ENTREVISTA COM O PROFESSOR DOUTOR JOSÉ IVO FOLLMANN

Artigo publicado em 2017, na Revista Labirinto

Entrevista

Entrevista realizada por Renilda Aparecida Costa, para o Centro Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa sobre o Imaginário Social, Universidade Federal de Rondônia. Dossiê Intolerância Religiosa.

Revista LABIRINTO Ano XVIII Volume 26 (Jan-Mar) 2017 pp. 213-230.

(Observação: a entrevista foi respondida em parte por telefone e em parte por e-mail e nela o entrevistado recorre, em algumas pequenas passagens, a reflexões escritas de sua autoria em outros contextos.)

(Renilda: R.A.C.) Antes de sua formação como padre, como foi a sua educação na infância? O que destacaria, considerando a temática da intolerância religiosa?

(José Ivo: J.I.F.) A minha educação inicial na infância foi dentro de um mundo de horizontes muito fechados. Filho de uma família numerosa de pequenos agricultores no interior do Rio Grande do Sul, foi uma vida marcada por um cotidiano de duras privações e tendo como único horizonte religioso, o católico. Tudo o mais aparecia e era apresentado como estranho ou mesmo extravagante. Em suma, havia uma uniformidade religiosa em nossas cabeças e não cabiam questionamentos que apontassem para intolerâncias. Ou seja, melhor dizendo: éramos totalmente intolerantes, por nascença…

(R.A.C.) O fato de ter-se formado para padre jesuíta influenciou a uma sensibilização com relação a intolerância religiosa, ou existem outros fatores que pesaram?

(J.I.F.) De fato, eu gostaria de fazer um recorte mais amplo. Inicialmente, enquanto criança, eu tenho na memória, que eu não queria ser padre. Outros irmãos meus estavam se encaminhando para isto. Eu era “do contra”. Queria ser diferente… Mas, por esses acasos da vida, os projetos dos outros foram descontinuados e eu acabei sendo “fisgado” para ser padre, por influência de um tio que era padre. Não vou entrar nesses detalhes. Não vem ao caso… Para mim a esfera religiosa, ou como às vezes prefiro dizer, “o mundo das religiões e das religiosidades”, ocupa um lugar fundamental. Isto talvez possa soar paradoxal se considerarmos todo o movimento de secularização e afirmação de estados laicos e sociedades laicas. A minha percepção tem três fontes, ligadas à minha própria trajetória (ou processos pessoais de identidade, como gosto de dizer); pode-se falar em três grandes escolas de aprendizado: 1) Sou sacerdote católico e, como já mencionei venho de uma família e comunidade de profundo cultivo da tradição religiosa católica, num horizonte bastante fechado. Tive, também, longa formação espiritual dentro da espiritualidade inaciana dos jesuítas, por ser jesuíta. Isto pauta fundamentalmente os meus processos de identidade. (É o aprendizado no recolhimento pessoal.) 2) A minha prática de estudo das religiões, enquanto sociólogo das religiões, pesquisador e orientador de muitos trabalhos de pesquisa nesta área. Dedico-me nas últimas duas décadas, sobretudo, à questão da crescente diversificação na esfera religiosa. (É o aprendizado na prática de pesquisa.) 3) Em minha trajetória passada e também no presente, assumo uma postura de radical prática de diálogo na relação com as demais religiões. (Faço parte de um grupo inter-religioso de diálogo, desde 2002, no qual participam mais de dez segmentos religiosos diferentes.) (É o aprendizado no diálogo com o outro.) São minhas três grandes escolas. Muitos mestres e muitas mestras fizeram e fazem parte destas escolas em minha vida. Nessas escolas aprendi e fui convencido de que a esfera religiosa é uma esfera fundamental, também, nas sociedades de hoje. Reconheço-me também como defensor da laicidade do estado e da sociedade, enquanto espaços públicos, democráticos e de reconhecimento da pluralidade religiosa, inclusive a defesa do direito de não ter crença nenhuma. O fato de ver a esfera religiosa como algo fundamental, portanto, não é um posicionamento contrário à laicidade. Pelo contrário, vejo a laicidade do estado e da sociedade como importante para preservar o reconhecimento desta rica diversidade, sem dar vez às intolerâncias.

