uma crítica ao autor, retomando o argumento de que:
O problema é que quando se fala dessa marca racial, normal-mente toda carga de reflexão é colocada para o lado dos negros e pouco se fala dos brancos. Às vezes parece que na cabeça dos intelectuais, o problema racial existe porque existem os negros, quando é exatamente o contrário. É fundamental que a nossa atenção de estudo se volte para os brancos. (PINHEIRO, 2018, p. 170)

Mesmo que Jessé Souza não dê vazão para este tipo de postura, pois inclusive distingue entre “racismo racial”, “racismo de classe” e “racismo cultural”, ele se exime da oportunidade de denunciar com veemência o risco do “esquecimento”, mais uma vez, do racismo de brancos/as contra negros/as na sociedade que persiste forte, inclusive no meio acadêmico. Ele perde a oportunidade de colocar em evidência a mente colonizada do/a branco/a. É necessário que as mentes sejam descolonizadas. É necessário ampliar o estudo da “branquidade”. É necessário que as cabeças dos/as intelectuais sejam descolonizadas.

Os três eixos temáticos centrais de Jessé Souza (2017) em sua sociologia da sociedade brasileira, são: a marca da escravidão na sociedade; a força da perspectiva economicista na percepção das classes; e o racismo cultural na atualidade. Pinheiro (2018), atenta a esses três eixos do autor, registrou ter ficado intrigada com o fato de não ter tido respostas suficientes à questão do “branco na sociedade”:

A história da sociedade brasileira foi marcada profundamente em sua identidade por todo um conjunto de políticas de branqueamento que foram se sucedendo até nossos dias. O Brasil acabou se concebendo como uma sociedade branca. Ou, então, mestiça, com uma radical referência branca europeia. Como se explica isto, quando estatisticamente a maioria dos brasileiros tem em suas veias correndo o sangue africano? O que fez com que a branquidade tomasse conta da alma brasileira? Por que a intelectualidade brasileira não se insurge contra isto? Até parece que a própria academia tem pacto firmado com as elites brancas. Jessé Souza nos conduz muito bem para este horizonte de interrogações, mas acaba ficando a meio caminho neste ponto. (PINHEIRO, 2018, p. 177)

Segundo a autora, que faz uma distinção muito didática entre “branquidade” e “branquitude”,(19) é urgente que as mentes brancas sejam libertadas de sua branquidade. Talvez o sociólogo pudesse completar a sua obra avançando para um quarto eixo de atenção, além dos três eixos que são os direcionadores da mesma. Este quarto eixo poderia ser algo como: o branco brasileiro e a branca brasileira, quem são como se comportam? (PINHEIRO, 2018, p.178). No mesmo sentido este quarto eixo ajudaria também a aprofundar como este ser e este comportamento do branco brasileiro e da branca brasileira repercutem na mente e no coração dos negros e das negras e dos povos indígenas em nossa sociedade? (20)

Como descolonizar as mentes embranquecidas? Para abreviar, como já fiz em outros textos, vou trazer um registro para a reflexão que pode parecer estranho, mas tem vigor estratégico: Em um documento elaborado por uma equipe internacional e intercultural de jesuítas, sob a coordenação do Secretariado de Justiça Social da Companhia de Jesus, que circulou, a partir de fevereiro de 2006, no meio dos jesuítas em vista da preparação da 35ª Congregação Geral (Parlamento Superior dos Jesuítas), encontravam-se, entre outras, as seguintes recomendações: – “é recomendável que cada jesuíta se empenhe em defender ao menos uma cultura, que não seja a sua” (…); – “é recomendável que cada jesuíta se empenhe em estudar a fundo uma religião que não seja a sua” .(21)

Isto não está formulado assim em nenhum texto oficial. Trata-se, no entanto, de recomendações inspiradoras e que fazem parte do espírito da Companhia de Jesus. É uma ótima fórmula, por exemplo, para um/a branco/a romper as algemas de seu embotamento racial, colocando-se na efetiva defesa da população negra (ou indígena), tomando atitude e fazendo de sua prática cotidiana uma ‘prática afirmativa’ destes/as outros/as tão espezinhados/as em nossa história; ou, então, para um/a católico/a tomar conhecimento da profundidade das concepções teológicas das religiões de matriz africana ou outras, para conhecê-las, antes de julgar a partir de informações preconceituosas e carregadas de medo. Para se perder os preconceitos e o medo é necessário conhecer. Ninguém pode reconhecer a outrem quando nem sequer conhece. O conhecimento do outro e da outra, não como objeto de nosso estudo, mas como sujeito que se dá a conhecer, é um caminho infalível para descolonizar as nossas mentes e nossos corações. (22)

5) A “linha da dignidade” e os/as intelectuais.

Este subtítulo é uma provocação para o/a intelectual na educação. Mas é, especialmente, uma provocação dirigida àqueles/as que lidam com a chamada “pedagogia inaciana” ou “pedagogia inspirada na espiritualidade inaciana” e àqueles/as que lidam com “educação popular”, quando se quer pensar e propor um processo educacional condizente com as classes populares em nossa sociedade.

Inspirado em Charles Taylor (1979) e suas reflexões sobre a dignidade, Jessé Souza concebe a “linha da dignidade” na sociedade brasileira, como uma divisão, mais ou menos definida na sociedade, entre aqueles/as que são a “gente bem”, os cidadãos e cidadãs que usufruem com maior ou menor facilidade as condições de uma vida digna em sociedade, e aqueles/as que se encontram privados/as dessas condições e sobrevivem em condições não dignas do ser humano: a “ralé” brasileira como o autor afirma, sem dar a esta expressão conotação pejorativa ou ofensiva. O que está em questão é o ser humano em sua dignidade.

Constatei, ao longo de meu aprendizado, que existem importantes e oportunas aproximações que podem ser feitas entre a pedagogia inerente à espiritualidade inaciana e a proposta do educador brasileiro Paulo Freire (2000), pai da educação popular no Brasil.

As duas propostas centram a sua preocupação na existência do ser humano no mundo e sua vocação de se tornar mais humano. Ambas propõem uma ação educativa libertadora, buscando possibilitar a humanização do ser humano e do mundo. A humanização é a grande tarefa apontada nas duas propostas. Ou seja, tanto a espiritualidade inaciana, quanto a educação popular freireana trazem, inerentes à sua proposta, a dignidade da pessoa humana. Ambas propostas denunciam a perversidade da “linha da dignidade”, acima referida, as suas causas perversas e apontam caminhos de superação da mesma.

Existem evidentes restrições a serem feitas nesta comparação uma vez que os dois nomes em pauta viveram com concepções teóricas e visões de mundo muito diferentes, distantes, no tempo, mais de quatro séculos e em contextos culturais muito diversos. O fundador dos jesuítas viveu no século XVI e, obviamente, não tinha condições de ter a mesma análise da sociedade (análise de classes) que Paulo Freire teve, no século XX. O próprio conceito de educação popular, tal como o conhecemos, está obviamente vinculado à educação dos sujeitos das “classes populares”.

O que nos interessa, na comparação feita, é a concepção de pessoa do/a educando/a e o modo como o/a educador/a se relaciona com esta pessoa. A espiritualidade inaciana nos fornece chaves importantes no cultivo permanente da coerência evangélica, apontando para a importância radical da vigilância para não entrarmos em contradição entre o nosso modo de ser e o nosso modo de fazer. No paradigma pedagógico freireano, o nosso ser e o nosso fazer devem estar harmonicamente integrados, como ponto fundamental de uma metodologia imbuída de solidariedade concreta com os pobres.

Ou seja, tanto para inacianos/as como para freireanos/as, não cabe um trabalho sobre pobres ou para pobres; é necessário que isto passe pela nossa radical solidariedade com os sujeitos pobres. Para ambos é importante a vigilância com relação a isto. A busca do magis inaciano ou do ser mais freireano é um princípio de permanente de desacomodação, sem comprometer a coerência evangélica e a integração harmônica entre o ser e o fazer.

Tanto na pedagogia inspirada na espiritualidade inaciana, quanto na pedagogia de perspectiva freireana, destaca-se a centralidade da pessoa humana no processo educativo e de todo processo de planejamento da ação. Ou seja, a centralidade da dignidade humana é o mote supremo do trabalho intelectual na educação.

Eu trouxe este breve encarte, estabelecendo um paralelo entre a pedagogia inspirada no paradigma inaciano e a pedagogia inspirada no paradigma freireano, para lançar uma questão mais ampla: “o que esperar dos/as intelectuais nas universidades no confronto com a linha da dignidade”? Sugiro que, assim como Santo Inácio e Paulo Freire – em situações e soluções totalmente distintas -, tiveram como mote supremo a dignidade humana, assim também o mote supremo do trabalho intelectual deveria ser a superação da linha da dignidade.

Nos tempos de risco obscurantista em que vivemos, mais do que nunca precisamos estar alertas para a superação da chamada linha da dignidade. Concluo com o nosso ponto de partida, na reafirmação das conquistas que a humanidade veio realizando, sobretudo, depois dos escândalos das guerras mundiais e da crença pessoal de que os/as intelectuais têm as melhores condições para estar livres dos embrutecimentos e despertar para a sensibilidade humana e o rompimento com a insensibilidade/indiferença frente às condições não dignas de seres humanos.

Palavras para (não) concluir. (23)

Um dia, em uma palestra para estudantes e professores/as de Direito, fiz referência à passagem da Sagrada Escritura, que trata da breve narrativa intitulada “o jovem rico”. A frase que eu queria relembrar era: “Como é difícil um rico entrar no Reino dos Céus”! Trata-se de uma narrativa conhecida. O que está registrado é que os discípulos reagiram escandalizados, frente ao Mestre, dizendo: “Mas, então, Mestre, quem poderá se salvar”? Ou seja: Como assim? Até agora sempre nos foi ensinado o contrário. Foi-nos ensinado que os ricos são abençoados… Jesus conclui: “Para os homens isto parece impossível, mas para Deus tudo é possível”. Eu concluía minha reflexão, depois da leitura do texto, dizendo: Ser rico, no sentido bíblico, significa ser insensível e indiferente frente à sorte dos outros. Deus não é insensível/indiferente para com os seres humanos. Para nós, também, tudo será possível na medida em que não formos insensíveis/indiferentes para com os outros.

No paradigma pedagógico inaciano, do qual alguns aspectos foram lembrados anteriormente, são conhecidos cinco passos (ou momentos) fundamentais: – o estar atento ao contexto; – o reviver as experiências; – o aprofundamento na reflexão; – a ação coerente com os passos precedentes; – a avaliação de todo o procedimento.

Dentro do tema aqui em pauta, chamo a atenção para os três primeiros passos ou momentos, ou seja: Em primeiro lugar, a tradição inaciana nos ensina que devemos ter sempre uma grande atenção ao contexto. Em segundo lugar, não se trata de um contexto simplesmente externo ou visto – friamente -, de fora, mas de um contexto com vida. Contexto no qual a vida é experimentada concretamente, com suas alegrias, sofrimentos, esperanças e angústias. Precisamos estar atentos aos sentimentos envolvidos e à capacidade de “com-paixão”. Em terceiro lugar, o ato de reviver pessoalmente – saborear internamente – as experiências, nos dá as bases necessárias para que a nossa reflexão – a aplicação dos nossos conhecimentos teóricos – seja realmente um momento que leve em conta radicalmente o ser humano envolvido, dando-nos maiores garantias de acertarmos na ação. Uma reflexão, por mais competente que seja em termos de conhecimento da legislação e de sua formalidade processual, pode levar a tremendos limites, se não estiver ancorada neste mergulho experiencial no contexto.

O meu pensamento retornou à reflexão bíblica apontada inicialmente, inquirindo: O que é ser rico? O texto sagrado aponta claramente em outra passagem – O Rico Epulão – associando o “ser rico” à insensibilidade e às indiferenças frente ao sofrimento e à desgraça alheia. Para não corrermos o risco da insensibilidade/indiferença para com os seres humanos, como intelectuais, é necessário que a formação nos proporcione condições de enxergar para além dos estreitos limites disciplinares. A ecologia dos saberes, a prática transdisciplinar e o pensamento complexo são uma chave importante para tal. Isto, no entanto, só será completo se, por dentro de tudo, fluir o reconhecimento do outro como sujeito com dignidade e a postura ética de valorização do ser humano enquanto tal.

A rigor, quem for atento à pessoa humana, à dignidade da pessoa humana, quem for radicalmente voltado ao valor da vida humana, sempre irá para além das compreensões disciplinares, dos posicionamentos teóricos, dos posicionamentos ideológicos de “direita” ou de “esquerda” e dos rumores do cotidiano. O/a intelectual não se reduzirá a ser mais ou menos transgressor/a disciplinar, a ser mais ou menos habilidoso/a em transitar entre as diferentes disciplinas e posicionamentos teóricos, a ser mais ou menos malabarista do cotidiano. Sairá, também, da vala comum da meritocracia hipócrita. A sua verdade (a ser buscada) é a dignidade humana, na superação de todos os obscurantismos e negações desta dignidade.

A sua prática sempre levará a transcender as suas aptidões e malabarismos, para buscar uma ancoragem firme em valores éticos de respeito à dignidade humana e o sincero empenho em construir sociedade onde todos e todas possam viver com dignidade. Tenho a certeza de que no entender da maioria que lê o presente texto, é nisto que reside o ser intelectual de verdade, porque é ser humano de verdade, que honra o pacto com a verdade humana.

Notas:

  1. Revista Estudos Leopoldenses, Série Educação, V. 1, N. 1, 1997, p.9-26
  2. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Linha de Pesquisa: Identidades e Sociabilidades, UNISINOS. (A partir de 1999).
  3. Diretor do Centro de Ciências Humanas (1998-2003), Diretor de Ação Social da Universidade (2004-2007), Vice-Reitor da Universidade (2007-2017).
  4. Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas – NEABI (Coordenado pela Profa. Dra Adevanir Aparecida Pinheiro). (A partir de 2008)
  5. Grupo Inter-religioso de Diálogo – GIRD (hoje integrando o NEABI). (A partir de 2002)
  6. Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA, da Província dos Jesuítas do Brasil. (A partir de2016)
  7. Um exemplo bastante evidente foi o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, um renomado sociólogo a partir da década de 1950, com muitas obras publicadas, mas que sofreu um certo processo que “misteriosamente” o tornou bastante invisível, com dificuldade de acesso ao “convívio dos eleitos” na academia branca, talvez vítima da “patologia social do branco” sobre a qual ele tem importantes reflexões.
  8. Talvez tenhamos que acrescentar, com Jessé Souza (2015, 2017, 2018a, 2018b), que nossas categorias e métodos não ajudam suficientemente para nos livrar da marca do longo período de escravidão que pesa na mente e estrutura de nossa sociedade.
  9. Como que sugerindo que os intelectuais são os organizadores de todos os saberes (não só os disciplinados) da mesma casa comum…
  10. Para Basarab Nicolescu, “a transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica (…) diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina”. (NICOLESCU, 2000, p.15)
  11. Edgar Morin é a referência na teoria da complexidade. Um destaque didático pode ser dado à obra ‘os setes saberes necessários à educação do futuro’ (MORIN, 2002).
  12. Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e SESu / MEC. Plano Nacional de Extensão. (Edição Atualizada, 2000/2001).
  13. AUSJAL. Plan Estratégico de la Asociación de las Universidades Jesuítas de América Latina – AUSJAL 2000-2005. Caracas, Venezuela, 2000.
  14. Este ítem, nos primeiros três parágrafos, transcreve partes adaptadas de FOLLMANN (2014).
  15. Homilia do Papa Francisco na visita a Lampedusa: http://papa.cancaonova.com/homilia-do-papa-na-missa-em-lampedusa-08072013/ .
  16. Conferência proferida no Encontro de Formação Docente na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, em 2013. A Prof. Dra. Petronilha B. Gonçalves da Silva é uma das principais referências na elaboração e condução da política da Educação das Relações Étnico-raciais no Brasil – ERER.
  17. Este parágrafo é transcrição literal adaptada de excerto de capítulo do próprio autor publicado em Follmann (2018).
  18. Os principais alvos de crítica do autor são: Gilberto Freyre (1987), Sérgio Buarque de Holanda (1993), Roberto Da Matta (1986), Raymundo Faoro (2012) e outros.
  19. …a distinção entre “branquidade” e “branquitude”, ou seja, para uma percepção mais próxima da realidade vivida pelos/as brancos/as na sociedade, temos, ao menos, duas grandes categorias: aqueles/as que são branquidade e que não estão nem aí com a questão racial, vivem como se ela não existisse, não têm o mínimo de consideração com os diferentes, isto é, a única consideração que têm é o desprezo. Há aqueles/as que são branquitude, que reconhecem o problema, reconhecem o diferente e assumem atitude frente à questão. (PINHEIRO, 2018, p. 170-171)
  20. Segundo Souza (2018b, p.74) existe um sadismo e perversidade das classes privilegiadas, na herança escravocrata, intocada no seu “núcleo patológico”. Poderíamos estabelecer uma ponte com a “patologia social do branco” de Guerreiro Ramos?… Jessé Souza é recorrente em chamar a atenção para o “racismo de classes” contra os pobres, de todas as cores, se bem que a grande concentração nesse meio, ele lembra sempre, é de negros/as…
  21. SJS-SJ. Globalizacion y Marginación: Nuestra Respuesta Apostolica Global. Roma: Companhia de Jesus-Secretariado para la Justicia Social, fevereiro, 2006.
  22. A experiência pessoal em um Grupo Inter-religioso de Diálogo, a partir de 2002, fez com que eu tivesse uma percepção nítida de que o diálogo inter-religioso é um verdadeiro laboratório transdisciplinar. Como sociólogo das religiões, tenho a certeza de que se trata de um dos caminhos mais fecundos nas ciências da religião. (A experiência referida foi no quadro do Programa Gestando o Diálogo Inter-religioso e o Ecumenismo – GDIREC, UNISINOS).
  23. Este texto (in)conclusivo retoma excertos de publicação Follmann (2015) em livro organizado por Sandra Martini e Bárbara Costa.

Referências

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EPIRITUALIDADE E ESPIRITUALIDADES NO CONTEXTO DAS FAMÍLIAS CATÓLICAS

Publicado em forma de capítulo no livro “Educação e Religião: Múltiplos olhares sobre o Ensino Religioso” em 2013

Reflexão espiritual com perspectiva de formação pastoral

José Ivo Follmann sj (30/01/2013)

Resumo: O artigo é uma composição harmônica de textos, que misturam o testemunho pessoal do próprio autor com diversas aproximações da vida católica da família brasileira, acompanhadas de referências sugestivas sobre a realidade indiana, e uma retomada sintética de diferentes formas de espiritualidade católica, suas características e seus fundamentos.
Palavras chaves: Catolicismo; Família católica; Espiritualidades católicas.

Abstract: The article is a harmonious composition of texts, by mixing the personal testimony of the author with different approaches on Brazilian catholic family´s life, followed by suggestive references to Indian reality, and a synthetic retaking of different forms of catholic spiritual way of life, its characteristics and its essentials.
Key-Words: Catholicism; Catholic family; Catholic spiritual ways of life.

Palavras de introdução

A palavra espiritualidade lembra algo que impregna o que existe de mais profundo e existencial no cotidiano de alguém ou no cotidiano de uma família, um grupo ou uma organização. É algo que ajuda a orientar e dar sabor à vida e à ação. Cada religião ou cada orientação religiosa, apoiando-se em sua fonte fundacional e em suas tradições, difunde as suas crenças e as cultiva em seus fiéis ou seguidores; propiciando, também, formas de cultivo das crenças, através de práticas consideradas mais adequadas para nelas perseverar e crescer.

Eu, pessoalmente, nasci e fui criado em uma família católica, constituída por uma espiritualidade profunda e consistente, manifesta através de práticas cotidianas bastante definidas e ordenadas. Devo dizer que estou marcado por essa espiritualidade. Escrever sobre o tema “espiritualidade e espiritualidades no contexto das famílias católicas” é, assim, para mim, uma grande oportunidade, porque faz reviver um grande manancial de riquezas espirituais nunca suficientemente exploradas ou degustadas.

Muitas coisas se me passaram pela cabeça e pelo coração, no momento em que iniciei a organização deste texto. Eu havia sido recentemente solicitado para ajudar a escrever a história da comunidade local onde eu nasci e vivi a minha infância. As lembranças, naturalmente, se aceleram e multiplicam neste tipo de exercício de memória. As lembranças de minha iniciação na fé católica e das práticas espirituais cotidianas de nossa família também foram avivadas em mim. Estavam dadas, portanto, as melhores condições para desenvolver a reflexão que resultou no presente texto.

A composição ou costura do texto foi realizada em janeiro de 2013, mais de sessenta anos depois das minhas vivências de infância, em um contexto muito distante, no tempo e no espaço, durante minha estada na Índia. Confesso que estava profundamente impactado pela realidade desafiadora e rica em tradições culturais e religiosas, que é a realidade daquele país. A população católica na Índia é minoria. É, portanto, uma realidade religiosa muito diversa da que vivemos no Brasil. Até se poderia dizer: exatamente inversa. Enquanto a sociedade brasileira está impregnada por um substrato cultural católico, a sociedade indiana está impregnada por um substrato cultural hindu. Consequentemente a realidade da espiritualidade das famílias católicas também é diferente… Eu, no entanto, arrisquei a pergunta: Será que é tão diferente assim? Na ocasião, fiz uma longa entrevista com um jesuíta indiano muito experiente em trabalhos pastorais. A percepção que esse jesuíta revelou foi que, basicamente, a espiritualidade das famílias católicas na Índia, em seus traços e tendências principais, é muito semelhante à espiritualidade, que nós percebemos nas famílias católicas brasileiras.

Não precisamos, no entanto, apressar conclusões… Além destas “Palavras de introdução”, o texto foi estruturado, à maneira de um caminho cheio de atalhos, recolhendo, inclusive, textos já elaborados anteriormente, e passando pelos seguintes subtítulos: – Minhas memórias católicas da infância; – Espiritualidade ou espiritualidades; – O substrato comum das espiritualidades católicas; – Folheando o catálogo de diferentes espiritualidades católicas; – Três menções especiais para o momento presente; – Diferentes formas de viver o catolicismo; – Meu testemunho, sessenta anos depois; – Palavras de conclusão.

Como o texto é um caminho cheio de atalhos ou uma composição dinâmica de retalhos, de constatações e reflexões, colhidas em diversos contextos, a sua leitura não precisa ser linear.

Minhas memórias católicas da infância

Uma lembrança muito viva é a grande centralidade que a devoção a São José exercia na nossa família. Havia, na sala maior de nossa casa, em um dos lados, um oratório com uma imagem grande de São José. Lá nunca faltavam velas e sempre tinha um vaso de flores. As paredes da sala estavam cheias de imagens da iconografia católica, mas a de São José tinha um destaque muito grande. Era diante desta imagem que nos reuníamos todas as noites, depois da janta, para, de joelhos, rezar o terço. Esta reza era feita, às vezes em alemão e outras vezes em português. Eu cultivo hoje ainda a bela lembrança das orações diárias, antes e depois das refeições, que eram longas e feitas com fórmulas mescladas, sendo algumas em alemão e outras em português.

Depois do terço, íamos para a cama. Lembro como a minha mãe, todas as noites, se aproximava discretamente das nossas camas e nos abençoava com água benta, enquanto nós fingíamos que já estávamos dormindo. Isto passava carinho e segurança! Aliás, a água benta nunca faltou em nossa casa. Era símbolo de proteção divina e combate contra os males e doenças. Também era muito usual ter ramos bentos em casa para proteger contra tormentas e raios. Os ramos bentos eram conservados a partir do cerimonial litúrgico do domingo de ramos. Estão vivas na minha memória cenas em que a mãe e a avó queimavam ramos e faziam invocações a santas e aos santos protetores durante tormentas.

Lembro como, muitas vezes, enquanto o jantar era preparado, o meu pai, com seu vozeirão, entoava canções, em geral eram hinos de igreja, e nós cantávamos junto, formando uma polifonia de beleza indescritível… Tudo isto acontecia sob a luz das lamparinas de querosene e do lampião de gás. Às vezes o meu pai fazia a leitura de algum texto em alemão ou em português e nós ouvíamos atentos. Quando era necessário ele introduzia com uma pequena fala situando o texto ou dizia uma frase de impacto depois da leitura. Em geral eram textos instrutivos e que traziam mensagens de vida cristã. Algumas vezes eram textos anedóticos e de entretenimento. Era um ambiente gostoso, muito harmonioso e, sobretudo, disciplinado.

