RADICALIZAÇÕES FUNDAMENTALISTAS NA CONTRAMÃO DO PLURALISMO RELIGIOSO.

Publicado como capítulo do livro “Cartografias do Sagrado e do Profano: Religião, Espaço e Fronteira”, em 2014.

Capítulo de livro

I Simpósio Regional Sul da Associação Brasileira de História das Religiões Cartografias do sagrado e do profano: religião, espaço e fronteiras.
Associação Brasileira de História das Religiões – ABHR
Escola Superior de Teologia – EST,
São Leopoldo, RS 17 a 19 de outubro de 2013.
(Trabalho Apresentado no ST nº 2 – Religiões e Religiosidades na Atualidade: Linearidades e Rupturas)

Publicado como capítulo no livro organizado por BOBSIN; SHAPER; ROBIN. Cartografias do Sagrado e do Profano: religião, espaço e fronteira. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2014, pp. 119-129. (Esta publicação não reproduz as notas de pé de pagina).

José Ivo Follmann

Resumo: Dentro de contextos de pluralismo religioso crescente, como é o contexto brasileiro, a persistência e recrudescimento de radicalizações fundamentalistas merecem a nossa atenção. O artigo ensaia uma reflexão sociológica sobre algumas tendências de linearidades e rupturas na esfera religiosa buscando lançar interrogações sobre o fenômeno de radicalizações no contexto pluralista religioso brasileiro. Pontuando diferentes pontos de vista, que acolhem lógicas da apropriação e gestão de sua historicidade, lógicas dos campos de atividade e lógicas dos sujeitos e de seus processos de identidade, diversas hipóteses são levantadas emprestando um colorido especial à constatação geral da existência de radicalizações fundamentalistas religiosas dentro do contexto do aparente indiferentismo pluralista na sociedade brasileira contemporânea.
Palavras-chave: fundamentalismos religiosos; pluralismo religioso; sociologia das religiões.

Abstract: In contexts of growing religious pluralism, like the Brazilian context, the persistence and renewal of fundamental radicalisms deserves our attention. The article essays a sociological reflection about some tendencies in continuities and ruptures in the religious sphere for questions about radicalizations in the Brazilian pluralistic religious context. Punctuating different points of view, with attention to the logics of the appropriation and management of historicity, with attention to the logics of social fields and with attention to the logics of subjects and of identity´s processes, different hypotheses are defined, giving a special coloring to the general perception about the existence of religious fundamental radicalisms in the context of apparent pluralistic indifference in Brazilian contemporary society.
Key-words: religious fundamentalisms; religious pluralism; sociology of religions.

Palavras introdutórias…

Vou iniciar com uma referência que pode ser considerada como clássica no repertório da literatura brasileira. É recorte de um diálogo colhido da obra de João Guimarães Rosa. Trata-se de uma citação muitas vezes referida. Pode ser considerada paradigmática: “Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. (…) Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca.” (Rosa, 1980, p.15). O diálogo registra a cultura do jeitinho, do arranjo pessoal, das bricolagens espontâneas, do sincretismo, da abertura ao diálogo. Trata-se de uma cultura muitas vezes citada e gerada pela necessidade de sobrevivência da própria tradição religiosa, como foi o caso, por exemplo, das religiões de matriz africana. A alma religiosa brasileira parece ter sido forjada dentro de uma dinâmica e cultura de sincretismo e de diálogo.

Esta maneira estranha de iniciar uma reflexão sobre a temática dos fundamentalismos religiosos ou das radicalizações fundamentalistas na esfera religiosa, é proposital, pois parece reforçar a ideia de que este tema é algo que está na contramão, não só do contexto atual de pluralismo religioso, mas de traços culturais profundos na cultura brasileira.

