POR ONDE CAMINHAM AS RELIGIÕES E RELIGIOSIDADES, HOJE: NOTAS PARA UMA REFLEXÃO SOBRE A “SECULARIZAÇÃO ENCANTADA”.

Publicado em forma de capítulo do livro “O Luteranismo no Contexto Religioso Brasileiro”, em 2007

Importante recorte provocando o conceito de “secularização encantada”

Conferência proferida na abertura do
V Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana,
Escola Superior de Teologia – EST, São Leopoldo, RS, 17-18 de abril, 2007.

Publicado, como primeiro capítulo no livro organizado por Wilhelm WACHHOLZ. O Luteranismo no contexto religioso brasileiro. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2007, pp.9-26. (A presente publicação não reproduz as notas de pé de página).

José Ivo Follmann sj

Não é minha intenção dar conta da complexidade incomensurável da esfera religiosa tal como ela se expressa hoje, muito menos poderia atrever-me a esboçar os caminhos da identidade evangélico-luterana, dentro dessa complexidade, como seria de se esperar no contexto de um Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana. Proponho, de forma singela, sem pretensão, retomar a pergunta sobre a questão da secularização, mediante recurso a algumas aproximações, que estão em pauta, com maior ou menor visibilidade, no que diz respeito ao mundo das religiões e religiosidades, hoje. Trata-se de apontamentos que querem contribuir, por um viés próprio, no traçado do pano de fundo do tema central do Simpósio.

1) As Ciências da Religião e a “secularização encantada”

O Prêmio Nobel da Química de 1977, Ilya Prigogine, em uma de suas obras de maior repercussão, elaborada em co-autoria com Isabelle Stengers, “A Nova Aliança” (1984) apela para um “reencantamento do mundo”, numa espécie de resposta, – ou, talvez, retorno em outro plano, – às reflexões de Max Weber, sobre o processo que o fez cunhar, em outra época, a célebre expressão: “desencantamento do mundo”
.
Não se trata, evidentemente, de um desejo de mistificação e, muito menos, de uma busca do retorno da magia. Não se trata de um retorno ao animismo. Segundo os autores, a “antiga aliança” animista está morta e bem morta. O apelo assume posição pela derrubada das fronteiras artificiais existentes no processo de conhecimento humano, na busca de uma reaproximação do ser humano com a natureza, pois o nosso mundo também não é o da “aliança moderna”… Hoje presenciamos uma “nova aliança”. “Chegou o tempo de novas alianças, desde sempre firmadas, durante muito tempo ignoradas, entre a história dos homens, de suas sociedades, de seus saberes, e a aventura exploradora da natureza”. (Prigogine, I; Stengers, I., 1984, p.226)

A ciência moderna, de certa forma, se constituiu contra a natureza, pois negava-lhe a complexidade, pretendendo reduzi-la a leis acessíveis. (Prigogine, I; Stengers, I., 1984, p.4-5) A ciência não é só manipulação da natureza, mas é também e, sobretudo, esforço para compreendê-la. (p.203) “A natureza recusa exprimir-se na linguagem que as regras paradigmáticas supõem, e a crise (…) explode com tanto mais força, quanto era cega a confiança”. (p.221)

O relatório da Comissão Gulbenkian para a Reestruturação das Ciências Sociais, em 1996, comenta: “Se isto põe um problema grande aos estudiosos das ciências naturais, ainda maior é aquele que coloca aos cientistas sociais. Transpor o reencantamento do mundo para uma prática razoável e eficaz não será fácil. Mas parece-nos ser uma tarefa urgente para os cientistas sociais.” (Wallerstein e outros, 1996, p.110)

É, sobretudo, tarefa urgente e não menos complicada para quem se dedica ao estudo das religiões. A referência ao “reencantamento do mundo”, no âmbito do debate sobre as Ciências, em geral, e as Ciências Sociais em particular, quer ser o horizonte principal no qual pretendo me mover ao longo deste texto.