Tive as minhas primeiras inserções no compromisso com a comunidade, através da limpeza que a nossa família era encarregada de manter no cemitério. O pai nos mandava capinar o cemitério e dizia que isto era um serviço para a comunidade. Acostumei-me desde pequeno com esta ideia. Parece algo irrelevante, mas só eu sei o quanto isto me marcou e me lembra da imagem de meu pai como uma pessoa responsável pelas coisas da comunidade. Isto se revelava em todas as atividades comuns da comunidade.

A bíblia não era muito lida, mas nós tínhamos o catecismo da doutrina católica. Com muita frequência havia uma tarde de aulas de catequese, a cargo do próprio padre da paróquia. Trata-se de uma maneira muito sábia de introdução na vida de compromisso cristão adulto. Eu fui batizado, quando não tinha completado ainda um mês de vida e fui também crismado algumas semanas depois. Isto soa estranho, uma vez que crisma é um sacramento de confirmação para quem já está no seu pleno uso da razão. No entanto, as famílias eram tão estáveis e confiáveis na sua vida da fé católica, que havia uma plena confiança da parte do clero de que os pais realmente garantiriam uma boa formação na fé.

Nos domingos, sempre que ocorria missa na comunidade, a cinco quilômetros de distância, todos nós íamos para a igreja, os pais e a avó iam a cavalo e nós todos a pé. Na ausência de missa na comunidade, enfrentávamos doze quilômetros para ir à missa na sede da paróquia. A missa ocupava uma centralidade muito grande no imaginário. Lembro-me que nós crianças chegávamos a brincar de celebrar missa. A participação na celebração da missa era um momento auge e sempre se usava a melhor roupa. Em dias de celebração festiva, como por exemplo, a “missa do galo” de natal, o pai nos levava a todos para a igreja, em uma carroça, puxada por uma junta de bois. Era uma festa!

Muitas outras lembranças poderiam ser registradas, mas esta não é a finalidade deste texto. Fiz esta breve incursão na minha memória da infância, porque o meu interlocutor indiano, referiu a maneira intensa como são cultivadas as espiritualidades nas famílias católicas indianas, nos contextos do mundo rural antigo e tradicional e, como esta realidade vem mudando gradativamente, tanto, na própria vida no campo, como, sobretudo, nos centros urbanos e nos contextos intermediários. Ele também destacou a centralidade exercida pela missa.

As formas de expressão da espiritualidade católica se diversificam no próprio ritmo de crescimento da complexidade da vida humana em sociedade. Essas formas, no entanto, também são diversas alimentando-se em diferentes experiências espirituais que foram sendo acumuladas dentro e fora do catolicismo, ao longo da história.

Espiritualidade ou espiritualidades?

A espiritualidade, como foi definida no início deste texto, tem a ver com o modo como pessoas, famílias, grupos ou, mesmo, organizações organizam a sua vida cotidiana no sentido de manter vivas as crenças religiosas. É notável como cada religião ou organização religiosa difunde as suas crenças, as cultiva em seus fiéis ou seguidores, e propicia formas de aprofundamento das mesmas, através de práticas consideradas mais adequadas para nelas perseverar e crescer.

É muito grande a distância, entre o que uma religião ou organização religiosa, – no caso a Igreja católica, – cultiva e difunde, por um lado, e, o que é praticado, por outro lado, no cotidiano concreto das pessoas, famílias, grupos e organizações.

A realidade nos mostra que não existe uma só espiritualidade católica e também não se pode falar em espiritualidade das famílias católicas, no singular. São muitas as espiritualidades das famílias católicas, ou seja: as formas como as famílias católicas cultivam as crenças provindas do catolicismo são infindamente diversificadas. Existe, isto sim, um substrato comum, reconhecível com maior ou menor clareza.

A espiritualidade que eu pessoalmente pratico hoje, mais de sessenta anos depois da minha infância, é radicalmente diferente daquela que eu praticava naquela época sob a orientação de minha família e da tradição de meus pais, mesmo que eu deva reconhecer naquela experiência de infância uma base rica que permanece.

Ao perguntar ao meu interlocutor indiano sobre “a espiritualidade das famílias católicas”, ele foi direto e claro, ao dizer: “É difícil falar de uma espiritualidade, pois isto varia muito, de um contexto para outro… Para começar, existem as famílias do interior rural e existem as famílias dos grandes centros urbanos. Além disso, ainda deve ser considerada a situação das famílias que estão em uma situação intermediária, entre o campo e a cidade.” Pensei comigo: “assim como no Brasil…” “E tem mais, – continuou o meu interlocutor indiano, – isto depende muito, também, das diferentes influências que as famílias tiveram e têm a partir de grupos e movimentos católicos, como também do tipo de dedicação que o clero demonstra com relação às famílias de sua responsabilidade.” Mais uma vez, mentalmente, relacionei a similaridade com a realidade brasileira.

O substrato comum das espiritualidades católicas

Quais são os fundamentos da Igreja católica? São as Sagradas Escrituras, a Bíblia Sagrada e a Tradição. Trata-se da doutrina e dos costumes transmitidos pela Igreja, desde os apóstolos, sempre sob a vigilância do poder central da Igreja. A religião católica assim como as demais Igrejas dentro do Cristianismo cultiva e transmite a fé em um Deus, dentro da mesma tradição da fé monoteísta, do conjunto das religiões abraâmicas, como referência ao Patriarca Abraão: o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Na interpretação cristã, Deus se revela, de maneira especial em Jesus de Nazaré como verdadeiro homem e verdadeiro Deus, e na força do Espírito Santo. Em Jesus os planos de Deus se revelam de forma explícita na imagem do Reino de Deus. A partir das falas de Jesus, nós podemos dizer que a Igreja tem o seu centro de referência no Reino.

Qual a origem da estrutura organizacional? Jesus de Nazaré mostrou o desejo de ver a sua missão continuada, através de um grupo de seguidores. O número dos Doze Apóstolos é importante como simbolismo do Novo Povo de Deus, povo que abrange tudo, transfigurado na missão e identidade de Jesus. No entendimento da doutrina da Igreja, os sucessores dos apóstolos são os bispos. Dentre os apóstolos, Pedro recebeu do próprio Jesus uma missão especial de liderança e a sua escolha final de estar em Roma e ali ter morrido mártir, fez com que a tradição definisse o Bispo de Roma, como sucessor de Pedro e chefe da Igreja. O Bispo de Roma passou mais tarde a ser denominado de Papa, pela sua liderança na Igreja. O Papa é um bispo entre os bispos. Ele não é o Bispo do mundo, é o Bispo de Roma, que se relaciona com os demais bispos, como líder religioso. Na hierarquia da Igreja católica, os padres e diáconos são auxiliares dos bispos.

Não se pode falar da Igreja católica sem falar dos sete sacramentos, que talvez sintetizem a experiência de Deus. Os sacramentos da Igreja são apresentados como dons de Deus para a santificação de seu povo. O Concílio de Trento, de 1545 a 1560, definiu os sacramentos em sete. Eles acompanham a vida do cristão do nascimento à morte. Os três primeiros sacramentos são os de iniciação cristã e de cultivo da fé: o batismo, a confirmação e a eucaristia. São aqueles que acompanham o rito de entrada na fé e de cultivo da fé. A Igreja sempre aceitou e aceita batizar crianças, por causa da disposição e promessa dos pais em educar a criança na fé católica.

Se a prática do batismo de crianças é bastante associada à Igreja católica, o mesmo deve ser dito da prática da missa. “Ser católico” lembra “ser de missa”. A missa católica é algo da cultura, até se dá comumente o nome de missa a celebrações que não tem nada a ver com a celebração da eucaristia. O que é a missa? A celebração da eucaristia é um serviço divino, fazendo a atualização do mistério central da redenção na memória da paixão, morte e ressureição do Senhor; ela desempenha papel fundamental na Igreja católica. É sacramento que tem uma centralidade grande na Igreja católica, sendo de obrigação semanal (dominical) para os fiéis, enquanto os padres e bispos normalmente a celebram todos os dias.

Além dos sacramentos da iniciação (batismo e crisma) e de cultivo da fé (eucaristia), a Igreja católica cultiva os sacramentos da cura e os do serviço. Os da cura são: o sacramento da reconciliação ou confissão e o da unção dos enfermos. Trata-se de sacramentos voltados, sobretudo, para o conforto e restabelecimento do ânimo espiritual e corporal. Os sacramentos do serviço e da comunhão são a ordem e o matrimônio. São formas de celebrar e manifestar a presença de Deus, através de serviço à comunidade e da vida de partilha e amor.

Outro componente que deve ser ressaltado é a figura dos sacramentais, que podem ser símbolos, objetos, lugares, rituais e fórmulas de oração e bênção e outras expressões. Os sacramentais não têm, em geral, fundamentação bíblica. Eles foram introduzidos pela própria Igreja ao longo da história, muitas vezes tomando emprestado de outras culturas e de outras religiões. Eles ajudam, pela cultura católica, a reforçar e estimular a própria fé.

A Igreja católica professa a “comunhão dos santos”. Ou seja, para ela, a unidade da fé ultrapassa as barreiras do tempo e do espaço. Nisto está baseada a veneração e a devoção aos santos e às santas que foram modelos para todos os cristãos. A Igreja não se vê como só reduzida aos que ainda estão vivos, mas ela se vê também como “comunhão dos santos”, com todos aqueles e aquelas que já passaram e que estão na eternidade. Maria, Mãe de Jesus, tem uma centralidade muito grande na Igreja católica. Ao longo de sua tradição eclesial a Igreja católica, entre todos os santos e todas as santas, possui uma especial devoção à Virgem Maria, ou, como preferem os indianos, Maria Mãe. Para os católicos, Maria está intimamente ligada à história do povo e à história da salvação e o seu “sim” é modelo para todos os discípulos. No catolicismo popular a figura de Maria é muito respeitada, pois se considera a sua experiência de dor e sofrimento, que a torna muito próxima de todos os devotos, especialmente os pobres e sofredores.

Folheando o catálogo de diferentes espiritualidades católicas

Um aspecto importante na Igreja católica, em sua história, são os mosteiros, as ordens religiosas e as congregações religiosas. O sistema monástico se desenvolveu há muito tempo na antiga Igreja, com base na vida dos eremitas, que se retiravam para o deserto. Hoje existem inumeráveis mosteiros, ordens e congregações religiosas masculinas e femininas. Conhecemos ordens e congregações religiosas com os mais diferentes carismas e formas de engajamento na missão da Igreja.

Formas diversas de espiritualidade foram originadas nesse processo constituindo-se em alimento para diferentes práticas e engajamentos na vida e na missão da Igreja. Neste sentido, apesar de o centro da espiritualidade católica estar na celebração da eucaristia e na vida sacramental em geral, muitas e diversificadas são as formas de reforço espiritual, desenvolvidas ao longo dos séculos. As principais fontes orientadoras desses processos podem ser encontradas nos mosteiros, nas ordens e nas congregações religiosas. Temos como destaque: – a “espiritualidade de retiro”, proveniente dos Monges do Deserto (Santo Antão), impulsionando uma espiritualidade de deserto e de retirada do mundo; – a “espiritualidade beneditina”, concernente à Ordem dos Beneditinos (São Bento), e que alimenta todo um tipo de espiritualidade de busca da perfeição cristã em comunidade, através da oração comum e afastada das preocupações mundanas; – a “espiritualidade franciscana”, originada na Ordem Franciscana (São Francisco), orientando para uma vida desapegada, em pobreza, de amor à natureza e serviço aos pobres; – a “espiritualidade dominicana”, ancorada na Ordem Dominicana (São Domingos), caracterizando-se pela pobreza, amor à verdade e dedicação à pregação; – a “espiritualidade inaciana”, proveniente da Ordem dos Jesuítas (Santo Inácio), caracterizando-se pelos exercícios espirituais, o discernimento da vontade de Deus e o exame de consciência, para em tudo amar e servir; – a “espiritualidade carmelita”, ancorada na Ordem Carmelita (Santa Teresa d´Avila), cujas características principais são: desprendimento interior, silêncio, solidão e busca do progresso espiritual e experiência mística; – a “espiritualidade redentorista”, desenvolvida pela Congregação dos Redentoristas (Santo Afonso de Ligório), caracterizando-se pelo seguimento do Cristo em sua encarnação, morte e ressurreição; – a “espiritualidade mariana ou servita”, ancorada na Congregação dos Servitas ou Servos de Maria (Sete Fundadores) , desenvolvendo práticas focadas em Maria aos pés da cruz, a serviço dos que sofrem.

Além destes caminhos espirituais aqui apontados de uma forma esquemática, poder-se-ia ainda organizar grandes listas de “espiritualidades católicas” organizadas por outras congregações religiosas ou outras vias e momentos, como, por exemplo, a espiritualidade ancorada na organização Opus Dei, nos movimentos leigos pós Concílio Vaticano II em geral, no movimento Schoenstatt, no movimento Focolari, no movimento Santo Egídio e muitos outros.

Quero fazer uma menção especial à “espiritualidade carismática”, pela sua forte expressão hoje no Brasil, à “espiritualidade do diálogo” e à “espiritualidade da teologia da libertação”. Estas duas últimas, em grande parte, porque me ajudam mais a orientar o meu jeito de viver a “espiritualidade inaciana” dentro da Igreja católica.

Três menções especiais para o momento presente

A primeira menção é direcionada para a espiritualidade carismática. Trata-se de uma forma de cultivar a fé cristã muito cultivada, hoje, no Brasil e que repercute profundamente nas famílias católicas pela presença diária aos meios de comunicação. É uma espiritualidade baseada na ação do Espírito Santo e na efusão de seus dons na Igreja, voltada para a renovação carismática da mesma. Trata-se de uma espiritualidade que exerce, também, um forte papel de conforto e cura espiritual e corporal.

Além das repetidas e marcantes invocações para aliviar as pessoas de suas dores espirituais e corporais, trazendo conforto e cura, esta espiritualidade está centrada, sobretudo, na busca de: – praticar a redescoberta da pessoa viva e vivificante de Jesus, como fonte de esperança e salvador do mundo, ontem, hoje e sempre; – o reencontro filial, confiante e feliz com Deus que é Pai; – o gosto pela oração pessoal e comunitária, pelo louvor e pela adoração; – o apreço pela Palavra de Deus e a procura dos sacramentos; – uma maior fidelidade à Igreja e um revigoramento da juventude e vocações sacerdotais e religiosas; – uma liberdade interior que deixe a pessoa ser modelada, convertida e transformada por Deus. A espiritualidade carismática também dá grande centralidade à devoção a Maria, Mãe de Deus, que sempre se deixou guiar pelo Espírito Santo.

A segunda menção a fazer diz respeito a uma espiritualidade do diálogo. Num mundo de crescente consciência da diversidade, o diálogo se faz fundamental para que a humanidade possa crescer em harmonia. Como mencionei no início, a organização deste texto foi realizada durante a minha estada na Índia, sendo embebido pela riqueza multi-milenar e multiforme da cultura e da sociedade daquele país, que, historicamente, sobreviveu através de um múltiplo, criativo, controvertido e, ao mesmo tempo, harmonioso processo de assimilação e resistência a sucessivas dominações. A sociedade indiana tem, também, os seus problemas que, sem dúvida, são sérios e muito desafiadores, mas é incrível, nesse país, a capacidade de convivência na diversidade. O Brasil está despertando, ao longo das últimas décadas, sempre mais, para a riqueza da sua própria diversidade cultural. Esta diversidade está manifesta, de modo especial, nas religiões e religiosidades que se multiplicam.

Cresce a consciência de que a prática do reconhecimento dos outros e a prática do diálogo são formas fundamentais para se viver a missão da Igreja católica dentro deste contexto. Para sintetizar o que caracteriza, em essência, esta forma de espiritualidade, talvez uma frase de G. Gadamer, lembrada por Faustino Teixeira, possa ser inspiradora: “A capacidade constante de voltar ao diálogo, isto é, de ouvir o outro, parece-me ser a verdadeira elevação do homem à sua humanidade.”

A terceira menção é voltada para a espiritualidade da teologia da libertação. A expressão “teologia da libertação” aponta para o fenômeno das comunidades eclesiais de base e também nos faz retomar toda a questão do ensino social da Igreja. Isto demanda um detalhamento um pouco mais amplo.

As comunidades eclesiais de base têm sido uma manifestação muito importante do catolicismo. Aliás, não só do catolicismo, pois é um fenômeno que se manifestou também em outras Igrejas do cristianismo, em certo sentido. Trata-se da organização comunitária a partir da base, sem a interferência da hierarquia clerical. As comunidades eclesiais de base trouxeram um modelo diferente, inverso do que sempre marcou a Igreja, ao longo da história, que é a estrutura clerical.

Este foi o motivo porque chamaram tanta atenção. Elas têm um componente novo, enquanto refletem a opressão vivida pelo povo, a partir de uma teologia, que também se coloca nesta perspectiva, a teologia da libertação. Com o apoio nas ciências humanas, que ajudam a entender e sistematizar o que está efetivamente acontecendo, reflete os problemas vividos pelo povo, tentando retomar a boa nova de Jesus Cristo, que proclama a libertação do povo. A Igreja não veio só para trazer a mensagem da vida eterna, mas ela está aí para ajudar o povo a se libertar das opressões, aqui e agora. A mensagem da teologia da libertação foi marcante para a Igreja católica e outras Igrejas cristãs, sobretudo a partir de finais da década de 1960 e teve grandes repercussões até finais da década de 1980.

Este foi um tempo forte de alimentação de uma espiritualidade nesta perspectiva, sobretudo, no contexto latino-americano em geral e no Brasil em particular. A lembrança do momento forte das comunidades eclesiais de base e da teologia da libertação, reporta-nos a alguns pontos essenciais do ensino social da Igreja. Trata-se, no meu entender, de um aspecto fundamental da identidade da Igreja católica.

Quais são as fontes do ensino social da Igreja católica? No primeiro plano estão as Sagradas Escrituras, partilhadas por todas as Igrejas cristãs. São inúmeras as passagens que poderiam ser referidas. Refiro três, que para mim são emblemáticas: Mateus 25:40 “Tudo que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos a mim o fizestes”; João 9:11 “Aquele que quiser ser o primeiro entre vós, seja o servo de todos”; e Lucas 20:25 “Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Outra fonte do ensino social da Igreja católica, também partilhado pelas outras Igrejas cristãs, são os “Padres da Igreja”, escritores eclesiásticos entre o século II e o século V. Várias linhas temáticas importantes aparecem aí, por exemplo: “Não se pode separar fé, da caridade dos pobres”; “Predileção da Igreja pelos pobres”; “Não somos donos, mas administradores dos bens”; “Todos os bens da criação se destinam a todos os homens”; “O homem tem uma natureza social, é chamado a viver em comunidade”; “Todos os homens temos uma igualdade básica”; “A propriedade privada sem respeito pelo destino universal de todos os bens para todos os homens, é fonte de egoísmos, de ilusões e exploração”; “A participação de bens é uma exigência de justiça”; “Quem não remedia a fome é homicida”; “Alguns ajudam um pobre, mas empobrecem cem”; “Quando se dá esmola se devolve ao pobre o que lhe pertence, é, portanto, obra de justiça”; “A misericórdia com o pobre é justiça”.

Além dessas fontes históricas, o ensino social da Igreja se espelha na vida concreta do povo, em suas organizações e necessita da mediação das ciências humanas para entender cada momento. Devem ser destacados três elementos fundamentais: o próprio clamor dos pobres, em múltiplas formas no cotidiano da vida comum; os movimentos sociais que existem e são expressão organizada do clamor dos pobres; e as ciências humanas, o próprio conhecimento da realidade. Esses três elementos são fundamentais, pois ajudam a desenhar, no espelho da Boa Nova Cristã, o contraste ético mobilizador. Não se trata de uma mobilização caótica e ingênua, mas projetada com método científico e real operacionalidade. Este último aspecto envolve, segundo cada contexto, na maioria dos casos, muita paciência e responsabilidade histórica. Envolve, sobretudo, muito discernimento para acertar como melhor agir para o maior bem de todos e para ajudar a garantir que os marcados pela exclusão tenham as melhores chances para serem reconhecidos como cidadãos.

Diferentes formas de viver o catolicismo

A Igreja católica, no entanto, é um mundo. São muitas e diferentes as formas de viver o catolicismo e a porção dos que se posicionam dentro das orientações, baseadas na teologia da libertação, das comunidades eclesiais de base e do compromisso social, que acabei de esboçar, é relativamente pequena, em muitos contextos do conjunto todo da Igreja. Não se trata de fazer cálculos estatísticos aqui. Entendi que seria importante proporcionar mais este acesso ou atalho, ainda que de forma muito rápida e genérica, dentro da ideia de trazer aproximações para entender as “espiritualidades no contexto das famílias católicas”.

Em exercícios realizados com alunos da disciplina de “sociologia das religiões”, em diversos anos consecutivos, fui elaborando um quadro aproximativo das diferentes “formas de viver religião no Brasil” e dentro disto as diferentes “formas de viver o catolicismo no Brasil”.

No quadro então esboçado, considerando só a categoria católica, foram ressaltados os seguintes “agrupamentos”: – Católicos só de nome, com nenhuma prática religiosa pública; – Católicos cumpridores de algumas exigências religiosas públicas mínimas; – Católicos cumpridores regulares das exigências formais do catolicismo; – Seguidores de práticas mediúnicas, kardecistas espíritas ou de religiões de Matriz africana, confessando-se também católicos; – Ligados a movimentos organizados católicos, Renovação Carismática Católica, Encontro de Casais com Cristo e similares; – Católicos engajados em pastorais sociais e/ou integrantes de Comunidades Eclesiais de Base e engajados no compromisso social.

Trata-se apenas de um esboço a partir da observação empírica. Hoje, eu ainda acrescentaria a categoria dos “católicos comprometidos com o diálogo”… A hipótese levantada por diferentes grupos de alunos foi que este ordenamento estaria correspondendo também à importância numérico-quantitativa dos católicos no Brasil, prevalecendo ainda o número dos “católicos só de nome” e o número dos “católicos engajados em pastorais sociais” continuaria representando, apesar de todo o boom das décadas de 1960 a 1980, o menor percentual. Mesmo que esta hipótese tenha sido formulada no final da década de 1990, é muito provável que o quadro não tenha se alterado significativamente. Ou seja, a hipótese continua atual.

Voltando ao meu interlocutor indiano, fica claro que também na Índia existem diferentes “formas de viver o catolicismo”. Mesmo que ali também exista o fenômeno do “catolicismo só de nome”, não há muita base para tal, uma vez que na Índia o catolicismo é minoria. Não existe, também, obviamente, o “catolicismo praticado junto com adesão a religiões de Matriz africana ou ao Kardecismo espírita”, mas existem casos de convívio entre práticas hinduístas e católicas, em alguns contextos. Aliás, mesmo que haja uma grande vigilância da hierarquia católica com relação a isto, a cultura hinduísta é forte e a fronteira é muito movediça. Muitos modos de proceder, provenientes da cultura hinduísta, estão totalmente assimilados na liturgia católica, destacando-se, sobretudo, o gestual litúrgico. Observados estes dois pontos, as “formas de viver catolicismo” na Índia se assemelham às do Brasil.

Meu testemunho sessenta anos depois

Recentemente, respondi a uma entrevista para uma revista local de circulação restrita, e me surpreendi dando um testemunho pessoal, referente à minha percepção da fé cristã e ao meu modo de proceder. Trata-se de uma reflexão sobre espiritualidade cristã, mas, sobretudo, um testemunho da minha espiritualidade sessenta anos depois daquela espiritualidade que aprendi nos meus anos de infância.

R.R. Como podemos entender a relação fé e vida? Como podemos crescer na fé e crescer humanamente de maneira integral?

Para mim vida humana e fé estão profundamente relacionadas e imbricadas uma na outra. É nesta relação que reside o ponto que distingue mais plenamente a espécie humana das demais espécies de seres animais. Trata-se da condição de conseguir reconhecer-se para além dos próprios limites. Trata-se da condição de reconhecer a dimensão de eternidade dentro de seu próprio existir.

Estes “momentos” de auto-reconhecimento em sua própria dimensão de eternidade assumem diferentes formas e podem proporcionar diferentes resultados, a depender da disposição vivida pelos sujeitos e do tipo de fé que efetivamente cultivam.