(J.I.F.) Voltando diretamente à primeira “escola” e ao cerne da pergunta, devo dizer: Sobre a importância da formação para padre? Com certeza! O fato da formação para padre jesuíta pesou muitíssimo. Foi a minha formação para padre jesuíta que abriu os meus horizontes. Evidentemente dentro desta formação também se agregou a formação sociológica que correu paralelamente. Curiosamente o fato de estar me formando para padre jesuíta e cursar sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, foi uma oportunidade incrível para perceber certas intolerâncias do mundo acadêmico com relação ao tema da religião. Ou seja, despertei muito para uma faceta que posteriormente me ajudaria a cultivar fortemente em mim uma postura crítica com relação a certos limites constrangedores da nossa academia brasileira. Hoje sou um militante da transdisciplinaridade e já repeti muitas vezes que a transdisciplinaridade é a tábua de salvação da universidade.

(J.I.F.) Mas voltando à questão central em pauta, como não houve oportunidade nenhuma durante o meu Curso de Ciências Sociais na UFRGS para estudar temáticas relacionadas com a esfera das religiões na sociedade, quando cursei, logo na sequência, Teologia (e já era professor de sociologia na época), tive oportunidade de introduzir-me em leituras sociológicas sobre religiões e religiosidades. Tive oportunidade de contribuir bem em seminários e aulas sobre “Sociologia das religiões populares no Brasil”.

(J.I.F.) Na verdade, só comecei a aprofundar, de fato, meus estudos de sociologia das religiões, durante o mestrado na PUCSP, sob a orientação do Professor Cândido Procópio Camargo, de saudosa memória. Me considero um privilegiado por carregar em mim uma formação que proporcionou uma riqueza muito grande de contatos, experiências e trabalhos, em contextos muito diversificados. O professor Florestan Fernandes também exerceu um grande impacto em minha trajetória, durante o mestrado, sobretudo no despertamento para uma leitura mais crítica (menos “branca e viciada”) de toda a temática afrodescendente no Brasil.

(J.I.F.) A sensibilização com relação às intolerâncias religiosas foi crescendo em mim e consolidou-se definitivamente durante o meu doutorado em sociologia, realizado em Louvain la Neuve, Bélgica. Tive importantes convivências com colegas do Continente Africano. Fui percebendo o quanto as nossas intolerâncias religiosas (brasileiras) estão profundamente relacionadas ou enraizadas nas intolerâncias raciais, ou seja, no racismo tão forte quanto dissimulado, que impregna a nossa sociedade. A ausência de negros brasileiros nos doutorados da Bégica me chamou muita atenção. Me fez voltar muito comprometido com rever a postura da Universidade em relação à temática dos afrodescendentes e a urgência de pensar em formas de uma maior inclusão deles no meio acadêmico.

(R.A.C.) A profissão de sociólogo e sociólogo da religião foi uma escolha ou uma contingência da vida?

(J.I.F.) Decidi ser sociólogo quando estava cursando filosofia em São Paulo e ao mesmo tempo exercia trabalhos sociais na periferia, particularmente no Bairro Perus, onde eu ajudava a orientar “círculos bíblicos”. Era o período da grande greve na fábrica de cimentos do local. Algumas lideranças daquele movimento grevista participavam dos mencionados círculos bíblicos e eu me ressentia de minha pouca formação sobre movimento operário, vida sindical, relações de trabalho. Os líderes grevistas que participavam dos círculos bíblicos traziam reflexões interessantíssimas relacionando o texto sagrado da Bíblia com o que eles viviam na luta do dia a dia, naquela situação de greve. Foi o que me fez decidir estudar sociologia, para poder também contribuir neste tipo de reflexão, mais tarde… Fazer sociologia acabou sendo uma espécie de exigência para mim, para poder ser um bom jesuíta. Para poder prestar um serviço competente, como padre. A sociologia das religiões foi decorrência, sobretudo, por me ressentir da tremenda ausência do mundo acadêmico e dos sociólogos, no que se refere a estudos sérios sobre a esfera das religiões e o seu significado na sociedade.

(J.I.F.) Os meus estudos de sociologia das religiões se focaram, sobretudo, na religião católica. Eu não quis ser mais um sociólogo a estudar o exótico, só para enriquecer os meus conhecimentos e currículo pessoal, sem compromisso efetivo. Eu quis estudar algo no qual eu estava implicado e queria que meus estudos pudessem efetivamente levar a contribuições práticas.

