EPIRITUALIDADE E ESPIRITUALIDADES NO CONTEXTO DAS FAMÍLIAS CATÓLICAS

Publicado em forma de capítulo no livro “Educação e Religião: Múltiplos olhares sobre o Ensino Religioso” em 2013

Reflexão espiritual com perspectiva de formação pastoral

José Ivo Follmann sj (30/01/2013)

Resumo: O artigo é uma composição harmônica de textos, que misturam o testemunho pessoal do próprio autor com diversas aproximações da vida católica da família brasileira, acompanhadas de referências sugestivas sobre a realidade indiana, e uma retomada sintética de diferentes formas de espiritualidade católica, suas características e seus fundamentos.
Palavras chaves: Catolicismo; Família católica; Espiritualidades católicas.

Abstract: The article is a harmonious composition of texts, by mixing the personal testimony of the author with different approaches on Brazilian catholic family´s life, followed by suggestive references to Indian reality, and a synthetic retaking of different forms of catholic spiritual way of life, its characteristics and its essentials.
Key-Words: Catholicism; Catholic family; Catholic spiritual ways of life.

Palavras de introdução

A palavra espiritualidade lembra algo que impregna o que existe de mais profundo e existencial no cotidiano de alguém ou no cotidiano de uma família, um grupo ou uma organização. É algo que ajuda a orientar e dar sabor à vida e à ação. Cada religião ou cada orientação religiosa, apoiando-se em sua fonte fundacional e em suas tradições, difunde as suas crenças e as cultiva em seus fiéis ou seguidores; propiciando, também, formas de cultivo das crenças, através de práticas consideradas mais adequadas para nelas perseverar e crescer.

Eu, pessoalmente, nasci e fui criado em uma família católica, constituída por uma espiritualidade profunda e consistente, manifesta através de práticas cotidianas bastante definidas e ordenadas. Devo dizer que estou marcado por essa espiritualidade. Escrever sobre o tema “espiritualidade e espiritualidades no contexto das famílias católicas” é, assim, para mim, uma grande oportunidade, porque faz reviver um grande manancial de riquezas espirituais nunca suficientemente exploradas ou degustadas.

Muitas coisas se me passaram pela cabeça e pelo coração, no momento em que iniciei a organização deste texto. Eu havia sido recentemente solicitado para ajudar a escrever a história da comunidade local onde eu nasci e vivi a minha infância. As lembranças, naturalmente, se aceleram e multiplicam neste tipo de exercício de memória. As lembranças de minha iniciação na fé católica e das práticas espirituais cotidianas de nossa família também foram avivadas em mim. Estavam dadas, portanto, as melhores condições para desenvolver a reflexão que resultou no presente texto.

A composição ou costura do texto foi realizada em janeiro de 2013, mais de sessenta anos depois das minhas vivências de infância, em um contexto muito distante, no tempo e no espaço, durante minha estada na Índia. Confesso que estava profundamente impactado pela realidade desafiadora e rica em tradições culturais e religiosas, que é a realidade daquele país. A população católica na Índia é minoria. É, portanto, uma realidade religiosa muito diversa da que vivemos no Brasil. Até se poderia dizer: exatamente inversa. Enquanto a sociedade brasileira está impregnada por um substrato cultural católico, a sociedade indiana está impregnada por um substrato cultural hindu. Consequentemente a realidade da espiritualidade das famílias católicas também é diferente… Eu, no entanto, arrisquei a pergunta: Será que é tão diferente assim? Na ocasião, fiz uma longa entrevista com um jesuíta indiano muito experiente em trabalhos pastorais. A percepção que esse jesuíta revelou foi que, basicamente, a espiritualidade das famílias católicas na Índia, em seus traços e tendências principais, é muito semelhante à espiritualidade, que nós percebemos nas famílias católicas brasileiras.

Não precisamos, no entanto, apressar conclusões… Além destas “Palavras de introdução”, o texto foi estruturado, à maneira de um caminho cheio de atalhos, recolhendo, inclusive, textos já elaborados anteriormente, e passando pelos seguintes subtítulos: – Minhas memórias católicas da infância; – Espiritualidade ou espiritualidades; – O substrato comum das espiritualidades católicas; – Folheando o catálogo de diferentes espiritualidades católicas; – Três menções especiais para o momento presente; – Diferentes formas de viver o catolicismo; – Meu testemunho, sessenta anos depois; – Palavras de conclusão.

Como o texto é um caminho cheio de atalhos ou uma composição dinâmica de retalhos, de constatações e reflexões, colhidas em diversos contextos, a sua leitura não precisa ser linear.

Minhas memórias católicas da infância

Uma lembrança muito viva é a grande centralidade que a devoção a São José exercia na nossa família. Havia, na sala maior de nossa casa, em um dos lados, um oratório com uma imagem grande de São José. Lá nunca faltavam velas e sempre tinha um vaso de flores. As paredes da sala estavam cheias de imagens da iconografia católica, mas a de São José tinha um destaque muito grande. Era diante desta imagem que nos reuníamos todas as noites, depois da janta, para, de joelhos, rezar o terço. Esta reza era feita, às vezes em alemão e outras vezes em português. Eu cultivo hoje ainda a bela lembrança das orações diárias, antes e depois das refeições, que eram longas e feitas com fórmulas mescladas, sendo algumas em alemão e outras em português.