R.R. Como o senhor orienta ou orientaria pessoas que vivenciam hoje uma experiência de crise de fé?

Crises de fé em geral representam processos de amadurecimento. A total ausência de crise é mais perigosa. Crises de fé também podem advir do cansaço frente ao muito trabalho e pouco resultado visível, mas este tipo de cansaço vai, muito mais, em uma linha de “desespero” do que propriamente crise… O cansaço ao qual me refiro aqui talvez deva ser mais visto como resultado da falta de cultivo da fé…

Assim como uma pessoa pode entrar num processo depressivo em termos psicológicos, também se pode falar de processos similares em relação à dimensão profunda de nosso existir, que envolve a fé. Assim como as depressões podem ser prevenidas com ocupações adequadas, etc., assim também no plano da fé é importante que não se deixe tudo isto morrer na praia. A fé deve ser permanentemente exercitada. É o mesmo que o amor entre as pessoas. Se este amor não é cultivado, está fadado a morrer.

R.R. Qual o papel da fé nessa fase de transição da sociedade cristã para uma sociedade secularizada?

Creio que existe um equívoco em falar da transição de uma sociedade cristã para uma sociedade secularizada… O cristianismo é uma “religião” eminentemente secular! Jesus Cristo se ENCARNOU na história humana. Ser cristão significa viver a presença de Deus em todas as coisas. A história do Cristianismo, apesar de originalmente ter essa marca secular (de secularização), pode, no entanto, ser lida como uma história de sucessivos processos de forte sacralização da fé cristã. Hoje vivemos em um momento na história da humanidade em que se manifesta sempre mais algo que se poderia denominar de “secularização encantada”. A expressão talvez não seja totalmente adequada porque sugere certas conotações, que não têm nada a ver com o que se quer dizer. Entre estes diferentes encantamentos “seculares” encontra-se de uma forma nova o próprio cristianismo em seu estado mais original.

R.R. Seria possível confrontar-se tão de perto com a realidade da miséria e da injustiça social sem levantar questões relacionadas com a fé e o comprometimento pessoal?

A revolta frente aos males terríveis que subsistem, às vezes até geram crises de fé. As pessoas se interrogam com relação às tragédias da humanidade, a todas as coisas horríveis e todo o sofrimento que diariamente nos incomoda… Como acreditar na existência de um Deus de Bondade e de Amor, que deixa acontecer tudo isto?
No entanto, a realidade da miséria e da injustiça social são desafios para toda a pessoa de fé. Ou seja, as injustiças, a miséria e os sofrimentos humanos não deveriam deixar uma pessoa de fé, indiferente. Caso estes fatos gerem crise de fé então talvez exista algo errado na maneira como a pessoa vive a sua fé e como a sua fé está orientada. A indiferença talvez possa ser considerada o sinal mais cabal de falta de fé.

A questão fundamental está no foco desta atenção ou desatenção que se tem frente às injustiças, à miséria e aos sofrimentos. Por exemplo, alguém como eu, que está orientado por uma perspectiva cristã, nunca apontará Deus como culpado e não vai reivindicar intervenção divina, mas vai interrogar-se sobre a responsabilidade humana e a minha responsabilidade. O que eu posso fazer no meu cotidiano para que essas injustiças diminuam?

R.R. Com relacionar fé e vida, crença e cidadania? Ser cristão hoje exige um comprometimento na construção de outro mundo, outras relações sociais, outras relações ecológicas e ambientais, como pensar tudo isso na integralidade da vida?

Existe algo que é essencial em toda esta reflexão que as perguntas aqui formuladas me provocam: o ser humano é um ser de liberdade! A pergunta é ampla: estou focando as respostas dentro da minha orientação cristã. No entanto, é importante entender-se que vivemos em um momento da humanidade em que mais do que nunca se diversificaram as crenças e também são múltiplas as formas de se entender o que é ser cidadão.

A pergunta foca o ser cristão. Sim, ser cristão sempre significou e significa comprometimento. Isto não é de hoje… O cristão por definição (em seguimento à encarnação de Deus na história) é denúncia de tudo o que está degradando as relações e é comprometido com a construção de outro mundo possível, outras relações sociais, outras relações ecológicas… O mundo cristão ao longo da história tem grandes dívidas com relação a isso. Muitos equívocos, muitos males, muitos pecados, muitas infidelidades aos princípios fundantes do Cristianismo estão escancarados na história.

É necessária uma permanente busca de renovação. Como jesuíta que sou, posso testemunhar, por exemplo, como na última Congregação Geral da Ordem, na qual participei em inícios de 2008, esta questão esteve presente e chegou-se a formular em um dos documentos centrais, a necessidade de sermos protagonistas de NOVAS relações com Deus, NOVAS relações sociais (entre os humanos) e NOVAS relações com o meio ambiente. Portanto, mesmo que isto seja da própria essência do ser cristão, existe uma permanente necessidade de atualização e correção de rota, porque nós humanos somos limitados e frágeis.

R.R. O que dizer para as novas gerações sobre a integração fé e vida? Como os jovens, no seu olhar, têm feito experimentações de fé que proporcionam crescimento humano?

Eu quero fazer um alerta: Nem sempre o que se coloca como “experimentações de fé” são efetivamente experiências que levam a um engajamento comprometido com a história. Olhando numa perspectiva cristã, com o Deus encarnado que trabalha na história da humanidade através da livre ação dos seres humanos.

É muito importante sabermos distinguir entre as experiências pessoais de êxtase e de reconforto e as vivências espirituais que levam a um maior engajamento comprometido com a vida e a história. A dimensão cúltica (de internalização e contemplação) e a dimensão ética (de compromisso histórico) são duas dimensões muito importantes, mas que não devem ser confundidas, muito menos uma dimensão ser reduzida à outra.

Até aqui vai o texto da entrevista, na qual me surpreendo, sessenta anos depois, convivendo em harmonia dentro de uma espiritualidade universal, radicalmente diferente daquela espiritualidade de meu berço infantil, dentro de um mundo pequeno e disciplinado. Aquele era um mundo gostoso e harmônico. Hoje também me vejo vivendo um mundo gostoso e harmônico cultivado dentro de mim, apesar de jogado permanentemente nos desafios das fronteiras do diferente.

Palavras de conclusão

O caminho feito foi de vários atalhos, uns se apresentaram em forma de trilhas transversais, outros constituíram trilhas paralelas e convergentes. Existe uma grande riqueza a ser explorada. O texto levanta diversas hipóteses importantes. Mesmo que eu não tenha buscado fazer um estudo comparativo, o meu interlocutor indiano exerceu um papel chave na escolha dos recortes feitos.

O Brasil e a Índia são dois países grandes e que vertiginosamente estão ganhando destaque no cenário internacional de hoje. O Brasil e a Índia são dois países que apresentam uma grande diversidade cultural e religiosa. Tanto no Brasil como na Índia são desenvolvidos cuidados políticos para que esta diversidade viva numa crescente harmonia. O Brasil tem uma vida relativamente curta em relação à Índia. Nosso país é dez vezes mais jovem. Quando no Brasil falamos em 500 anos, na Índia se fala em 5.000 anos. O Brasil tem 500 anos de forte presença católica, inclusive como religião oficial, ao longo de 400 anos. A Índia tem 5.000 anos de forte presença da religião hinduísta, sendo praticamente a cultura hindu a cultura de base do povo deste país. O hinduísmo, aliás, é um substrato cultural que, segundo suas lideranças em muito ultrapassa os limites dos 5.000 anos de registro histórico.

As mesmas preocupações, que o clero católico brasileiro manifesta com respeito ao esvaziamento nas práticas espirituais católicas no âmbito da família, no meio da agitação do mundo de hoje, sobretudo na cidade, são confirmadas também no meio do clero católico na Índia, o meu interlocutor indiano. Este falou que a redução nas práticas religiosas católicas em casa, no seio da família é preocupante. E acrescentou: “Inclusive no meio rural, apesar de ali ainda existirem mias momentos de oração em família.” Sugeriu que a agitação e os horários diferentes não permitem mais momentos de encontro, mas também entende que o próprio clero não apresenta mais a mesma disposição de fazer um acompanhamento corpo a corpo junto às famílias, ficando mais preso a administrar burocraticamente a paróquia com atendimentos formais. Parecia que ele estava falando do Brasil…

As espiritualidades no contexto das famílias católicas variam muito segundo o próprio grau de adesão religiosa que os integrantes da família vivem. Esta variação também se dá segundo o contexto vivido pelas famílias, tendendo a ser mais intensa no meio rural e mais diluída e, talvez, mais individualizada no meio urbano. É muito provável que o grupo católico, majoritário no Brasil, que foi descrito como “católicos só de nome” não apresentem nenhuma prática católica em família. Isto pode ser muito diferente em outros grupos, sobretudo nos de missa dominical ou pertencentes ativos a movimentos e grupos organizados católicos.

A presença ostensiva, num número crescente de famílias católicas, de missas católicas televisionadas secundadas com preces e bênçãos, coordenadas por sacerdotes, que se movem em grande parte na linha da espiritualidade carismática, é um dado importante a considerar, no contexto brasileiro. Na Índia, mesmo que existam ensaios com relação a isto, não chega a ser marcante, inclusive se fala numa espécie de decréscimo da onda carismática.

Na Índia existe uma religiosidade entranhada na cultura, que transborda toda e qualquer religião. Isto faz com que os indianos sejam pessoas mais espirituais, em tudo o que fazem e dizem. Nós brasileiros temos, com certeza, muito a aprender neste sentido. Aprender, sobretudo, a valorizar as nossas culturas, as nossas crenças e religiões e mesmo as nossas descrenças e negações de religião. Sem raízes culturais fortes ou sem ter tido tempo ou condições propícias de cultura, a sociedade brasileira, em muitos contextos, está se movimentando em geral muito próxima da beira do precipício da banalização e do vazio de sentido. Talvez beber um pouco mais das lições milenares da Índia nos possa alertar desse precipício. As lições a que me refiro não são propriamente as lições religiosas, mas estou falando da valorização das próprias tradições e do respeito às tradições dos outros, propiciando um convívio harmonioso na diversidade.

PROMOÇÃO DA JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL

Reflexão elaborada em 2016, em vista de assessorias na Província dos Jesuítas do Brasil.

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

Pe José Ivo Follmann sj (2016)
Secretário para a Justiça Socioambiental
da Província dos Jesuítas do Brasil – BRA

Quando a Companhia de Jesus convida os jesuítas e, também, os que se congregam em suas obras, a serem “Serviço da Fé e Promoção da Justiça” (CG. 32, d.4), ou melhor, Promoção da Justiça como condição sine qua non desse Serviço da Fé, pode-se acrescentar, dentro da compreensão nova e atual que nos é proporcionada, que em nosso Serviço da Fé devemos ser Promotores da Justiça Socioambiental. Isto vem mais claramente explicitado no modo como a Congregação Geral 35ª (2008) se expressou ao falar na necessidade do estabelecimento de relações justas com Deus, com os outros em sociedade e com os bens da criação. (CG.35, d.3)

No Marco de Orientação da Promoção da Justiça Socioambiental – Marco PJSA da Província dos Jesuítas do Brasil (2015) – http://www.jesuitasbrasil.com/newportal/wp-content/uploads/2016/07/MarcoPFSA.pdf – a definição de justiça socioambiental sugere uma chamada para a justiça frente aos desmandos e estragos sociais e ambientais causados pelo ser humano em sociedade, em sua forma desordenada de viver na casa comum, que é o planeta terra.

Nesse Marco PJSA que foi aprovado em 2015 para toda a Província dos Jesuítas do Brasil e, portanto, também, para todas as obras de suas Mantenedoras, entre elas a Associação Antônio Vieira – ASAV, está explicitada uma delimitação descritiva muito sugestiva e didática da abrangência das ações de Promoção da Justiça Socioambiental – PJSA.

As ações de Promoção da Justiça Socioambiental abarcam, sobretudo, três grandes níveis ou esferas da ação humana: 1) O reconhecimento radical dos seres humanos em sua dignidade, independente de raça, religião, cultura ou prestígio social, promovendo o diálogo intercultural e inter-religioso, a reeducação das relações étnico-raciais e denunciando as discriminações contra negros, indígenas e outros segmentos social e culturalmente estereotipados. 2) O esforço sincero e permanente por encontrar formas de superação das desigualdades, de erradicação das exclusões, da miséria e da pobreza, passando pelo cuidado com as políticas públicas de assistência social, saúde, educação, bem como, pelas políticas da terra e do trabalho, com atenção permanente aos indivíduos e grupos mais desprotegidos. 3) O compromisso diuturno no cuidado com o meio ambiente e os dons da criação, revelando cuidado com a vida em toda sua diversidade e com a conservação, preservação e cultivo do nosso ecossistema.

Em suma, ser justo significa empenhar-se pela vida em todos os seus sentidos. Podemos chamar isto de prática de justiça socioambiental. O ano de 2015 trouxe, pelas mãos do Papa Francisco, um presente valiosíssimo para a humanidade, que é a Encíclica LAUDATO SÍ (Louvado Sejas, Meu Senhor!). Sim, devemos louvar o Senhor por este documento extraordinário que convoca a todos os homens e mulheres da grande “casa comum” para, com generosidade, cuidarmos desta “casa” e do convívio bom e justo dentro dela, sendo praticantes da justiça socioambiental.

O conceito de justiça socioambiental aqui apresentado está fortemente inspirado no conceito de “Ecologia Integral” descrito pelo Papa Francisco na sua Carta Encíclica. Que as nossas obras e cada pessoa, que trabalha nessas obras, em seu jeito de ser e agir, sejam sempre mais profundamente iluminadas pela promoção da justiça socioambiental e pela ecologia integral.

RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL: MISSÃO DE RECONCILIAÇÃO E JUSTIÇA.

Reflexão elaborada em 2017 em vista de trabalhos de assessoria nas Frentes Apostólicas da Província dos Jesuítas do Brasil.

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma de ecologia integral

P. José Ivo Follmann sj
Secretário para a Justiça Social e Socioambiental
Província dos Jesuítas do Brasil
(26/09/2017)

A Educação Jesuíta está presente no mundo todo e participa do rico “tesouro espiritual” da Companhia de Jesus, Ordem Religiosa dos Jesuítas, cultivado e transmitido ao longo de séculos. Trata-se do mesmo “tesouro espiritual” que embasa a “missão de reconciliação e justiça” recentemente sublinhada pela Congregação Geral 36 (CG 36), em 2016.

É um “tesouro” que contém uma proposta educativa muito atenta aos diferentes contextos e épocas. Como tal, busca e cria respostas adequadas aos apelos de cada momento.

O Projeto Educativo Comum – PEC, construído recentemente pela Rede Jesuíta de Educação – RJE da Província dos Jesuítas do Brasil, em um de seus posicionamentos, assim se expressa: “O contexto socioambiental em que estamos inseridos nos apresenta apelos aos quais não podemos estar indiferentes e insensíveis”. (PEC, n. 2) O documento prossegue, apoiando-se na Sagrada Escritura (Rm 12,2), com o seguinte apelo: “Nossa fé nos ensina estar atentos aos sinais dos tempos e a não nos conformar com o mundo, mas transformá-lo”. (PEC, n. 2)

Vivemos em uma época de grandes crises. São crises que se manifestam nos diferentes âmbitos da sociedade. São crises envolvendo a própria sobrevivência do planeta terra. Essas crises são um desafio múltiplo, que chama a uma grande responsabilidade de busca de reconciliação e construção de relações justas.

Apoiando-se na Encíclica Papal ‘Laudato Sí’, os jesuítas, reunidos em 2016, na CG 36, assim se expressaram, em um de seus Decretos: “O Papa Francisco nos recorda que ‘não há duas crises separadas, uma ambiental e outra social, senão uma só e complexa crise socioambiental’. Esta crise única, que subjaz tanto à crise social como à ambiental, origina-se do modo como os seres humanos usam – e abusam – das pessoas e das riquezas da terra”. (CG 36, d.1, n.2)

Na ‘Laudato Sí’, o Papa Francisco refere e sublinha o conceito de Ecologia Integral, que pode ser considerado como paradigma transdisciplinar chave, para a busca de compreensão da problemática complexa em nossos dias.

Já em 2008, os jesuítas, na CG 35, ao falar da promoção da justiça focaram na “reconciliação com Deus”, “com os outros” e “com a criação”. (CG 35, d. 3, n. 20-24). Esta tríplice reconciliação foi particularmente aprofundada pela última Congregação Geral, sintetizando o eixo central da Missão da Companhia na palavra reconciliação. (CG 36, d. 1, n. 21-30)

A missão da reconciliação, nos termos desta Congregação, tem como elementos centrais a fé, a justiça e a solidariedade para com os pobres e os excluídos. (CG 36, d. 1, n. 3). Desde a década de 1970, na CG 32, o eixo central da missão sempre veio sendo definido como “o serviço da fé do qual a promoção da justiça se constitui como exigência absoluta” (CG 32, d. 4, n. 2). Não há uma ruptura com esta formulação, mas se alcança uma nova culminância de síntese e compreensão na palavra reconciliação, como expressão mais radical da justiça, enquanto condição do serviço da fé.

O nosso PEC afirma que a Instituição Educacional Jesuíta é um “lugar de transformação evangélica da sociedade e da cultura por meio da formação de homens e mulheres conscientes, competentes, compassivos e comprometidos”. (PEC, n.9; RJE, Estatuto, art. 5º). A educação jesuíta se propõe, assim, a facilitar espaços educativos por dentro e por fora da sala de aula, que levem à formação de homens e mulheres de alta qualificação profissional e profunda consciência crítica. Isto necessita de terreno concreto para fortalecer as suas raízes. O contato e a prática concreta de “responsabilidade socioambiental” ou “promoção da justiça socioambiental” no horizonte radical da reconciliação e da ecologia integral ajudarão a proporcionar isto.

Enseja-se a formação de homens e mulheres comprometidos e engajados na busca de soluções para os diferentes problemas concretos do convívio humano. Que sejam homens e mulheres cujo coração pulse forte e inquieto sempre que forem confrontados com os problemas que envolvem, sobretudo, a dignidade humana, a superação das exclusões e o cuidado dos bens da natureza, ou seja:

 O reconhecimento profundo da dignidade de todos os seres humanos acima de raízes étnico-raciais, de crenças religiosas, das diferentes gerações, gênero, origem nacional, visões de mundo e opções, buscando sempre formas de estabelecer o diálogo, o valor da pluralidade e a inclusão de todos.

 A superação das exclusões sociais e da pobreza, promovendo o acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, saúde, moradia, educação e alimentação. Inclui-se, sobretudo, o direito de ter um país para viver.

 A busca constante pela boa conservação, preservação e usos adequados dos dons da natureza, em vista do cuidado dos ecossistemas saudáveis e da vida para o futuro do planeta terra e de seus habitantes.

Este é o tríplice apelo ou a tríplice chave para o exercício de nosso papel de promoção da justiça socioambiental ou exercício de nossa responsabilidade socioambiental, no horizonte da ecologia integral e da visão cristã da reconciliação.

ENTREVISTA COM O PROFESSOR DOUTOR JOSÉ IVO FOLLMANN

Artigo publicado em 2017, na Revista Labirinto

Entrevista

Entrevista realizada por Renilda Aparecida Costa, para o Centro Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa sobre o Imaginário Social, Universidade Federal de Rondônia. Dossiê Intolerância Religiosa.

Revista LABIRINTO Ano XVIII Volume 26 (Jan-Mar) 2017 pp. 213-230.

(Observação: a entrevista foi respondida em parte por telefone e em parte por e-mail e nela o entrevistado recorre, em algumas pequenas passagens, a reflexões escritas de sua autoria em outros contextos.)

(Renilda: R.A.C.) Antes de sua formação como padre, como foi a sua educação na infância? O que destacaria, considerando a temática da intolerância religiosa?

(José Ivo: J.I.F.) A minha educação inicial na infância foi dentro de um mundo de horizontes muito fechados. Filho de uma família numerosa de pequenos agricultores no interior do Rio Grande do Sul, foi uma vida marcada por um cotidiano de duras privações e tendo como único horizonte religioso, o católico. Tudo o mais aparecia e era apresentado como estranho ou mesmo extravagante. Em suma, havia uma uniformidade religiosa em nossas cabeças e não cabiam questionamentos que apontassem para intolerâncias. Ou seja, melhor dizendo: éramos totalmente intolerantes, por nascença…

(R.A.C.) O fato de ter-se formado para padre jesuíta influenciou a uma sensibilização com relação a intolerância religiosa, ou existem outros fatores que pesaram?

(J.I.F.) De fato, eu gostaria de fazer um recorte mais amplo. Inicialmente, enquanto criança, eu tenho na memória, que eu não queria ser padre. Outros irmãos meus estavam se encaminhando para isto. Eu era “do contra”. Queria ser diferente… Mas, por esses acasos da vida, os projetos dos outros foram descontinuados e eu acabei sendo “fisgado” para ser padre, por influência de um tio que era padre. Não vou entrar nesses detalhes. Não vem ao caso… Para mim a esfera religiosa, ou como às vezes prefiro dizer, “o mundo das religiões e das religiosidades”, ocupa um lugar fundamental. Isto talvez possa soar paradoxal se considerarmos todo o movimento de secularização e afirmação de estados laicos e sociedades laicas. A minha percepção tem três fontes, ligadas à minha própria trajetória (ou processos pessoais de identidade, como gosto de dizer); pode-se falar em três grandes escolas de aprendizado: 1) Sou sacerdote católico e, como já mencionei venho de uma família e comunidade de profundo cultivo da tradição religiosa católica, num horizonte bastante fechado. Tive, também, longa formação espiritual dentro da espiritualidade inaciana dos jesuítas, por ser jesuíta. Isto pauta fundamentalmente os meus processos de identidade. (É o aprendizado no recolhimento pessoal.) 2) A minha prática de estudo das religiões, enquanto sociólogo das religiões, pesquisador e orientador de muitos trabalhos de pesquisa nesta área. Dedico-me nas últimas duas décadas, sobretudo, à questão da crescente diversificação na esfera religiosa. (É o aprendizado na prática de pesquisa.) 3) Em minha trajetória passada e também no presente, assumo uma postura de radical prática de diálogo na relação com as demais religiões. (Faço parte de um grupo inter-religioso de diálogo, desde 2002, no qual participam mais de dez segmentos religiosos diferentes.) (É o aprendizado no diálogo com o outro.) São minhas três grandes escolas. Muitos mestres e muitas mestras fizeram e fazem parte destas escolas em minha vida. Nessas escolas aprendi e fui convencido de que a esfera religiosa é uma esfera fundamental, também, nas sociedades de hoje. Reconheço-me também como defensor da laicidade do estado e da sociedade, enquanto espaços públicos, democráticos e de reconhecimento da pluralidade religiosa, inclusive a defesa do direito de não ter crença nenhuma. O fato de ver a esfera religiosa como algo fundamental, portanto, não é um posicionamento contrário à laicidade. Pelo contrário, vejo a laicidade do estado e da sociedade como importante para preservar o reconhecimento desta rica diversidade, sem dar vez às intolerâncias.

(J.I.F.) Voltando diretamente à primeira “escola” e ao cerne da pergunta, devo dizer: Sobre a importância da formação para padre? Com certeza! O fato da formação para padre jesuíta pesou muitíssimo. Foi a minha formação para padre jesuíta que abriu os meus horizontes. Evidentemente dentro desta formação também se agregou a formação sociológica que correu paralelamente. Curiosamente o fato de estar me formando para padre jesuíta e cursar sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, foi uma oportunidade incrível para perceber certas intolerâncias do mundo acadêmico com relação ao tema da religião. Ou seja, despertei muito para uma faceta que posteriormente me ajudaria a cultivar fortemente em mim uma postura crítica com relação a certos limites constrangedores da nossa academia brasileira. Hoje sou um militante da transdisciplinaridade e já repeti muitas vezes que a transdisciplinaridade é a tábua de salvação da universidade.

(J.I.F.) Mas voltando à questão central em pauta, como não houve oportunidade nenhuma durante o meu Curso de Ciências Sociais na UFRGS para estudar temáticas relacionadas com a esfera das religiões na sociedade, quando cursei, logo na sequência, Teologia (e já era professor de sociologia na época), tive oportunidade de introduzir-me em leituras sociológicas sobre religiões e religiosidades. Tive oportunidade de contribuir bem em seminários e aulas sobre “Sociologia das religiões populares no Brasil”.