O campo científico, ao longo de seu processo histórico, no afã de afirmação da idéia de objetividade, muitas vezes confundida com “neutralidade”, acabou sendo um dos principais protagonistas do “desencantamento do mundo”. Isto, sobretudo, em se tratando da busca de uma “neutralidade” impossível. Cabe ao mesmo campo científico ajudar na tarefa do “reencantamento”, ou da re-humanização do mundo. Prigogine e Stengers (1984, p. 13) falam em um isolamento clerical da comunidade científica. Trata-se de uma analogia certeira! As teologias e as racionalidades institucionais religiosas não estão isentas do desencantamento provocado pela racionalidade científico-tecnológica, pois elas também tiveram e continuam tendo efeitos perversos com relação ao sentimento do crente e à vivência religiosa, esvaziando-a ou canalizando-a por desvios às vezes desérticos e sufocantes.

Otávio G. Velho em entrevista para o IHU OnLine (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p.11-12) ao se referir à relação religião e ciências sociais, fala em uma nova percepção das “esferas da vida social” e a sua importante inter-relação. Infelizmente ainda nos deparamos com cientistas imaturos, construindo mundos exclusivos, cheios de falsos moralismos e – poderíamos dizer – até arrogantemente imbecis, tentando eliminar realidades sociais ou aspectos das realidades sociais, por “decreto”, para não perderem os seus pequenos domínios e poderes. Segundo este antropólogo, na mesma entrevista, ainda existe muito preconceito. Ele conclui: É urgente que se parta para uma atitude de maior modéstia e humildade.

No mesmo conjunto de entrevistas do IHU On Line, a antropóloga Regina Novaes nos lembra que vivemos tempos de “ventos secularizantes” mas, ao mesmo tempo, devemos estar atentos ao “espírito do tempo” (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p. 16).

Segundo esta antropóloga, dá-se, de fato, “um tipo de secularização quando diminui o peso das autoridades religiosas tradicionais e a obrigação de um jovem seguir a religião dos pais”. No entanto, “partilhando das possibilidades culturais desta época, os jovens desta geração estão sendo chamados a fazer suas escolhas em um campo religioso mais plural e competitivo”. O “espírito do tempo” de que fala Regina Novaes, tem a ver com a idéia de multiculturalismo, de reconhecimento do diferente, de des-monopolização da cultura e da religião.

Os “ventos secularizantes” misturados com o “espírito do tempo” nos colocam no centro da questão de nossa presente reflexão… Pode-se, talvez, dizer que vivemos em tempos de “secularização encantada” ou “secularização crente”. Isto faz parte do que Danièle Hervieu-Léger, em publicação conjunta com Françoise Champion, aponta como “o processo de reorganização permanente do trabalho da religião numa sociedade estruturalmente impotente para satisfazer as expectativas que lhe são necessárias suscitar para existir enquanto tal”. (1986, p.227). A secularização não pode ser tomada como sinônimo de desencantamento ou de perda da alma humana. Estamos falando de uma secularização não secularista, uma secularização que ajuda a restabelecer a verdadeira alma roubada (ou usurpada), pelos racionalismos e racionalidades e também, sobretudo, por poderios sagrados, que construíram uma superestrutura desconectada com a realidade interferindo na condução da vida humana, da organização social e da natureza, com regramentos ditados por interesses institucionais.

Secularização é um processo que conduz, essencialmente, à afirmação da autonomia das realidades terrestres. Após tempos de distorções e ressecamentos, como efeito perverso da modernidade, de mais a mais, desperta a consciência de que essas realidades são complexas e cheias de encanto e de dimensão do eterno. Existe um novo encontro com o religioso, mediado pela liberdade de opção e não determinação institucional. Às vezes as religiões, no afã de colocar-se a serviço dessa dimensão de encanto e do eterno, nas realidades terrestres, se apropriaram e apropriam de tal modo dessa dimensão, que a sufocam, ressecam ou atrofiam.