No mundo, a temática dos fundamentalismos religiosos retomou grandes espaços nos meios de comunicação e na opinião pública, nos primeiros anos deste milênio, especificamente, a partir de diversos acontecimentos, destacando-se o atentado ao World Trade Center – WTC, Nova York, em 2001. No Brasil, talvez, longe do grande embate entre os radicalismos religiosos muçulmanos, do Médio Oriente, e a reação do Ocidente cristão, deve-se colocar em relevo outros fatores para entendermos mais profundamente a presença de radicalizações fundamentalistas, neste contexto.

Ao escolher o título do presente ensaio, apesar de centrar-me no contexto brasileiro, estou sinalizando para um enfoque mais amplo tentando lançar questões que nos façam interrogar sobre o momento atual de indiferentismo pluralista aparente e o lugar das radicalizações fundamentalistas neste contexto. Radicalizações fundamentalistas na contramão do pluralismo religioso é um ensaio de reflexão sociológica sobre algumas tendências de linearidades e rupturas na esfera religiosa. Pontuando diferentes pontos de vista, que acolhem lógicas da apropriação e gestão de sua historicidade, lógicas dos campos de atividade e lógicas dos sujeitos e de seus processos de identidade, diversas hipóteses são levantadas emprestando um colorido especial à constatação geral da existência de radicalizações fundamentalistas religiosas dentro do contexto de pluralismo ou, melhor, de indiferentismo pluralista na sociedade brasileira contemporânea. Este indiferentismo pluralista é, em grande parte, aparente e resultado de dissimulação.

O Brasil vive hoje, de algumas décadas para cá, um contexto intenso e crescente de afirmação da diversidade religiosa e do pluralismo em suas manifestações. Não cabe aqui entrar em detalhes sobre este fenômeno. Deixo-o como referência oculta (mas fortemente presente) na elaboração desta reflexão.

Entendo que a discussão da problemática das radicalizações fundamentalistas religiosas poderá ganhar novos e relevantes aportes com um esforço analítico-interpretativo a partir de uma contribuição sociológica tríplice com a qual aprendi a lidar desde o tempo em que escrevi a minha tese doutoral há vinte anos. (Follmann, 2001)

Primeiramente, o ponto de vista da produção da historicidade (Touraine, 1993; 1978) tem como referência principal a existência do conflito central dentro da sociedade, estando em questão a apropriação e gestão de sua historicidade. Este conflito central sempre estará expresso sob muitas formas, a depender das características do processo histórico vivido.

Se olharmos para o mundo ocidental hoje em sua globalidade, algumas manifestações de fundamentalismos religiosos assumem um sentido todo especial. Nos processos históricos vividos pelos povos, na dinâmica da constituição das diferentes sociedades e de suas relações de convívio e de confronto, os fundamentalismos religiosos exerceram, muitas vezes, papel definidor importante. Também devemos estar atentos aos papéis de alienação e de acomodação política, exercidos muitas vezes pelas práticas religiosas fundamentalistas ao longo de toda a história.

Em segundo lugar, o ponto de vista das lógicas dos campos de atividade (Bourdieu, 1971) apresenta como referência principal o espaço social onde se realizam a produção e reprodução da sociedade, “distribuídas” pelas diferentes atividades, tendo cada uma sua lógica social própria. No caso concreto dos fundamentalismos está em questão o campo religioso e sua relação com outros campos na produção e reprodução da sociedade. Essa chave de leitura pode trazer elementos particularmente relevantes para o entendimento dos processos históricos dos campos religiosos, que são, em grande parte, processos de sucessivos fundamentalismos religiosos.

É muito interessante o grande esforço que está sendo feito, a partir das mexidas no Vaticano, pela Igreja Católica Romana no sentido de recuperar a sua força moral na sociedade mundial, que veio sendo bastante abalada por uma série de questões internas vindas a público nas últimas décadas.