(R.A.C.) Com uma carreira consolidada como professor pesquisador e, que tem como uma de suas temáticas o diálogo inter-religioso, o senhor acredita que há um crescimento do interesse dos estudantes da pós-graduação com relação à temática religiosa nos estudos?

(J.I.F.) Com certeza, ao longo das últimas décadas houve um grande despertar no meio acadêmico com relação às temáticas religiosas. Talvez a própria dinâmica religiosa na sociedade tenha despertado mais a atenção. Por falar em dinâmica religiosa, o que está claro, ao longo das últimas três décadas, como pude escrever recentemente em alguns textos, é que vivemos um processo acelerado de inflexão nas forças da esfera religiosa: de um Brasil predominantemente católico está-se caminhando para um Brasil onde a força do segmento evangélico pentecostal e neopentecostal e a diversificação religiosa em geral, tendem a conquistar espaços sempre maiores. A explosão da diversidade pode ser vista como reação contra os constrangimentos uniformes anteriores, na história brasileira, de quase quatro séculos de religião católica como religião oficial. Em algumas situações, esta explosão da diversidade assume contornos de pluralismo religioso, ou seja, de convívio e reconhecimento democrático entre as diferentes expressões religiosas. Pode-se dizer que o meio acadêmico, de certa forma, é simpático a isto e passa a se interessar… É claro, a explosão da diversidade, por si só, não gera espírito pluralista ou espírito de convívio democrático. Muitas vezes, também, são geradas radicalizações fundamentalistas. No caso de nossa sociedade brasileira, por exemplo, enquanto reinava o inequívoco predomínio da dominação religiosa católica, como religião oficial do Brasil, havia pouca margem para a percepção da diversidade e de outras forças dentro da esfera religiosa neste país. Havia também pouca percepção da violência simbólica religiosa de parte desta religião dominante com relação às demais expressões religiosas. A partir do momento em que foram geradas condições históricas para uma maior abertura para a diversidade, além de serem proporcionadas melhores condições de percepção da própria diversidade antes oculta e “clandestina”, passou-se também a perceber melhor e explicitar as violências simbólicas existentes. Vivemos ao longo de nossa história um tremendo processo de intolerância religiosa dissimulada e oculta. É compreensível que, presenciemos, na sequência, radicalizações fundamentalistas, sobretudo, de segmentos, por muito tempo, dominados e impedidos de se expressarem. Tem-se assim um movimento duplo contraditório gerado pela diversificação: crescimento do espírito de convívio democrático pluralista, de um lado, e aumento de radicalizações fundamentalistas, de outro.

(J.I.F.) Mas não quero ser entendido mal. As radicalizações fundamentalistas não são tanto de religiões minoritárias contra um antigo domínio religioso. Observamos que o que mais se manifesta hoje são radicalizações fundamentalistas de caráter racista (o nosso problema central é o racismo!), onde as antigas intransigências do mundo católico-europeu frente às tradições religiosas indígenas e africanas aparecem agora pela via de certos grupos neopentecostais radicalizados e fundamentalistas.

(R.A.C.) Tomando este gancho final, o senhor acredita que a ampliação de estudos relacionados a relações raciais e intolerância religiosa podem contribuir na formação humana e profissional?

(J.I.F.) Com certeza. É no conhecimento que reside uma das chaves principais de solução. Conhecimento em geral gera reconhecimento. Como falei no início, eu, por exemplo, nasci e fui criado em minha infância em um mundinho totalmente fechado dentro do horizonte católico e branco. Mal podia imaginar algo de importância e de valor fora disso. Hoje em dia, os meus horizontes são outros. Radicalmente outros! Hoje sei que os africanos trazidos de forma forçada e feitos escravos no Brasil (e foram milhões), no período colonial, foram submetidos a vários “mecanismos de esquecimento de seu passado” e entre estes, se destaca um, que na leitura de hoje seria considerado o mais perverso, que foi o de forçá-los a abandonar as suas tradições religiosas de origem, sendo-lhes imposto o batismo católico, pois a igreja católica era a religião oficial do Império Português e continuou sendo a religião oficial, também no Brasil, no período imperial. De fato, o que se tem no Brasil de religiões de matriz africana são sobrevivências, por resistência, a toda a dominação religiosa católica.
A sobrevivência das tradições religiosas africanas deu-se, sobretudo, através da habilidade e astúcia dos próprios negros escravizados que souberam disfarçar os seus cultos usando símbolos e imagens do catolicismo. Imagens (estátuas) de santos católicos eram usadas como fachada para cultuar os Orixás de origem. (Só saber isto, hoje me enche de orgulho pela criatividade inerente à sociedade brasileira, sobretudo, de herança africana!) Esta invenção criativa foi uma estratégia muito bem-sucedida na preservação de culturas milenares, que estavam sendo colocadas em risco. Ter-me apropriado desta realidade e poder refletir com as pessoas, hoje, sobre o fato de que as religiões de matriz africana são de uma tremenda diversidade e riqueza, me enche de “santo” orgulho… Ter a certeza dentro de mim, que definitivamente, as religiões de matriz africana são sérias e estão ancoradas em tradições muito ricas… Que definitivamente não são simplesmente aquela “macumba” que a gente falava pejorativamente quando criança. Saber que as religiões de matrizes africanas são também diversificadas e respondem a múltiplas tradições de regiões culturais diversas nas origens africanas.