Associo-me àqueles que, hoje, estão na busca por acertar melhor o foco da competência das Ciências da Religião. Este foco está, sobretudo, na questão da crença, enquanto tal. Uma das contribuições de maior relevância e pertinência para a sociologia das religiões em geral, mas, sobretudo, para a sociologia das religiões no Brasil, apesar de ainda pouco assimilada neste meio, é a “teoria da modernidade religiosa” de Danièle Hervieu-Léger, cujas bases foram lançadas já em 1986, na obra já citada, escrita com a colaboração de Françoise Champion, “Vers un Nouveau Christianisme”. É contribuição, sobretudo, pertinente para a sociologia das religiões no Brasil, pois traz chave importante para dirimir o impasse entre os afirmadores do retorno do sagrado e os afirmadores da secularização secularista. Na mesma obra está sinalizada, também, a importância e urgência de uma “sociologia do crer”, o que, sem dúvida, é uma novidade promissora para a sociologia das religiões.

Carlos Eduardo Sell e Franz Josef Brüseke, em recente obra publicada (2006), apontam exatamente para isto. Estes dois autores, retomando a contribuição da socióloga francesa, lembram que “o que caracteriza a nossa época não é tanto a indiferença religiosa ou a descrença; mas, acima de tudo, o fato de que as crenças religiosas escapam ao controle das grandes igrejas e das instituições religiosas”. (p.189-190).

A “secularização encantada” ou “secularização crente” pode ser, em grande parte, compreendida dentro do contexto daquilo que Danièle Hervieu-Léger (com Françoise Champion) denomina de “modernidade psicológica” (1986, p.201). Trata-se de uma busca do homem em pensar-se por si mesmo e diz respeito a um processo de individualização e de subjetivização da vida religiosa. Deve ser destacado que se trata de um individualismo religioso que está absorvido no chamado individualismo moderno. Faz parte do individualismo moderno!

2) A esfera religiosa no Brasil: refletindo a partir de dados estatísticos

O Brasil, historicamente, foi e continua sendo um país cristão ou, mais especificamente, católico. A identidade evangélico-luterana no Brasil é uma identidade, portanto, dentro de um contexto católico. Assim como em outros países, hoje, no entanto, vem-se perdendo, no Brasil, a referência religiosa unívoca no processo de construção da identidade. Em alguns contextos brasileiros, dizer que o Brasil é um país católico, já não soa mais tão evidente como soava em outros tempos.

Em um texto que publiquei recentemente (Follmann, J.I., 2006) reproduzi diversas tabelas estatísticas mostrando recortes específicos referentes à esfera religiosa em números, a partir do último Censo realizado pela Fundação IBGE (2001). Nessa publicação, em um dos quadros, comparei, por exemplo, as Unidades da Federação, classificando-as segundo tendências mais acentuadas pelo percentual apresentado em cada um dos três “grupos” religiosos mais numerosos: os católicos, os evangélicos e os “sem religião”. A comparação levou a apontar, de certa forma, para o horizonte de cenários religiosos diferentes. Usei o artifício de destacar os Estados que apresentam uma média percentual superior à média nacional de presença populacional em cada um destes “grupos” e apontando os cinco Estados com percentual mais elevado, obteve-se o seguinte resultado: um primeiro cenário tendendo para a manutenção do “Brasil católico”, onde o carro chefe é constituído dos Estados do Piauí, Ceará, Paraíba, Maranhão e Alagoas; um segundo cenário tendendo gradativamente para um “Brasil evangélico”, onde o principal contexto puxador está nos Estados de Rondônia, Espírito Santo, Roraima, Rio de Janeiro e Goiás; e, um terceiro cenário tendendo gradativamente para um “Brasil sem religião”, onde os Estados de Rio de Janeiro, Rondônia, Pernambuco, Bahia e Espírito Santo são os maiores impulsionadores. Ou seja, existe uma importante sinalização para um Brasil com três horizontes religiosos claramente diferenciados manifestos nas tendências estatísticas. Talvez pudéssemos falar, ainda, de outros cenários como o de um “Brasil espírita”, de um “Brasil de religião de matriz africana” e de um “Brasil umbandista”, mas as estatísticas que o IBGE nos proporciona, pouco contribuem para isto.

Se olharmos, agora, especificamente, para o Estado do Rio Grande do Sul, veremos que esta distribuição não é tão evidente. Apesar de sempre pensarmos este Estado mais como evangélico, devido, sobretudo, à forte presença histórica da identidade evangélico-luterana, ele continua, pelas estatísticas, mais próximo do “Brasil católico”.

