A TRANSDISCIPLINARIDADE NOS LIMITES E POSSIBILIDADES DA ACADEMIA.

Publicado em forma de capítulo no livro “O Movimento entre os Saberes: a Transdisciplinaridade e o Direito”, em 2015

A tábua de salvação da universidade…

José Ivo Follmann

>>> Este texto constituiu capítulo do livro O Movimento entre os Saberes: a Transdisciplinaridade e o Direito, organizado por Sandra Regina Martini; Bárbara Josana Costa. Porto Alegre: Editora Visão, 2015. <<<

Palavras iniciais

O título do texto está diretamente ancorado em minhas inserções como painelista dentro das diversas edições do “Seminário Internacional sobre Limites e Possibilidades do Direito Moderno – Uma Visão Transdisciplinar” do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

Recolho, aqui, alguns excertos das “falas” realizadas desde a primeira edição desse Seminário (2001) até a sua quinta edição (2010), introduzindo novos elementos e novas iluminações. O tom coloquial do texto está relacionado com esta origem de “falas” no contexto de participações em painéis de um Seminário.

O rompimento com a indiferença

Na última de minhas participações no referido Seminário cheguei a dizer que eu me via quase “no limite de minhas possibilidades”, dentro desta temática, mas que isto não me deixava indiferente e acomodado. Na oportunidade, eu tomei isto como mote para a minha fala, e dizia que devíamos ampliar as possibilidades para eliminar os limites… E retomei a ideia da convicção de que a própria proposta do Seminário, em suas diversas edições, vinha demonstrando ser um espaço de tomada de consciência de novos horizontes em nossas possibilidades e ajudava a não nos acomodarmos na indiferença da rotina acadêmica.

Por ocasião do evento, que era a quinta edição do Seminário, estava sendo prestada uma homenagem ao Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho . A homenagem estava significando, na minha percepção, um ambiente humano e profissional tremendamente favorável para o avanço necessário nesse “rasgar de horizontes” ou busca de novos horizontes. Nós estávamos diante de alguém que com suas múltiplas contribuições, era exemplo de rompimento com a indiferença.

Lembrei uma frase proferida pelo Dr. Jacinto, que muito me chamara a atenção. O ilustre homenageado em uma de suas falas pretéritas, repetira, de forma muito enfática, o seguinte: “O oposto de amor não é o ódio, mas a indiferença”.

Relatei que, um pouco antes do evento, eu havia celebrado a missa em nossa capela universitária e me deparara com o texto bíblico que faz a narrativa do encontro entre um Jovem Rico e Jesus. A frase que eu queria relembrar era: “Como é difícil um rico entrar no Reino dos Céus”! Trata-se de uma narrativa certamente conhecida de muitos. O que está registrado é que os discípulos reagiram escandalizados, frente ao Mestre, dizendo: “Mas, então, Mestre, quem poderá se salvar”? Ou seja: Como assim? Até agora sempre nos foi ensinado o contrário. Foi-nos ensinado que os ricos são os abençoados… Jesus conclui: “Para os homens isto parece impossível, mas para Deus tudo é possível”. Eu concluíra minha reflexão, depois da leitura do texto, dizendo: Ser rico, no sentido bíblico, significa ser indiferente frente à sorte dos outros. Deus não é indiferente para com os seres humanos. Para nós, também, tudo será possível na medida em que não formos indiferentes para com os outros. Fizera esta reflexão, porque havia lido a frase do Dr. Jacinto, pensando neste momento que teríamos aqui.

Disse, também, no início, daquela minha fala que seria muito mais do meu gosto poder fazer silêncio, naquele momento, um profundo silêncio para saborear bem tudo o que acabara de ouvir e perceber com a homenagem feita ao Dr. Jacinto e seu trabalho. Na vida em geral, aprendemos muito mais dos exemplos de vida do que das reflexões e elaborações teóricas, por mais que elas sejam sistematizadas e tornadas didáticas.

As possibilidades “humanísticas” no limite da “positivística”.

Naquela noite fiz uma primeira provocação ao dizer: O Direito Moderno tem na “positivística” o seu limite, e tem na “humanística” as suas possibilidades… No Direito Moderno, se, por um lado, a “positivística” cresceu muito, não se pode dizer o mesmo da “humanística”, que, com certeza, não cresceu o que poderia ou deveria ter crescido.