Finalmente, o ponto de vista da dinâmica pessoal dos indivíduos apresenta como referência principal a importância das iniciativas em nível de sujeito individual, apresentando-se este (o sujeito) como um lugar de iniciativa coletiva. Em outras palavras, há uma lógica da dinâmica pessoal dos indivíduos (Bajoit, 1992; Follmann, 2007) que deve ser levada em conta no estudo sociológico dos fundamentalismos religiosos, sobretudo, nas fórmulas seguras de vida que proporcionam para os indivíduos um mundo que aparece sempre mais caótico e incerto. Foi também e continua sendo importante o papel dos fundamentalismos religiosos como imperativos e mecanismos legitimadores de iniciativas carentes de suficiente amparo e respaldo dentro da lógica humana, cultural, política, econômica e social vigente.

Continua jogando um papel fundamental a segurança de referência buscada junto a heróis, lideranças, personalidades, guias religiosos, neste sentido. Também devemos estar atentos ao papel avassalador de destruição exercido por certas pregações fundamentalistas sobre as seguranças individuais.

O esquema desta tríplice referência ajudou-me muito, sempre, tanto nas aulas de sociologia e em palestra com públicos diversos envolvendo diferentes temas, como, sobretudo, na construção de referenciais teóricos nos processos de pesquisa.
O livre navegar por diversas perspectivas teóricas é, sem dúvida, um caminho interessante dentro do “que fazer” sociológico. O grande desafio que se coloca é o de não se cair na tentação fácil de aplicação direta de esquemas teóricos concebidos, às vezes, em contextos estranhos às temáticas em questão. A nossa intenção, no entanto, sempre foi a de respeitar rigorosamente o lugar epistemológico de cada um dos pontos de vista teóricos. Parafraseando Santo Agostinho , quase se poderia dizer: “Respeite o lugar epistemológico dos autores e faça o que quiser!”

Três marcas histórico-culturais

Olhando especificamente para o contexto brasileiro sempre nos ajuda quando lembramos referências concretas que fazem parte do nosso processo histórico e impregnam a estrutura e a cultura da sociedade brasileira.

Além da referência cultural característica, feita no início deste texto, e, talvez, na contramão disto, quero chamar a atenção, especificamente, para três outras marcas características ou “marcas histórico-culturais” envolvendo a área das religiões e religiosidades no Brasil. Entendo por marcas histórico-culturais na área das religiões e religiosidades, eventos ou registros que apontam para movimentos definidores das principais características neste meio e que se constituem, de certa forma, como matrizes orientadoras do entendimento.

A primeira marca característica ou marca histórico-cultural deve ser buscada no evento histórico de grande significação que foi a pronunciamento de Dom Sebastião Leme, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, por ocasião da inauguração da estátua do Cristo do Corcovado em 1931, quando assim se expressou, em tom de desafio: “Ou o Estado (…) reconhece o Deus do povo, ou o povo não reconhecerá o Estado!”. (Della Cava, 1975, p.15). A força das instituições religiosas faz efetivamente parte da história política do Brasil.

Neste nível os nossos apontamentos podem acolher a busca recorrente e unilateral de atendimento de interesses institucionais, que sempre pesaram sobre a alma brasileira. Muitas manifestações públicas de massa, que são recorrentes hoje em dia, mobilizando grandes públicos religiosos, vão nesta linha. Podem ser olhados como demonstrações de força política, ou seja, de ocupação do espaço público. Trata-se de um desafio muito grande e, certamente, muito difícil de administrar, no horizonte de um Estado laico, como oficialmente é o nosso.

A grande interrogação que se impõe: até que ponto as lideranças religiosas, neste nível, conseguem administrar os seus serviços religiosos, sem sucumbir à tentação do uso político de sua força, em desrespeito ao espírito republicano e à laicidade do Estado? O recente e polêmico “Acordo Brasil – Santa Sé” e a reação justa, mas igualmente polêmica, no sentido de criação de uma “Lei Geral das Religiões”, são exemplos do quão distante estamos de um convívio religioso pluralista harmonioso e sem contaminação política dentro do Estado laico. Também não se deve descartar a sempre presente cultura do oportunismo de Governos, que à revelia da laicidade do Estado, lançam mão de apoio a práticas religiosas fundamentalistas que lhes facilitam o exercício do poder sobre massas politicamente alienadas.