(J.I.F.) Hoje posso dizer que alguma coisa conheço. Já falo com mais liberdade e segurança que o tráfico de africanos escravizados se deu em levas sucessivas entre os séculos XVI e XIX. Os grupos trazidos para o Brasil, nas levas sucessivas, eram provenientes de tradições culturais e religiosas muito diversificadas. Os primeiros a serem trazidos e foram os mais numerosos e eram de tradição Bantu. Bem mais tarde foram trazidos grupos mais influenciados pela tradição Jeje. Por fim africanos escravizados ligados a tradições Yorubá e Nagô trouxeram referências culturais e religiosas ricas e novas. Estes últimos encontraram, no entanto, uma longa caminhada de práticas, adaptadas à nova realidade no contexto brasileiro, cultivadas a partir das tradições anteriormente chegadas.

(J.I.F.) Existe, assim, uma diversidade muito grande, proveniente em parte da diversidade de origem, mas, sobretudo, das novas “costuras” e sobreposições e da criatividade dos Babalorixás (Sacerdotes) e/ou Pais de Santo e Yalorixás (Sacerdotisas) e/ou Mães de Santo, em sua vivência religiosa e produção teológica. Apesar da diversidade, são identificáveis grandes linhas de “parentesco espiritual” ou “famílias religiosas” que às vezes ultrapassam os limites de vários Estados. Aprendo muito de orientandas e orientandos meus. Devo um grande aprendizado junto à própria entrevistadora (Renilda Aparecida Costa), quando em sua tese de doutorado traçou um belo contínuum em termos de Batuque, mostrando ligação entre família religiosa de Lages, Santa Catarina e família religiosas de Gravataí, RS…

(J.I.F.) Enfim, hoje prefiro dizer que sei muito pouco sobre toda esta riqueza. Por que falo isto? Porque vejo como importante poder dizer isto assim, com detalhes. É a minha maneira de expressar reconhecimento. Sei o suficiente para ter um profundo reconhecimento. Mas, obviamente, prefiro ouvir os seus próprios teólogos e sacerdotes. Fico muito feliz em poder olhar agora de dentro dos meus setenta anos de idade e perceber quão longa caminhada foi realizada desde aquele pequeno mundo, bem organizado e feliz, mas de horizontes estreitíssimos e tendente a preconceitos e intolerâncias múltiplas, que me amarrava na infância.

(R.A.C.) Como vice-reitor de uma renomada instituição de ensino superior, acredita que há uma preocupação institucional relação a construção de conhecimentos que foram marginalizados como os dos negros e indígenas em detrimento dos conhecimentos eurocêntricos?

(J.I.F.) Não só acredito, mas fui também protagonista para que isto acontecesse e se consolidasse em nossa instituição. Estou nesta Universidade (Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS) desde 1973, como professor, mas foi, sobretudo, depois que aprofundei os meus estudos, ao retornar do doutorado na Bélgica, que não descansei mais em duas causas: trazer para dentro das preocupações e práticas acadêmicas o mundo das “religiões e religiosidades” e me empenhar mais para a inclusão de afrodescendentes e a temática racial e da superação do racismo. A partir de 1999, tive para isto um grande apoio decisivo de uma pessoa que se chama Adevanir Aparecida Pinheiro, hoje doutora em Ciências Sociais, professora da UNISINOS e coordenadora do NEABI. Ela vinha de uma longa militância no meio religioso de recorte afro e do próprio movimento negro. Logo percebi que a contribuição dela e esse apoio estavam sendo decisivos e determinantes, pela própria necessidade de romper certos tabus profundamente contaminados pela “branquidade”, incapaz de perceber os racismos dissimulados existentes em instituições como a nossa, fazendo com que facilmente se sucumba. Aliás ela é estimuladora do debate sobre branquidade e branquitude. Dela aprendi que o principal alvo do processo de educação das relações étnico-raciais deve ser o próprio branco e também em termos de diálogo interreligioso, deve ser o próprio católico. Tudo isto devido a vícios colonialistas profundamente incrustrados e que devem ser desmontados.