Provocação feita, a minha fala naquela noite, prosseguiu: É muito arriscado fazer uma afirmação destas. Posso fazê-lo, no entanto, por não ser do meio. Tenho a prerrogativa de ser estranho no ninho. Vou tomar a liberdade de nem mesmo tentar explicar o que quero dizer com “positivística” e com “humanística”. Prefiro deixar as imaginações de cada um e cada uma trabalharem. Seria muito interessante se pudesse ter tempo para narrar alguns exemplos concretos no sentido de aprofundar esta provocação…

Muitas vezes já ouvimos manifestações que nos fazem refletir sobre a sociedade moderna, como uma sociedade que perdeu a sua “alma”. Pois, falando em Direito Moderno, é a mesma impressão que nos vem. Como leigo na Área das Ciências Jurídicas e na Prática do Direito, partilho a sensação de que, também, neste meio, em grande parte, se perdeu a “alma”.

Obviamente, isto não é algo generalizável, pois, se fosse, não estaríamos podendo prestar homenagens merecidas como a desta noite, onde estamos na presença de alguém que sempre cultivou e alimenta a “alma” do Direito e a “alma” da humanidade. Nem eu poderia estar me arriscando a falar sobre isto desta forma um tanto “desajeitada”…

O puro formalismo legal torna o tratamento, muitas vezes, “desalmado”, reduzindo as ações e práticas, do exercício jurídico do legislador, ao plano do simples cumprimento formal de uma lei insuficientemente contextuada.

“Indiferença desalmada” versus “indiferença inaciana” (atualização em 13/04/2019)

Toda esta reflexão faz despertar em mim um recado forte que vem de minha “alma inaciana”, pois sou um jesuíta cultivado na espiritualidade de Santo Inácio de Loyola. Em outras palavras, ao longo e ao lado de minha formação profissional, como sociólogo, bebi muito das águas da espiritualidade e pedagogia inacianas. Sinto-me estimulado a ressaltar alguns aspectos chaves, que estão inspirados nessa espiritualidade, cuja origem se situa, historicamente, antes, ou, nas vésperas dos grandes movimentos da modernidade. São luzes importantes que, talvez, possam ajudar a ampliar as possibilidades que estão postas em questão na reflexão aqui em pauta.

No Paradigma Pedagógico Inaciano são conhecidos cinco passos (ou momentos) fundamentais: – o estar atento ao contexto; – o reviver as experiências; – o aprofundamento na reflexão; – a ação coerente com os passos precedentes; – a avaliação de todo o procedimento. (Também ocupa um lugar importante algo que se denomina “indiferença inaciana”, que é o oposto da “indiferença desalmada”). (Atualização em 13/04/2019)

Dentro do tema aqui em pauta, chamo a atenção para os três primeiros passos ou momentos, ou seja: Em primeiro lugar, a tradição inaciana nos ensina que devemos ter sempre uma grande atenção ao contexto. Em segundo lugar, trata-se, entretanto, não de contexto simplesmente externo ou visto friamente, de fora, mas de um contexto com vida. Contexto no qual se dão as experiências humanas. Em terceiro lugar, o ato de reviver pessoalmente as experiências nos dá as bases necessárias para que a nossa reflexão – a aplicação dos nossos conhecimentos teóricos – seja realmente um momento que leve em conta radicalmente o ser humano envolvido, dando-nos maiores garantias de acertarmos na ação. Uma reflexão, por mais competente que seja em termos de conhecimento da legislação e de sua formalidade processual, pode levar a tremendos limites, se não estiver ancorada neste mergulho experiencial no contexto. (Inacianamente pensando devemos saber cultivar boa dose de indiferença frente a nossas seguranças técnicas calculadas e focar toda energia e atenção à causa humana envolvida). (Atualização em 13/04/2019)

Por um momento o meu pensamento retornou à reflexão bíblica apontada inicialmente: O que é ser rico? É ser indiferente frente à sorte dos outros. Deus não é indiferente para com os seres humanos. Para não corrermos o risco da indiferença para com os seres humanos, em nosso “que fazer” profissional é necessário que a formação para esta profissão nos proporcione condições de enxergar para além dos estreitos limites disciplinares. A transdisciplinaridade é uma chave importante para tal.