Depois do terço, íamos para a cama. Lembro como a minha mãe, todas as noites, se aproximava discretamente das nossas camas e nos abençoava com água benta, enquanto nós fingíamos que já estávamos dormindo. Isto passava carinho e segurança! Aliás, a água benta nunca faltou em nossa casa. Era símbolo de proteção divina e combate contra os males e doenças. Também era muito usual ter ramos bentos em casa para proteger contra tormentas e raios. Os ramos bentos eram conservados a partir do cerimonial litúrgico do domingo de ramos. Estão vivas na minha memória cenas em que a mãe e a avó queimavam ramos e faziam invocações a santas e aos santos protetores durante tormentas.

Lembro como, muitas vezes, enquanto o jantar era preparado, o meu pai, com seu vozeirão, entoava canções, em geral eram hinos de igreja, e nós cantávamos junto, formando uma polifonia de beleza indescritível… Tudo isto acontecia sob a luz das lamparinas de querosene e do lampião de gás. Às vezes o meu pai fazia a leitura de algum texto em alemão ou em português e nós ouvíamos atentos. Quando era necessário ele introduzia com uma pequena fala situando o texto ou dizia uma frase de impacto depois da leitura. Em geral eram textos instrutivos e que traziam mensagens de vida cristã. Algumas vezes eram textos anedóticos e de entretenimento. Era um ambiente gostoso, muito harmonioso e, sobretudo, disciplinado.

Tive as minhas primeiras inserções no compromisso com a comunidade, através da limpeza que a nossa família era encarregada de manter no cemitério. O pai nos mandava capinar o cemitério e dizia que isto era um serviço para a comunidade. Acostumei-me desde pequeno com esta ideia. Parece algo irrelevante, mas só eu sei o quanto isto me marcou e me lembra da imagem de meu pai como uma pessoa responsável pelas coisas da comunidade. Isto se revelava em todas as atividades comuns da comunidade.

A bíblia não era muito lida, mas nós tínhamos o catecismo da doutrina católica. Com muita frequência havia uma tarde de aulas de catequese, a cargo do próprio padre da paróquia. Trata-se de uma maneira muito sábia de introdução na vida de compromisso cristão adulto. Eu fui batizado, quando não tinha completado ainda um mês de vida e fui também crismado algumas semanas depois. Isto soa estranho, uma vez que crisma é um sacramento de confirmação para quem já está no seu pleno uso da razão. No entanto, as famílias eram tão estáveis e confiáveis na sua vida da fé católica, que havia uma plena confiança da parte do clero de que os pais realmente garantiriam uma boa formação na fé.

Nos domingos, sempre que ocorria missa na comunidade, a cinco quilômetros de distância, todos nós íamos para a igreja, os pais e a avó iam a cavalo e nós todos a pé. Na ausência de missa na comunidade, enfrentávamos doze quilômetros para ir à missa na sede da paróquia. A missa ocupava uma centralidade muito grande no imaginário. Lembro-me que nós crianças chegávamos a brincar de celebrar missa. A participação na celebração da missa era um momento auge e sempre se usava a melhor roupa. Em dias de celebração festiva, como por exemplo, a “missa do galo” de natal, o pai nos levava a todos para a igreja, em uma carroça, puxada por uma junta de bois. Era uma festa!

Muitas outras lembranças poderiam ser registradas, mas esta não é a finalidade deste texto. Fiz esta breve incursão na minha memória da infância, porque o meu interlocutor indiano, referiu a maneira intensa como são cultivadas as espiritualidades nas famílias católicas indianas, nos contextos do mundo rural antigo e tradicional e, como esta realidade vem mudando gradativamente, tanto, na própria vida no campo, como, sobretudo, nos centros urbanos e nos contextos intermediários. Ele também destacou a centralidade exercida pela missa.

As formas de expressão da espiritualidade católica se diversificam no próprio ritmo de crescimento da complexidade da vida humana em sociedade. Essas formas, no entanto, também são diversas alimentando-se em diferentes experiências espirituais que foram sendo acumuladas dentro e fora do catolicismo, ao longo da história.

Espiritualidade ou espiritualidades?

A espiritualidade, como foi definida no início deste texto, tem a ver com o modo como pessoas, famílias, grupos ou, mesmo, organizações organizam a sua vida cotidiana no sentido de manter vivas as crenças religiosas. É notável como cada religião ou organização religiosa difunde as suas crenças, as cultiva em seus fiéis ou seguidores, e propicia formas de aprofundamento das mesmas, através de práticas consideradas mais adequadas para nelas perseverar e crescer.

É muito grande a distância, entre o que uma religião ou organização religiosa, – no caso a Igreja católica, – cultiva e difunde, por um lado, e, o que é praticado, por outro lado, no cotidiano concreto das pessoas, famílias, grupos e organizações.

A realidade nos mostra que não existe uma só espiritualidade católica e também não se pode falar em espiritualidade das famílias católicas, no singular. São muitas as espiritualidades das famílias católicas, ou seja: as formas como as famílias católicas cultivam as crenças provindas do catolicismo são infindamente diversificadas. Existe, isto sim, um substrato comum, reconhecível com maior ou menor clareza.