Fica patente que o Estado do Rio Grande do Sul permanece um estado eminentemente cristão, pois 90% dos gaúchos se dizem cristãos (a maioria deles sendo católicos). Mas será que esta é, de fato, a realidade do mundo das religiões tal como se apresenta no RS hoje? As estatísticas nos mostram que o percentual de católicos no RS está acima do percentual nacional e que o percentual evangélico está abaixo do percentual nacional. Sem falar dos sem-religião, cujo percentual está, nesse Estado, muito abaixo do percentual nacional. Esse quadro, no entanto, tende aceleradamente a mudar, não, certamente, pela via evangélico-luterana, mas pela via evangélico-pentecostal. Como devemos ler os dados do mundo das religiões, dentro do contexto em que vivemos?

Na mesma publicação aqui referida (Follmann, J.I., 2006), foram apresentados resultados estatísticos de uma recente pesquisa que realizamos, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Chamam a atenção dados colhidos em seis municípios já pesquisados (Cachoeirinha, Canoas, Esteio, São Leopoldo, Novo Hamburgo e Sapucaia do Sul), que totalizam uma população de 1.050.347 habitantes, onde as pessoas, que freqüentam semanalmente algum culto ou celebração religiosa, somam um número aproximado de 291.336, ou seja: 28% da população.

O fato de uma adesão religiosa mais forte, de freqüência semanal, estar visível em 1/4 da população nos seis municípios em questão, sugerindo um índice relativamente grande de manifestação pública freqüente de fé, pode ser lido, também, pelo inverso, mostrando que quase 3/4 da população tendem a uma religiosidade mais frágil em termos institucionais.

A existência de 3/4 da população que revela não freqüentar, regularmente, alguma religião, sinaliza que estamos numa sociedade onde a adesão religiosa institucional é majoritariamente muito frágil. Este fato, de 3/4 da população não apresentar uma freqüência religiosa pública assídua deve ser anotado e merece a nossa atenção. Deve-se observar, ainda, que mais da metade dos que se manifestam como freqüentadores cristãos semanais, são de recorte pentecostal ou neo-pentecostal.

O que chama a atenção, também, na mesma pesquisa, é a grande multiplicação de locais de culto e templos nas últimas décadas e grande concentração dos mesmos nas categorias das religiões de matriz africana e de umbanda, por um lado, e do pentecostalismo e neo-pentecostalismo, por outro. De um total de 1327 locais de culto e templos cadastrados, 442 são de religiões de matriz africana ou umbandista e 435 são pentecostais ou neo-pentecostais. É reconhecido que é exatamente nestes dois conjuntos ou “grupos” religiosos que se dá uma maior proximidade e valorização dos sujeitos crentes em suas necessidades imediatas.

Vivemos no Brasil, como em outros países, contextos da aceleração das desigualdades, retratados na crescente opulência de uma minoria privilegiada, por um lado, e numa crescente privação e insuficiência de atendimentos da maioria, por outro lado. Trata-se de um terreno tremendamente propício à multiplicação de buscas de soluções ou, então, à adesão desesperada a fórmulas individuais ou coletivas de fuga e absenteísmos ou de violência e agressividades.

O Brasil tem uma vocação histórica à diversidade e ao convívio com o diferente. Esta vocação desemboca, hoje, num terreno cultural amplamente propício e ajuda a acelerar, de modo particular, a multiplicação e diversificação religiosa.

A multiplicidade de ofertas religiosas e a liberdade de escolha manifesta um processo de modernização, liberalização e democratização. É o que nos refere Marcelo Camurça em entrevista já mencionada (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p.14). Para este sociólogo, estamos assistindo ao crescimento de um individualismo subjetivista. Dentro da lógica de discussão deste nosso texto, podemos falar na secularização que se dá pela via da secularização encantada ou secularização crente, na medida em que existe, apesar do grande risco de um individualismo subjetivista cego, uma libertação em relação aos poderes institucionais tradicionais e a busca autônoma do sentido profundo do existir humano e da afirmação da crença.