Uma formação demasiadamente “positivística” pode gerar profissionais “desalmados” ou indiferentes frente à realidade humana. Santo Inácio nos fala de outra forma de indiferença. A indiferença inaciana é proposta na perspectiva da indiferença com relação às próprias comodidades e seguranças pessoais, sempre com a atenção focada no bem maior da humanidade e dos outros. (A transdisciplinaridade tem parentesco íntimo com a “indiferença inaciana” na medida em que nos ajuda a ser de certa forma indiferentes frente à “segurança” de nossas conclusões técnicas). (Atualização 13/04/2019)

Transversalidade com foco

Para os nossos ouvidos, a imagem do “transitar” ou da transversalidade sempre soa como uma imagem rica e carregada de sentido. Aliás, dentro das Ciências Humanas – eu sou da Sociologia – se quisermos efetivamente ser cientistas, precisamos transitar constantemente entre as muitas pequenas “igrejinhas” ou perspectivas teóricas ou subdisciplinas que vão se afirmando dentro da própria disciplina. Pessoalmente, aprendi a trabalhar sociologicamente sendo fiel a três perspectivas diferentes, sem desautorizar as suas lógicas e ditames próprios, mas transitando constantemente de uma a outra. Me refiro à sociologia francesa, em cujo poço bebi mais, a partir dos meus mestres na Bélgica, onde são destacadas três grandes perspectivas teóricas que, a rigor, se complementam e repelem, mutuamente. Assumi o desafio de, sem desrespeitar o locus epistemológico de cada uma, fazer o meu estudo doutoral, transitando livremente por dentro das três perspectivas. Confesso que foi uma experiência intelectual bem reconfortante e de muitos frutos. É importante saber transitar entre as diferentes disciplinas, mas devemos, sobretudo, saber, também, transitar entre os diferentes posicionamentos teóricos.

Além disso devemos, ainda, ter presente as vivências do nosso cotidiano e do cotidiano alheio. Um dia, ao falar do sujeito intelectual ou das pessoas intelectuais – e poderíamos considerar os/as profissionais do Direito – fiz um exercício bem rasteiro, tentando chamar a atenção sobre as diferentes condições pessoais, no seu dia-a-dia. Eu dizia que é preciso dar-nos conta que essas pessoas são sujeitos concretos, de carne, osso, nervos etc., homens ou mulheres que pensam, sentem, se animam, desanimam, se entusiasmam, deixam-se tomar pelo cansaço e aborrecimento, amam, odeiam, estão “de bem com a vida”, se sobrecarregam de preocupações e problemas, vivem “correndo atrás da máquina”, “botam os pés pelas mãos”, revelam sabedoria, manifestam paz e tranquilidade, avaliam, calculam, são “ignorantes”, são conhecedoras, são volúveis, são corretas e honestas, são desonestas, estão financeiramente bem arrumadas, vivem buscando o seu ganha-pão, fazem negócios, têm coragem, são sonhadoras, desesperam-se, têm medo, são de descendência europeia, são afrodescendentes, descendem de povos indígenas ou de orientais, são solidárias, não são solidárias, são religiosas e crentes, são ateias, bebem do agnosticismo, são “hetero”, “homo” ou “trans”, são casadas, não são casadas, não são nem uma ou nem outra coisa. A pessoa intelectual – ou, então, profissional do Direito – pode ser tudo isso. Existem intelectuais – ou profissionais do Direito – em todos os “estados” de vida possíveis. É necessário que estejamos muito atentos às situações e dinâmicas pessoais dos intelectuais – ou profissionais do Direito. Estar atento significa saber transitar por dentro das diferentes situações, vivências e “humores”. É necessário que cada pessoa saiba estar muito atenta aos “humores”, circunstâncias e vivências do cotidiano. Isto vale tanto em relação a si próprio, como em relação aos demais.

Não adianta, no entanto, sermos perfeitos técnicos multi e interdisciplinares, perfeitos “malabaristas do trânsito” entre as disciplinas e posicionamentos teóricos ou, mesmo, “bons farejadores do cotidiano”. Se isto não estiver acompanhado e embebido numa postura ética, que tem a sua centralidade na pessoa humana, facilmente podemos ser reduzidos à máquina da indiferença e ao formalismo. Corremos o risco de não superar o mero nível de uma enganosa cordialidade ou afabilidade, que pode continuar sendo portadora de indiferenças cruéis… A transdisciplinaridade aponta, também, para a importância da atenção aos valores orientadores da existência humana e consagrados no convívio social. Os profissionais do Direito precisam ser transdisciplinares, tanto no sentido de terem uma postura de livre transitar sobre os limites disciplinares, os limites dos posicionamentos teóricos e os limites dos movimentos do cotidiano, como no sentido de estarem imbuídos de valores éticos que transcendem estas diferentes lógicas. Ou seja, no sentido de terem uma visão integral da pessoa humana. Aliás, é nisto reside que a grande diferença entre a formação de profissionais de verdade e a formação de meros técnicos da profissão. Estes últimos, podendo ser, talvez, muito competentes, mas humanamente vazios, “desalmados”, como referi acima.