A espiritualidade que eu pessoalmente pratico hoje, mais de sessenta anos depois da minha infância, é radicalmente diferente daquela que eu praticava naquela época sob a orientação de minha família e da tradição de meus pais, mesmo que eu deva reconhecer naquela experiência de infância uma base rica que permanece.

Ao perguntar ao meu interlocutor indiano sobre “a espiritualidade das famílias católicas”, ele foi direto e claro, ao dizer: “É difícil falar de uma espiritualidade, pois isto varia muito, de um contexto para outro… Para começar, existem as famílias do interior rural e existem as famílias dos grandes centros urbanos. Além disso, ainda deve ser considerada a situação das famílias que estão em uma situação intermediária, entre o campo e a cidade.” Pensei comigo: “assim como no Brasil…” “E tem mais, – continuou o meu interlocutor indiano, – isto depende muito, também, das diferentes influências que as famílias tiveram e têm a partir de grupos e movimentos católicos, como também do tipo de dedicação que o clero demonstra com relação às famílias de sua responsabilidade.” Mais uma vez, mentalmente, relacionei a similaridade com a realidade brasileira.

O substrato comum das espiritualidades católicas

Quais são os fundamentos da Igreja católica? São as Sagradas Escrituras, a Bíblia Sagrada e a Tradição. Trata-se da doutrina e dos costumes transmitidos pela Igreja, desde os apóstolos, sempre sob a vigilância do poder central da Igreja. A religião católica assim como as demais Igrejas dentro do Cristianismo cultiva e transmite a fé em um Deus, dentro da mesma tradição da fé monoteísta, do conjunto das religiões abraâmicas, como referência ao Patriarca Abraão: o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Na interpretação cristã, Deus se revela, de maneira especial em Jesus de Nazaré como verdadeiro homem e verdadeiro Deus, e na força do Espírito Santo. Em Jesus os planos de Deus se revelam de forma explícita na imagem do Reino de Deus. A partir das falas de Jesus, nós podemos dizer que a Igreja tem o seu centro de referência no Reino.

Qual a origem da estrutura organizacional? Jesus de Nazaré mostrou o desejo de ver a sua missão continuada, através de um grupo de seguidores. O número dos Doze Apóstolos é importante como simbolismo do Novo Povo de Deus, povo que abrange tudo, transfigurado na missão e identidade de Jesus. No entendimento da doutrina da Igreja, os sucessores dos apóstolos são os bispos. Dentre os apóstolos, Pedro recebeu do próprio Jesus uma missão especial de liderança e a sua escolha final de estar em Roma e ali ter morrido mártir, fez com que a tradição definisse o Bispo de Roma, como sucessor de Pedro e chefe da Igreja. O Bispo de Roma passou mais tarde a ser denominado de Papa, pela sua liderança na Igreja. O Papa é um bispo entre os bispos. Ele não é o Bispo do mundo, é o Bispo de Roma, que se relaciona com os demais bispos, como líder religioso. Na hierarquia da Igreja católica, os padres e diáconos são auxiliares dos bispos.

Não se pode falar da Igreja católica sem falar dos sete sacramentos, que talvez sintetizem a experiência de Deus. Os sacramentos da Igreja são apresentados como dons de Deus para a santificação de seu povo. O Concílio de Trento, de 1545 a 1560, definiu os sacramentos em sete. Eles acompanham a vida do cristão do nascimento à morte. Os três primeiros sacramentos são os de iniciação cristã e de cultivo da fé: o batismo, a confirmação e a eucaristia. São aqueles que acompanham o rito de entrada na fé e de cultivo da fé. A Igreja sempre aceitou e aceita batizar crianças, por causa da disposição e promessa dos pais em educar a criança na fé católica.

Se a prática do batismo de crianças é bastante associada à Igreja católica, o mesmo deve ser dito da prática da missa. “Ser católico” lembra “ser de missa”. A missa católica é algo da cultura, até se dá comumente o nome de missa a celebrações que não tem nada a ver com a celebração da eucaristia. O que é a missa? A celebração da eucaristia é um serviço divino, fazendo a atualização do mistério central da redenção na memória da paixão, morte e ressureição do Senhor; ela desempenha papel fundamental na Igreja católica. É sacramento que tem uma centralidade grande na Igreja católica, sendo de obrigação semanal (dominical) para os fiéis, enquanto os padres e bispos normalmente a celebram todos os dias.

Além dos sacramentos da iniciação (batismo e crisma) e de cultivo da fé (eucaristia), a Igreja católica cultiva os sacramentos da cura e os do serviço. Os da cura são: o sacramento da reconciliação ou confissão e o da unção dos enfermos. Trata-se de sacramentos voltados, sobretudo, para o conforto e restabelecimento do ânimo espiritual e corporal. Os sacramentos do serviço e da comunhão são a ordem e o matrimônio. São formas de celebrar e manifestar a presença de Deus, através de serviço à comunidade e da vida de partilha e amor.

Outro componente que deve ser ressaltado é a figura dos sacramentais, que podem ser símbolos, objetos, lugares, rituais e fórmulas de oração e bênção e outras expressões. Os sacramentais não têm, em geral, fundamentação bíblica. Eles foram introduzidos pela própria Igreja ao longo da história, muitas vezes tomando emprestado de outras culturas e de outras religiões. Eles ajudam, pela cultura católica, a reforçar e estimular a própria fé.

A Igreja católica professa a “comunhão dos santos”. Ou seja, para ela, a unidade da fé ultrapassa as barreiras do tempo e do espaço. Nisto está baseada a veneração e a devoção aos santos e às santas que foram modelos para todos os cristãos. A Igreja não se vê como só reduzida aos que ainda estão vivos, mas ela se vê também como “comunhão dos santos”, com todos aqueles e aquelas que já passaram e que estão na eternidade. Maria, Mãe de Jesus, tem uma centralidade muito grande na Igreja católica. Ao longo de sua tradição eclesial a Igreja católica, entre todos os santos e todas as santas, possui uma especial devoção à Virgem Maria, ou, como preferem os indianos, Maria Mãe. Para os católicos, Maria está intimamente ligada à história do povo e à história da salvação e o seu “sim” é modelo para todos os discípulos. No catolicismo popular a figura de Maria é muito respeitada, pois se considera a sua experiência de dor e sofrimento, que a torna muito próxima de todos os devotos, especialmente os pobres e sofredores.

Folheando o catálogo de diferentes espiritualidades católicas

Um aspecto importante na Igreja católica, em sua história, são os mosteiros, as ordens religiosas e as congregações religiosas. O sistema monástico se desenvolveu há muito tempo na antiga Igreja, com base na vida dos eremitas, que se retiravam para o deserto. Hoje existem inumeráveis mosteiros, ordens e congregações religiosas masculinas e femininas. Conhecemos ordens e congregações religiosas com os mais diferentes carismas e formas de engajamento na missão da Igreja.

Formas diversas de espiritualidade foram originadas nesse processo constituindo-se em alimento para diferentes práticas e engajamentos na vida e na missão da Igreja. Neste sentido, apesar de o centro da espiritualidade católica estar na celebração da eucaristia e na vida sacramental em geral, muitas e diversificadas são as formas de reforço espiritual, desenvolvidas ao longo dos séculos. As principais fontes orientadoras desses processos podem ser encontradas nos mosteiros, nas ordens e nas congregações religiosas. Temos como destaque: – a “espiritualidade de retiro”, proveniente dos Monges do Deserto (Santo Antão), impulsionando uma espiritualidade de deserto e de retirada do mundo; – a “espiritualidade beneditina”, concernente à Ordem dos Beneditinos (São Bento), e que alimenta todo um tipo de espiritualidade de busca da perfeição cristã em comunidade, através da oração comum e afastada das preocupações mundanas; – a “espiritualidade franciscana”, originada na Ordem Franciscana (São Francisco), orientando para uma vida desapegada, em pobreza, de amor à natureza e serviço aos pobres; – a “espiritualidade dominicana”, ancorada na Ordem Dominicana (São Domingos), caracterizando-se pela pobreza, amor à verdade e dedicação à pregação; – a “espiritualidade inaciana”, proveniente da Ordem dos Jesuítas (Santo Inácio), caracterizando-se pelos exercícios espirituais, o discernimento da vontade de Deus e o exame de consciência, para em tudo amar e servir; – a “espiritualidade carmelita”, ancorada na Ordem Carmelita (Santa Teresa d´Avila), cujas características principais são: desprendimento interior, silêncio, solidão e busca do progresso espiritual e experiência mística; – a “espiritualidade redentorista”, desenvolvida pela Congregação dos Redentoristas (Santo Afonso de Ligório), caracterizando-se pelo seguimento do Cristo em sua encarnação, morte e ressurreição; – a “espiritualidade mariana ou servita”, ancorada na Congregação dos Servitas ou Servos de Maria (Sete Fundadores) , desenvolvendo práticas focadas em Maria aos pés da cruz, a serviço dos que sofrem.

Além destes caminhos espirituais aqui apontados de uma forma esquemática, poder-se-ia ainda organizar grandes listas de “espiritualidades católicas” organizadas por outras congregações religiosas ou outras vias e momentos, como, por exemplo, a espiritualidade ancorada na organização Opus Dei, nos movimentos leigos pós Concílio Vaticano II em geral, no movimento Schoenstatt, no movimento Focolari, no movimento Santo Egídio e muitos outros.

Quero fazer uma menção especial à “espiritualidade carismática”, pela sua forte expressão hoje no Brasil, à “espiritualidade do diálogo” e à “espiritualidade da teologia da libertação”. Estas duas últimas, em grande parte, porque me ajudam mais a orientar o meu jeito de viver a “espiritualidade inaciana” dentro da Igreja católica.

Três menções especiais para o momento presente

A primeira menção é direcionada para a espiritualidade carismática. Trata-se de uma forma de cultivar a fé cristã muito cultivada, hoje, no Brasil e que repercute profundamente nas famílias católicas pela presença diária aos meios de comunicação. É uma espiritualidade baseada na ação do Espírito Santo e na efusão de seus dons na Igreja, voltada para a renovação carismática da mesma. Trata-se de uma espiritualidade que exerce, também, um forte papel de conforto e cura espiritual e corporal.

Além das repetidas e marcantes invocações para aliviar as pessoas de suas dores espirituais e corporais, trazendo conforto e cura, esta espiritualidade está centrada, sobretudo, na busca de: – praticar a redescoberta da pessoa viva e vivificante de Jesus, como fonte de esperança e salvador do mundo, ontem, hoje e sempre; – o reencontro filial, confiante e feliz com Deus que é Pai; – o gosto pela oração pessoal e comunitária, pelo louvor e pela adoração; – o apreço pela Palavra de Deus e a procura dos sacramentos; – uma maior fidelidade à Igreja e um revigoramento da juventude e vocações sacerdotais e religiosas; – uma liberdade interior que deixe a pessoa ser modelada, convertida e transformada por Deus. A espiritualidade carismática também dá grande centralidade à devoção a Maria, Mãe de Deus, que sempre se deixou guiar pelo Espírito Santo.

A segunda menção a fazer diz respeito a uma espiritualidade do diálogo. Num mundo de crescente consciência da diversidade, o diálogo se faz fundamental para que a humanidade possa crescer em harmonia. Como mencionei no início, a organização deste texto foi realizada durante a minha estada na Índia, sendo embebido pela riqueza multi-milenar e multiforme da cultura e da sociedade daquele país, que, historicamente, sobreviveu através de um múltiplo, criativo, controvertido e, ao mesmo tempo, harmonioso processo de assimilação e resistência a sucessivas dominações. A sociedade indiana tem, também, os seus problemas que, sem dúvida, são sérios e muito desafiadores, mas é incrível, nesse país, a capacidade de convivência na diversidade. O Brasil está despertando, ao longo das últimas décadas, sempre mais, para a riqueza da sua própria diversidade cultural. Esta diversidade está manifesta, de modo especial, nas religiões e religiosidades que se multiplicam.

Cresce a consciência de que a prática do reconhecimento dos outros e a prática do diálogo são formas fundamentais para se viver a missão da Igreja católica dentro deste contexto. Para sintetizar o que caracteriza, em essência, esta forma de espiritualidade, talvez uma frase de G. Gadamer, lembrada por Faustino Teixeira, possa ser inspiradora: “A capacidade constante de voltar ao diálogo, isto é, de ouvir o outro, parece-me ser a verdadeira elevação do homem à sua humanidade.”

A terceira menção é voltada para a espiritualidade da teologia da libertação. A expressão “teologia da libertação” aponta para o fenômeno das comunidades eclesiais de base e também nos faz retomar toda a questão do ensino social da Igreja. Isto demanda um detalhamento um pouco mais amplo.

As comunidades eclesiais de base têm sido uma manifestação muito importante do catolicismo. Aliás, não só do catolicismo, pois é um fenômeno que se manifestou também em outras Igrejas do cristianismo, em certo sentido. Trata-se da organização comunitária a partir da base, sem a interferência da hierarquia clerical. As comunidades eclesiais de base trouxeram um modelo diferente, inverso do que sempre marcou a Igreja, ao longo da história, que é a estrutura clerical.

Este foi o motivo porque chamaram tanta atenção. Elas têm um componente novo, enquanto refletem a opressão vivida pelo povo, a partir de uma teologia, que também se coloca nesta perspectiva, a teologia da libertação. Com o apoio nas ciências humanas, que ajudam a entender e sistematizar o que está efetivamente acontecendo, reflete os problemas vividos pelo povo, tentando retomar a boa nova de Jesus Cristo, que proclama a libertação do povo. A Igreja não veio só para trazer a mensagem da vida eterna, mas ela está aí para ajudar o povo a se libertar das opressões, aqui e agora. A mensagem da teologia da libertação foi marcante para a Igreja católica e outras Igrejas cristãs, sobretudo a partir de finais da década de 1960 e teve grandes repercussões até finais da década de 1980.

Este foi um tempo forte de alimentação de uma espiritualidade nesta perspectiva, sobretudo, no contexto latino-americano em geral e no Brasil em particular. A lembrança do momento forte das comunidades eclesiais de base e da teologia da libertação, reporta-nos a alguns pontos essenciais do ensino social da Igreja. Trata-se, no meu entender, de um aspecto fundamental da identidade da Igreja católica.

Quais são as fontes do ensino social da Igreja católica? No primeiro plano estão as Sagradas Escrituras, partilhadas por todas as Igrejas cristãs. São inúmeras as passagens que poderiam ser referidas. Refiro três, que para mim são emblemáticas: Mateus 25:40 “Tudo que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos a mim o fizestes”; João 9:11 “Aquele que quiser ser o primeiro entre vós, seja o servo de todos”; e Lucas 20:25 “Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Outra fonte do ensino social da Igreja católica, também partilhado pelas outras Igrejas cristãs, são os “Padres da Igreja”, escritores eclesiásticos entre o século II e o século V. Várias linhas temáticas importantes aparecem aí, por exemplo: “Não se pode separar fé, da caridade dos pobres”; “Predileção da Igreja pelos pobres”; “Não somos donos, mas administradores dos bens”; “Todos os bens da criação se destinam a todos os homens”; “O homem tem uma natureza social, é chamado a viver em comunidade”; “Todos os homens temos uma igualdade básica”; “A propriedade privada sem respeito pelo destino universal de todos os bens para todos os homens, é fonte de egoísmos, de ilusões e exploração”; “A participação de bens é uma exigência de justiça”; “Quem não remedia a fome é homicida”; “Alguns ajudam um pobre, mas empobrecem cem”; “Quando se dá esmola se devolve ao pobre o que lhe pertence, é, portanto, obra de justiça”; “A misericórdia com o pobre é justiça”.

Além dessas fontes históricas, o ensino social da Igreja se espelha na vida concreta do povo, em suas organizações e necessita da mediação das ciências humanas para entender cada momento. Devem ser destacados três elementos fundamentais: o próprio clamor dos pobres, em múltiplas formas no cotidiano da vida comum; os movimentos sociais que existem e são expressão organizada do clamor dos pobres; e as ciências humanas, o próprio conhecimento da realidade. Esses três elementos são fundamentais, pois ajudam a desenhar, no espelho da Boa Nova Cristã, o contraste ético mobilizador. Não se trata de uma mobilização caótica e ingênua, mas projetada com método científico e real operacionalidade. Este último aspecto envolve, segundo cada contexto, na maioria dos casos, muita paciência e responsabilidade histórica. Envolve, sobretudo, muito discernimento para acertar como melhor agir para o maior bem de todos e para ajudar a garantir que os marcados pela exclusão tenham as melhores chances para serem reconhecidos como cidadãos.

Diferentes formas de viver o catolicismo

A Igreja católica, no entanto, é um mundo. São muitas e diferentes as formas de viver o catolicismo e a porção dos que se posicionam dentro das orientações, baseadas na teologia da libertação, das comunidades eclesiais de base e do compromisso social, que acabei de esboçar, é relativamente pequena, em muitos contextos do conjunto todo da Igreja. Não se trata de fazer cálculos estatísticos aqui. Entendi que seria importante proporcionar mais este acesso ou atalho, ainda que de forma muito rápida e genérica, dentro da ideia de trazer aproximações para entender as “espiritualidades no contexto das famílias católicas”.

Em exercícios realizados com alunos da disciplina de “sociologia das religiões”, em diversos anos consecutivos, fui elaborando um quadro aproximativo das diferentes “formas de viver religião no Brasil” e dentro disto as diferentes “formas de viver o catolicismo no Brasil”.

No quadro então esboçado, considerando só a categoria católica, foram ressaltados os seguintes “agrupamentos”: – Católicos só de nome, com nenhuma prática religiosa pública; – Católicos cumpridores de algumas exigências religiosas públicas mínimas; – Católicos cumpridores regulares das exigências formais do catolicismo; – Seguidores de práticas mediúnicas, kardecistas espíritas ou de religiões de Matriz africana, confessando-se também católicos; – Ligados a movimentos organizados católicos, Renovação Carismática Católica, Encontro de Casais com Cristo e similares; – Católicos engajados em pastorais sociais e/ou integrantes de Comunidades Eclesiais de Base e engajados no compromisso social.

Trata-se apenas de um esboço a partir da observação empírica. Hoje, eu ainda acrescentaria a categoria dos “católicos comprometidos com o diálogo”… A hipótese levantada por diferentes grupos de alunos foi que este ordenamento estaria correspondendo também à importância numérico-quantitativa dos católicos no Brasil, prevalecendo ainda o número dos “católicos só de nome” e o número dos “católicos engajados em pastorais sociais” continuaria representando, apesar de todo o boom das décadas de 1960 a 1980, o menor percentual. Mesmo que esta hipótese tenha sido formulada no final da década de 1990, é muito provável que o quadro não tenha se alterado significativamente. Ou seja, a hipótese continua atual.

Voltando ao meu interlocutor indiano, fica claro que também na Índia existem diferentes “formas de viver o catolicismo”. Mesmo que ali também exista o fenômeno do “catolicismo só de nome”, não há muita base para tal, uma vez que na Índia o catolicismo é minoria. Não existe, também, obviamente, o “catolicismo praticado junto com adesão a religiões de Matriz africana ou ao Kardecismo espírita”, mas existem casos de convívio entre práticas hinduístas e católicas, em alguns contextos. Aliás, mesmo que haja uma grande vigilância da hierarquia católica com relação a isto, a cultura hinduísta é forte e a fronteira é muito movediça. Muitos modos de proceder, provenientes da cultura hinduísta, estão totalmente assimilados na liturgia católica, destacando-se, sobretudo, o gestual litúrgico. Observados estes dois pontos, as “formas de viver catolicismo” na Índia se assemelham às do Brasil.

Meu testemunho sessenta anos depois

Recentemente, respondi a uma entrevista para uma revista local de circulação restrita, e me surpreendi dando um testemunho pessoal, referente à minha percepção da fé cristã e ao meu modo de proceder. Trata-se de uma reflexão sobre espiritualidade cristã, mas, sobretudo, um testemunho da minha espiritualidade sessenta anos depois daquela espiritualidade que aprendi nos meus anos de infância.

R.R. Como podemos entender a relação fé e vida? Como podemos crescer na fé e crescer humanamente de maneira integral?

Para mim vida humana e fé estão profundamente relacionadas e imbricadas uma na outra. É nesta relação que reside o ponto que distingue mais plenamente a espécie humana das demais espécies de seres animais. Trata-se da condição de conseguir reconhecer-se para além dos próprios limites. Trata-se da condição de reconhecer a dimensão de eternidade dentro de seu próprio existir.

Estes “momentos” de auto-reconhecimento em sua própria dimensão de eternidade assumem diferentes formas e podem proporcionar diferentes resultados, a depender da disposição vivida pelos sujeitos e do tipo de fé que efetivamente cultivam.

R.R. Como o senhor orienta ou orientaria pessoas que vivenciam hoje uma experiência de crise de fé?

Crises de fé em geral representam processos de amadurecimento. A total ausência de crise é mais perigosa. Crises de fé também podem advir do cansaço frente ao muito trabalho e pouco resultado visível, mas este tipo de cansaço vai, muito mais, em uma linha de “desespero” do que propriamente crise… O cansaço ao qual me refiro aqui talvez deva ser mais visto como resultado da falta de cultivo da fé…

Assim como uma pessoa pode entrar num processo depressivo em termos psicológicos, também se pode falar de processos similares em relação à dimensão profunda de nosso existir, que envolve a fé. Assim como as depressões podem ser prevenidas com ocupações adequadas, etc., assim também no plano da fé é importante que não se deixe tudo isto morrer na praia. A fé deve ser permanentemente exercitada. É o mesmo que o amor entre as pessoas. Se este amor não é cultivado, está fadado a morrer.

R.R. Qual o papel da fé nessa fase de transição da sociedade cristã para uma sociedade secularizada?

Creio que existe um equívoco em falar da transição de uma sociedade cristã para uma sociedade secularizada… O cristianismo é uma “religião” eminentemente secular! Jesus Cristo se ENCARNOU na história humana. Ser cristão significa viver a presença de Deus em todas as coisas. A história do Cristianismo, apesar de originalmente ter essa marca secular (de secularização), pode, no entanto, ser lida como uma história de sucessivos processos de forte sacralização da fé cristã. Hoje vivemos em um momento na história da humanidade em que se manifesta sempre mais algo que se poderia denominar de “secularização encantada”. A expressão talvez não seja totalmente adequada porque sugere certas conotações, que não têm nada a ver com o que se quer dizer. Entre estes diferentes encantamentos “seculares” encontra-se de uma forma nova o próprio cristianismo em seu estado mais original.

R.R. Seria possível confrontar-se tão de perto com a realidade da miséria e da injustiça social sem levantar questões relacionadas com a fé e o comprometimento pessoal?

A revolta frente aos males terríveis que subsistem, às vezes até geram crises de fé. As pessoas se interrogam com relação às tragédias da humanidade, a todas as coisas horríveis e todo o sofrimento que diariamente nos incomoda… Como acreditar na existência de um Deus de Bondade e de Amor, que deixa acontecer tudo isto?
No entanto, a realidade da miséria e da injustiça social são desafios para toda a pessoa de fé. Ou seja, as injustiças, a miséria e os sofrimentos humanos não deveriam deixar uma pessoa de fé, indiferente. Caso estes fatos gerem crise de fé então talvez exista algo errado na maneira como a pessoa vive a sua fé e como a sua fé está orientada. A indiferença talvez possa ser considerada o sinal mais cabal de falta de fé.

A questão fundamental está no foco desta atenção ou desatenção que se tem frente às injustiças, à miséria e aos sofrimentos. Por exemplo, alguém como eu, que está orientado por uma perspectiva cristã, nunca apontará Deus como culpado e não vai reivindicar intervenção divina, mas vai interrogar-se sobre a responsabilidade humana e a minha responsabilidade. O que eu posso fazer no meu cotidiano para que essas injustiças diminuam?

R.R. Com relacionar fé e vida, crença e cidadania? Ser cristão hoje exige um comprometimento na construção de outro mundo, outras relações sociais, outras relações ecológicas e ambientais, como pensar tudo isso na integralidade da vida?

Existe algo que é essencial em toda esta reflexão que as perguntas aqui formuladas me provocam: o ser humano é um ser de liberdade! A pergunta é ampla: estou focando as respostas dentro da minha orientação cristã. No entanto, é importante entender-se que vivemos em um momento da humanidade em que mais do que nunca se diversificaram as crenças e também são múltiplas as formas de se entender o que é ser cidadão.

A pergunta foca o ser cristão. Sim, ser cristão sempre significou e significa comprometimento. Isto não é de hoje… O cristão por definição (em seguimento à encarnação de Deus na história) é denúncia de tudo o que está degradando as relações e é comprometido com a construção de outro mundo possível, outras relações sociais, outras relações ecológicas… O mundo cristão ao longo da história tem grandes dívidas com relação a isso. Muitos equívocos, muitos males, muitos pecados, muitas infidelidades aos princípios fundantes do Cristianismo estão escancarados na história.

É necessária uma permanente busca de renovação. Como jesuíta que sou, posso testemunhar, por exemplo, como na última Congregação Geral da Ordem, na qual participei em inícios de 2008, esta questão esteve presente e chegou-se a formular em um dos documentos centrais, a necessidade de sermos protagonistas de NOVAS relações com Deus, NOVAS relações sociais (entre os humanos) e NOVAS relações com o meio ambiente. Portanto, mesmo que isto seja da própria essência do ser cristão, existe uma permanente necessidade de atualização e correção de rota, porque nós humanos somos limitados e frágeis.

R.R. O que dizer para as novas gerações sobre a integração fé e vida? Como os jovens, no seu olhar, têm feito experimentações de fé que proporcionam crescimento humano?

Eu quero fazer um alerta: Nem sempre o que se coloca como “experimentações de fé” são efetivamente experiências que levam a um engajamento comprometido com a história. Olhando numa perspectiva cristã, com o Deus encarnado que trabalha na história da humanidade através da livre ação dos seres humanos.

É muito importante sabermos distinguir entre as experiências pessoais de êxtase e de reconforto e as vivências espirituais que levam a um maior engajamento comprometido com a vida e a história. A dimensão cúltica (de internalização e contemplação) e a dimensão ética (de compromisso histórico) são duas dimensões muito importantes, mas que não devem ser confundidas, muito menos uma dimensão ser reduzida à outra.

Até aqui vai o texto da entrevista, na qual me surpreendo, sessenta anos depois, convivendo em harmonia dentro de uma espiritualidade universal, radicalmente diferente daquela espiritualidade de meu berço infantil, dentro de um mundo pequeno e disciplinado. Aquele era um mundo gostoso e harmônico. Hoje também me vejo vivendo um mundo gostoso e harmônico cultivado dentro de mim, apesar de jogado permanentemente nos desafios das fronteiras do diferente.

Palavras de conclusão

O caminho feito foi de vários atalhos, uns se apresentaram em forma de trilhas transversais, outros constituíram trilhas paralelas e convergentes. Existe uma grande riqueza a ser explorada. O texto levanta diversas hipóteses importantes. Mesmo que eu não tenha buscado fazer um estudo comparativo, o meu interlocutor indiano exerceu um papel chave na escolha dos recortes feitos.

O Brasil e a Índia são dois países grandes e que vertiginosamente estão ganhando destaque no cenário internacional de hoje. O Brasil e a Índia são dois países que apresentam uma grande diversidade cultural e religiosa. Tanto no Brasil como na Índia são desenvolvidos cuidados políticos para que esta diversidade viva numa crescente harmonia. O Brasil tem uma vida relativamente curta em relação à Índia. Nosso país é dez vezes mais jovem. Quando no Brasil falamos em 500 anos, na Índia se fala em 5.000 anos. O Brasil tem 500 anos de forte presença católica, inclusive como religião oficial, ao longo de 400 anos. A Índia tem 5.000 anos de forte presença da religião hinduísta, sendo praticamente a cultura hindu a cultura de base do povo deste país. O hinduísmo, aliás, é um substrato cultural que, segundo suas lideranças em muito ultrapassa os limites dos 5.000 anos de registro histórico.

As mesmas preocupações, que o clero católico brasileiro manifesta com respeito ao esvaziamento nas práticas espirituais católicas no âmbito da família, no meio da agitação do mundo de hoje, sobretudo na cidade, são confirmadas também no meio do clero católico na Índia, o meu interlocutor indiano. Este falou que a redução nas práticas religiosas católicas em casa, no seio da família é preocupante. E acrescentou: “Inclusive no meio rural, apesar de ali ainda existirem mias momentos de oração em família.” Sugeriu que a agitação e os horários diferentes não permitem mais momentos de encontro, mas também entende que o próprio clero não apresenta mais a mesma disposição de fazer um acompanhamento corpo a corpo junto às famílias, ficando mais preso a administrar burocraticamente a paróquia com atendimentos formais. Parecia que ele estava falando do Brasil…

As espiritualidades no contexto das famílias católicas variam muito segundo o próprio grau de adesão religiosa que os integrantes da família vivem. Esta variação também se dá segundo o contexto vivido pelas famílias, tendendo a ser mais intensa no meio rural e mais diluída e, talvez, mais individualizada no meio urbano. É muito provável que o grupo católico, majoritário no Brasil, que foi descrito como “católicos só de nome” não apresentem nenhuma prática católica em família. Isto pode ser muito diferente em outros grupos, sobretudo nos de missa dominical ou pertencentes ativos a movimentos e grupos organizados católicos.

A presença ostensiva, num número crescente de famílias católicas, de missas católicas televisionadas secundadas com preces e bênçãos, coordenadas por sacerdotes, que se movem em grande parte na linha da espiritualidade carismática, é um dado importante a considerar, no contexto brasileiro. Na Índia, mesmo que existam ensaios com relação a isto, não chega a ser marcante, inclusive se fala numa espécie de decréscimo da onda carismática.

Na Índia existe uma religiosidade entranhada na cultura, que transborda toda e qualquer religião. Isto faz com que os indianos sejam pessoas mais espirituais, em tudo o que fazem e dizem. Nós brasileiros temos, com certeza, muito a aprender neste sentido. Aprender, sobretudo, a valorizar as nossas culturas, as nossas crenças e religiões e mesmo as nossas descrenças e negações de religião. Sem raízes culturais fortes ou sem ter tido tempo ou condições propícias de cultura, a sociedade brasileira, em muitos contextos, está se movimentando em geral muito próxima da beira do precipício da banalização e do vazio de sentido. Talvez beber um pouco mais das lições milenares da Índia nos possa alertar desse precipício. As lições a que me refiro não são propriamente as lições religiosas, mas estou falando da valorização das próprias tradições e do respeito às tradições dos outros, propiciando um convívio harmonioso na diversidade.

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