A segunda marca característica ou marca histórico-cultural pode ser registrada a partir do episódio do “chute da santa” ocorrido em 12 de outubro de 1995. Trata-se de um episódio, que, muito além de sua ruidosa repercussão midiática e social, tem um alcance simbólico sem igual em termos de composição e recomposição da esfera religiosa brasileira. Naquela data, dia da santa católica “Nossa Senhora Aparecida”, culturalmente consagrada no mundo católico como a Padroeira do Brasil, o bispo Sérgio Von Helder da Igreja Universal do Reino de Deus, em um programa matutino, na Rede Record, chamado “O Despertar da Fé”, proferiu insultos e deu chutes na imagem desta santa, em frente às câmaras. O episódio tornou-se conhecido como o episódio do “chute da santa”.

Ricardo Mariano (2005) se reporta diversas vezes a este episódio em seus estudos para uma sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. O “chute da santa” simboliza todo um movimento agressivo para provocar uma inflexão na esfera religiosa brasileira contra o predomínio religioso católico.

A história do Brasil está carregada de manifestações de desrespeito e de agressão das religiões dominantes (maiormente de integrantes do meio católico, sobretudo, no passado) contra as religiões de matriz africana, contra as práticas espíritas e de outras expressões minoritárias. Hoje, presenciamos, em muitos lugares e meios, uma prática, usual no meio neopentecostal, de combater, de forma recorrente, símbolos e práticas religiosas católicas ou de religiões de matriz africana, buscando desclassificá-las e deslegitimá-las. Assiste a uma verdadeira demonização das práticas dos outros em determinados contextos. É uma prática que gera fortes repercussões nos processos de identidade.

A terceira marca caraterística ou marca histórico-cultural pode ser alcançada em diversas situações no papel exercido pela figura do Pai de Santo e Mãe de Santo. Recentemente assistimos no Brasil à passagem do Papa Francisco e uma das percepções evidentes é a de que existe no mundo de hoje, mas talvez mais carregadamente, no Brasil, uma grande busca de referências pessoais, de líderes ou heróis que sirvam de horizonte de apoio dentro de um mundo dilacerado e sempre mais desencontrado.

A permanente referência a um santo de devoção e proteção pessoal (no meio católico popular) ou a um Orixá ou Espírito Ancestral (no meio de matriz africana) ou, sobretudo, a grande acolhida e apreço tributado a lideranças religiosas de destaque (Mestres e Guias Espirituais das mais diferentes origens e tradições) e sua força mobilizadora, ao mesmo tempo em que são reveladores de um traço cultural, são, sobremodo, características culturais que se reforçam na contemporaneidade brasileira e mundial, num contexto de perda de referenciais sólidos. O reverso também é verdadeiro e pode ser profundamente avassalador, quando a personagem ou liderança de referência total, decepciona, fazendo com que a pessoa fique com a sensação de ter sido traída pela única referência na qual ainda acreditava.

Levantando hipóteses e questões

Seguindo a tríplice entrada sugerida, apresentam-se, para nós, três importantes conjuntos de questões no que tange à temática “fundamentalismos religiosos” ou “radicalizações fundamentalistas” no mundo religioso. A rigor, poderíamos levantar uma grande hipótese englobante, sugerindo que existem três grandes veios alimentadores principais das radicalizações fundamentalistas na esfera das relações religiosas: conforme as circunstâncias históricas, sociais, políticas e culturais as radicalizações fundamentalistas religiosas podem ser alimentadas e reforçadas pelas diferentes forças geradoras do conflito central da sociedade, ou podem ser alimentadas e reforçadas pelas estratégias internas à própria esfera religiosa na disputa pelos espaços de influência, ou, ainda, podem ser alimentadas ou reforçadas pela própria dinâmica pessoal de busca de seguranças nos processos individuais de identidade.