(J.I.F.) Na verdade, só comecei a aprofundar, de fato, meus estudos de sociologia das religiões, durante o mestrado na PUCSP, sob a orientação do Professor Cândido Procópio Camargo, de saudosa memória. Me considero um privilegiado por carregar em mim uma formação que proporcionou uma riqueza muito grande de contatos, experiências e trabalhos, em contextos muito diversificados. O professor Florestan Fernandes também exerceu um grande impacto em minha trajetória, durante o mestrado, sobretudo no despertamento para uma leitura mais crítica (menos “branca e viciada”) de toda a temática afrodescendente no Brasil.

(J.I.F.) A sensibilização com relação às intolerâncias religiosas foi crescendo em mim e consolidou-se definitivamente durante o meu doutorado em sociologia, realizado em Louvain la Neuve, Bélgica. Tive importantes convivências com colegas do Continente Africano. Fui percebendo o quanto as nossas intolerâncias religiosas (brasileiras) estão profundamente relacionadas ou enraizadas nas intolerâncias raciais, ou seja, no racismo tão forte quanto dissimulado, que impregna a nossa sociedade. A ausência de negros brasileiros nos doutorados da Bégica me chamou muita atenção. Me fez voltar muito comprometido com rever a postura da Universidade em relação à temática dos afrodescendentes e a urgência de pensar em formas de uma maior inclusão deles no meio acadêmico.

(R.A.C.) A profissão de sociólogo e sociólogo da religião foi uma escolha ou uma contingência da vida?

(J.I.F.) Decidi ser sociólogo quando estava cursando filosofia em São Paulo e ao mesmo tempo exercia trabalhos sociais na periferia, particularmente no Bairro Perus, onde eu ajudava a orientar “círculos bíblicos”. Era o período da grande greve na fábrica de cimentos do local. Algumas lideranças daquele movimento grevista participavam dos mencionados círculos bíblicos e eu me ressentia de minha pouca formação sobre movimento operário, vida sindical, relações de trabalho. Os líderes grevistas que participavam dos círculos bíblicos traziam reflexões interessantíssimas relacionando o texto sagrado da Bíblia com o que eles viviam na luta do dia a dia, naquela situação de greve. Foi o que me fez decidir estudar sociologia, para poder também contribuir neste tipo de reflexão, mais tarde… Fazer sociologia acabou sendo uma espécie de exigência para mim, para poder ser um bom jesuíta. Para poder prestar um serviço competente, como padre. A sociologia das religiões foi decorrência, sobretudo, por me ressentir da tremenda ausência do mundo acadêmico e dos sociólogos, no que se refere a estudos sérios sobre a esfera das religiões e o seu significado na sociedade.

(J.I.F.) Os meus estudos de sociologia das religiões se focaram, sobretudo, na religião católica. Eu não quis ser mais um sociólogo a estudar o exótico, só para enriquecer os meus conhecimentos e currículo pessoal, sem compromisso efetivo. Eu quis estudar algo no qual eu estava implicado e queria que meus estudos pudessem efetivamente levar a contribuições práticas.

(R.A.C.) Com uma carreira consolidada como professor pesquisador e, que tem como uma de suas temáticas o diálogo inter-religioso, o senhor acredita que há um crescimento do interesse dos estudantes da pós-graduação com relação à temática religiosa nos estudos?

(J.I.F.) Com certeza, ao longo das últimas décadas houve um grande despertar no meio acadêmico com relação às temáticas religiosas. Talvez a própria dinâmica religiosa na sociedade tenha despertado mais a atenção. Por falar em dinâmica religiosa, o que está claro, ao longo das últimas três décadas, como pude escrever recentemente em alguns textos, é que vivemos um processo acelerado de inflexão nas forças da esfera religiosa: de um Brasil predominantemente católico está-se caminhando para um Brasil onde a força do segmento evangélico pentecostal e neopentecostal e a diversificação religiosa em geral, tendem a conquistar espaços sempre maiores. A explosão da diversidade pode ser vista como reação contra os constrangimentos uniformes anteriores, na história brasileira, de quase quatro séculos de religião católica como religião oficial. Em algumas situações, esta explosão da diversidade assume contornos de pluralismo religioso, ou seja, de convívio e reconhecimento democrático entre as diferentes expressões religiosas. Pode-se dizer que o meio acadêmico, de certa forma, é simpático a isto e passa a se interessar… É claro, a explosão da diversidade, por si só, não gera espírito pluralista ou espírito de convívio democrático. Muitas vezes, também, são geradas radicalizações fundamentalistas. No caso de nossa sociedade brasileira, por exemplo, enquanto reinava o inequívoco predomínio da dominação religiosa católica, como religião oficial do Brasil, havia pouca margem para a percepção da diversidade e de outras forças dentro da esfera religiosa neste país. Havia também pouca percepção da violência simbólica religiosa de parte desta religião dominante com relação às demais expressões religiosas. A partir do momento em que foram geradas condições históricas para uma maior abertura para a diversidade, além de serem proporcionadas melhores condições de percepção da própria diversidade antes oculta e “clandestina”, passou-se também a perceber melhor e explicitar as violências simbólicas existentes. Vivemos ao longo de nossa história um tremendo processo de intolerância religiosa dissimulada e oculta. É compreensível que, presenciemos, na sequência, radicalizações fundamentalistas, sobretudo, de segmentos, por muito tempo, dominados e impedidos de se expressarem. Tem-se assim um movimento duplo contraditório gerado pela diversificação: crescimento do espírito de convívio democrático pluralista, de um lado, e aumento de radicalizações fundamentalistas, de outro.

(J.I.F.) Mas não quero ser entendido mal. As radicalizações fundamentalistas não são tanto de religiões minoritárias contra um antigo domínio religioso. Observamos que o que mais se manifesta hoje são radicalizações fundamentalistas de caráter racista (o nosso problema central é o racismo!), onde as antigas intransigências do mundo católico-europeu frente às tradições religiosas indígenas e africanas aparecem agora pela via de certos grupos neopentecostais radicalizados e fundamentalistas.

(R.A.C.) Tomando este gancho final, o senhor acredita que a ampliação de estudos relacionados a relações raciais e intolerância religiosa podem contribuir na formação humana e profissional?

(J.I.F.) Com certeza. É no conhecimento que reside uma das chaves principais de solução. Conhecimento em geral gera reconhecimento. Como falei no início, eu, por exemplo, nasci e fui criado em minha infância em um mundinho totalmente fechado dentro do horizonte católico e branco. Mal podia imaginar algo de importância e de valor fora disso. Hoje em dia, os meus horizontes são outros. Radicalmente outros! Hoje sei que os africanos trazidos de forma forçada e feitos escravos no Brasil (e foram milhões), no período colonial, foram submetidos a vários “mecanismos de esquecimento de seu passado” e entre estes, se destaca um, que na leitura de hoje seria considerado o mais perverso, que foi o de forçá-los a abandonar as suas tradições religiosas de origem, sendo-lhes imposto o batismo católico, pois a igreja católica era a religião oficial do Império Português e continuou sendo a religião oficial, também no Brasil, no período imperial. De fato, o que se tem no Brasil de religiões de matriz africana são sobrevivências, por resistência, a toda a dominação religiosa católica.
A sobrevivência das tradições religiosas africanas deu-se, sobretudo, através da habilidade e astúcia dos próprios negros escravizados que souberam disfarçar os seus cultos usando símbolos e imagens do catolicismo. Imagens (estátuas) de santos católicos eram usadas como fachada para cultuar os Orixás de origem. (Só saber isto, hoje me enche de orgulho pela criatividade inerente à sociedade brasileira, sobretudo, de herança africana!) Esta invenção criativa foi uma estratégia muito bem-sucedida na preservação de culturas milenares, que estavam sendo colocadas em risco. Ter-me apropriado desta realidade e poder refletir com as pessoas, hoje, sobre o fato de que as religiões de matriz africana são de uma tremenda diversidade e riqueza, me enche de “santo” orgulho… Ter a certeza dentro de mim, que definitivamente, as religiões de matriz africana são sérias e estão ancoradas em tradições muito ricas… Que definitivamente não são simplesmente aquela “macumba” que a gente falava pejorativamente quando criança. Saber que as religiões de matrizes africanas são também diversificadas e respondem a múltiplas tradições de regiões culturais diversas nas origens africanas.

(J.I.F.) Hoje posso dizer que alguma coisa conheço. Já falo com mais liberdade e segurança que o tráfico de africanos escravizados se deu em levas sucessivas entre os séculos XVI e XIX. Os grupos trazidos para o Brasil, nas levas sucessivas, eram provenientes de tradições culturais e religiosas muito diversificadas. Os primeiros a serem trazidos e foram os mais numerosos e eram de tradição Bantu. Bem mais tarde foram trazidos grupos mais influenciados pela tradição Jeje. Por fim africanos escravizados ligados a tradições Yorubá e Nagô trouxeram referências culturais e religiosas ricas e novas. Estes últimos encontraram, no entanto, uma longa caminhada de práticas, adaptadas à nova realidade no contexto brasileiro, cultivadas a partir das tradições anteriormente chegadas.

(J.I.F.) Existe, assim, uma diversidade muito grande, proveniente em parte da diversidade de origem, mas, sobretudo, das novas “costuras” e sobreposições e da criatividade dos Babalorixás (Sacerdotes) e/ou Pais de Santo e Yalorixás (Sacerdotisas) e/ou Mães de Santo, em sua vivência religiosa e produção teológica. Apesar da diversidade, são identificáveis grandes linhas de “parentesco espiritual” ou “famílias religiosas” que às vezes ultrapassam os limites de vários Estados. Aprendo muito de orientandas e orientandos meus. Devo um grande aprendizado junto à própria entrevistadora (Renilda Aparecida Costa), quando em sua tese de doutorado traçou um belo contínuum em termos de Batuque, mostrando ligação entre família religiosa de Lages, Santa Catarina e família religiosas de Gravataí, RS…

(J.I.F.) Enfim, hoje prefiro dizer que sei muito pouco sobre toda esta riqueza. Por que falo isto? Porque vejo como importante poder dizer isto assim, com detalhes. É a minha maneira de expressar reconhecimento. Sei o suficiente para ter um profundo reconhecimento. Mas, obviamente, prefiro ouvir os seus próprios teólogos e sacerdotes. Fico muito feliz em poder olhar agora de dentro dos meus setenta anos de idade e perceber quão longa caminhada foi realizada desde aquele pequeno mundo, bem organizado e feliz, mas de horizontes estreitíssimos e tendente a preconceitos e intolerâncias múltiplas, que me amarrava na infância.

(R.A.C.) Como vice-reitor de uma renomada instituição de ensino superior, acredita que há uma preocupação institucional relação a construção de conhecimentos que foram marginalizados como os dos negros e indígenas em detrimento dos conhecimentos eurocêntricos?

(J.I.F.) Não só acredito, mas fui também protagonista para que isto acontecesse e se consolidasse em nossa instituição. Estou nesta Universidade (Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS) desde 1973, como professor, mas foi, sobretudo, depois que aprofundei os meus estudos, ao retornar do doutorado na Bélgica, que não descansei mais em duas causas: trazer para dentro das preocupações e práticas acadêmicas o mundo das “religiões e religiosidades” e me empenhar mais para a inclusão de afrodescendentes e a temática racial e da superação do racismo. A partir de 1999, tive para isto um grande apoio decisivo de uma pessoa que se chama Adevanir Aparecida Pinheiro, hoje doutora em Ciências Sociais, professora da UNISINOS e coordenadora do NEABI. Ela vinha de uma longa militância no meio religioso de recorte afro e do próprio movimento negro. Logo percebi que a contribuição dela e esse apoio estavam sendo decisivos e determinantes, pela própria necessidade de romper certos tabus profundamente contaminados pela “branquidade”, incapaz de perceber os racismos dissimulados existentes em instituições como a nossa, fazendo com que facilmente se sucumba. Aliás ela é estimuladora do debate sobre branquidade e branquitude. Dela aprendi que o principal alvo do processo de educação das relações étnico-raciais deve ser o próprio branco e também em termos de diálogo interreligioso, deve ser o próprio católico. Tudo isto devido a vícios colonialistas profundamente incrustrados e que devem ser desmontados.

(R.A.C.) O senhor acha que a criação da Lei 10.639 de 2003 foi um acerto e poderá efetivamente contribuir para avançar na geração do verdadeiro espírito republicano, para além dos racismos e intolerâncias?

(J.I.F.) Eu diria, é uma iniciativa educacional que acertou no alvo! Atinge o cerne da desigualdade social brasileira. Me lembra muito um professor meu, Octávio Ianni. Ele foi talvez o sociólogo brasileiro que melhor formulou a questão social no Brasil. Ele dizia que para entender a questão social no Brasil é necessário colocar a questão racial no centro da questão social. O Brasil é um país que tem um racismo profundamente institucionalizado. Serão necessários muitos esforços para desmontar isto. Creio que a lei 10639/2003 é uma das melhores iniciativas em termos de políticas públicas. Com certeza o Brasil não será mais o mesmo depois da consolidação da lei da ERER – educação das relações étnico-raciais. Para mim, a lei 10639/2003, foi uma das maiores sacadas em termos de políticas públicas recentes na sociedade brasileira. É fundamental que seja levada a sério. Ela deve ser pensada e aplicada em todos os âmbitos da vida social, não só no sistema educacional. É fundamental que os meios de comunicação também sejam impregnados pela lei da educação das relações étnico-raciais. A política de assistência social e outras políticas devem também estar impregnadas pela lei da educação das relações étnico-raciais. Ela deve contaminar o próprio “ensino religioso”. Quem sabe, um dia se possa pensar uma espécie de “educação das relações religiosas”. Só assim estaremos efetivamente construindo um Brasil democrático e cidadão. Só assim estaremos reabilitando o Brasil na sua verdadeira identidade. (Pois como sempre digo, o Brasil é o resultado de grandes processos de alienação dos quais todos somos vítimas.)

(R.A.C.) O senhor falou em “educação das relações religiosas”… Seria este um caminho para fazer frente aos desafios de superação das intolerâncias religiosas no mundo contemporâneo, e, é claro no Brasil? Gostaria de ouvi-lo sobre como vê isto.

(J.I.F.) No Brasil, a discriminação religiosa está associada à discriminação racial. A nossa sociedade é uma sociedade tremendamente racista. Felizmente hoje isto está sendo enfrentado mais rigorosamente através de uma série de iniciativas educacionais e políticas de ação afirmativa. Mas, além da discriminação racial também deve ser considerado o próprio fator dos “conflitos religiosos” na disputa da verdade religiosa e convencimento dos seguidores. A Igreja Católica, por muito tempo, no Brasil, se considerava como força absoluta no que diz respeito a religião e todas as outras iniciativas eram demonizadas e perseguidas. Hoje, de algumas décadas para cá, a percepção da Igreja Católica mudou significativamente, mas estamos vivendo um novo fenômeno muito visível de parte de Igrejas Evangélicas Pentecostais e Neo-Pentecostais com fortes manifestações de discriminação e intolerância religiosa, sobretudo, como relação às religiões de matrizes africanas. Só existe efetivamente uma boa fórmula para fazer frente às intolerâncias religiosas: é uma boa “educação das relações religiosas”. A iniciativa de introduzir o “ensino religioso” nas escolas é uma iniciativa importante, mas infelizmente existe muita imaturidade política em nível governamental em diversos Estados e, sobretudo, um terrível despreparo das escolas e das professoras e professores. Sem um forte investimento no sentido de fazer do “ensino religioso” um espaço de educação efetiva para o pluralismo, estaremos perdendo uma chance ímpar na história deste país. Estaremos perdendo uma chance ímpar de fazer deste espaço um acelerador da construção da sociedade democrática. Acredito num ensino religioso que seja uma efetiva “educação das relações entre as diferentes crenças /descrenças e práticas religiosas”. Nada melhor do que “sentar” ao redor da mesma mesa os diferentes conhecimentos, saberes e crenças/descrenças no domínio religioso, seja pelo ângulo das diferentes ciências da religião, seja pelo ângulo de leituras teológicas, vivências espirituais e vivências atéias, como ensaio de um verdadeiro laboratório de democracia. Só assim se dará efetivas respostas às intolerâncias religiosas. É claro que isto não é tão simples e óbvio, assim…

(R.A.C.) Se não é tão simples e óbvio, na sua visão quais os motivos que fazem com que a intolerância religiosa esteja recrudescendo no mundo contemporâneo?

(J.I.F.) As intolerâncias religiosas, obviamente, devem ser consideradas dentro de um horizonte mais diversificado. Não podemos simplificar e reduzir à dimensão das relações raciais ou ao racismo. O que eu quero sublinhar é que em nossa realidade brasileira, o melhor atalho para atingir o principal das intolerâncias, está em focar no racismo dissimulado que crassa em nossa sociedade. Sabe-se evidentemente que as religiões sempre devem ficar muito vigilantes para não gerar intolerâncias, por incompreensões ou assimilações muito estreitas da própria doutrina. Muitos fiéis podem ser levados a posicionamentos radicalizados, por uma orientação equivocada ou descuidada (ou, mesmo, intencional) de determinados líderes religiosos. O religioso é um terreno muito propício para radicalismos, pois lida com uma dimensão e valores essencialmente radicais da existência humana. Muito se poderia refletir sobre isto. Reafirmo que tudo tem a ver e pode encontrar boas soluções em uma lúcida e honesta “educação das relações religiosas”.

(R.A.C.) O Diálogo Inter-religioso pode ser um caminho na superação da intolerância religiosa quais as perspectivas contemporâneas?

(J.I.F.) Com certeza. Tenho uma boa experiência neste sentido. Vou iniciar com um exemplo que já repeti muitas vezes. Um dia eu estava participando em um seminário sobre espiritualidade das religiões de matriz africana. Uma Mãe de Santo (Yalorixá), que era uma das painelistas, acabara de fazer uma reflexão de grande profundidade e que, no meu entender, deveria merecer um registro escrito. No final de sua colocação, perguntei-lhe sobre porque as religiões de matriz africana, ainda hoje, continuavam resistentes ao registro escrito das grandes lições de vida e fé de seus líderes e, também, de suas reflexões espirituais e religiosas. Ela me respondeu: “Padre Ivo, vou dizer uma coisa muito certa. Se a gente escreve, aí vêm outros, leem e saem fazendo bobagem!…” Foi uma resposta inesperada, que já me oportunizou muita reflexão. Em primeiro lugar: valores e atitudes não se aprendem em livro! Ou seja, existem dimensões no conhecimento que não passam pela simples captação da razão. As formulações da linguagem sempre serão pobres para dar conta delas. Só podem ser colhidas na vivência e no coração.

(J.I.F.) O diálogo, o sentar em roda e escutar-se mutuamente, de forma informal e amiga, o cultivo da amizade, tudo isto faz com que as barreiras caiam e aprendamos a nos respeitar e a nos reconhecer mutuamente.

(R.A.C.) Na UNISINOS existe o GIRD, do qual o senhor faz parte. Como se deu a constituição desse Grupo Inter-religioso de Diálogo e quais foram os seus objetivos? Como foi a sua atuação?

(J.I.F.) O Grupo Interreligioso de Diálogo do qual eu participo já tem 15 anos. Foi criado em 2002. No início o denominávamos de Grupo de Diálogo Interreligioso. A própria metamorfose do nome tem um significado. Quando o grupo foi criado, em 2002, traçamos o objetivo fundamental, onde dizíamos que seríamos um grupo de líderes religiosos, que se reúnem de forma espontânea, sem exercerem representatividade de sua instituição, com a simples finalidade de cultivar uma relação de conhecimento mútuo das religiões envolvidas. O foco principal está em conhecer e reconhecer coletivamente os processos de identidade de cada uma das religiões “representadas” no grupo e também dos próprios processos religiosos de identidade vividos pelos indivíduos integrantes do grupo. Ao longo dessa história de 15 anos, com reuniões frequentes, em geral, mensais, e, também, realizando celebrações inter-religiosas públicas, em conjunto, muitas manifestações e depoimentos já foram colhidos no sentido de que o próprio grupo está sendo uma escola importante para o crescimento e amadurecimento nas próprias opções religiosas dos integrantes.

(R.A.C.) O senhor falou que o grupo sofreu metamorfoses ou transformação. Como foi este processo? Ele parece que gerou um Programa chamado Gestando o Diálogo Inter-religioso e o ecumenismo – GDIREC, teve vinculação com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU e qual a sua relação com o NEABI?

(J.I.F.) Primeiro o detalhe da mudança de nome de GDIR para GIRD, ou seja, de Grupo de Diálogo Interreligioso para Grupo Interreligioso de Diálogo, é decorrência, nasceu de um amadurecimento interno. Na medida em as nossas reuniões foram acontecendo e nos vimos tratando de diferentes assuntos que envolvem as religiões na sociedade, entendemos que o nosso foco não era propriamente dialogar sobre as nossas diferenças ou semelhanças religiosas, enquanto tal, mas sim, dialogarmos sobre nossas convicções religiosas dentro de temáticas que mobilizavam a todos na sociedade.

(R.A.C.) Mas especificamente, a criação do Programa Gestando o Diálogo Inter-religioso e o ecumenismo – GDIREC, como se deu, o que estava envolvido, qual a metodologia utilizada do formação e consolidação do grupo?

(J.I.F.) É uma história bonita. Vou tentar traçar alguns pontos importantes, para assim, talvez, apontar aspectos da metodologia utilizada no Grupo Inter-Religioso de Diálogo. Parte-se basicamente das experiências vividas entre os líderes religiosos, em seus encontros e nas convivências nos seus locais e templos ou em ações conjuntas diversas. Em nosso entender, trata-se de uma forma genuína de testemunhar e narrar Deus na diversidade e complementariedade de perspectivas, na sociedade de hoje. É uma experiência realizada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, como já sinalizei, ao longo de mais de quinze anos de GDIREC. É uma metodologia que busca a valorização do conhecimento e experiências de cada líder religioso que se faz presente no grupo inter-religioso de diálogo, em reuniões mensais na Universidade com o objetivo de estudar e dialogar sobre a importância de suas manifestações identitárias, cultivando, sobretudo, o reconhecimento mútuo.

(J.I.F.) O Grupo Inter-Religioso de Diálogo – GIRD, foi criado em 2002, dentro de um quadro mais amplo de atividades que visam o cultivo do diálogo interreligioso e do ecumenismo, amparadas no Programa GDIREC, na Universidade. Como já sinalizei a mudança de nome de GDIR para GIRD se deve à percepção do próprio grupo em se caracterizar enquanto a participação de líderes de religiões diversas que se reúnem em diálogo e reflexão sobre diferentes temas, práticas e atividades. O grupo nasceu da própria demanda de líderes de diferentes expressões religiosas, externando o seu interesse em participar, na Universidade, da reflexão a partir dos resultados das pesquisas sobre os locais de culto e templos e sobre as práticas sociais religiosas, desenvolvidas por esta. O Grupo é constituído, hoje, por integrantes de mais de dez religiões ou denominações religiosas diferentes, e, ao longo de sua história, além de suas reuniões mensais, foi protagonista de diversas atividades e participações, tendo sido, sobretudo, principalmente referência e estímulo para os demais projetos gerados no contexto do GDIREC, como foram a assessoria ao “Ensino Religioso” na rede de escolas da região e mapeamento dos locais e templos de culto religioso na região.
O Programa GDIREC hoje não existe mais e está absorvido em uma atividade mais ampla na linha dos debates sobre teologia pública dentro do contexto da programação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, mas o Grupo Interreligioso de Diálogo – GIRD, prossegue e está abrigado hoje como um projeto dentro do NEABI – Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas. Aliás é importante anotar que, na UNISINOS, os líderes religiosos integrantes do GIRD foram os que mais impulsionaram e ajudaram a criar condições para que o próprio NEABI fosse instituído. Havia uma percepção clara de que muitas das intolerâncias existentes tinham a ver com racismo. Os líderes religiosos se empenharam no sentido de que na Universidade fosse facilitado um espaço ou órgão de reflexão e estudos de aprofundamento e disseminação do conhecimento sobre a história e cultura da África e afrodescendentes. O retorno do GIRD ao NEABI é tremendamente simbólico hoje. Quase se poderia dizer: é o filho que acolhe o pai, num momento em que o pai ficou só, de certa forma, e sem a referência de seu programa fundacional.