(R.A.C.) O senhor acha que a criação da Lei 10.639 de 2003 foi um acerto e poderá efetivamente contribuir para avançar na geração do verdadeiro espírito republicano, para além dos racismos e intolerâncias?

(J.I.F.) Eu diria, é uma iniciativa educacional que acertou no alvo! Atinge o cerne da desigualdade social brasileira. Me lembra muito um professor meu, Octávio Ianni. Ele foi talvez o sociólogo brasileiro que melhor formulou a questão social no Brasil. Ele dizia que para entender a questão social no Brasil é necessário colocar a questão racial no centro da questão social. O Brasil é um país que tem um racismo profundamente institucionalizado. Serão necessários muitos esforços para desmontar isto. Creio que a lei 10639/2003 é uma das melhores iniciativas em termos de políticas públicas. Com certeza o Brasil não será mais o mesmo depois da consolidação da lei da ERER – educação das relações étnico-raciais. Para mim, a lei 10639/2003, foi uma das maiores sacadas em termos de políticas públicas recentes na sociedade brasileira. É fundamental que seja levada a sério. Ela deve ser pensada e aplicada em todos os âmbitos da vida social, não só no sistema educacional. É fundamental que os meios de comunicação também sejam impregnados pela lei da educação das relações étnico-raciais. A política de assistência social e outras políticas devem também estar impregnadas pela lei da educação das relações étnico-raciais. Ela deve contaminar o próprio “ensino religioso”. Quem sabe, um dia se possa pensar uma espécie de “educação das relações religiosas”. Só assim estaremos efetivamente construindo um Brasil democrático e cidadão. Só assim estaremos reabilitando o Brasil na sua verdadeira identidade. (Pois como sempre digo, o Brasil é o resultado de grandes processos de alienação dos quais todos somos vítimas.)

(R.A.C.) O senhor falou em “educação das relações religiosas”… Seria este um caminho para fazer frente aos desafios de superação das intolerâncias religiosas no mundo contemporâneo, e, é claro no Brasil? Gostaria de ouvi-lo sobre como vê isto.

(J.I.F.) No Brasil, a discriminação religiosa está associada à discriminação racial. A nossa sociedade é uma sociedade tremendamente racista. Felizmente hoje isto está sendo enfrentado mais rigorosamente através de uma série de iniciativas educacionais e políticas de ação afirmativa. Mas, além da discriminação racial também deve ser considerado o próprio fator dos “conflitos religiosos” na disputa da verdade religiosa e convencimento dos seguidores. A Igreja Católica, por muito tempo, no Brasil, se considerava como força absoluta no que diz respeito a religião e todas as outras iniciativas eram demonizadas e perseguidas. Hoje, de algumas décadas para cá, a percepção da Igreja Católica mudou significativamente, mas estamos vivendo um novo fenômeno muito visível de parte de Igrejas Evangélicas Pentecostais e Neo-Pentecostais com fortes manifestações de discriminação e intolerância religiosa, sobretudo, como relação às religiões de matrizes africanas. Só existe efetivamente uma boa fórmula para fazer frente às intolerâncias religiosas: é uma boa “educação das relações religiosas”. A iniciativa de introduzir o “ensino religioso” nas escolas é uma iniciativa importante, mas infelizmente existe muita imaturidade política em nível governamental em diversos Estados e, sobretudo, um terrível despreparo das escolas e das professoras e professores. Sem um forte investimento no sentido de fazer do “ensino religioso” um espaço de educação efetiva para o pluralismo, estaremos perdendo uma chance ímpar na história deste país. Estaremos perdendo uma chance ímpar de fazer deste espaço um acelerador da construção da sociedade democrática. Acredito num ensino religioso que seja uma efetiva “educação das relações entre as diferentes crenças /descrenças e práticas religiosas”. Nada melhor do que “sentar” ao redor da mesma mesa os diferentes conhecimentos, saberes e crenças/descrenças no domínio religioso, seja pelo ângulo das diferentes ciências da religião, seja pelo ângulo de leituras teológicas, vivências espirituais e vivências atéias, como ensaio de um verdadeiro laboratório de democracia. Só assim se dará efetivas respostas às intolerâncias religiosas. É claro que isto não é tão simples e óbvio, assim…

(R.A.C.) Se não é tão simples e óbvio, na sua visão quais os motivos que fazem com que a intolerância religiosa esteja recrudescendo no mundo contemporâneo?

(J.I.F.) As intolerâncias religiosas, obviamente, devem ser consideradas dentro de um horizonte mais diversificado. Não podemos simplificar e reduzir à dimensão das relações raciais ou ao racismo. O que eu quero sublinhar é que em nossa realidade brasileira, o melhor atalho para atingir o principal das intolerâncias, está em focar no racismo dissimulado que crassa em nossa sociedade. Sabe-se evidentemente que as religiões sempre devem ficar muito vigilantes para não gerar intolerâncias, por incompreensões ou assimilações muito estreitas da própria doutrina. Muitos fiéis podem ser levados a posicionamentos radicalizados, por uma orientação equivocada ou descuidada (ou, mesmo, intencional) de determinados líderes religiosos. O religioso é um terreno muito propício para radicalismos, pois lida com uma dimensão e valores essencialmente radicais da existência humana. Muito se poderia refletir sobre isto. Reafirmo que tudo tem a ver e pode encontrar boas soluções em uma lúcida e honesta “educação das relações religiosas”.

(R.A.C.) O Diálogo Inter-religioso pode ser um caminho na superação da intolerância religiosa quais as perspectivas contemporâneas?

(J.I.F.) Com certeza. Tenho uma boa experiência neste sentido. Vou iniciar com um exemplo que já repeti muitas vezes. Um dia eu estava participando em um seminário sobre espiritualidade das religiões de matriz africana. Uma Mãe de Santo (Yalorixá), que era uma das painelistas, acabara de fazer uma reflexão de grande profundidade e que, no meu entender, deveria merecer um registro escrito. No final de sua colocação, perguntei-lhe sobre porque as religiões de matriz africana, ainda hoje, continuavam resistentes ao registro escrito das grandes lições de vida e fé de seus líderes e, também, de suas reflexões espirituais e religiosas. Ela me respondeu: “Padre Ivo, vou dizer uma coisa muito certa. Se a gente escreve, aí vêm outros, leem e saem fazendo bobagem!…” Foi uma resposta inesperada, que já me oportunizou muita reflexão. Em primeiro lugar: valores e atitudes não se aprendem em livro! Ou seja, existem dimensões no conhecimento que não passam pela simples captação da razão. As formulações da linguagem sempre serão pobres para dar conta delas. Só podem ser colhidas na vivência e no coração.

(J.I.F.) O diálogo, o sentar em roda e escutar-se mutuamente, de forma informal e amiga, o cultivo da amizade, tudo isto faz com que as barreiras caiam e aprendamos a nos respeitar e a nos reconhecer mutuamente.

(R.A.C.) Na UNISINOS existe o GIRD, do qual o senhor faz parte. Como se deu a constituição desse Grupo Inter-religioso de Diálogo e quais foram os seus objetivos? Como foi a sua atuação?

(J.I.F.) O Grupo Interreligioso de Diálogo do qual eu participo já tem 15 anos. Foi criado em 2002. No início o denominávamos de Grupo de Diálogo Interreligioso. A própria metamorfose do nome tem um significado. Quando o grupo foi criado, em 2002, traçamos o objetivo fundamental, onde dizíamos que seríamos um grupo de líderes religiosos, que se reúnem de forma espontânea, sem exercerem representatividade de sua instituição, com a simples finalidade de cultivar uma relação de conhecimento mútuo das religiões envolvidas. O foco principal está em conhecer e reconhecer coletivamente os processos de identidade de cada uma das religiões “representadas” no grupo e também dos próprios processos religiosos de identidade vividos pelos indivíduos integrantes do grupo. Ao longo dessa história de 15 anos, com reuniões frequentes, em geral, mensais, e, também, realizando celebrações inter-religiosas públicas, em conjunto, muitas manifestações e depoimentos já foram colhidos no sentido de que o próprio grupo está sendo uma escola importante para o crescimento e amadurecimento nas próprias opções religiosas dos integrantes.

(R.A.C.) O senhor falou que o grupo sofreu metamorfoses ou transformação. Como foi este processo? Ele parece que gerou um Programa chamado Gestando o Diálogo Inter-religioso e o ecumenismo – GDIREC, teve vinculação com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU e qual a sua relação com o NEABI?

(J.I.F.) Primeiro o detalhe da mudança de nome de GDIR para GIRD, ou seja, de Grupo de Diálogo Interreligioso para Grupo Interreligioso de Diálogo, é decorrência, nasceu de um amadurecimento interno. Na medida em as nossas reuniões foram acontecendo e nos vimos tratando de diferentes assuntos que envolvem as religiões na sociedade, entendemos que o nosso foco não era propriamente dialogar sobre as nossas diferenças ou semelhanças religiosas, enquanto tal, mas sim, dialogarmos sobre nossas convicções religiosas dentro de temáticas que mobilizavam a todos na sociedade.

(R.A.C.) Mas especificamente, a criação do Programa Gestando o Diálogo Inter-religioso e o ecumenismo – GDIREC, como se deu, o que estava envolvido, qual a metodologia utilizada do formação e consolidação do grupo?

(J.I.F.) É uma história bonita. Vou tentar traçar alguns pontos importantes, para assim, talvez, apontar aspectos da metodologia utilizada no Grupo Inter-Religioso de Diálogo. Parte-se basicamente das experiências vividas entre os líderes religiosos, em seus encontros e nas convivências nos seus locais e templos ou em ações conjuntas diversas. Em nosso entender, trata-se de uma forma genuína de testemunhar e narrar Deus na diversidade e complementariedade de perspectivas, na sociedade de hoje. É uma experiência realizada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, como já sinalizei, ao longo de mais de quinze anos de GDIREC. É uma metodologia que busca a valorização do conhecimento e experiências de cada líder religioso que se faz presente no grupo inter-religioso de diálogo, em reuniões mensais na Universidade com o objetivo de estudar e dialogar sobre a importância de suas manifestações identitárias, cultivando, sobretudo, o reconhecimento mútuo.

(J.I.F.) O Grupo Inter-Religioso de Diálogo – GIRD, foi criado em 2002, dentro de um quadro mais amplo de atividades que visam o cultivo do diálogo interreligioso e do ecumenismo, amparadas no Programa GDIREC, na Universidade. Como já sinalizei a mudança de nome de GDIR para GIRD se deve à percepção do próprio grupo em se caracterizar enquanto a participação de líderes de religiões diversas que se reúnem em diálogo e reflexão sobre diferentes temas, práticas e atividades. O grupo nasceu da própria demanda de líderes de diferentes expressões religiosas, externando o seu interesse em participar, na Universidade, da reflexão a partir dos resultados das pesquisas sobre os locais de culto e templos e sobre as práticas sociais religiosas, desenvolvidas por esta. O Grupo é constituído, hoje, por integrantes de mais de dez religiões ou denominações religiosas diferentes, e, ao longo de sua história, além de suas reuniões mensais, foi protagonista de diversas atividades e participações, tendo sido, sobretudo, principalmente referência e estímulo para os demais projetos gerados no contexto do GDIREC, como foram a assessoria ao “Ensino Religioso” na rede de escolas da região e mapeamento dos locais e templos de culto religioso na região.
O Programa GDIREC hoje não existe mais e está absorvido em uma atividade mais ampla na linha dos debates sobre teologia pública dentro do contexto da programação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, mas o Grupo Interreligioso de Diálogo – GIRD, prossegue e está abrigado hoje como um projeto dentro do NEABI – Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas. Aliás é importante anotar que, na UNISINOS, os líderes religiosos integrantes do GIRD foram os que mais impulsionaram e ajudaram a criar condições para que o próprio NEABI fosse instituído. Havia uma percepção clara de que muitas das intolerâncias existentes tinham a ver com racismo. Os líderes religiosos se empenharam no sentido de que na Universidade fosse facilitado um espaço ou órgão de reflexão e estudos de aprofundamento e disseminação do conhecimento sobre a história e cultura da África e afrodescendentes. O retorno do GIRD ao NEABI é tremendamente simbólico hoje. Quase se poderia dizer: é o filho que acolhe o pai, num momento em que o pai ficou só, de certa forma, e sem a referência de seu programa fundacional.

(R.A.C.) O que mais o senhor gostaria de partilhar, levando em conta o seu engajamento militante e intelectual na causa da luta contra as intolerâncias religiosas?

(J.I.F.) Eu gostaria de aproveitar o momento para me posicionar. Ou seja, como eu vejo o meu engajamento enquanto cristão diante de tudo isto e também, considerando, que além de cristão, sou um sacerdote jesuíta e ao mesmo tempo um cientista social ou sociólogo. Eu, em primeiro lugar, quero destacar que gostaria de me auto-definir como cristão e como tal um “secular encantado” “sociólogo encantado”, pela via cristã. Para mim o ser cristão significa viver a presença de Deus em todas as coisas. A história do cristianismo, apesar de originalmente ter essa marca secular (de secularização, de presença profundamente encarnada na história, nas realidades seculares), pode, no entanto, ser lida como uma história de sucessivos processos de forte sacralização da própria fé cristã. Hoje vivemos em um momento na história da humanidade em que se manifesta sempre mais algo que se poderia denominar de “secularização encantada”. Falamos até aqui mais de intolerâncias e diálogos. Me causa muita dor perceber intolerâncias de origem religiosa e, sobretudo, intolerância de marca cristã…

(J.I.F.) Acho importante agregar esta outra concepção, que é a “secularização encantada”. A expressão talvez não seja totalmente adequada porque sugere certas conotações, que não têm nada a ver com o que se quer dizer. Entre estes diferentes encantamentos “seculares” se encontra de uma forma nova o próprio cristianismo em seu estado mais original. Busco uma vivência cristã desobstruída das múltiplas sacralizações construídas ao longo da história. E, sobretudo, uma vivência cristã que ultrapassa as próprias fronteiras (limites) dos cristianismos institucionalizados e de todas as outras tradições religiosas instituídas ou formas de organizar socialmente diversos seguimentos religiosos.

(J.I.F.) Em segundo lugar, gostaria de dizer que me vejo como um cristão engajado pela justiça. Ser cristão sempre significou e significa este comprometimento. Isto não é de hoje. O cristão por definição (em seguimento à encarnação de Deus na história) é denúncia de tudo o que está degradando as relações e é comprometido com a construção de outro mundo possível. Outras relações sociais são possíveis. Outras relações ambientais são possíveis. Hoje sou um dedicado divulgador de uma concepção ampla de justiça socioambiental, construída sobre uma tríplice base de relações justas. Vivemos em uma casa comum e para que esta casa não caia em ruínas com o tempo, é fundamental que as relações justas sejam permanentemente cultivadas. São relações justas envolvendo o reconhecimento profundo da dignidade de todos os seres humanos, acima de raízes étnico-raciais, de crenças religiosas, das diferentes gerações, gênero, visões de mundo e opções, buscando sempre formas de estabelecer o diálogo, o valor da pluralidade e a dinâmica da reconciliação; são relações justas envolvendo a efetivação de políticas de superação das desigualdades sociais e acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, saúde, moradia, educação e alimentação; e são relações justas envolvendo a conservação e preservação dos “dons da criação” ou bens naturais, em vista de um ecossistema saudável e de vida para o futuro do planeta terra e seus habitantes. Estas diferentes esferas de relações, permanentemente cultivadas com atenção e justiça, são o caminho de busca da sustentabilidade, ou seja, de sociedades sustentáveis. O mundo cristão, ao longo da história, tem grandes dívidas com relação a isso. Muitos equívocos, muitos males, muitos pecados, muitas infidelidades aos princípios fundantes do Cristianismo estão escancarados na história. É necessária uma permanente busca de renovação. Tenho plena consciência de que, mesmo que isto seja da própria essência do ser cristão, existe uma necessidade permanente de atualização e correção de rota, porque nós humanos somos limitados e frágeis. Trata-se de preocupações que não podem estar alheias ao “que fazer” científico de um cientista social ou sociólogo, como eu, que carrega consigo ou é puxado pelo compromisso com a promoção da justiça. Ou como reza o nosso lema central: O serviço da fé só acontece na sua autenticidade cristã, mediante promoção da justiça.

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