Voltemos, mais uma vez, a nossa atenção para os três cenários tendenciais construídos, acima, a partir das estatísticas religiosas no Brasil. É notável a coincidência de alguns estados, sobretudo, entre os “cinco mais” do cenário evangélico e os “cinco mais” do cenário sem religião: Rio de Janeiro, Rondônia e Espírito Santo. Este fato vem ao encontro da hipótese de certa proximidade, em determinadas circunstâncias, entre fatores que desencadeiam a busca da solução neopentecostal – a forma religiosa do cenário evangélico de maior expansão – e a identificação como sem religião (traduzível, em muitos casos, como religiosidade de “arranjo pessoal”)… Ambas são soluções individuais, sem implicar em compromisso de comunidade. São, a rigor, neste sentido, soluções secularizantes.

Danièle Hervieu-Léger nos reporta às categorias do “peregrino” e do “convertido”, duas categorias importantes integrando o público de freqüência religiosa pública, pouco assídua ou nula. (Hervieu-Léger, D., 1999). O “peregrino”, por um lado, é o religioso em movimento e fluidez nos conteúdos de crença, construídos e desconstruídos permanentemente, batendo nas mais diversas portas, lembrando de certa forma o fenômeno, que outros, como Marcelo Camurça (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p.14), denominam de “dupla pertença religiosa”. O “convertido”, por outro lado, é o religioso em movimento, fruto de uma escolha individual, calcada em alto grau de autonomia do sujeito crente.

Retomando o comentário acima sobre as freqüências religiosas semanais nos seis municípios, por nós pesquisados, em que referíamos que mais da metade dos freqüentadores semanais cristãos são de recorte pentecostal e neo-pentecostal, é importante que sinalizemos que em quatro dos municípios, quase a metade do total de freqüentadores semanais é do “grupo” pentecostal ou neo-pentecostal.

Já não podemos mais, obviamente, falar que a identidade evangélico-luterana como a das demais Igrejas Cristãs, se constrói em um contexto de referência externa eminentemente católica. Essas identidades devem ser vistas em contraposição ou em relação as crescentes soluções de “arranjo pessoal”, por dentro e por fora da pregação com apelos baseados no Evangelho de Jesus Cristo.

Hoje, em torno de 15% da população mundial, se diz “sem religião”. No Brasil, apesar de ainda estar muito aquém do índice mundial, o mesmo índice também cresceu muito na última década. No Estado do Rio de Janeiro dá-se, neste quesito particular, uma aproximação com a média mundial. Se, no entanto, considerarmos que muitos, dos que se dizem “sem religião”, vivem de fato revestidos de religiosidades privadas de caráter pessoal e que existe certa aproximação entre estas religiosidades de “arranjo pessoal” e o fenômeno neopentecostal, que explode na esteira de algumas lideranças carismáticas ou agentes bem treinados, devemos dizer que, certamente, o número dos brasileiros “sem religião”, ou seja, sem vínculo e compromisso com uma instituição religiosa, é muito mais elevado do que os números que as pobres estatísticas nos podem fazer imaginar. São brasileiros que, na prática, se secularizaram, ou seja, se des-institucionalizaram religiosamente, vivendo um claro processo de secularização, mas trata-se de uma secularização crente ou encantada.

Podemos falar numa clara des-institucionalização religiosa no Brasil. Esta se dá, sobretudo, pela via da des-catolização, de forma particular, no contexto dos Estados aqui mostrados como “cenário evangélico” e “cenário sem-religião”… Trata-se de um evidente desmantelamento do monopólio religioso. A des-catolização, isto é, o fato de podermos visualizar outros “Brasis” com coloração religiosa diversa, no caso brasileiro, como em outros lugares, mostra que estamos em um caminho de secularização. Mas não se trata só de des-monopolização… Podemos falar, também, em des-luteranização, em des-episcopalização, em des-presbiteranização, em des-metodização, uma vez que o cenário do “Brasil evangélico” é crescentemente um cenário pentecostal e neopentecostal. Trata-se da substituição de soluções de compromisso comunitário, por soluções individualizadas.

3) A Mídia e a imagética como mediação da secularização.

As estatísticas referidas não dão conta de fenômenos religiosos particularmente importantes e que já mereceram muita atenção em diversos estudos. Refiro-me, especificamente, à crescente presença dos evangélicos na política; ao crescente impacto da Renovação Carismática Católica; à fantástica multiplicação de novas formas coletivas de viver religião; e à crescente ampliação no uso dos meios de comunicação de massa para veicular conteúdos e práticas religiosas; além do crescente número de pessoas, que se declaram “sem-religião”, como já foi comentado.

Não podemos, evidentemente, dar conta de todos estes ricos aspectos e que apontam, de uma forma ou de outra, para interfaces com o processo de secularização. Entendemos, contudo, ser importante apontar aqui, mesmo que seja só de passagem, toda a questão envolvida com a perda de controle dos poderes religiosos sobre os bens religiosos que passam a ser de domínio público.

É um aspecto da realidade religiosa que merece particular atenção. A grande facilidade que existe, hoje, no domínio dos meios de comunicação e no poder de veicular idéias, práticas e conteúdos, faz com que se acelere o processo de “apropriação pública” das coisas sagradas. Isto está facilitado, sobretudo, pelo avanço do diferentes meios de comunicação.

Um exemplo típico é o amplo uso de referências religiosas nas tele-novelas brasileiras, sobretudo, da Rede Globo, reproduzindo ao sabor de ditames obviamente mercadológicos de conquista de públicos, tradições ou inovações religiosas do agrado dos telespectadores consumidores.

O mesmo deve ser dito da multiplicidade de páginas eletrônicas (ou sítios web) veiculando idéias, símbolos e conteúdos de crenças religiosas ou mágicas ao sabor da inspiração ou criatividade dos indivíduos.

Não precisamos, no entanto, reportar-nos aos sofiscados meios eletrônicos de comunicação e informação que estão sempre mais presentes e atuantes… Quem é que ainda não se deparou com “maços” de santinhos, ou pequenos folhetos com orações e outros objetos, em portas de templos católicos, sendo passados de mão em mão, carregando consigo uma corrente mágica de poder sagrado? Trata-se de um sagrado profano ou que fugiu do controle daqueles que sempre acharam que tinham o poder de atribuir-lhe poder sagrado, ou não.

4) Testemunhando diferentes processos identitários no esfera religiosa

Colocando-nos num outro plano de leitura e de abordagem da esfera religiosa e sempre buscando aproximações ao foco de nossa reflexão, devemos dizer que presenciamos diferentes processos identitários que tomam direções opostas e até incompatíveis.

Ao mesmo tempo em que se multiplicam as iniciativas de cultivo das identidades religiosas dentro de um processo de diálogo, existem também os levantes fundamentalistas com suas intolerâncias e intransigências, na linha do conflito, da agressividade, do combate mútuo e do anti-diálogo.

Ao lado destas duas formas mais “sólidas” (hard) de identidade religiosa, é grande, no entanto, a presença das formas mais “suaves” (soft) de identificação. Trata-se, obviamente, neste último caso, da maioria. Estas últimas sucumbem muito mais facilmente aos ditames do mercado e outras imposições culturais do momento.

O cultivo das identidades religiosas dentro de um processo de diálogo também acontece em clara contradição contra os processos competitivos e de busca de fiéis – quase a qualquer preço – que caracterizam determinadas iniciativas religiosas. Pessoalmente tendo a concordar com os autores – Antonio Flavio Pierucci e outros – que percebem, nestes mecanismos mercadológicos de competição e busca de fiéis, uma íntima relação com um processo de desmoralização da esfera religiosa enquanto tal. Se isto, por um lado, é verdade, uma cuidadosa observação de outros mecanismos visíveis na esfera religiosa, sempre mais acentuados nas últimas décadas, podem estar consubstanciando uma espécie de re-moralização desta mesma esfera na sociedade. Entre estes mecanismos deve ser destacado o amplo processo de diálogo inter-religioso desencadeado no mundo todo através das mais diversas iniciativas. Só a cultura do diálogo e o diálogo inter-religioso têm condições de fazer com que a própria secularização crente ou secularização encantada, da qual viemos falando, se faça em consonância com a dinâmica renovadora das instituições religiosas.

O diálogo proporciona sempre um ambiente propício para o conhecimento e reconhecimento dos outros, dos diferentes, sendo ao mesmo tempo importante oportunidade para o cultivo e a afirmação da própria identidade religiosa. O diálogo inter-religioso, quando bem cultivado, em todas as faixas etárias, certamente poderá livrar as nossas sociedades de muitas perigosas fobias. Triste seria se, na ausência ou fragilização de diálogo, o “mundo das religiões e religiosidades” não passasse de um melancólico cacoete ou reforço da violência e agressividade, quando não o seu estimulador.

Tratar-se-ia, neste último caso, do naufrágio do sublime no mar do embrutecimento e da violência, ou seja, no afã sacralizador fundamentalista estaria embutido o veneno acelerador do secularismo.

5) Educação, secularização e religião: em busca da construção de uma nova área de conhecimento…

Segundo Giumbelli entrevistado para IHU OnLine (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p. 18-20), a busca em relação à adequação de uma política do ensino religioso nas escolas públicas, é uma questão relevante no estudo do campo religioso, hoje, no Brasil. A colocação deste especialista, está pautada, sobretudo, na reflexão sobre os momentos que sucedem a era da totalidade na cultura brasileira (ou seja, do monopólio dentro da esfera religiosa) que não deve significar o recrudescimento das disputas na afirmação de minorias ou de minorias em busca de serem maioria.

Estamos hoje, no Brasil, muito distantes daquilo que foi este país no tempo do Padroado onde Estado e Igreja católica viviam um grande consórcio de poder sobre a mente do povo. Também não conseguiu fazer história, no Brasil, a figura do Estado laico. A contribuição da socióloga francesa mais uma vez se faz lúcida, também para a nossa realidade. Segundo Danièle Hervieu-Léger (1999), necessitamos, hoje, de uma “laicidade mediadora”. Carlos Eduardo Sell e Franz Josef Brüseke, retomando esta idéia de Hervieu-Léger, comentam que, “em vez de um Estado neutro e indiferente às religiões” necessitamos de “um Estado cooperativo, que promova, em união com as diversas famílias espirituais, a produção de referências éticas, a preservação da memória e a construção do tecido social”, enquanto que “as próprias religiões devem promover entre si o diálogo cooperativo e ecumênico”. Não cabe ao Estado negar o estatuto religioso, mas “deve começar a reconhecer a contribuição que as diferentes famílias religiosas em diálogo podem oferecer para a vida pública”. (2006: p.190-191)

A educação tem, neste sentido, um papel fundamental a exercer. A educação para a cultura do diálogo apresenta-se como uma das formas privilegiadas de regenerar as próprias religiões e religiosidades em sua contribuição moral nas sociedades e como forma de ajudar a construir a cultura plural e democrática, caminho de redenção da humanidade, nos dias de hoje. O “mundo das religiões e religiosidades” tem uma vocação histórica e, talvez, seja um dos caminhos mais fecundos, na atualidade, dentro do empenho da humanidade em prol da reconstrução de seu mundo.

O ensino religioso só terá sucesso, no entanto, se puder ser mediado por um fecundo processo de produção do conhecimento. A Área de Conhecimento RELIGIÃO é muito referida e muito propalada por quem protagoniza a discussão sobre o ensino religioso. Trata-se, todavia, de um grande desafio. Gostaria de concluir com a idéia de que, hoje, de mais a mais, é necessário que se congreguem os melhores esforços para sentarem-se numa mesma rodada de conversa e de reflexão Cientistas das mais diferentes disciplinas, nas Áreas Humanas, junto com Líderes Religiosos e pessoas crentes das mais diversas denominações e instituições religiosas, para, num fórum único, construir esta importante Área de Conhecimento no modo transdisciplinar de ser e fazer. Só assim o ensino religioso também poderá protagonizar um processo harmônico de convívio fecundo e fecundante entre as religiões e o processo de secularização encantada ou crente.

Bibliografia

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