1) As radicalizações fundamentalistas religiosas podem ser alimentadas e reforçadas pelas diferentes forças geradoras do conflito central da sociedade

Na maioria dos casos as radicalizações fundamentalistas religiosas são arma da contraofensiva dos fracos e oprimidos, de grupos ou, mesmo, povos ou etnias, historicamente dominados, jogados no ostracismo e à margem, acumulando ressentimentos através dos tempos. Fazendo analogia à “Revanche de Deus” (Kepel, 1995), pode-se definir como revanche política dos deuses… No reverso, no entanto, assistimos, às vezes, também, ao uso aberto de discursos fundamentalistas religiosos para afirmar e reafirmar o poder dominante, na tentativa de legitimá-lo contra o levante dos historicamente dominados.

Estes fenômenos, no entanto, não são gerados do nada. Seria, aliás, muito difícil entender isto, sem um olhar mais apurado sobre a história. O papel da religião ou das religiões na história dos povos e, sobretudo, o papel exercido pelas religiões dominantes enquanto identificadas com os processos de dominação política, econômica e cultural, que marcaram época, pode ser considerada a chave principal de explicação do que está acontecendo hoje em termos de radicalizações fundamentalistas de uso político. Em muitas situações as religiões dominantes exerceram papéis decisivos enquanto apoiadoras dos processos de dominação política, econômica e cultural.

2) As radicalizações fundamentalistas religiosas podem ser alimentadas e reforçadas pelas estratégias internas à própria esfera religiosa na disputa pelos espaços de influência

Enquanto reinava o inequívoco predomínio da dominação religiosa católica, como religião oficial do Brasil, havia pouca margem para a percepção da diversidade e de outras forças dentro da esfera religiosa neste país. Havia também pouca percepção da violência simbólica religiosa de parte desta religião dominante com relação às demais expressões religiosas. A partir do momento em que foram geradas condições históricas para uma maior abertura para a diversidade e o pluralismo religioso, além de serem proporcionadas melhores condições de percepção da própria diversidade antes oculta e “clandestina”, passou-se também a presenciar radicalizações fundamentalistas de afirmação, nesta esfera.

Faz parte do comportamento normal dentro de um campo de forças sociais que aqueles grupos, que são minoritários, quando têm condições favoráveis, tendam a afirmar com mais radicalidade as suas convicções e seus fundamentos. Isto, no entanto, torna-se mais evidente quando grupos que antes eram minoritários passam a ter força e se embebem de estratégias de disputa do poder de hegemonia dentro da esfera.

3) As radicalizações fundamentalistas religiosas podem ser alimentadas ou reforçadas pela própria dinâmica pessoal de busca de seguranças nos processos individuais de identidade

Num mundo fragmentado e repleto de incertezas, as certezas religiosas continuam proporcionando segurança para a vida individual das pessoas em seu cotidiano. Quanto mais inquietantes se fazem as incertezas, maior tendem a se tornar as radicalizações fundamentalistas, na afirmação de certezas religiosas. Quanto mais vazias as existências humanas se mostram, mais apelo têm aquelas personalidades e lideranças que assumem uma postura íntegra e coerente, tornando-se referências seguras, que, de certa forma, pairam como portos seguros por cima de todo o lamaçal de desencontros e incertezas. Facilmente podem tornar-se referências para entregas pessoais radicais.

Esta é uma chave que ajuda a entender o fenômeno do aprofundamento das intolerâncias dentro de um contexto de aparente indiferentismo pluralista. Perceber que existem práticas de ignorar a verdade do outro ou, mesmo, de desprezá-la agressivamente, pode parecer chocante nos dias de hoje, mas se colocarmos isto na perspectiva da auto-proteção ou da busca de segurança pessoal dentro de um mundo fragmentado e incerto, faz sentido. Cabe, também, mais uma vez sublinhar o efeito avassalador que pode decorrer na trajetória de uma pessoa, quando ela se sentir iludida ou perder a confiança nesta sua referência exclusiva.