(R.A.C.) O que mais o senhor gostaria de partilhar, levando em conta o seu engajamento militante e intelectual na causa da luta contra as intolerâncias religiosas?

(J.I.F.) Eu gostaria de aproveitar o momento para me posicionar. Ou seja, como eu vejo o meu engajamento enquanto cristão diante de tudo isto e também, considerando, que além de cristão, sou um sacerdote jesuíta e ao mesmo tempo um cientista social ou sociólogo. Eu, em primeiro lugar, quero destacar que gostaria de me auto-definir como cristão e como tal um “secular encantado” “sociólogo encantado”, pela via cristã. Para mim o ser cristão significa viver a presença de Deus em todas as coisas. A história do cristianismo, apesar de originalmente ter essa marca secular (de secularização, de presença profundamente encarnada na história, nas realidades seculares), pode, no entanto, ser lida como uma história de sucessivos processos de forte sacralização da própria fé cristã. Hoje vivemos em um momento na história da humanidade em que se manifesta sempre mais algo que se poderia denominar de “secularização encantada”. Falamos até aqui mais de intolerâncias e diálogos. Me causa muita dor perceber intolerâncias de origem religiosa e, sobretudo, intolerância de marca cristã…

(J.I.F.) Acho importante agregar esta outra concepção, que é a “secularização encantada”. A expressão talvez não seja totalmente adequada porque sugere certas conotações, que não têm nada a ver com o que se quer dizer. Entre estes diferentes encantamentos “seculares” se encontra de uma forma nova o próprio cristianismo em seu estado mais original. Busco uma vivência cristã desobstruída das múltiplas sacralizações construídas ao longo da história. E, sobretudo, uma vivência cristã que ultrapassa as próprias fronteiras (limites) dos cristianismos institucionalizados e de todas as outras tradições religiosas instituídas ou formas de organizar socialmente diversos seguimentos religiosos.

(J.I.F.) Em segundo lugar, gostaria de dizer que me vejo como um cristão engajado pela justiça. Ser cristão sempre significou e significa este comprometimento. Isto não é de hoje. O cristão por definição (em seguimento à encarnação de Deus na história) é denúncia de tudo o que está degradando as relações e é comprometido com a construção de outro mundo possível. Outras relações sociais são possíveis. Outras relações ambientais são possíveis. Hoje sou um dedicado divulgador de uma concepção ampla de justiça socioambiental, construída sobre uma tríplice base de relações justas. Vivemos em uma casa comum e para que esta casa não caia em ruínas com o tempo, é fundamental que as relações justas sejam permanentemente cultivadas. São relações justas envolvendo o reconhecimento profundo da dignidade de todos os seres humanos, acima de raízes étnico-raciais, de crenças religiosas, das diferentes gerações, gênero, visões de mundo e opções, buscando sempre formas de estabelecer o diálogo, o valor da pluralidade e a dinâmica da reconciliação; são relações justas envolvendo a efetivação de políticas de superação das desigualdades sociais e acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, saúde, moradia, educação e alimentação; e são relações justas envolvendo a conservação e preservação dos “dons da criação” ou bens naturais, em vista de um ecossistema saudável e de vida para o futuro do planeta terra e seus habitantes. Estas diferentes esferas de relações, permanentemente cultivadas com atenção e justiça, são o caminho de busca da sustentabilidade, ou seja, de sociedades sustentáveis. O mundo cristão, ao longo da história, tem grandes dívidas com relação a isso. Muitos equívocos, muitos males, muitos pecados, muitas infidelidades aos princípios fundantes do Cristianismo estão escancarados na história. É necessária uma permanente busca de renovação. Tenho plena consciência de que, mesmo que isto seja da própria essência do ser cristão, existe uma necessidade permanente de atualização e correção de rota, porque nós humanos somos limitados e frágeis. Trata-se de preocupações que não podem estar alheias ao “que fazer” científico de um cientista social ou sociólogo, como eu, que carrega consigo ou é puxado pelo compromisso com a promoção da justiça. Ou como reza o nosso lema central: O serviço da fé só acontece na sua autenticidade cristã, mediante promoção da justiça.

TRANSDISCIPLINARIDADE, DIÁLOGO E COMPROMISSO SOCIAL: DESAFIOS PARA A RENOVAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR

Palestra proferida na Liverpool Hope University, em abril de 2014

A tábua de salvação da universidade…

FEDERAÇÃO INTERNACIONAL DE UNIVERSIDADES CATÓLICAS – FIUC
XXV Colóquio da ACISE
“Abrir-se para os outros”
Liverpool Hope University, 23-25/04/2014

José Ivo Follmann

Resumo:

O artigo propõe uma reflexão sintética sobre o possível papel da educação superior na realização do sonho de sociedades sustentáveis, pautando, para tal, a importância da cultura transdisciplinar, do diálogo e do compromisso social na produção do conhecimento e na formação dos profissionais. As concepções de ‘transdisciplinaridade’ (Basarab Nicolescu) e de ‘ecologia dos saberes’ (Boaventura de Souza Santos) são retomadas na perspectiva de se repensar o sentido da universidade hoje, enriquecendo-as com apontamentos a partir de estudos sobre a importância do compromisso social da universidade e da extensão universitária, através do conceito de responsabilidade social universitária (François Vallaeys). Além de estabelecer uma aproximação sugestiva entre as concepções de ‘ecologia dos saberes’ e de ‘transdisciplinaridade’ e sua importância para a educação superior, hoje, o texto partilha algumas reflexões a partir do cotidiano de ‘que fazer’ universitário. A reflexão é desenvolvida no horizonte dos desafios que a universidade enfrenta dentro do contexto social brasileiro e latino-americano, tendo em vista a sociedade sustentável. O artigo conclui com apontamentos e questionamentos que sugerem a necessária ‘reinvenção’ da universidade na perspectiva do ‘abrir-se para os outros’.

Introdução

Tendo como horizonte, o contexto latino-americano e, especificamente, o contexto brasileiro, e a urgência de se pensar a responsabilidade das universidades para ajudar a garantir o futuro da humanidade mediante sociedades sustentáveis, são dados quatro passos na reflexão: – Horizontes Direcionadores da Universidade e Responsabilidade Social Universitária; – As Cinco Dimensões do ‘Que Fazer’ Universitário; – Transdisciplinaridade e Diálogo de Saberes: Um Atalho Fundamental; – Extensão Universitária, Caminhos de Ruptura do Abismo e ‘Reinvenção’ da Universidade na Perspectiva do ‘Abrir-se para os Outros’.

Horizontes direcionadores da Universidade e Responsabilidade Social Universitária

Hoje em dia, em nosso meio, muitas vezes se ouve dizer que existe uma defasagem grande entre o que a sociedade em geral, o mercado em particular e os governos esperam do sistema de ensino, particularmente da educação superior e quais as condições efetivas existentes neste sistema para uma produção de conhecimentos e formação de profissionais condizentes com as reais necessidades da sociedade. Isto redobra de importância e urgência quando colocamos no horizonte a construção de sociedades sustentáveis, como é o horizonte direcionador da proposta contida neste texto. Ou seja, a questão se centra sobre as condições que as universidades apresentam para dar conta daquilo que deveria ser a sua finalidade como produção de conhecimentos e formação de profissionais condizentes com a construção de sociedades sustentáveis.

Às vezes nos deparamos com comentários que sugerem que existe um verdadeiro abismo, quase intransponível, entre estes dois mundos. Mesmo que sejam conhecidos diversos esforços para superar este abismo, existem muitos outros processos em andamento que acabam aumentando o mesmo.

Como romper este abismo? Como construir pontes efetivas que permitam o trânsito sobre o mesmo? Sem fazer rodeios, entendo que, em primeiro lugar, é necessário que se coloque no centro do horizonte direcionador algumas questões chaves: – Que sociedade humana nós queremos? Queremos efetivamente construir sociedades sustentáveis? – Que tipo de sujeitos (pessoas) deve ser formado, para que este tipo de sociedade se faça possível? – Que educação nós necessitamos e que universidade queremos para sermos coerentes com a educação necessária para os sujeitos e a sociedade buscados?

Se o nosso sonho é com uma sociedade sustentável, isto é: com uma inovação tecnológica permanente e com o estabelecimento de garantias de sustentabilidade social e ambiental, em vista da sobrevivência equilibrada da sociedade e do meio ambiente no presente e no futuro, os cidadãos e profissionais desta sociedade devem passar por um processo de formação condizente e o sistema, no qual este processo formativo se dá, deve ser impulsionador disto. Quando eu falo em Universidade, o faço dentro deste horizonte. Ou seja, só vejo sentido em lutar por uma Universidade que efetivamente se coloque nesta perspectiva.

Tornou-se bastante usual em debates recentes, sobretudo, a partir do incentivo da UNESCO, o conceito de Responsabilidade Social Universitária – RSU. O conceito tem em si uma riqueza muito grande e traz para o centro das atenções a importância de se ver o processo universitário em sua totalidade orgânica e transversalmente integrada. Reproduzo aqui o conceito formulado pela Associação das Universidades Jesuitas de América Latina – AUSJAL, inspirado em Vallayes (2006), nos seguintes termos: “A habilidade e efetividade da universidade em responder às necessidades de transformação da sociedade em que está imersa, mediante o exercício de suas funções substantivas: ensino, pesquisa, extensão e gestão interna. Estas funções devem estar animadas pela busca da promoção da justiça, da solidariedade e da equidade social, mediante a construção de respostas exitosas para atender aos desafios implicados em promover o desenvolvimento humano sustentável.”

As cinco dimensões do “que fazer universitário”

O sistema de avaliação implantado na AUSJAL para dar conta do conceito de Responsabilidade Social Universitária – RSU está pautado na avaliação de cinco impactos, dando conta de cinco dimensões chave da vida da universidade. Estou sempre mais convencido, em coerência com o que coloquei como horizonte direcionador da Universidade, que devemos estar atentos, de forma integrada, a essas cinco dimensões: a educativa (a vida acadêmica em seu processo de ensino-aprendizagem), a epistemológica e cognoscitiva (a vida acadêmica em seu processo de produção de conhecimento), a organizacional (a vida acadêmica em sua gestão organizacional e administrativa interna), a social (a vida acadêmica em sua relação com a sociedade), e a ambiental (a vida acadêmica em sua relação com o meio ambiente). Trata-se de cinco dimensões da universidade que, a rigor, nos proporcionam ângulos suficientes para visualizar a totalidade da vida de uma Universidade. A avaliação da vida acadêmica só será efetiva e completa quando conseguirmos dar conta destas cinco dimensões de forma integrada, no próprio processo avaliativo. O impacto ou a presença da academia se dará através destas cinco dimensões. O que a AUSJAL faz para avaliar a Responsabilidade Social Universitária pode ser um modelo inspirador para uma avaliação mais ampla de todo o ‘que fazer’ universitário e de avaliação da excelência acadêmica.

Tendo em vista a produção de conhecimentos e a formação de profissionais para a construção de sociedades sustentáveis, é importante que, na avaliação da vida acadêmica, se esteja atento: a) em seus processos de ensino-aprendizagem e de produção de conhecimento, ao compromisso socioambiental, junto à excelência acadêmica e ao espírito inovador e empreendedor; b) em sua gestão organizacional e administrativa interna, à sustentabilidade socioambiental junto à sustentabilidade econômico financeira; c) em sua relação com a sociedade, ao testemunho institucional e práticas de incidência externa no que tange à reconstrução das relações humanas de reconhecimento e valorização dos diferentes (combate ao preconceitos e discriminações) e à busca de formas de combate às desigualdades sociais no que tange ao trabalho e acesso aos bens; d) em sua relação com o meio ambiente, da mesma forma, ao testemunho institucional e às práticas inovadoras na relação sustentável com o meio ambiente.

Uma aventura destas é tremendamente difícil e quase inconcebível dentro das estruturas comuns da academia seccionada em pesquisa, ensino e extensão, seccionada em departamentos, seccionada em faculdades, institutos ou centros. É, também, muito difícil e quase inconcebível dentro de um esquema de produtividade puramente quantitativa e vazia, como vem acontecendo em muitas situações.

Em tais situações, o sistema de avaliação da chamada ‘excelência acadêmica’ deve ser radicalmente revisto, pois está exacerbando uma corrida quantitativa de ‘produtividade científica’, em grande parte inócua e desconectada com o que deveria ser a finalidade central da universidade. É fundamental que avaliação seja realizada no contexto institucional tendo em vista a continuidade, permanência e garantia de futuro e no contexto da relação da instituição com a realidade social e ambiental envolvente tendo em vista a capacidade de interlocução nos processos de produção do conhecimento e de formação de profissionais. O contexto institucional e a sua capacidade de interlocução devem ser identificáveis tanto em relação ao passado, aos valores e saberes acumulados pelas mais diversas vias, como em relação ao futuro, à busca inovadora de soluções para a humanidade em vista de sociedades sustentáveis e universidades que sejam preparadas e propícias para tal. Este deve ser o referencial para adjetivar de forma coerente a excelência acadêmica. Ou seja, se formos coerentes com a busca por eliminar a grande defasagem entre academia e sociedade, em vista de produção de conhecimentos condizente e da formação de profissionais condizente, a avaliação da excelência acadêmica terá que levar em conta, sobretudo, o tipo de processo desenvolvido na academia, a sua efetiva capacidade de abertura e interlocução com as múltiplas formas de saber e o tipo de impacto gerado por este processo no contexto socioambiental.

Transdisciplinaridade e diálogo: um atalho fundamental

Para que se possa trilhar o caminho complexo aqui sinalizado, muitos passos devem ser dados, a depender dos diferentes contextos e limitações institucionais. Quero, no entanto, destacar um atalho que entendo como fundamental: o cultivo da ‘cultura da transdisciplinaridade’.

Havendo este cultivo, o ambiente estará facilitado e fecundo para que se concebam e se desencadeiem iniciativas acadêmicas (programas, projetos e atividades) de formação profissional e de produção de conhecimento de efetiva incidência no contexto em todos os níveis.

Mas o que é transdisciplinaridade? O que explica toda esta atenção? Por vezes não nos damos conta de que é dentro do processo de interrogações sobre a defasagem entre a Universidade e o seu contexto, ou sobre a busca de aproximação entre academia e sociedade que se acelerou o processo de gestação da transdisciplinaridade. Fica sempre mais claro que as opções por buscar soluções transdisciplinares são as que criam as melhores condições para acelerar a aproximação entre academia e sociedade. Talvez se possa dizer que é nas soluções transdisciplinares que reside, em grande parte, a salvação para o futuro das próprias universidades e seu sentido na sociedade. Entendo que as práticas transdisciplinares, no cotidiano das instituições de educação superior, – e isto é válido para o sistema educativo em geral, – serão um grande facilitador para superar a lacuna entre os dois mundos, promovendo uma maior aproximação entre o meio acadêmico e as demandas da sociedade.

O mundo acadêmico é o mundo das disciplinas. É, também, muitas vezes, um mundo que sucumbe a certas arrogâncias disciplinares… As certezas disciplinares são reconduzidas à aproximação da verdade na medida em que se instauram processos multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. A rigor, são diferentes ‘movimentos’ metodológicos de um mesmo ‘que fazer’ científico. O último desses ‘movimentos’, a transdisciplinaridade, não significa um momento ou etapa de superação ou desconsideração da contribuição específica dos outros ‘movimentos’ das disciplinas, seja em suas produções isoladas, seja na forma multidisciplinar de produção do conhecimento, somando, justapondo ou criando interfaces complementares entre disciplinas, ou, ainda, na forma interdisciplinar, de efetivo diálogo e intercâmbio conceptual e metodológico entre as mesmas. A transdisciplinaridade reflete, em si, todos esses ‘movimentos metodológicos’, acrescendo-lhes uma abertura madura para a integração de saberes diferentes, sejam eles saberes de disciplina, combinação de disciplinas ou, ainda, saberes de outras ordens, que transcendem as disciplinas, atuando como “interrogantes externos”. Para Basarab Nicolescu, no qual me apoio mais diretamente, “a transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica (…) diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina”.

A transdisciplinaridade nasceu com essa vocação. Por meio dela se busca a integração dos saberes externos aos esquemas internos disciplinares, onde os saberes de fora da academia (buscados nas percepções do cotidiano, nas percepções artísticas e outras sensibilidades ou criatividades, ou, mesmo, nas tradições sapienciais da humanidade, sem falar nas percepções concretas na prática dentro dos diversos campos, como saúde, lazer, política, trabalho fabril, etc), funcionam como interrogantes externos dentro do processo de produção do conhecimento e do processo educativo.

Pessoalmente tenho uma longa experiência na percepção do papel importante que os saberes religiosos e as sensibilidades dessas tradições podem contribuir no processo de produção do conhecimento. Inclusive o diálogo inter-religioso pode ser considerado como um excelente laboratório testemunhal de prática transdisciplinar.

Extensão universitária, caminhos de ruptura do abismo e ‘reinvenção’ da universidade na perspectiva do ‘abrir-se para os outros’

Como já foi mencionado, na legislação que rege as universidades brasileiras são destacadas três finalidades chaves das mesmas: o ensino, a pesquisa e a extensão. Esta última finalidade envolve toda função de interface da universidade com o contexto no qual ela está inserida. A academia aparece como ator social, que, além das pesquisas que são desenvolvidas e do ensino que é pautado nos processos de formação dos profissionais, também exerce um papel de incidência direta no meio socioambiental em que se insere, contribuindo no desenvolvimento da sociedade na busca de soluções inovadoras nas relações humanas e na superação das desigualdades, bem como, na relação com o meio ambiente. No exercício deste papel ela oferecerá a seus alunos, espaços de formação profissional mais próxima e comprometida com todo o contexto humano, cultural, social, tecnológico e ambiental, que os envolve.

É urgente que a academia refaça alianças e se reconcilie com um imenso acervo de saberes que foram tornados ausentes por ela mesma. Esta riqueza pode estar fazendo falta para a humanidade. Mencionei a dimensão religiosa, que é portadora de parcela desta multi variada riqueza não suficientemente presente nos processos de produção do conhecimento e formação de profissionais. Mencionei esta dimensão por fazer parte de minha prática imediata. Muitas outras dimensões, mais ou menos importantes, deveriam ser mencionadas. Como foi observado anteriormente, isto está presente tanto nas tradições sapienciais, como nas percepções na vida do dia-a-dia e em todos os campos de relações.

O sociólogo português Boaventura de Souza Santos (2007; 2009) avançou muito no debate sobre transdisciplinaridade, com o conceito de ‘ecologia dos saberes’ resultando da ruptura com a linha abissal criada entre os saberes disciplinados na racionalidade acadêmica (cultivados na ‘razão indolente’) e os demais saberes portadores de riquezas infindas que foram tornadas ausentes no processo de produção do conhecimento e formação de profissionais. A contribuição deste sociólogo consegue radicalizar de forma mais contundente o mesmo conteúdo presente no conceito de transdisciplinaridade, chamando a atenção para este processo de geração das ausências na produção do conhecimento, ou seja, o processo acadêmico acabou gerando perdas para o conhecimento no seio da humanidade contemporânea, que podem vir a ser irreparáveis, se essa linha abissal não for rompida.

Entendo que um caminho privilegiado para a ruptura da linha abissal pode ser a extensão universitária quando desenvolvida de forma transversal envolvendo todas as dimensões da Universidade e não como serviços extensionistas à parte como muitas vezes acontece sem repercutir na vida da própria academia como um todo. Aliás, o próprio Boaventura de Souza Santos, em um texto que se tornou paradigmático, colocado em epígrafe na apresentação do texto do Plano Nacional (Brasileiro) de Extensão, expressou claramente que: “Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino”. Neste sentido o sistema de avaliação da Responsabilidade Social Universitária, proposto pela AUSJAL pode ser um referente muito apropriado para repensar a extensão universitária transversalmente perpassando todas as dimensões do ‘que fazer’ acadêmico. Eu ousaria propor isto como uma fórmula revolucionária de ‘reinvenção’ da própria universidade, fazendo dela um novo espaço transdisciplinar de produção de conhecimento e de formação profissional, espaço no qual, ao lado dos saberes disciplinados da academia, a riqueza de todos os demais saberes, muitas vezes tornados ausentes, esteja reconhecida de forma ativa.

Anotação conclusiva

Em todo este passeio breve feito pelos meandros da responsabilidade social universitária, da transdisciplinaridade – com breve incursão no conceito de ecologia dos saberes – e da extensão universitária, sempre trilhando o pavimento do cotidiano da academia em sua complexidade, podemos anotar que ‘abrir-se para os outros’ pode ser sugerido como um tema principal na ‘reinvenção’ da Universidade. A extensão universitária, enquanto pulsando em todo organismo vivo da Universidade, é espaço de cultivo da transdisciplinaridade e chave para o sucesso na aproximação da academia com a sociedade, podendo ser vista como condição de inovação nos processos de formação profissional e de produção do conhecimento.

Ao concluir esta reflexão sintética, tenho a consciência renovada da grande distância existente entre o sonho e a realidade. No entanto, os limites só serão superados na medida em que forem dados passos concretos, no dia a dia do ‘que fazer’ acadêmico, perpassando todas as suas dimensões.

POR ONDE CAMINHAM AS RELIGIÕES E RELIGIOSIDADES, HOJE: NOTAS PARA UMA REFLEXÃO SOBRE A “SECULARIZAÇÃO ENCANTADA”.

Publicado em forma de capítulo do livro “O Luteranismo no Contexto Religioso Brasileiro”, em 2007

Importante recorte provocando o conceito de “secularização encantada”

Conferência proferida na abertura do
V Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana,
Escola Superior de Teologia – EST, São Leopoldo, RS, 17-18 de abril, 2007.

Publicado, como primeiro capítulo no livro organizado por Wilhelm WACHHOLZ. O Luteranismo no contexto religioso brasileiro. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2007, pp.9-26. (A presente publicação não reproduz as notas de pé de página).

José Ivo Follmann sj

Não é minha intenção dar conta da complexidade incomensurável da esfera religiosa tal como ela se expressa hoje, muito menos poderia atrever-me a esboçar os caminhos da identidade evangélico-luterana, dentro dessa complexidade, como seria de se esperar no contexto de um Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana. Proponho, de forma singela, sem pretensão, retomar a pergunta sobre a questão da secularização, mediante recurso a algumas aproximações, que estão em pauta, com maior ou menor visibilidade, no que diz respeito ao mundo das religiões e religiosidades, hoje. Trata-se de apontamentos que querem contribuir, por um viés próprio, no traçado do pano de fundo do tema central do Simpósio.

1) As Ciências da Religião e a “secularização encantada”

O Prêmio Nobel da Química de 1977, Ilya Prigogine, em uma de suas obras de maior repercussão, elaborada em co-autoria com Isabelle Stengers, “A Nova Aliança” (1984) apela para um “reencantamento do mundo”, numa espécie de resposta, – ou, talvez, retorno em outro plano, – às reflexões de Max Weber, sobre o processo que o fez cunhar, em outra época, a célebre expressão: “desencantamento do mundo”
.
Não se trata, evidentemente, de um desejo de mistificação e, muito menos, de uma busca do retorno da magia. Não se trata de um retorno ao animismo. Segundo os autores, a “antiga aliança” animista está morta e bem morta. O apelo assume posição pela derrubada das fronteiras artificiais existentes no processo de conhecimento humano, na busca de uma reaproximação do ser humano com a natureza, pois o nosso mundo também não é o da “aliança moderna”… Hoje presenciamos uma “nova aliança”. “Chegou o tempo de novas alianças, desde sempre firmadas, durante muito tempo ignoradas, entre a história dos homens, de suas sociedades, de seus saberes, e a aventura exploradora da natureza”. (Prigogine, I; Stengers, I., 1984, p.226)

A ciência moderna, de certa forma, se constituiu contra a natureza, pois negava-lhe a complexidade, pretendendo reduzi-la a leis acessíveis. (Prigogine, I; Stengers, I., 1984, p.4-5) A ciência não é só manipulação da natureza, mas é também e, sobretudo, esforço para compreendê-la. (p.203) “A natureza recusa exprimir-se na linguagem que as regras paradigmáticas supõem, e a crise (…) explode com tanto mais força, quanto era cega a confiança”. (p.221)

O relatório da Comissão Gulbenkian para a Reestruturação das Ciências Sociais, em 1996, comenta: “Se isto põe um problema grande aos estudiosos das ciências naturais, ainda maior é aquele que coloca aos cientistas sociais. Transpor o reencantamento do mundo para uma prática razoável e eficaz não será fácil. Mas parece-nos ser uma tarefa urgente para os cientistas sociais.” (Wallerstein e outros, 1996, p.110)

É, sobretudo, tarefa urgente e não menos complicada para quem se dedica ao estudo das religiões. A referência ao “reencantamento do mundo”, no âmbito do debate sobre as Ciências, em geral, e as Ciências Sociais em particular, quer ser o horizonte principal no qual pretendo me mover ao longo deste texto.

O campo científico, ao longo de seu processo histórico, no afã de afirmação da idéia de objetividade, muitas vezes confundida com “neutralidade”, acabou sendo um dos principais protagonistas do “desencantamento do mundo”. Isto, sobretudo, em se tratando da busca de uma “neutralidade” impossível. Cabe ao mesmo campo científico ajudar na tarefa do “reencantamento”, ou da re-humanização do mundo. Prigogine e Stengers (1984, p. 13) falam em um isolamento clerical da comunidade científica. Trata-se de uma analogia certeira! As teologias e as racionalidades institucionais religiosas não estão isentas do desencantamento provocado pela racionalidade científico-tecnológica, pois elas também tiveram e continuam tendo efeitos perversos com relação ao sentimento do crente e à vivência religiosa, esvaziando-a ou canalizando-a por desvios às vezes desérticos e sufocantes.

Otávio G. Velho em entrevista para o IHU OnLine (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p.11-12) ao se referir à relação religião e ciências sociais, fala em uma nova percepção das “esferas da vida social” e a sua importante inter-relação. Infelizmente ainda nos deparamos com cientistas imaturos, construindo mundos exclusivos, cheios de falsos moralismos e – poderíamos dizer – até arrogantemente imbecis, tentando eliminar realidades sociais ou aspectos das realidades sociais, por “decreto”, para não perderem os seus pequenos domínios e poderes. Segundo este antropólogo, na mesma entrevista, ainda existe muito preconceito. Ele conclui: É urgente que se parta para uma atitude de maior modéstia e humildade.

No mesmo conjunto de entrevistas do IHU On Line, a antropóloga Regina Novaes nos lembra que vivemos tempos de “ventos secularizantes” mas, ao mesmo tempo, devemos estar atentos ao “espírito do tempo” (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p. 16).

Segundo esta antropóloga, dá-se, de fato, “um tipo de secularização quando diminui o peso das autoridades religiosas tradicionais e a obrigação de um jovem seguir a religião dos pais”. No entanto, “partilhando das possibilidades culturais desta época, os jovens desta geração estão sendo chamados a fazer suas escolhas em um campo religioso mais plural e competitivo”. O “espírito do tempo” de que fala Regina Novaes, tem a ver com a idéia de multiculturalismo, de reconhecimento do diferente, de des-monopolização da cultura e da religião.

Os “ventos secularizantes” misturados com o “espírito do tempo” nos colocam no centro da questão de nossa presente reflexão… Pode-se, talvez, dizer que vivemos em tempos de “secularização encantada” ou “secularização crente”. Isto faz parte do que Danièle Hervieu-Léger, em publicação conjunta com Françoise Champion, aponta como “o processo de reorganização permanente do trabalho da religião numa sociedade estruturalmente impotente para satisfazer as expectativas que lhe são necessárias suscitar para existir enquanto tal”. (1986, p.227). A secularização não pode ser tomada como sinônimo de desencantamento ou de perda da alma humana. Estamos falando de uma secularização não secularista, uma secularização que ajuda a restabelecer a verdadeira alma roubada (ou usurpada), pelos racionalismos e racionalidades e também, sobretudo, por poderios sagrados, que construíram uma superestrutura desconectada com a realidade interferindo na condução da vida humana, da organização social e da natureza, com regramentos ditados por interesses institucionais.

Secularização é um processo que conduz, essencialmente, à afirmação da autonomia das realidades terrestres. Após tempos de distorções e ressecamentos, como efeito perverso da modernidade, de mais a mais, desperta a consciência de que essas realidades são complexas e cheias de encanto e de dimensão do eterno. Existe um novo encontro com o religioso, mediado pela liberdade de opção e não determinação institucional. Às vezes as religiões, no afã de colocar-se a serviço dessa dimensão de encanto e do eterno, nas realidades terrestres, se apropriaram e apropriam de tal modo dessa dimensão, que a sufocam, ressecam ou atrofiam.

Associo-me àqueles que, hoje, estão na busca por acertar melhor o foco da competência das Ciências da Religião. Este foco está, sobretudo, na questão da crença, enquanto tal. Uma das contribuições de maior relevância e pertinência para a sociologia das religiões em geral, mas, sobretudo, para a sociologia das religiões no Brasil, apesar de ainda pouco assimilada neste meio, é a “teoria da modernidade religiosa” de Danièle Hervieu-Léger, cujas bases foram lançadas já em 1986, na obra já citada, escrita com a colaboração de Françoise Champion, “Vers un Nouveau Christianisme”. É contribuição, sobretudo, pertinente para a sociologia das religiões no Brasil, pois traz chave importante para dirimir o impasse entre os afirmadores do retorno do sagrado e os afirmadores da secularização secularista. Na mesma obra está sinalizada, também, a importância e urgência de uma “sociologia do crer”, o que, sem dúvida, é uma novidade promissora para a sociologia das religiões.

Carlos Eduardo Sell e Franz Josef Brüseke, em recente obra publicada (2006), apontam exatamente para isto. Estes dois autores, retomando a contribuição da socióloga francesa, lembram que “o que caracteriza a nossa época não é tanto a indiferença religiosa ou a descrença; mas, acima de tudo, o fato de que as crenças religiosas escapam ao controle das grandes igrejas e das instituições religiosas”. (p.189-190).

A “secularização encantada” ou “secularização crente” pode ser, em grande parte, compreendida dentro do contexto daquilo que Danièle Hervieu-Léger (com Françoise Champion) denomina de “modernidade psicológica” (1986, p.201). Trata-se de uma busca do homem em pensar-se por si mesmo e diz respeito a um processo de individualização e de subjetivização da vida religiosa. Deve ser destacado que se trata de um individualismo religioso que está absorvido no chamado individualismo moderno. Faz parte do individualismo moderno!

2) A esfera religiosa no Brasil: refletindo a partir de dados estatísticos

O Brasil, historicamente, foi e continua sendo um país cristão ou, mais especificamente, católico. A identidade evangélico-luterana no Brasil é uma identidade, portanto, dentro de um contexto católico. Assim como em outros países, hoje, no entanto, vem-se perdendo, no Brasil, a referência religiosa unívoca no processo de construção da identidade. Em alguns contextos brasileiros, dizer que o Brasil é um país católico, já não soa mais tão evidente como soava em outros tempos.

Em um texto que publiquei recentemente (Follmann, J.I., 2006) reproduzi diversas tabelas estatísticas mostrando recortes específicos referentes à esfera religiosa em números, a partir do último Censo realizado pela Fundação IBGE (2001). Nessa publicação, em um dos quadros, comparei, por exemplo, as Unidades da Federação, classificando-as segundo tendências mais acentuadas pelo percentual apresentado em cada um dos três “grupos” religiosos mais numerosos: os católicos, os evangélicos e os “sem religião”. A comparação levou a apontar, de certa forma, para o horizonte de cenários religiosos diferentes. Usei o artifício de destacar os Estados que apresentam uma média percentual superior à média nacional de presença populacional em cada um destes “grupos” e apontando os cinco Estados com percentual mais elevado, obteve-se o seguinte resultado: um primeiro cenário tendendo para a manutenção do “Brasil católico”, onde o carro chefe é constituído dos Estados do Piauí, Ceará, Paraíba, Maranhão e Alagoas; um segundo cenário tendendo gradativamente para um “Brasil evangélico”, onde o principal contexto puxador está nos Estados de Rondônia, Espírito Santo, Roraima, Rio de Janeiro e Goiás; e, um terceiro cenário tendendo gradativamente para um “Brasil sem religião”, onde os Estados de Rio de Janeiro, Rondônia, Pernambuco, Bahia e Espírito Santo são os maiores impulsionadores. Ou seja, existe uma importante sinalização para um Brasil com três horizontes religiosos claramente diferenciados manifestos nas tendências estatísticas. Talvez pudéssemos falar, ainda, de outros cenários como o de um “Brasil espírita”, de um “Brasil de religião de matriz africana” e de um “Brasil umbandista”, mas as estatísticas que o IBGE nos proporciona, pouco contribuem para isto.

Se olharmos, agora, especificamente, para o Estado do Rio Grande do Sul, veremos que esta distribuição não é tão evidente. Apesar de sempre pensarmos este Estado mais como evangélico, devido, sobretudo, à forte presença histórica da identidade evangélico-luterana, ele continua, pelas estatísticas, mais próximo do “Brasil católico”.

Fica patente que o Estado do Rio Grande do Sul permanece um estado eminentemente cristão, pois 90% dos gaúchos se dizem cristãos (a maioria deles sendo católicos). Mas será que esta é, de fato, a realidade do mundo das religiões tal como se apresenta no RS hoje? As estatísticas nos mostram que o percentual de católicos no RS está acima do percentual nacional e que o percentual evangélico está abaixo do percentual nacional. Sem falar dos sem-religião, cujo percentual está, nesse Estado, muito abaixo do percentual nacional. Esse quadro, no entanto, tende aceleradamente a mudar, não, certamente, pela via evangélico-luterana, mas pela via evangélico-pentecostal. Como devemos ler os dados do mundo das religiões, dentro do contexto em que vivemos?

Na mesma publicação aqui referida (Follmann, J.I., 2006), foram apresentados resultados estatísticos de uma recente pesquisa que realizamos, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Chamam a atenção dados colhidos em seis municípios já pesquisados (Cachoeirinha, Canoas, Esteio, São Leopoldo, Novo Hamburgo e Sapucaia do Sul), que totalizam uma população de 1.050.347 habitantes, onde as pessoas, que freqüentam semanalmente algum culto ou celebração religiosa, somam um número aproximado de 291.336, ou seja: 28% da população.

O fato de uma adesão religiosa mais forte, de freqüência semanal, estar visível em 1/4 da população nos seis municípios em questão, sugerindo um índice relativamente grande de manifestação pública freqüente de fé, pode ser lido, também, pelo inverso, mostrando que quase 3/4 da população tendem a uma religiosidade mais frágil em termos institucionais.

A existência de 3/4 da população que revela não freqüentar, regularmente, alguma religião, sinaliza que estamos numa sociedade onde a adesão religiosa institucional é majoritariamente muito frágil. Este fato, de 3/4 da população não apresentar uma freqüência religiosa pública assídua deve ser anotado e merece a nossa atenção. Deve-se observar, ainda, que mais da metade dos que se manifestam como freqüentadores cristãos semanais, são de recorte pentecostal ou neo-pentecostal.

O que chama a atenção, também, na mesma pesquisa, é a grande multiplicação de locais de culto e templos nas últimas décadas e grande concentração dos mesmos nas categorias das religiões de matriz africana e de umbanda, por um lado, e do pentecostalismo e neo-pentecostalismo, por outro. De um total de 1327 locais de culto e templos cadastrados, 442 são de religiões de matriz africana ou umbandista e 435 são pentecostais ou neo-pentecostais. É reconhecido que é exatamente nestes dois conjuntos ou “grupos” religiosos que se dá uma maior proximidade e valorização dos sujeitos crentes em suas necessidades imediatas.

Vivemos no Brasil, como em outros países, contextos da aceleração das desigualdades, retratados na crescente opulência de uma minoria privilegiada, por um lado, e numa crescente privação e insuficiência de atendimentos da maioria, por outro lado. Trata-se de um terreno tremendamente propício à multiplicação de buscas de soluções ou, então, à adesão desesperada a fórmulas individuais ou coletivas de fuga e absenteísmos ou de violência e agressividades.

O Brasil tem uma vocação histórica à diversidade e ao convívio com o diferente. Esta vocação desemboca, hoje, num terreno cultural amplamente propício e ajuda a acelerar, de modo particular, a multiplicação e diversificação religiosa.

A multiplicidade de ofertas religiosas e a liberdade de escolha manifesta um processo de modernização, liberalização e democratização. É o que nos refere Marcelo Camurça em entrevista já mencionada (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p.14). Para este sociólogo, estamos assistindo ao crescimento de um individualismo subjetivista. Dentro da lógica de discussão deste nosso texto, podemos falar na secularização que se dá pela via da secularização encantada ou secularização crente, na medida em que existe, apesar do grande risco de um individualismo subjetivista cego, uma libertação em relação aos poderes institucionais tradicionais e a busca autônoma do sentido profundo do existir humano e da afirmação da crença.

Voltemos, mais uma vez, a nossa atenção para os três cenários tendenciais construídos, acima, a partir das estatísticas religiosas no Brasil. É notável a coincidência de alguns estados, sobretudo, entre os “cinco mais” do cenário evangélico e os “cinco mais” do cenário sem religião: Rio de Janeiro, Rondônia e Espírito Santo. Este fato vem ao encontro da hipótese de certa proximidade, em determinadas circunstâncias, entre fatores que desencadeiam a busca da solução neopentecostal – a forma religiosa do cenário evangélico de maior expansão – e a identificação como sem religião (traduzível, em muitos casos, como religiosidade de “arranjo pessoal”)… Ambas são soluções individuais, sem implicar em compromisso de comunidade. São, a rigor, neste sentido, soluções secularizantes.

Danièle Hervieu-Léger nos reporta às categorias do “peregrino” e do “convertido”, duas categorias importantes integrando o público de freqüência religiosa pública, pouco assídua ou nula. (Hervieu-Léger, D., 1999). O “peregrino”, por um lado, é o religioso em movimento e fluidez nos conteúdos de crença, construídos e desconstruídos permanentemente, batendo nas mais diversas portas, lembrando de certa forma o fenômeno, que outros, como Marcelo Camurça (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p.14), denominam de “dupla pertença religiosa”. O “convertido”, por outro lado, é o religioso em movimento, fruto de uma escolha individual, calcada em alto grau de autonomia do sujeito crente.

Retomando o comentário acima sobre as freqüências religiosas semanais nos seis municípios, por nós pesquisados, em que referíamos que mais da metade dos freqüentadores semanais cristãos são de recorte pentecostal e neo-pentecostal, é importante que sinalizemos que em quatro dos municípios, quase a metade do total de freqüentadores semanais é do “grupo” pentecostal ou neo-pentecostal.

Já não podemos mais, obviamente, falar que a identidade evangélico-luterana como a das demais Igrejas Cristãs, se constrói em um contexto de referência externa eminentemente católica. Essas identidades devem ser vistas em contraposição ou em relação as crescentes soluções de “arranjo pessoal”, por dentro e por fora da pregação com apelos baseados no Evangelho de Jesus Cristo.

Hoje, em torno de 15% da população mundial, se diz “sem religião”. No Brasil, apesar de ainda estar muito aquém do índice mundial, o mesmo índice também cresceu muito na última década. No Estado do Rio de Janeiro dá-se, neste quesito particular, uma aproximação com a média mundial. Se, no entanto, considerarmos que muitos, dos que se dizem “sem religião”, vivem de fato revestidos de religiosidades privadas de caráter pessoal e que existe certa aproximação entre estas religiosidades de “arranjo pessoal” e o fenômeno neopentecostal, que explode na esteira de algumas lideranças carismáticas ou agentes bem treinados, devemos dizer que, certamente, o número dos brasileiros “sem religião”, ou seja, sem vínculo e compromisso com uma instituição religiosa, é muito mais elevado do que os números que as pobres estatísticas nos podem fazer imaginar. São brasileiros que, na prática, se secularizaram, ou seja, se des-institucionalizaram religiosamente, vivendo um claro processo de secularização, mas trata-se de uma secularização crente ou encantada.

Podemos falar numa clara des-institucionalização religiosa no Brasil. Esta se dá, sobretudo, pela via da des-catolização, de forma particular, no contexto dos Estados aqui mostrados como “cenário evangélico” e “cenário sem-religião”… Trata-se de um evidente desmantelamento do monopólio religioso. A des-catolização, isto é, o fato de podermos visualizar outros “Brasis” com coloração religiosa diversa, no caso brasileiro, como em outros lugares, mostra que estamos em um caminho de secularização. Mas não se trata só de des-monopolização… Podemos falar, também, em des-luteranização, em des-episcopalização, em des-presbiteranização, em des-metodização, uma vez que o cenário do “Brasil evangélico” é crescentemente um cenário pentecostal e neopentecostal. Trata-se da substituição de soluções de compromisso comunitário, por soluções individualizadas.

3) A Mídia e a imagética como mediação da secularização.

As estatísticas referidas não dão conta de fenômenos religiosos particularmente importantes e que já mereceram muita atenção em diversos estudos. Refiro-me, especificamente, à crescente presença dos evangélicos na política; ao crescente impacto da Renovação Carismática Católica; à fantástica multiplicação de novas formas coletivas de viver religião; e à crescente ampliação no uso dos meios de comunicação de massa para veicular conteúdos e práticas religiosas; além do crescente número de pessoas, que se declaram “sem-religião”, como já foi comentado.

Não podemos, evidentemente, dar conta de todos estes ricos aspectos e que apontam, de uma forma ou de outra, para interfaces com o processo de secularização. Entendemos, contudo, ser importante apontar aqui, mesmo que seja só de passagem, toda a questão envolvida com a perda de controle dos poderes religiosos sobre os bens religiosos que passam a ser de domínio público.

É um aspecto da realidade religiosa que merece particular atenção. A grande facilidade que existe, hoje, no domínio dos meios de comunicação e no poder de veicular idéias, práticas e conteúdos, faz com que se acelere o processo de “apropriação pública” das coisas sagradas. Isto está facilitado, sobretudo, pelo avanço do diferentes meios de comunicação.

Um exemplo típico é o amplo uso de referências religiosas nas tele-novelas brasileiras, sobretudo, da Rede Globo, reproduzindo ao sabor de ditames obviamente mercadológicos de conquista de públicos, tradições ou inovações religiosas do agrado dos telespectadores consumidores.

O mesmo deve ser dito da multiplicidade de páginas eletrônicas (ou sítios web) veiculando idéias, símbolos e conteúdos de crenças religiosas ou mágicas ao sabor da inspiração ou criatividade dos indivíduos.

Não precisamos, no entanto, reportar-nos aos sofiscados meios eletrônicos de comunicação e informação que estão sempre mais presentes e atuantes… Quem é que ainda não se deparou com “maços” de santinhos, ou pequenos folhetos com orações e outros objetos, em portas de templos católicos, sendo passados de mão em mão, carregando consigo uma corrente mágica de poder sagrado? Trata-se de um sagrado profano ou que fugiu do controle daqueles que sempre acharam que tinham o poder de atribuir-lhe poder sagrado, ou não.

4) Testemunhando diferentes processos identitários no esfera religiosa

Colocando-nos num outro plano de leitura e de abordagem da esfera religiosa e sempre buscando aproximações ao foco de nossa reflexão, devemos dizer que presenciamos diferentes processos identitários que tomam direções opostas e até incompatíveis.

Ao mesmo tempo em que se multiplicam as iniciativas de cultivo das identidades religiosas dentro de um processo de diálogo, existem também os levantes fundamentalistas com suas intolerâncias e intransigências, na linha do conflito, da agressividade, do combate mútuo e do anti-diálogo.

Ao lado destas duas formas mais “sólidas” (hard) de identidade religiosa, é grande, no entanto, a presença das formas mais “suaves” (soft) de identificação. Trata-se, obviamente, neste último caso, da maioria. Estas últimas sucumbem muito mais facilmente aos ditames do mercado e outras imposições culturais do momento.

O cultivo das identidades religiosas dentro de um processo de diálogo também acontece em clara contradição contra os processos competitivos e de busca de fiéis – quase a qualquer preço – que caracterizam determinadas iniciativas religiosas. Pessoalmente tendo a concordar com os autores – Antonio Flavio Pierucci e outros – que percebem, nestes mecanismos mercadológicos de competição e busca de fiéis, uma íntima relação com um processo de desmoralização da esfera religiosa enquanto tal. Se isto, por um lado, é verdade, uma cuidadosa observação de outros mecanismos visíveis na esfera religiosa, sempre mais acentuados nas últimas décadas, podem estar consubstanciando uma espécie de re-moralização desta mesma esfera na sociedade. Entre estes mecanismos deve ser destacado o amplo processo de diálogo inter-religioso desencadeado no mundo todo através das mais diversas iniciativas. Só a cultura do diálogo e o diálogo inter-religioso têm condições de fazer com que a própria secularização crente ou secularização encantada, da qual viemos falando, se faça em consonância com a dinâmica renovadora das instituições religiosas.

O diálogo proporciona sempre um ambiente propício para o conhecimento e reconhecimento dos outros, dos diferentes, sendo ao mesmo tempo importante oportunidade para o cultivo e a afirmação da própria identidade religiosa. O diálogo inter-religioso, quando bem cultivado, em todas as faixas etárias, certamente poderá livrar as nossas sociedades de muitas perigosas fobias. Triste seria se, na ausência ou fragilização de diálogo, o “mundo das religiões e religiosidades” não passasse de um melancólico cacoete ou reforço da violência e agressividade, quando não o seu estimulador.

Tratar-se-ia, neste último caso, do naufrágio do sublime no mar do embrutecimento e da violência, ou seja, no afã sacralizador fundamentalista estaria embutido o veneno acelerador do secularismo.

5) Educação, secularização e religião: em busca da construção de uma nova área de conhecimento…

Segundo Giumbelli entrevistado para IHU OnLine (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p. 18-20), a busca em relação à adequação de uma política do ensino religioso nas escolas públicas, é uma questão relevante no estudo do campo religioso, hoje, no Brasil. A colocação deste especialista, está pautada, sobretudo, na reflexão sobre os momentos que sucedem a era da totalidade na cultura brasileira (ou seja, do monopólio dentro da esfera religiosa) que não deve significar o recrudescimento das disputas na afirmação de minorias ou de minorias em busca de serem maioria.

Estamos hoje, no Brasil, muito distantes daquilo que foi este país no tempo do Padroado onde Estado e Igreja católica viviam um grande consórcio de poder sobre a mente do povo. Também não conseguiu fazer história, no Brasil, a figura do Estado laico. A contribuição da socióloga francesa mais uma vez se faz lúcida, também para a nossa realidade. Segundo Danièle Hervieu-Léger (1999), necessitamos, hoje, de uma “laicidade mediadora”. Carlos Eduardo Sell e Franz Josef Brüseke, retomando esta idéia de Hervieu-Léger, comentam que, “em vez de um Estado neutro e indiferente às religiões” necessitamos de “um Estado cooperativo, que promova, em união com as diversas famílias espirituais, a produção de referências éticas, a preservação da memória e a construção do tecido social”, enquanto que “as próprias religiões devem promover entre si o diálogo cooperativo e ecumênico”. Não cabe ao Estado negar o estatuto religioso, mas “deve começar a reconhecer a contribuição que as diferentes famílias religiosas em diálogo podem oferecer para a vida pública”. (2006: p.190-191)

A educação tem, neste sentido, um papel fundamental a exercer. A educação para a cultura do diálogo apresenta-se como uma das formas privilegiadas de regenerar as próprias religiões e religiosidades em sua contribuição moral nas sociedades e como forma de ajudar a construir a cultura plural e democrática, caminho de redenção da humanidade, nos dias de hoje. O “mundo das religiões e religiosidades” tem uma vocação histórica e, talvez, seja um dos caminhos mais fecundos, na atualidade, dentro do empenho da humanidade em prol da reconstrução de seu mundo.

O ensino religioso só terá sucesso, no entanto, se puder ser mediado por um fecundo processo de produção do conhecimento. A Área de Conhecimento RELIGIÃO é muito referida e muito propalada por quem protagoniza a discussão sobre o ensino religioso. Trata-se, todavia, de um grande desafio. Gostaria de concluir com a idéia de que, hoje, de mais a mais, é necessário que se congreguem os melhores esforços para sentarem-se numa mesma rodada de conversa e de reflexão Cientistas das mais diferentes disciplinas, nas Áreas Humanas, junto com Líderes Religiosos e pessoas crentes das mais diversas denominações e instituições religiosas, para, num fórum único, construir esta importante Área de Conhecimento no modo transdisciplinar de ser e fazer. Só assim o ensino religioso também poderá protagonizar um processo harmônico de convívio fecundo e fecundante entre as religiões e o processo de secularização encantada ou crente.

Bibliografia

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FOLLMANN, José Ivo. “O Mundo das Religiões e Religiosidades: alguns números e apontamentos para uma reflexão sobre novos desafios”. In: SCARLATELLI, Cleide da Silva; STRECK, Danilo; FOLLMANN, J. Ivo (orgs). Religião, Cultura e Educação. São Leopoldo: Edunisinos, 2006, pp. 11-28.
HELLERN, Victor, NOTAKER, Henry e GAARDER, Jostein (org.). O Livro das Religiões. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2000 (com interessante apêndice de Antonio Flávio PIERUCCI. As Religiões no Brasil, p. 281-302).
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HERVIEU-LÉGER, Danièle. La religion pour memoire. Paris: CERF, 1993.
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HERVIEU-LÉGER, Danièle. Le pèlerin et le converti: la religion em mouvement. Paris: Flammarion, 1999.
PIERUCCI, Antonio Flavio. O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2003.
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PRIGOGINE, Ilya. Entre tempo e eternidade. Lisboa: Gradiva Publicações, 1990.
PIERUCCI, Antonio Flavio; PRANDI, Reginaldo. A realidade social das religiões no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996.
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TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (orgs.). Religiões no Brasil. IHU On Line. (Número especial sobre as Religiões no Brasil) Ano 4, n.169, 19 de dezembro de 2005.
WALLERSTEIN, Immanuel e outros. Para abrir as Ciências Sociais (Comissão Gulbenkian para Reestruturação das Ciências Sociais). São Paulo: Editora Cortez, 1996.

RADICALIZAÇÕES FUNDAMENTALISTAS NA CONTRAMÃO DO PLURALISMO RELIGIOSO.

Publicado como capítulo do livro “Cartografias do Sagrado e do Profano: Religião, Espaço e Fronteira”, em 2014.

Capítulo de livro

I Simpósio Regional Sul da Associação Brasileira de História das Religiões Cartografias do sagrado e do profano: religião, espaço e fronteiras.
Associação Brasileira de História das Religiões – ABHR
Escola Superior de Teologia – EST,
São Leopoldo, RS 17 a 19 de outubro de 2013.
(Trabalho Apresentado no ST nº 2 – Religiões e Religiosidades na Atualidade: Linearidades e Rupturas)

Publicado como capítulo no livro organizado por BOBSIN; SHAPER; ROBIN. Cartografias do Sagrado e do Profano: religião, espaço e fronteira. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2014, pp. 119-129. (Esta publicação não reproduz as notas de pé de pagina).

José Ivo Follmann

Resumo: Dentro de contextos de pluralismo religioso crescente, como é o contexto brasileiro, a persistência e recrudescimento de radicalizações fundamentalistas merecem a nossa atenção. O artigo ensaia uma reflexão sociológica sobre algumas tendências de linearidades e rupturas na esfera religiosa buscando lançar interrogações sobre o fenômeno de radicalizações no contexto pluralista religioso brasileiro. Pontuando diferentes pontos de vista, que acolhem lógicas da apropriação e gestão de sua historicidade, lógicas dos campos de atividade e lógicas dos sujeitos e de seus processos de identidade, diversas hipóteses são levantadas emprestando um colorido especial à constatação geral da existência de radicalizações fundamentalistas religiosas dentro do contexto do aparente indiferentismo pluralista na sociedade brasileira contemporânea.
Palavras-chave: fundamentalismos religiosos; pluralismo religioso; sociologia das religiões.

Abstract: In contexts of growing religious pluralism, like the Brazilian context, the persistence and renewal of fundamental radicalisms deserves our attention. The article essays a sociological reflection about some tendencies in continuities and ruptures in the religious sphere for questions about radicalizations in the Brazilian pluralistic religious context. Punctuating different points of view, with attention to the logics of the appropriation and management of historicity, with attention to the logics of social fields and with attention to the logics of subjects and of identity´s processes, different hypotheses are defined, giving a special coloring to the general perception about the existence of religious fundamental radicalisms in the context of apparent pluralistic indifference in Brazilian contemporary society.
Key-words: religious fundamentalisms; religious pluralism; sociology of religions.

Palavras introdutórias…

Vou iniciar com uma referência que pode ser considerada como clássica no repertório da literatura brasileira. É recorte de um diálogo colhido da obra de João Guimarães Rosa. Trata-se de uma citação muitas vezes referida. Pode ser considerada paradigmática: “Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. (…) Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca.” (Rosa, 1980, p.15). O diálogo registra a cultura do jeitinho, do arranjo pessoal, das bricolagens espontâneas, do sincretismo, da abertura ao diálogo. Trata-se de uma cultura muitas vezes citada e gerada pela necessidade de sobrevivência da própria tradição religiosa, como foi o caso, por exemplo, das religiões de matriz africana. A alma religiosa brasileira parece ter sido forjada dentro de uma dinâmica e cultura de sincretismo e de diálogo.

Esta maneira estranha de iniciar uma reflexão sobre a temática dos fundamentalismos religiosos ou das radicalizações fundamentalistas na esfera religiosa, é proposital, pois parece reforçar a ideia de que este tema é algo que está na contramão, não só do contexto atual de pluralismo religioso, mas de traços culturais profundos na cultura brasileira.

No mundo, a temática dos fundamentalismos religiosos retomou grandes espaços nos meios de comunicação e na opinião pública, nos primeiros anos deste milênio, especificamente, a partir de diversos acontecimentos, destacando-se o atentado ao World Trade Center – WTC, Nova York, em 2001. No Brasil, talvez, longe do grande embate entre os radicalismos religiosos muçulmanos, do Médio Oriente, e a reação do Ocidente cristão, deve-se colocar em relevo outros fatores para entendermos mais profundamente a presença de radicalizações fundamentalistas, neste contexto.

Ao escolher o título do presente ensaio, apesar de centrar-me no contexto brasileiro, estou sinalizando para um enfoque mais amplo tentando lançar questões que nos façam interrogar sobre o momento atual de indiferentismo pluralista aparente e o lugar das radicalizações fundamentalistas neste contexto. Radicalizações fundamentalistas na contramão do pluralismo religioso é um ensaio de reflexão sociológica sobre algumas tendências de linearidades e rupturas na esfera religiosa. Pontuando diferentes pontos de vista, que acolhem lógicas da apropriação e gestão de sua historicidade, lógicas dos campos de atividade e lógicas dos sujeitos e de seus processos de identidade, diversas hipóteses são levantadas emprestando um colorido especial à constatação geral da existência de radicalizações fundamentalistas religiosas dentro do contexto de pluralismo ou, melhor, de indiferentismo pluralista na sociedade brasileira contemporânea. Este indiferentismo pluralista é, em grande parte, aparente e resultado de dissimulação.

O Brasil vive hoje, de algumas décadas para cá, um contexto intenso e crescente de afirmação da diversidade religiosa e do pluralismo em suas manifestações. Não cabe aqui entrar em detalhes sobre este fenômeno. Deixo-o como referência oculta (mas fortemente presente) na elaboração desta reflexão.

Entendo que a discussão da problemática das radicalizações fundamentalistas religiosas poderá ganhar novos e relevantes aportes com um esforço analítico-interpretativo a partir de uma contribuição sociológica tríplice com a qual aprendi a lidar desde o tempo em que escrevi a minha tese doutoral há vinte anos. (Follmann, 2001)

Primeiramente, o ponto de vista da produção da historicidade (Touraine, 1993; 1978) tem como referência principal a existência do conflito central dentro da sociedade, estando em questão a apropriação e gestão de sua historicidade. Este conflito central sempre estará expresso sob muitas formas, a depender das características do processo histórico vivido.

Se olharmos para o mundo ocidental hoje em sua globalidade, algumas manifestações de fundamentalismos religiosos assumem um sentido todo especial. Nos processos históricos vividos pelos povos, na dinâmica da constituição das diferentes sociedades e de suas relações de convívio e de confronto, os fundamentalismos religiosos exerceram, muitas vezes, papel definidor importante. Também devemos estar atentos aos papéis de alienação e de acomodação política, exercidos muitas vezes pelas práticas religiosas fundamentalistas ao longo de toda a história.

Em segundo lugar, o ponto de vista das lógicas dos campos de atividade (Bourdieu, 1971) apresenta como referência principal o espaço social onde se realizam a produção e reprodução da sociedade, “distribuídas” pelas diferentes atividades, tendo cada uma sua lógica social própria. No caso concreto dos fundamentalismos está em questão o campo religioso e sua relação com outros campos na produção e reprodução da sociedade. Essa chave de leitura pode trazer elementos particularmente relevantes para o entendimento dos processos históricos dos campos religiosos, que são, em grande parte, processos de sucessivos fundamentalismos religiosos.

É muito interessante o grande esforço que está sendo feito, a partir das mexidas no Vaticano, pela Igreja Católica Romana no sentido de recuperar a sua força moral na sociedade mundial, que veio sendo bastante abalada por uma série de questões internas vindas a público nas últimas décadas.

Finalmente, o ponto de vista da dinâmica pessoal dos indivíduos apresenta como referência principal a importância das iniciativas em nível de sujeito individual, apresentando-se este (o sujeito) como um lugar de iniciativa coletiva. Em outras palavras, há uma lógica da dinâmica pessoal dos indivíduos (Bajoit, 1992; Follmann, 2007) que deve ser levada em conta no estudo sociológico dos fundamentalismos religiosos, sobretudo, nas fórmulas seguras de vida que proporcionam para os indivíduos um mundo que aparece sempre mais caótico e incerto. Foi também e continua sendo importante o papel dos fundamentalismos religiosos como imperativos e mecanismos legitimadores de iniciativas carentes de suficiente amparo e respaldo dentro da lógica humana, cultural, política, econômica e social vigente.

Continua jogando um papel fundamental a segurança de referência buscada junto a heróis, lideranças, personalidades, guias religiosos, neste sentido. Também devemos estar atentos ao papel avassalador de destruição exercido por certas pregações fundamentalistas sobre as seguranças individuais.

O esquema desta tríplice referência ajudou-me muito, sempre, tanto nas aulas de sociologia e em palestra com públicos diversos envolvendo diferentes temas, como, sobretudo, na construção de referenciais teóricos nos processos de pesquisa.
O livre navegar por diversas perspectivas teóricas é, sem dúvida, um caminho interessante dentro do “que fazer” sociológico. O grande desafio que se coloca é o de não se cair na tentação fácil de aplicação direta de esquemas teóricos concebidos, às vezes, em contextos estranhos às temáticas em questão. A nossa intenção, no entanto, sempre foi a de respeitar rigorosamente o lugar epistemológico de cada um dos pontos de vista teóricos. Parafraseando Santo Agostinho , quase se poderia dizer: “Respeite o lugar epistemológico dos autores e faça o que quiser!”

Três marcas histórico-culturais

Olhando especificamente para o contexto brasileiro sempre nos ajuda quando lembramos referências concretas que fazem parte do nosso processo histórico e impregnam a estrutura e a cultura da sociedade brasileira.

Além da referência cultural característica, feita no início deste texto, e, talvez, na contramão disto, quero chamar a atenção, especificamente, para três outras marcas características ou “marcas histórico-culturais” envolvendo a área das religiões e religiosidades no Brasil. Entendo por marcas histórico-culturais na área das religiões e religiosidades, eventos ou registros que apontam para movimentos definidores das principais características neste meio e que se constituem, de certa forma, como matrizes orientadoras do entendimento.

A primeira marca característica ou marca histórico-cultural deve ser buscada no evento histórico de grande significação que foi a pronunciamento de Dom Sebastião Leme, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, por ocasião da inauguração da estátua do Cristo do Corcovado em 1931, quando assim se expressou, em tom de desafio: “Ou o Estado (…) reconhece o Deus do povo, ou o povo não reconhecerá o Estado!”. (Della Cava, 1975, p.15). A força das instituições religiosas faz efetivamente parte da história política do Brasil.

Neste nível os nossos apontamentos podem acolher a busca recorrente e unilateral de atendimento de interesses institucionais, que sempre pesaram sobre a alma brasileira. Muitas manifestações públicas de massa, que são recorrentes hoje em dia, mobilizando grandes públicos religiosos, vão nesta linha. Podem ser olhados como demonstrações de força política, ou seja, de ocupação do espaço público. Trata-se de um desafio muito grande e, certamente, muito difícil de administrar, no horizonte de um Estado laico, como oficialmente é o nosso.

A grande interrogação que se impõe: até que ponto as lideranças religiosas, neste nível, conseguem administrar os seus serviços religiosos, sem sucumbir à tentação do uso político de sua força, em desrespeito ao espírito republicano e à laicidade do Estado? O recente e polêmico “Acordo Brasil – Santa Sé” e a reação justa, mas igualmente polêmica, no sentido de criação de uma “Lei Geral das Religiões”, são exemplos do quão distante estamos de um convívio religioso pluralista harmonioso e sem contaminação política dentro do Estado laico. Também não se deve descartar a sempre presente cultura do oportunismo de Governos, que à revelia da laicidade do Estado, lançam mão de apoio a práticas religiosas fundamentalistas que lhes facilitam o exercício do poder sobre massas politicamente alienadas.

A segunda marca característica ou marca histórico-cultural pode ser registrada a partir do episódio do “chute da santa” ocorrido em 12 de outubro de 1995. Trata-se de um episódio, que, muito além de sua ruidosa repercussão midiática e social, tem um alcance simbólico sem igual em termos de composição e recomposição da esfera religiosa brasileira. Naquela data, dia da santa católica “Nossa Senhora Aparecida”, culturalmente consagrada no mundo católico como a Padroeira do Brasil, o bispo Sérgio Von Helder da Igreja Universal do Reino de Deus, em um programa matutino, na Rede Record, chamado “O Despertar da Fé”, proferiu insultos e deu chutes na imagem desta santa, em frente às câmaras. O episódio tornou-se conhecido como o episódio do “chute da santa”.

Ricardo Mariano (2005) se reporta diversas vezes a este episódio em seus estudos para uma sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. O “chute da santa” simboliza todo um movimento agressivo para provocar uma inflexão na esfera religiosa brasileira contra o predomínio religioso católico.

A história do Brasil está carregada de manifestações de desrespeito e de agressão das religiões dominantes (maiormente de integrantes do meio católico, sobretudo, no passado) contra as religiões de matriz africana, contra as práticas espíritas e de outras expressões minoritárias. Hoje, presenciamos, em muitos lugares e meios, uma prática, usual no meio neopentecostal, de combater, de forma recorrente, símbolos e práticas religiosas católicas ou de religiões de matriz africana, buscando desclassificá-las e deslegitimá-las. Assiste a uma verdadeira demonização das práticas dos outros em determinados contextos. É uma prática que gera fortes repercussões nos processos de identidade.

A terceira marca caraterística ou marca histórico-cultural pode ser alcançada em diversas situações no papel exercido pela figura do Pai de Santo e Mãe de Santo. Recentemente assistimos no Brasil à passagem do Papa Francisco e uma das percepções evidentes é a de que existe no mundo de hoje, mas talvez mais carregadamente, no Brasil, uma grande busca de referências pessoais, de líderes ou heróis que sirvam de horizonte de apoio dentro de um mundo dilacerado e sempre mais desencontrado.

A permanente referência a um santo de devoção e proteção pessoal (no meio católico popular) ou a um Orixá ou Espírito Ancestral (no meio de matriz africana) ou, sobretudo, a grande acolhida e apreço tributado a lideranças religiosas de destaque (Mestres e Guias Espirituais das mais diferentes origens e tradições) e sua força mobilizadora, ao mesmo tempo em que são reveladores de um traço cultural, são, sobremodo, características culturais que se reforçam na contemporaneidade brasileira e mundial, num contexto de perda de referenciais sólidos. O reverso também é verdadeiro e pode ser profundamente avassalador, quando a personagem ou liderança de referência total, decepciona, fazendo com que a pessoa fique com a sensação de ter sido traída pela única referência na qual ainda acreditava.

Levantando hipóteses e questões

Seguindo a tríplice entrada sugerida, apresentam-se, para nós, três importantes conjuntos de questões no que tange à temática “fundamentalismos religiosos” ou “radicalizações fundamentalistas” no mundo religioso. A rigor, poderíamos levantar uma grande hipótese englobante, sugerindo que existem três grandes veios alimentadores principais das radicalizações fundamentalistas na esfera das relações religiosas: conforme as circunstâncias históricas, sociais, políticas e culturais as radicalizações fundamentalistas religiosas podem ser alimentadas e reforçadas pelas diferentes forças geradoras do conflito central da sociedade, ou podem ser alimentadas e reforçadas pelas estratégias internas à própria esfera religiosa na disputa pelos espaços de influência, ou, ainda, podem ser alimentadas ou reforçadas pela própria dinâmica pessoal de busca de seguranças nos processos individuais de identidade.

1) As radicalizações fundamentalistas religiosas podem ser alimentadas e reforçadas pelas diferentes forças geradoras do conflito central da sociedade

Na maioria dos casos as radicalizações fundamentalistas religiosas são arma da contraofensiva dos fracos e oprimidos, de grupos ou, mesmo, povos ou etnias, historicamente dominados, jogados no ostracismo e à margem, acumulando ressentimentos através dos tempos. Fazendo analogia à “Revanche de Deus” (Kepel, 1995), pode-se definir como revanche política dos deuses… No reverso, no entanto, assistimos, às vezes, também, ao uso aberto de discursos fundamentalistas religiosos para afirmar e reafirmar o poder dominante, na tentativa de legitimá-lo contra o levante dos historicamente dominados.

Estes fenômenos, no entanto, não são gerados do nada. Seria, aliás, muito difícil entender isto, sem um olhar mais apurado sobre a história. O papel da religião ou das religiões na história dos povos e, sobretudo, o papel exercido pelas religiões dominantes enquanto identificadas com os processos de dominação política, econômica e cultural, que marcaram época, pode ser considerada a chave principal de explicação do que está acontecendo hoje em termos de radicalizações fundamentalistas de uso político. Em muitas situações as religiões dominantes exerceram papéis decisivos enquanto apoiadoras dos processos de dominação política, econômica e cultural.

2) As radicalizações fundamentalistas religiosas podem ser alimentadas e reforçadas pelas estratégias internas à própria esfera religiosa na disputa pelos espaços de influência

Enquanto reinava o inequívoco predomínio da dominação religiosa católica, como religião oficial do Brasil, havia pouca margem para a percepção da diversidade e de outras forças dentro da esfera religiosa neste país. Havia também pouca percepção da violência simbólica religiosa de parte desta religião dominante com relação às demais expressões religiosas. A partir do momento em que foram geradas condições históricas para uma maior abertura para a diversidade e o pluralismo religioso, além de serem proporcionadas melhores condições de percepção da própria diversidade antes oculta e “clandestina”, passou-se também a presenciar radicalizações fundamentalistas de afirmação, nesta esfera.

Faz parte do comportamento normal dentro de um campo de forças sociais que aqueles grupos, que são minoritários, quando têm condições favoráveis, tendam a afirmar com mais radicalidade as suas convicções e seus fundamentos. Isto, no entanto, torna-se mais evidente quando grupos que antes eram minoritários passam a ter força e se embebem de estratégias de disputa do poder de hegemonia dentro da esfera.

3) As radicalizações fundamentalistas religiosas podem ser alimentadas ou reforçadas pela própria dinâmica pessoal de busca de seguranças nos processos individuais de identidade

Num mundo fragmentado e repleto de incertezas, as certezas religiosas continuam proporcionando segurança para a vida individual das pessoas em seu cotidiano. Quanto mais inquietantes se fazem as incertezas, maior tendem a se tornar as radicalizações fundamentalistas, na afirmação de certezas religiosas. Quanto mais vazias as existências humanas se mostram, mais apelo têm aquelas personalidades e lideranças que assumem uma postura íntegra e coerente, tornando-se referências seguras, que, de certa forma, pairam como portos seguros por cima de todo o lamaçal de desencontros e incertezas. Facilmente podem tornar-se referências para entregas pessoais radicais.

Esta é uma chave que ajuda a entender o fenômeno do aprofundamento das intolerâncias dentro de um contexto de aparente indiferentismo pluralista. Perceber que existem práticas de ignorar a verdade do outro ou, mesmo, de desprezá-la agressivamente, pode parecer chocante nos dias de hoje, mas se colocarmos isto na perspectiva da auto-proteção ou da busca de segurança pessoal dentro de um mundo fragmentado e incerto, faz sentido. Cabe, também, mais uma vez sublinhar o efeito avassalador que pode decorrer na trajetória de uma pessoa, quando ela se sentir iludida ou perder a confiança nesta sua referência exclusiva.

Conclusões…

Após referir, na introdução deste ensaio, um recorte de diálogo registrado por João Guimarães Rosa, que retrata a cultura religiosa da bricolagem, do sincretismo e do diálogo, e deixando como referência oculta (mas fortemente presente) todo o contexto de explosão da diversidade religiosa vivida no Brasil de hoje, construí o texto num percurso de três etapas: Inicialmente retomei três referenciais teóricos de dentro da sociologia para mostrar a possibilidade de trabalhar sociologicamente a questão das radicalizações fundamentalistas destacando diferentes enfoques. Em seguida fiz uma pequena incursão na história e cultura religiosa do Brasil, destacando, a partir do tríplice olhar teórico, três marcas histórico-culturais características nesta realidade. Num terceiro momento, levantei algumas hipóteses e questões para aprofundamento.

Formulei, a rigor, uma grande hipótese englobante, subdividida em três hipóteses ou sub-hipóteses, alinhadas dentro de cada um dos três recortes teóricos. Segundo esta hipótese, a depender das circunstâncias históricas, sociais, políticas e culturais, os alimentadores principais das radicalizações fundamentalistas assumem matizes diferentes: 1) Elas podem ser alimentadas e reforçadas pelas diferentes forças geradoras do conflito central da sociedade; 2) Elas podem ser alimentadas e reforçadas pelas estratégias internas à própria esfera religiosa na disputa pelos espaços de influência; 3) Elas podem ser alimentadas ou reforçadas pela própria dinâmica pessoal de busca de seguranças nos processos individuais de identidade.

A minha intenção, com este texto, foi a de levar em frente um debate que está aberto. A rigor, trata-se de um texto que visa ampliar o leque de hipóteses, não cabendo ainda cultivar muitas expectativas de conclusões, a não ser a da gostosa sensação de uma busca que se amplia… Trata-se de um desses textos em construção, que, como autor, eu nunca quero concluir.

Referências bibliográficas

BAJOIT, Guy. Pour une Sociologie Relationnelle. Paris: PUF, 1992

BOURDIEU, Pierre. Genèse et Structure du Champ Religieux, Revue Française de Sociologie, N. XII, 1971, pp.295-334

DELLA CAVA, Ralph. Igreja e Estado no Brasil no século XX sete monografias recentes sobre o catolicismo brasileiro (1916-1964). Rev. Estudos Cebrap, n.12, 1975.

FOLLMANN, José Ivo. O Brasil religioso, pós-modernidade e processos de identidade. In Carlos A. Gadea; Eduardo Portanova Barros (orgs.). A “questão pós” nas ciências sociais: crítica, estética, política e cultura. Curitiba: Appris, 2013, pp.231-249 (351 p.)

FOLLMANN, José Ivo. Identidade como Conceito Sociológico. Rev. Ciências Sociais Unisinos. Vol. 37, n. 158, 2001, p. 43-66.

FOLLMANN, José Ivo. Por onde caminham as religiões e religiosidades hoje: notas para uma reflexão sobre a secularização encantada. In: Wachholz, Wilhelm. (Org.). O luteranismo no contexto religioso brasileiro. São Leopoldo: Sinodal, 2007, p. 09-26.

KEPEL, Gilles. La revancha de Dios. Salamanca: Anaya e Mario Muchnik, 1995.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola (2ª ed.), 2005.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. 14 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.

TOURAINE, Allain. Production de la Société. Paris: Du Seuil, 1993 (1ª ed. 1973)

__________. La Voix et le Regard. Paris: Le Seuil, 1978.


VV.AA. Dicionário Enciclopédico das Religiões. Petrópolis: Ed. Vozes, 1995.

A TRANSDISCIPLINARIDADE NOS LIMITES E POSSIBILIDADES DA ACADEMIA.

Publicado em forma de capítulo no livro “O Movimento entre os Saberes: a Transdisciplinaridade e o Direito”, em 2015

A tábua de salvação da universidade…

José Ivo Follmann

>>> Este texto constituiu capítulo do livro O Movimento entre os Saberes: a Transdisciplinaridade e o Direito, organizado por Sandra Regina Martini; Bárbara Josana Costa. Porto Alegre: Editora Visão, 2015. <<<

Palavras iniciais

O título do texto está diretamente ancorado em minhas inserções como painelista dentro das diversas edições do “Seminário Internacional sobre Limites e Possibilidades do Direito Moderno – Uma Visão Transdisciplinar” do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

Recolho, aqui, alguns excertos das “falas” realizadas desde a primeira edição desse Seminário (2001) até a sua quinta edição (2010), introduzindo novos elementos e novas iluminações. O tom coloquial do texto está relacionado com esta origem de “falas” no contexto de participações em painéis de um Seminário.

O rompimento com a indiferença

Na última de minhas participações no referido Seminário cheguei a dizer que eu me via quase “no limite de minhas possibilidades”, dentro desta temática, mas que isto não me deixava indiferente e acomodado. Na oportunidade, eu tomei isto como mote para a minha fala, e dizia que devíamos ampliar as possibilidades para eliminar os limites… E retomei a ideia da convicção de que a própria proposta do Seminário, em suas diversas edições, vinha demonstrando ser um espaço de tomada de consciência de novos horizontes em nossas possibilidades e ajudava a não nos acomodarmos na indiferença da rotina acadêmica.

Por ocasião do evento, que era a quinta edição do Seminário, estava sendo prestada uma homenagem ao Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho . A homenagem estava significando, na minha percepção, um ambiente humano e profissional tremendamente favorável para o avanço necessário nesse “rasgar de horizontes” ou busca de novos horizontes. Nós estávamos diante de alguém que com suas múltiplas contribuições, era exemplo de rompimento com a indiferença.

Lembrei uma frase proferida pelo Dr. Jacinto, que muito me chamara a atenção. O ilustre homenageado em uma de suas falas pretéritas, repetira, de forma muito enfática, o seguinte: “O oposto de amor não é o ódio, mas a indiferença”.

Relatei que, um pouco antes do evento, eu havia celebrado a missa em nossa capela universitária e me deparara com o texto bíblico que faz a narrativa do encontro entre um Jovem Rico e Jesus. A frase que eu queria relembrar era: “Como é difícil um rico entrar no Reino dos Céus”! Trata-se de uma narrativa certamente conhecida de muitos. O que está registrado é que os discípulos reagiram escandalizados, frente ao Mestre, dizendo: “Mas, então, Mestre, quem poderá se salvar”? Ou seja: Como assim? Até agora sempre nos foi ensinado o contrário. Foi-nos ensinado que os ricos são os abençoados… Jesus conclui: “Para os homens isto parece impossível, mas para Deus tudo é possível”. Eu concluíra minha reflexão, depois da leitura do texto, dizendo: Ser rico, no sentido bíblico, significa ser indiferente frente à sorte dos outros. Deus não é indiferente para com os seres humanos. Para nós, também, tudo será possível na medida em que não formos indiferentes para com os outros. Fizera esta reflexão, porque havia lido a frase do Dr. Jacinto, pensando neste momento que teríamos aqui.

Disse, também, no início, daquela minha fala que seria muito mais do meu gosto poder fazer silêncio, naquele momento, um profundo silêncio para saborear bem tudo o que acabara de ouvir e perceber com a homenagem feita ao Dr. Jacinto e seu trabalho. Na vida em geral, aprendemos muito mais dos exemplos de vida do que das reflexões e elaborações teóricas, por mais que elas sejam sistematizadas e tornadas didáticas.

As possibilidades “humanísticas” no limite da “positivística”.

Naquela noite fiz uma primeira provocação ao dizer: O Direito Moderno tem na “positivística” o seu limite, e tem na “humanística” as suas possibilidades… No Direito Moderno, se, por um lado, a “positivística” cresceu muito, não se pode dizer o mesmo da “humanística”, que, com certeza, não cresceu o que poderia ou deveria ter crescido.

Provocação feita, a minha fala naquela noite, prosseguiu: É muito arriscado fazer uma afirmação destas. Posso fazê-lo, no entanto, por não ser do meio. Tenho a prerrogativa de ser estranho no ninho. Vou tomar a liberdade de nem mesmo tentar explicar o que quero dizer com “positivística” e com “humanística”. Prefiro deixar as imaginações de cada um e cada uma trabalharem. Seria muito interessante se pudesse ter tempo para narrar alguns exemplos concretos no sentido de aprofundar esta provocação…

Muitas vezes já ouvimos manifestações que nos fazem refletir sobre a sociedade moderna, como uma sociedade que perdeu a sua “alma”. Pois, falando em Direito Moderno, é a mesma impressão que nos vem. Como leigo na Área das Ciências Jurídicas e na Prática do Direito, partilho a sensação de que, também, neste meio, em grande parte, se perdeu a “alma”.

Obviamente, isto não é algo generalizável, pois, se fosse, não estaríamos podendo prestar homenagens merecidas como a desta noite, onde estamos na presença de alguém que sempre cultivou e alimenta a “alma” do Direito e a “alma” da humanidade. Nem eu poderia estar me arriscando a falar sobre isto desta forma um tanto “desajeitada”…

O puro formalismo legal torna o tratamento, muitas vezes, “desalmado”, reduzindo as ações e práticas, do exercício jurídico do legislador, ao plano do simples cumprimento formal de uma lei insuficientemente contextuada.

“Indiferença desalmada” versus “indiferença inaciana” (atualização em 13/04/2019)

Toda esta reflexão faz despertar em mim um recado forte que vem de minha “alma inaciana”, pois sou um jesuíta cultivado na espiritualidade de Santo Inácio de Loyola. Em outras palavras, ao longo e ao lado de minha formação profissional, como sociólogo, bebi muito das águas da espiritualidade e pedagogia inacianas. Sinto-me estimulado a ressaltar alguns aspectos chaves, que estão inspirados nessa espiritualidade, cuja origem se situa, historicamente, antes, ou, nas vésperas dos grandes movimentos da modernidade. São luzes importantes que, talvez, possam ajudar a ampliar as possibilidades que estão postas em questão na reflexão aqui em pauta.

No Paradigma Pedagógico Inaciano são conhecidos cinco passos (ou momentos) fundamentais: – o estar atento ao contexto; – o reviver as experiências; – o aprofundamento na reflexão; – a ação coerente com os passos precedentes; – a avaliação de todo o procedimento. (Também ocupa um lugar importante algo que se denomina “indiferença inaciana”, que é o oposto da “indiferença desalmada”). (Atualização em 13/04/2019)

Dentro do tema aqui em pauta, chamo a atenção para os três primeiros passos ou momentos, ou seja: Em primeiro lugar, a tradição inaciana nos ensina que devemos ter sempre uma grande atenção ao contexto. Em segundo lugar, trata-se, entretanto, não de contexto simplesmente externo ou visto friamente, de fora, mas de um contexto com vida. Contexto no qual se dão as experiências humanas. Em terceiro lugar, o ato de reviver pessoalmente as experiências nos dá as bases necessárias para que a nossa reflexão – a aplicação dos nossos conhecimentos teóricos – seja realmente um momento que leve em conta radicalmente o ser humano envolvido, dando-nos maiores garantias de acertarmos na ação. Uma reflexão, por mais competente que seja em termos de conhecimento da legislação e de sua formalidade processual, pode levar a tremendos limites, se não estiver ancorada neste mergulho experiencial no contexto. (Inacianamente pensando devemos saber cultivar boa dose de indiferença frente a nossas seguranças técnicas calculadas e focar toda energia e atenção à causa humana envolvida). (Atualização em 13/04/2019)

Por um momento o meu pensamento retornou à reflexão bíblica apontada inicialmente: O que é ser rico? É ser indiferente frente à sorte dos outros. Deus não é indiferente para com os seres humanos. Para não corrermos o risco da indiferença para com os seres humanos, em nosso “que fazer” profissional é necessário que a formação para esta profissão nos proporcione condições de enxergar para além dos estreitos limites disciplinares. A transdisciplinaridade é uma chave importante para tal.

Uma formação demasiadamente “positivística” pode gerar profissionais “desalmados” ou indiferentes frente à realidade humana. Santo Inácio nos fala de outra forma de indiferença. A indiferença inaciana é proposta na perspectiva da indiferença com relação às próprias comodidades e seguranças pessoais, sempre com a atenção focada no bem maior da humanidade e dos outros. (A transdisciplinaridade tem parentesco íntimo com a “indiferença inaciana” na medida em que nos ajuda a ser de certa forma indiferentes frente à “segurança” de nossas conclusões técnicas). (Atualização 13/04/2019)

Transversalidade com foco

Para os nossos ouvidos, a imagem do “transitar” ou da transversalidade sempre soa como uma imagem rica e carregada de sentido. Aliás, dentro das Ciências Humanas – eu sou da Sociologia – se quisermos efetivamente ser cientistas, precisamos transitar constantemente entre as muitas pequenas “igrejinhas” ou perspectivas teóricas ou subdisciplinas que vão se afirmando dentro da própria disciplina. Pessoalmente, aprendi a trabalhar sociologicamente sendo fiel a três perspectivas diferentes, sem desautorizar as suas lógicas e ditames próprios, mas transitando constantemente de uma a outra. Me refiro à sociologia francesa, em cujo poço bebi mais, a partir dos meus mestres na Bélgica, onde são destacadas três grandes perspectivas teóricas que, a rigor, se complementam e repelem, mutuamente. Assumi o desafio de, sem desrespeitar o locus epistemológico de cada uma, fazer o meu estudo doutoral, transitando livremente por dentro das três perspectivas. Confesso que foi uma experiência intelectual bem reconfortante e de muitos frutos. É importante saber transitar entre as diferentes disciplinas, mas devemos, sobretudo, saber, também, transitar entre os diferentes posicionamentos teóricos.

Além disso devemos, ainda, ter presente as vivências do nosso cotidiano e do cotidiano alheio. Um dia, ao falar do sujeito intelectual ou das pessoas intelectuais – e poderíamos considerar os/as profissionais do Direito – fiz um exercício bem rasteiro, tentando chamar a atenção sobre as diferentes condições pessoais, no seu dia-a-dia. Eu dizia que é preciso dar-nos conta que essas pessoas são sujeitos concretos, de carne, osso, nervos etc., homens ou mulheres que pensam, sentem, se animam, desanimam, se entusiasmam, deixam-se tomar pelo cansaço e aborrecimento, amam, odeiam, estão “de bem com a vida”, se sobrecarregam de preocupações e problemas, vivem “correndo atrás da máquina”, “botam os pés pelas mãos”, revelam sabedoria, manifestam paz e tranquilidade, avaliam, calculam, são “ignorantes”, são conhecedoras, são volúveis, são corretas e honestas, são desonestas, estão financeiramente bem arrumadas, vivem buscando o seu ganha-pão, fazem negócios, têm coragem, são sonhadoras, desesperam-se, têm medo, são de descendência europeia, são afrodescendentes, descendem de povos indígenas ou de orientais, são solidárias, não são solidárias, são religiosas e crentes, são ateias, bebem do agnosticismo, são “hetero”, “homo” ou “trans”, são casadas, não são casadas, não são nem uma ou nem outra coisa. A pessoa intelectual – ou, então, profissional do Direito – pode ser tudo isso. Existem intelectuais – ou profissionais do Direito – em todos os “estados” de vida possíveis. É necessário que estejamos muito atentos às situações e dinâmicas pessoais dos intelectuais – ou profissionais do Direito. Estar atento significa saber transitar por dentro das diferentes situações, vivências e “humores”. É necessário que cada pessoa saiba estar muito atenta aos “humores”, circunstâncias e vivências do cotidiano. Isto vale tanto em relação a si próprio, como em relação aos demais.

Não adianta, no entanto, sermos perfeitos técnicos multi e interdisciplinares, perfeitos “malabaristas do trânsito” entre as disciplinas e posicionamentos teóricos ou, mesmo, “bons farejadores do cotidiano”. Se isto não estiver acompanhado e embebido numa postura ética, que tem a sua centralidade na pessoa humana, facilmente podemos ser reduzidos à máquina da indiferença e ao formalismo. Corremos o risco de não superar o mero nível de uma enganosa cordialidade ou afabilidade, que pode continuar sendo portadora de indiferenças cruéis… A transdisciplinaridade aponta, também, para a importância da atenção aos valores orientadores da existência humana e consagrados no convívio social. Os profissionais do Direito precisam ser transdisciplinares, tanto no sentido de terem uma postura de livre transitar sobre os limites disciplinares, os limites dos posicionamentos teóricos e os limites dos movimentos do cotidiano, como no sentido de estarem imbuídos de valores éticos que transcendem estas diferentes lógicas. Ou seja, no sentido de terem uma visão integral da pessoa humana. Aliás, é nisto reside que a grande diferença entre a formação de profissionais de verdade e a formação de meros técnicos da profissão. Estes últimos, podendo ser, talvez, muito competentes, mas humanamente vazios, “desalmados”, como referi acima.

A imagem do poço, como uma ilustração útil

Em diversas das minhas falas, lembrei a imagem do poço. Ubiratan D’Ambrosio, Matemático e Educador, em suas reflexões sobre a transdisciplinaridade traz, muito repetidamente, essa imagem: a imagem do poço e do horizonte que se estreita para quem desce para o fundo do mesmo. Para esse autor,

“assim, como ao descer num poço a percepção do terreno ao redor vai se tornando mais e mais difícil, o conhecimento especializado pode conduzir a uma falta de percepção do contexto em que tal conhecimento foi produzido”. (D’Ambrosio: 2001, p.76)

Na profundidade do “poço” certamente é usufruída enorme riqueza centrada especialmente em determinado ponto específico da realidade complexa. O aprofundamento e detalhamento levam a caminhos infindos e apaixonantes, mas se esta paixão não estiver partilhada e referida a um horizonte mais amplo de construção de soluções para a humanidade e para a sobrevivência de todo o ecossistema do qual fazemos parte, sofre sério risco de esterilidade humana e científica.

No estreitamento dos horizontes, ao descer no “poço”, o que tende a desaparecer mais rapidamente é o ser humano, é a vida que acontece no entorno. Corre-se o risco de estar na contramão do imperativo da centralidade do ser humano. É necessário que ao descer no “poço” – as descidas no “poço” são fundamentais e necessárias -, quem desce esteja imunizado contra o risco da esterilidade humana e científica…

Hoje em dia torna-se sempre mais visível e gritante o aumento de situações e constatações de que o “ser humano está-se desumanizando em sua prática de ser humano”. Esta desumanização tem a ver com a perda de conhecimento de si mesmo e, consequentemente, de suas responsabilidades cidadãs.

A imagem do zoológico…

Já fazem quase quinze anos em que me deparei com um livro organizado pelo Instituto de Resultados em Gestão Social, de Belo Horizonte, no qual colhi uma alegoria muito expressiva, falando do degradante desastre da falta de identidade humana. São analogias bastante rasteiras. Elas são, no entanto, muito do meu gosto e são muito expressivas. Diz o texto:

(…) o Homem costuma partir para a engenharia do viver como um Animal que parece só ter uma certeza: a negação do Homem como animal Homem. Então, com indesejável frequência, ele se alimenta como uma hiena, marca seu espaço como um leão, tenta se proteger como um cágado, repete outros como papagaio, é traiçoeiro como escorpião, esconde-se da realidade como avestruz, ameaça como cascavel, aproveita-se da fraqueza de outros como abutre e acaba passando a vida como um pato que na Água não consegue nadar como peixe, no ar não consegue voar como pássaro e no solo não consegue correr nem como galinha”. (Romano Filho; Santini; Ferreira: 2002, p.25)

Necessitamos de homens e mulheres que saibam sentir-se maiores do que os limites que os cercam e que tenham a coragem de recusar-se a aceitar a realidade na qual estão mergulhados, simplesmente como dada e imutável. Eu falava acima de limites disciplinares, limites de posicionamentos teóricos e limites dos movimentos do cotidiano.

A rigor, quem for atento à pessoa humana, à dignidade da pessoa humana, quem for radicalmente voltado ao valor da vida humana, sempre irá para além das compreensões disciplinares, dos posicionamentos teóricos e dos rumores do cotidiano. Ele não se reduzirá a ser mais ou menos transgressor disciplinar, a ser mais ou menos habilidoso em transitar entre as diferentes disciplinas e posicionamentos teóricos, a ser mais ou menos malabarista do cotidiano. A sua transdisciplinaridade, própria do ser um profissional de verdade, sempre o levará a transcender as suas aptidões e malabarismos, para buscar uma ancoragem firme em valores éticos de respeito à dignidade humana e o sincero empenho em construir sociedade onde todos e todas possam viver com dignidade. Tenho a certeza de que no entender da maioria dos que leem o presente texto, é nisto que reside o ser profissional de verdade.

A importância de ultrapassar-se

Dom Helder Câmara um dia, inquieto, exclamou “Ah! Se a sede de ultrapassagem – comum a todos os volantes – levasse os volantes e passageiros a aprenderem a ultrapassar-se”! É uma imagem muito expressiva no contexto de nossa reflexão. A imagem da ultrapassagem, no sentido de manifestação de Dom Helder não tem nenhuma conotação de convite à irresponsabilidade no trânsito. Independente da mensagem expressa na frase de Dom Helder, a analogia do trânsito é infeliz e muito limitada. Ela nos coloca, no entanto, com vigor, na luta contra a irresponsabilidade da acomodação no medo.

Concentremo-nos em nossa reflexão. Se ultrapassar a outros pode ter o conteúdo simbólico de superar medos, quanto maior deve ser o medo e a necessidade de superá-lo, quando nos propomos a ultrapassar a nós mesmos!? A mesma coragem na incerteza que muitos motoristas irresponsáveis demonstram e que muitas vezes resulta em desastrosas desumanidades, deveria poder ser percebida na ruptura com a acomodação humana irresponsável em nossas zonas de conforto, ultrapassando-nos a nós mesmos, com a busca responsável do maior bem. Ultrapassar a nós mesmos significa ultrapassar as zonas de conforto de disciplinas, de posicionamentos teóricos dogmatizados e, inclusive, de vícios e rotinas do cotidiano acomodado.

Para sair da analogia do trânsito, trago aqui o exemplo de um autor conhecido. Carlos Rodrigues Brandão (2005), em livro publicado há mais de dez anos, no qual retrata a história de Paulo Freire – (História do menino que lia o mundo) -, destaca que este menino que lia o mundo, aprendeu a perder o medo, porque começou a entender as coisas e o mundo. Nós só temos medo frente ao que não entendemos. Aplicando para o nosso momento, a nossa reflexão, podemos dizer que nós estamos presos e acomodados facilmente em nossas seguranças e pensar em deixá-las para trás, pensar em ultrapassar-nos nos faz medo, porque não conhecemos ou entendemos/dominamos o que vem pela frente, o incerto.

É necessário saber colocar no background de nossas análises científicas disciplinadas, mesmo que elas sejam, como muitas vezes são, de alta qualidade e habilidade, o imperativo: “Isto não é tudo”! Estes caminhos não são suficientes! Outras percepções importantes, que transcendem a percepção disciplinar, que transcendem os posicionamentos teóricos e os “trilhos” do cotidiano acomodado, são possíveis e necessárias.

É necessário que o imperativo da busca por ultrapassar-nos constantemente para não nos tornarmos ultrapassados, impere em nossa prática profissional do dia a dia. A Academia facilmente corre o risco de ser ultrapassada quando tende a voltar-se sobre os seus disciplinamentos e regramentos internos de seu mundo correndo à parte do contexto no qual ela se insere e/ou correndo ao lado e à revelia dos grandes debates e embates da humanidade. Às vezes a Academia corre o risco de continuar a construir “torres de marfim”, aparentemente inacessíveis, inexpugnáveis, mas, sobretudo, inúteis.

Nos dias de hoje, a Academia felizmente está, de mais a mais, despertando, mas é preciso que este processo se acelere. Acredito que um caminho acelerador é a aposta na transdisciplinaridade. Chego a dizer que nela reside o futuro da Academia, ou, que é a “tábua de salvação” da Academia.

Mas, o que é transdisciplinaridade?

É necessário fazer uma pequena nota sobre o próprio conceito de transdisciplinaridade… Para o meu conforto, ou, talvez, a minha comodidade, acostumei-me a falar em quatro “movimentos” metodológicos complementares, de um mesmo “que fazer” científico, explicitando a transdisciplinaridade como um desses “movimentos”.

O mundo acadêmico é o mundo das disciplinas. É também, muitas vezes, um mundo que sucumbe a certas arrogâncias disciplinares… Segundo Ubiratan D´Ambrósio (2003), “faz-se necessário o rompimento da arrogância da certeza disciplinar”. Para este educador, a disciplina traz consigo um critério de certeza arrogante, não deixando espaço para um entendimento que transcenda o aparente. As certezas disciplinares são reconduzidas à aproximação da verdade na medida em que se instauram processos multi ou pluridisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. A rigor, está-se falando, aqui, de diferentes “movimentos” metodológicos complementares de um mesmo “que fazer” científico. O último desses “movimentos”, a transdisciplinaridade, não significa um momento ou etapa de superação ou desconsideração da contribuição específica dos outros “movimentos” das disciplinas, seja em suas produções isoladas, seja na forma multi ou pluridisciplinar de produção do conhecimento, somando, justapondo ou criando interfaces complementares entre disciplinas, ou, ainda, na forma interdisciplinar, de efetivo diálogo e intercâmbio conceptual e metodológico entre as mesmas. A transdisciplinaridade reflete em si todos esses “movimentos” metodológicos, acrescendo-lhes uma abertura madura para a integração de saberes diferentes, sejam eles saberes de disciplina ou combinação de disciplinas ou, ainda, saberes de outras ordens, que transcendem as disciplinas, atuando como “interrogantes externos”. (Follmann; Lobo: 2003, p.10.)

Para Basarab Nicolescu, no qual me apoio mais diretamente,

“transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica (…) diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina”.(Nicolescu: 2000, p.15 )

No sentido transdisciplinar, a produção de conhecimento e todo processo de educação e de formação profissional, supõem a integração dos saberes e supõem, também, a abertura e o não-fechamento dos saberes, no sentido de se alimentarem mutuamente e, sobretudo, de se deixarem transcender/ultrapassar na permanente busca do melhor bem para o ser humano e o seu contexto. A transdisciplinaridade nasceu com essa vocação, ou seja: por meio dela se busca a integração dos saberes, onde os saberes de fora da Academia, encontrados nas percepções do cotidiano, nas percepções artísticas, e outras sensibilidades ou mesmo nas crenças religiosas e tradições sapienciais da humanidade e nos imperativos éticos consagrados no convívio social, funcionam como interrogantes externos dentro do processo de produção do conhecimento e do processo de educação e formação profissional.

Palavras finais: rebuscando arquivos do século XVI

São Francisco Xavier, como missionário atuante no Extremo Oriente, em um dos contatos escritos, através de carta, manifestava uma grande ansiedade com relação ao comodismo egoísta e ao resultado pífio das Universidades Europeias, frente às grandes necessidades da humanidade. Ele escrevia que tinha vontade de retornar à Europa e, “se fazendo de louco”, andar pelos corredores dessas Universidades e denunciar, aos gritos, a “acomodação e indiferença” delas e dos seus estudantes, com relação ao que a humanidade efetivamente mais estava necessitando. Esse santo, nos limites de sua compreensão, dentro de seu ardor missionário, se referia, evidentemente, à necessidade da evangelização e do anúncio dos valores cristãos para toda a humanidade.

Sem repetir a mesma visão de mundo desse jesuíta heroico do século XVI, hoje, são muitas as vozes que se levantam e que gostariam de “se fazer de louco” para sacudir as Universidades de seu torpor e sua acomodação nas mesmices de uma Academia insensível e indiferente frente aos destinos da humanidade e dos problemas concretos existentes no cotidiano das pessoas e da sociedade.

Talvez devamos dizer que não se trata, tanto, de insensibilidade e indiferença frente aos problemas humanos, mas da própria incapacidade de perceber e reconhecer as potencialidades da Universidade e os múltiplos valores que nela estão escondidos e são mal aproveitados.

Referências bibliográficas:

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