A imagem do poço, como uma ilustração útil

Em diversas das minhas falas, lembrei a imagem do poço. Ubiratan D’Ambrosio, Matemático e Educador, em suas reflexões sobre a transdisciplinaridade traz, muito repetidamente, essa imagem: a imagem do poço e do horizonte que se estreita para quem desce para o fundo do mesmo. Para esse autor,

“assim, como ao descer num poço a percepção do terreno ao redor vai se tornando mais e mais difícil, o conhecimento especializado pode conduzir a uma falta de percepção do contexto em que tal conhecimento foi produzido”. (D’Ambrosio: 2001, p.76)

Na profundidade do “poço” certamente é usufruída enorme riqueza centrada especialmente em determinado ponto específico da realidade complexa. O aprofundamento e detalhamento levam a caminhos infindos e apaixonantes, mas se esta paixão não estiver partilhada e referida a um horizonte mais amplo de construção de soluções para a humanidade e para a sobrevivência de todo o ecossistema do qual fazemos parte, sofre sério risco de esterilidade humana e científica.

No estreitamento dos horizontes, ao descer no “poço”, o que tende a desaparecer mais rapidamente é o ser humano, é a vida que acontece no entorno. Corre-se o risco de estar na contramão do imperativo da centralidade do ser humano. É necessário que ao descer no “poço” – as descidas no “poço” são fundamentais e necessárias -, quem desce esteja imunizado contra o risco da esterilidade humana e científica…

Hoje em dia torna-se sempre mais visível e gritante o aumento de situações e constatações de que o “ser humano está-se desumanizando em sua prática de ser humano”. Esta desumanização tem a ver com a perda de conhecimento de si mesmo e, consequentemente, de suas responsabilidades cidadãs.

A imagem do zoológico…

Já fazem quase quinze anos em que me deparei com um livro organizado pelo Instituto de Resultados em Gestão Social, de Belo Horizonte, no qual colhi uma alegoria muito expressiva, falando do degradante desastre da falta de identidade humana. São analogias bastante rasteiras. Elas são, no entanto, muito do meu gosto e são muito expressivas. Diz o texto:

(…) o Homem costuma partir para a engenharia do viver como um Animal que parece só ter uma certeza: a negação do Homem como animal Homem. Então, com indesejável frequência, ele se alimenta como uma hiena, marca seu espaço como um leão, tenta se proteger como um cágado, repete outros como papagaio, é traiçoeiro como escorpião, esconde-se da realidade como avestruz, ameaça como cascavel, aproveita-se da fraqueza de outros como abutre e acaba passando a vida como um pato que na Água não consegue nadar como peixe, no ar não consegue voar como pássaro e no solo não consegue correr nem como galinha”. (Romano Filho; Santini; Ferreira: 2002, p.25)

Necessitamos de homens e mulheres que saibam sentir-se maiores do que os limites que os cercam e que tenham a coragem de recusar-se a aceitar a realidade na qual estão mergulhados, simplesmente como dada e imutável. Eu falava acima de limites disciplinares, limites de posicionamentos teóricos e limites dos movimentos do cotidiano.

A rigor, quem for atento à pessoa humana, à dignidade da pessoa humana, quem for radicalmente voltado ao valor da vida humana, sempre irá para além das compreensões disciplinares, dos posicionamentos teóricos e dos rumores do cotidiano. Ele não se reduzirá a ser mais ou menos transgressor disciplinar, a ser mais ou menos habilidoso em transitar entre as diferentes disciplinas e posicionamentos teóricos, a ser mais ou menos malabarista do cotidiano. A sua transdisciplinaridade, própria do ser um profissional de verdade, sempre o levará a transcender as suas aptidões e malabarismos, para buscar uma ancoragem firme em valores éticos de respeito à dignidade humana e o sincero empenho em construir sociedade onde todos e todas possam viver com dignidade. Tenho a certeza de que no entender da maioria dos que leem o presente texto, é nisto que reside o ser profissional de verdade.

A importância de ultrapassar-se

Dom Helder Câmara um dia, inquieto, exclamou “Ah! Se a sede de ultrapassagem – comum a todos os volantes – levasse os volantes e passageiros a aprenderem a ultrapassar-se”! É uma imagem muito expressiva no contexto de nossa reflexão. A imagem da ultrapassagem, no sentido de manifestação de Dom Helder não tem nenhuma conotação de convite à irresponsabilidade no trânsito. Independente da mensagem expressa na frase de Dom Helder, a analogia do trânsito é infeliz e muito limitada. Ela nos coloca, no entanto, com vigor, na luta contra a irresponsabilidade da acomodação no medo.

Concentremo-nos em nossa reflexão. Se ultrapassar a outros pode ter o conteúdo simbólico de superar medos, quanto maior deve ser o medo e a necessidade de superá-lo, quando nos propomos a ultrapassar a nós mesmos!? A mesma coragem na incerteza que muitos motoristas irresponsáveis demonstram e que muitas vezes resulta em desastrosas desumanidades, deveria poder ser percebida na ruptura com a acomodação humana irresponsável em nossas zonas de conforto, ultrapassando-nos a nós mesmos, com a busca responsável do maior bem. Ultrapassar a nós mesmos significa ultrapassar as zonas de conforto de disciplinas, de posicionamentos teóricos dogmatizados e, inclusive, de vícios e rotinas do cotidiano acomodado.

Para sair da analogia do trânsito, trago aqui o exemplo de um autor conhecido. Carlos Rodrigues Brandão (2005), em livro publicado há mais de dez anos, no qual retrata a história de Paulo Freire – (História do menino que lia o mundo) -, destaca que este menino que lia o mundo, aprendeu a perder o medo, porque começou a entender as coisas e o mundo. Nós só temos medo frente ao que não entendemos. Aplicando para o nosso momento, a nossa reflexão, podemos dizer que nós estamos presos e acomodados facilmente em nossas seguranças e pensar em deixá-las para trás, pensar em ultrapassar-nos nos faz medo, porque não conhecemos ou entendemos/dominamos o que vem pela frente, o incerto.

É necessário saber colocar no background de nossas análises científicas disciplinadas, mesmo que elas sejam, como muitas vezes são, de alta qualidade e habilidade, o imperativo: “Isto não é tudo”! Estes caminhos não são suficientes! Outras percepções importantes, que transcendem a percepção disciplinar, que transcendem os posicionamentos teóricos e os “trilhos” do cotidiano acomodado, são possíveis e necessárias.

É necessário que o imperativo da busca por ultrapassar-nos constantemente para não nos tornarmos ultrapassados, impere em nossa prática profissional do dia a dia. A Academia facilmente corre o risco de ser ultrapassada quando tende a voltar-se sobre os seus disciplinamentos e regramentos internos de seu mundo correndo à parte do contexto no qual ela se insere e/ou correndo ao lado e à revelia dos grandes debates e embates da humanidade. Às vezes a Academia corre o risco de continuar a construir “torres de marfim”, aparentemente inacessíveis, inexpugnáveis, mas, sobretudo, inúteis.

Nos dias de hoje, a Academia felizmente está, de mais a mais, despertando, mas é preciso que este processo se acelere. Acredito que um caminho acelerador é a aposta na transdisciplinaridade. Chego a dizer que nela reside o futuro da Academia, ou, que é a “tábua de salvação” da Academia.

Mas, o que é transdisciplinaridade?

É necessário fazer uma pequena nota sobre o próprio conceito de transdisciplinaridade… Para o meu conforto, ou, talvez, a minha comodidade, acostumei-me a falar em quatro “movimentos” metodológicos complementares, de um mesmo “que fazer” científico, explicitando a transdisciplinaridade como um desses “movimentos”.

O mundo acadêmico é o mundo das disciplinas. É também, muitas vezes, um mundo que sucumbe a certas arrogâncias disciplinares… Segundo Ubiratan D´Ambrósio (2003), “faz-se necessário o rompimento da arrogância da certeza disciplinar”. Para este educador, a disciplina traz consigo um critério de certeza arrogante, não deixando espaço para um entendimento que transcenda o aparente. As certezas disciplinares são reconduzidas à aproximação da verdade na medida em que se instauram processos multi ou pluridisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. A rigor, está-se falando, aqui, de diferentes “movimentos” metodológicos complementares de um mesmo “que fazer” científico. O último desses “movimentos”, a transdisciplinaridade, não significa um momento ou etapa de superação ou desconsideração da contribuição específica dos outros “movimentos” das disciplinas, seja em suas produções isoladas, seja na forma multi ou pluridisciplinar de produção do conhecimento, somando, justapondo ou criando interfaces complementares entre disciplinas, ou, ainda, na forma interdisciplinar, de efetivo diálogo e intercâmbio conceptual e metodológico entre as mesmas. A transdisciplinaridade reflete em si todos esses “movimentos” metodológicos, acrescendo-lhes uma abertura madura para a integração de saberes diferentes, sejam eles saberes de disciplina ou combinação de disciplinas ou, ainda, saberes de outras ordens, que transcendem as disciplinas, atuando como “interrogantes externos”. (Follmann; Lobo: 2003, p.10.)

Para Basarab Nicolescu, no qual me apoio mais diretamente,

“transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica (…) diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina”.(Nicolescu: 2000, p.15 )

No sentido transdisciplinar, a produção de conhecimento e todo processo de educação e de formação profissional, supõem a integração dos saberes e supõem, também, a abertura e o não-fechamento dos saberes, no sentido de se alimentarem mutuamente e, sobretudo, de se deixarem transcender/ultrapassar na permanente busca do melhor bem para o ser humano e o seu contexto. A transdisciplinaridade nasceu com essa vocação, ou seja: por meio dela se busca a integração dos saberes, onde os saberes de fora da Academia, encontrados nas percepções do cotidiano, nas percepções artísticas, e outras sensibilidades ou mesmo nas crenças religiosas e tradições sapienciais da humanidade e nos imperativos éticos consagrados no convívio social, funcionam como interrogantes externos dentro do processo de produção do conhecimento e do processo de educação e formação profissional.

Palavras finais: rebuscando arquivos do século XVI

São Francisco Xavier, como missionário atuante no Extremo Oriente, em um dos contatos escritos, através de carta, manifestava uma grande ansiedade com relação ao comodismo egoísta e ao resultado pífio das Universidades Europeias, frente às grandes necessidades da humanidade. Ele escrevia que tinha vontade de retornar à Europa e, “se fazendo de louco”, andar pelos corredores dessas Universidades e denunciar, aos gritos, a “acomodação e indiferença” delas e dos seus estudantes, com relação ao que a humanidade efetivamente mais estava necessitando. Esse santo, nos limites de sua compreensão, dentro de seu ardor missionário, se referia, evidentemente, à necessidade da evangelização e do anúncio dos valores cristãos para toda a humanidade.

Sem repetir a mesma visão de mundo desse jesuíta heroico do século XVI, hoje, são muitas as vozes que se levantam e que gostariam de “se fazer de louco” para sacudir as Universidades de seu torpor e sua acomodação nas mesmices de uma Academia insensível e indiferente frente aos destinos da humanidade e dos problemas concretos existentes no cotidiano das pessoas e da sociedade.

Talvez devamos dizer que não se trata, tanto, de insensibilidade e indiferença frente aos problemas humanos, mas da própria incapacidade de perceber e reconhecer as potencialidades da Universidade e os múltiplos valores que nela estão escondidos e são mal aproveitados.

Referências bibliográficas:

BRANDÃO, C.R. Paulo Freire, o menino que lia o mundo: uma história de pessoas, de letras e de palavras. SP.: UNESP, 2005.
D’AMBROSIO, U. Transdisciplinaridade. S. Paulo: Palas Athena, 2001.
FOLLMANN, J. I.; LOBO, I. M. (orgs). Transdisciplinaridade e Universidade: uma proposta em construção. São Leopoldo: Edunisinos, 2003.
NICOLESCU, B. Educação e transdisciplinaridade. Brasília: Ed. Unesco Brasil, 2000.
ROMANO FILHO, D.; SARTINI, P.; FERREIRA, M. M. (orgs.). Gente cuidando das Águas. Belo Horizonte: Instituto de Resultados em Gestão Social / Mazza Edições 2002.
WEIL, P.; D’AMBROSIO, U.; CREMA, R. Rumo à nova transdisciplinaridade; sistemas abertos de conhecimento. São Paulo: Ed.Summus, 1993.

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