Conclusões…

Após referir, na introdução deste ensaio, um recorte de diálogo registrado por João Guimarães Rosa, que retrata a cultura religiosa da bricolagem, do sincretismo e do diálogo, e deixando como referência oculta (mas fortemente presente) todo o contexto de explosão da diversidade religiosa vivida no Brasil de hoje, construí o texto num percurso de três etapas: Inicialmente retomei três referenciais teóricos de dentro da sociologia para mostrar a possibilidade de trabalhar sociologicamente a questão das radicalizações fundamentalistas destacando diferentes enfoques. Em seguida fiz uma pequena incursão na história e cultura religiosa do Brasil, destacando, a partir do tríplice olhar teórico, três marcas histórico-culturais características nesta realidade. Num terceiro momento, levantei algumas hipóteses e questões para aprofundamento.

Formulei, a rigor, uma grande hipótese englobante, subdividida em três hipóteses ou sub-hipóteses, alinhadas dentro de cada um dos três recortes teóricos. Segundo esta hipótese, a depender das circunstâncias históricas, sociais, políticas e culturais, os alimentadores principais das radicalizações fundamentalistas assumem matizes diferentes: 1) Elas podem ser alimentadas e reforçadas pelas diferentes forças geradoras do conflito central da sociedade; 2) Elas podem ser alimentadas e reforçadas pelas estratégias internas à própria esfera religiosa na disputa pelos espaços de influência; 3) Elas podem ser alimentadas ou reforçadas pela própria dinâmica pessoal de busca de seguranças nos processos individuais de identidade.

A minha intenção, com este texto, foi a de levar em frente um debate que está aberto. A rigor, trata-se de um texto que visa ampliar o leque de hipóteses, não cabendo ainda cultivar muitas expectativas de conclusões, a não ser a da gostosa sensação de uma busca que se amplia… Trata-se de um desses textos em construção, que, como autor, eu nunca quero concluir.

Referências bibliográficas

BAJOIT, Guy. Pour une Sociologie Relationnelle. Paris: PUF, 1992

BOURDIEU, Pierre. Genèse et Structure du Champ Religieux, Revue Française de Sociologie, N. XII, 1971, pp.295-334

DELLA CAVA, Ralph. Igreja e Estado no Brasil no século XX sete monografias recentes sobre o catolicismo brasileiro (1916-1964). Rev. Estudos Cebrap, n.12, 1975.

FOLLMANN, José Ivo. O Brasil religioso, pós-modernidade e processos de identidade. In Carlos A. Gadea; Eduardo Portanova Barros (orgs.). A “questão pós” nas ciências sociais: crítica, estética, política e cultura. Curitiba: Appris, 2013, pp.231-249 (351 p.)

FOLLMANN, José Ivo. Identidade como Conceito Sociológico. Rev. Ciências Sociais Unisinos. Vol. 37, n. 158, 2001, p. 43-66.

FOLLMANN, José Ivo. Por onde caminham as religiões e religiosidades hoje: notas para uma reflexão sobre a secularização encantada. In: Wachholz, Wilhelm. (Org.). O luteranismo no contexto religioso brasileiro. São Leopoldo: Sinodal, 2007, p. 09-26.

KEPEL, Gilles. La revancha de Dios. Salamanca: Anaya e Mario Muchnik, 1995.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola (2ª ed.), 2005.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. 14 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.

TOURAINE, Allain. Production de la Société. Paris: Du Seuil, 1993 (1ª ed. 1973)

__________. La Voix et le Regard. Paris: Le Seuil, 1978.


VV.AA. Dicionário Enciclopédico das Religiões. Petrópolis: Ed. Vozes, 1995.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *