O PAPEL DO INTELECTUAL: 22 ANOS DEPOIS…

Publicado em livro do PPG de Educação “Os 25 Anos do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos: Trajetórias e Perspectivas” em 2019

Uma das formas de produção do conhecimento acontece no próprio processo de educação

José Ivo Follmann

Introdução

Em março de 1997 fui convidado para proferir uma “aula inaugural” no Curso de Mestrado em Educação. O Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos estava ensaiando os primeiros passos, em seu terceiro ano. Na época, a palestra “O Papel do Intelectual no Mundo Atual: Uma Reflexão com Educadores”, representou um desafio muito grande. Via-me como um “estranho no ninho”, um sociólogo no meio de especialistas em educação. Encarei o desafio e creio que consegui atender a expectativa. A palestra foi reproduzida em forma de artigo na Série Educação da Revista Estudos Leopoldenses. (1)

Agora, o mesmo Programa de Pós-Graduação me surpreendeu ainda mais com o convite para escrever “O Papel do Intelectual: 22 Anos Depois…”, integrando a presente publicação comemorativa. Sem dúvida, o desafio encarado em 1997, assume, nos dias de hoje, contornos mais estimulantes. Frente a um Programa que se tornou referência em produção de conhecimento dentro do campo da educação, tenho todas as razões para continuar me considerando um “estranho no ninho”, em uma reflexão com educadores dentro deste tema. Com certeza, cresci na percepção e consciência dos meus limites. No entanto, ao reler o texto de 22 anos atrás, fiquei, em um primeiro momento, surpreso por sua curiosa pertinência para os dias de hoje. A saída mais cômoda e fácil seria a sua “reedição”, com algumas adequações e ampliações. Escolhi, porém, talvez por “audácia irresponsável”, um caminho mais difícil, o de fazer um novo texto, reproduzindo, inicialmente, uma síntese de algumas contribuições do escrito e fala de 1997. A “audácia irresponsável” se deve, sobretudo, ao fato de formular um texto que extrapola da competência sociológica, partindo para um paradigma decididamente transdisciplinar, no qual se mesclam percepções sociológicas e depoimento testemunhal, temperados com sonhos, valores e convicções vivenciados no meu dia a dia.

Os caminhos que trilhei de 1997 até hoje, justificam essa decisão mais difícil e mais estimuladora. Escrevo a partir de um lugar de múltiplas referências, como professor e pesquisador em sociologia (2) , como gestor em instituição de educação superior (3), como integrante assessor de atividades de educação das relações étnico-raciais na Universidade (4) , como integrante articulador de grupo inter-religioso de diálogo (5) , como articulador de promoção da justiça socioambiental da congregação religiosa dos jesuítas no Brasil, tendo como referência o paradigma da “ecologia integral” (6), e, obviamente, como religioso sacerdote católico jesuíta. Algumas temáticas me mobilizaram ao longo desses anos: a própria prática transdisciplinar, as relações étnico-raciais, o diálogo inter-religioso, o processo da sociedade brasileira e, sobretudo, a relação da universidade com a sociedade. São temáticas que ajudaram na “composição do lugar” para a elaboração do presente texto.

Dentro do contexto de explícitas manifestações de recuo obscurantista, que presenciamos no momento atual, senti-me impelido a referir a minha reflexão a dois motes fundamentais: o primeiro é o grande avanço que a humanidade teve com a declaração universal dos Direitos Humanos, feita pela Organização das Nações Unidas – ONU, em 1948, como uma espécie de pacto da verdade humana contra o obscurantismo; e o segundo, é o testemunho do Papa Francisco, nos dias de hoje, conclamando-nos profeticamente a não ficarmos mais insensíveis/indiferentes frente ao risco que a humanidade está correndo, de se afundar no obscurantismo e na desumanização.

O texto está estruturado no formato de cinco pequenos subtítulos, na sequência da presente introdução, constituindo o corpo da reflexão proposta: 1) A retomada sintética de contribuições de 1997; 2) O saber cosmopolita e o papel da universidade; 3) A descolonização das mentes; 4) O Brasil, uma intelectualidade de brancos? 5) A linha da dignidade e os intelectuais. A conclusão leva o título de: “Palavras para (não) concluir”…

Os dois motes fundamentais do texto, acima referidos, trazem em seu bojo a minha crença pessoal com relação ao papel dos/das intelectuais – me refiro aos/às intelectuais das universidades -, como portadores/as de condições privilegiadas para despertar e crescer na sensibilidade, cultivando a dignidade do ser humano e combatendo todas as formas de indiferença e insensibilidade em referência às situações de ausência ou obstrução a condições de vida com dignidade. “Condições privilegiadas”, para mim, sempre soou e soa como dever! O texto deve ser lido nesta perspectiva, ou seja: de defender a importância dos/as intelectuais na defesa do pacto com a verdade humana. Lembremos que aquele pacto de 1948 (declaração universal dos Direitos Humanos) não foi um pacto de sangue, mas um pacto que nasceu do escândalo frente ao inominável derramamento de sangue de que a (des) humanidade tinha sido capaz.

1) Retomada sintética de contribuições de 1997

Em 1997, iniciei o texto referindo que ser intelectual é ajudar a recolher e organizar, por um lado, os caminhos andados no passado e, por outro, as sinalizações existentes em vista do futuro, tendo os pés, o coração e a cabeça muito responsavelmente assentados no presente como preocupação principal. Foi o que orientou basicamente o debate realizado na sequência daquela fala/aula inaugural. Sinalizei que isto pode assumir os mais diversos teores. Apontei, de passagem, a classificação sugestiva feita por Horácio Gonzalez, em sua obra O que são intelectuais (1984).

As sinalizações iniciais do texto, ou melhor, daquela fala, foram temperadas com pitadas de crítica ao que chamei de “patologia acadêmica”. Associando-me a Henry A. Giroux (1990) e Antonio Gramsci (1974), evidenciei minha posição de total desacordo com certas práticas acadêmicas que acabam formando gente inadaptada, “pessoas que se consideram superiores ao restante da humanidade” pelo simples fato de serem vistos/as e se fazerem ver como “intelectuais”. Ressaltei a importância da organicidade social da produção intelectual. Ser intelectual significa ser criador/a e organizador/a da cultura. Mesmo que, a rigor, todo ser humano contribui para tal, o foco naquele texto estava nos/as intelectuais do mundo acadêmico, os/as quais têm uma vocação especial de serviço à cultura e sociedade. Este foco continua sendo, também, a preocupação central do presente texto.

Complementei aquela fala de entrada com a narrativa de uma “conversa de chimarrão” com um morador da vila popular onde eu residia, na época. O meu interlocutor dissera que, no meio onde ele morava, em vez de cultura, o que mais existia era “curtura”… “De cultura não tem nada”. Ele se referia à facilidade com que as pessoas se esquivavam de dar opinião quando perguntadas sobre determinados trabalhos na comunidade, dizendo não estarem preparadas, mas “quando outros tomam a iniciativa e fazem algo, eles tascam o pau em cima”.

Comentei, no meu texto, o quanto aqueles comentários do meu interlocutor popular haviam despertado em mim maus pensamentos a respeito da “curtura” das pessoas cultas. Eu pensava, é claro, nos/as intelectuais da academia, que muitas vezes são “enciclopédias ambulantes” em sua área, mas dificilmente assumem o risco de dar uma opinião quando estão envolvidos diferentes interesses políticos ou sociais. É sempre mais cômodo, permanecer num nível não imputável e de superioridade preservada.

Naquele meu comentário não cheguei a explicitar isto. Apenas enunciei genericamente esses “terríveis maus pensamentos”. Preferi fazer uma breve menção à ideia explicitada por Karl Mannheim (1976), da “freischwende Intelligenz” (inteligência sem vínculos ou amarras). Ressaltava que ser intelectual, nesse sentido, implicava no “cultivo de espírito livre, não diretamente vinculado a organizações e interesses ideológicos, políticos e econômicos muito determinados”. Essa postura é importante, mas estou tendendo sempre mais a pensar que é uma postura inócua ou, talvez, melhor, inoportuna. Pois, no afã de se preservar, o intelectual acaba sendo uma presa fácil dos interesses dominantes.

O corpo principal do texto de 1997 reproduziu aspectos de minha tese doutoral de sociologia, na qual eu havia introduzido um esquema teórico a partir de uma tríplice perspectiva com Alain Touraine (1984), Pierre Bourdieu (1971), Guy Bajoit (1992) e outros, trabalhando simultaneamente a “lógica dos movimentos sociais”, a “lógica dos campos de atividade” e a “lógica do sujeito e da dinâmica pessoal”.

Trata-se, obviamente, de uma simplificação, pois a complexidade não é fácil de enquadrar. Sempre percebi, no entanto, um grande poder heurístico nesse modo simplificado de tratar a questão, pois ao tratar do nível da “lógica do sujeito e da dinâmica pessoal” no cotidiano, fica evidenciado que as lógicas do conflito central na autoprodução societária e as lógicas dos campos de atividades, dão corpo e substância à grande parte deste cotidiano que é movido por sujeitos com suas luzes e sombras pessoais, suas liberdades e seus preconceitos, suas intuições e seus dogmas. O mesmo exercício podemos fazer com os outros dois “níveis” ou “recortes”. Prestar atenção particular à tríplice perspectiva, procurando entender às três lógicas próprias, nos fornece uma chave sociológica muito consistente.

Na sequência, tomando como referência Edgar Morin (2002), destaquei que o ser intelectual tem muito a ver com movimentar-se com liberdade no meio da complexidade do mundo atual; ajudar a humanidade a dar conta da complexidade; ajudar a humanidade a organizar-se, de tal forma que as pessoas não acabem esfaceladas e estraçalhadas.

Nos últimos parágrafos do corpo principal do texto de 1997, referi dois breves lembretes conclusivos. Num primeiro, inspirado em Agnes Heller (1970), sublinhei que o fazer-se em interação na complexidade do cotidiano ajuda o desabrochar do ser intelectual, dando-lhe mil oportunidades diárias para colocar entre parênteses os próprios dogmas e preconceitos. O ser intelectual se faz na medida em que houver esta coragem.

Num segundo lembrete, inspirado em Max Weber (1959), referi a importância de distinguir entre as responsabilidades funcionais dos intelectuais e as suas convicções e valores pessoais. Isto envolve duas “direções éticas” – a da responsabilidade e a da convicção -, irredutíveis, mas que devem ser, sábia e organicamente, integradas. Segundo o meu orientador da tese doutoral Jean Remy (1984), – de saudosa memória, grande admirador e seguidor de Max Weber -, o indivíduo, na concepção sociológica weberiana, é um indivíduo puxado ou assediado tanto pela intensa racionalidade expressa na ética da responsabilidade, quanto por uma certa dose de responsabilidade expressa na ética da convicção. Em uma sessão de orientação, na época, o Prof. Jean Remy me marcou profundamente, com as seguintes palavras: “Nenhuma religião subsistiria se os que estão à sua frente reduzissem todas as suas decisões a apoios fornecidos pelo conhecimento técnico-científico. Como também nenhum empreendimento técnico-administrativo ou de estratégia política subsistiria se os que estão à sua frente se deixassem arrastar pelas crenças e convicções religiosas suas ou dos outros”.

O texto de 1997 ainda sinalizou diversos fenômenos como características da cultura de nossa sociedade, considerados reveladores dos desafios propostos para os/as intelectuais de nossa história e foi concluído com uma rica e fecunda troca de ideias com os/as professores/as e mestrandos/as presentes.

2) O saber cosmopolita e o papel da universidade

Muitas vozes já se levantaram ao longo da história de academia brasileira denunciando os limites inerentes às categorias e métodos cultivados nessa academia. Trata-se de uma academia euro-referente em sua constituição inicial, evoluindo posteriormente para uma referência norte-americana. Suas categorias e métodos são demasiado redutores e limitados para darem conta da complexidade revelada na sociedade brasileira. E, com um agravante: esta complexidade sofria e sofre de um viés colonialista e racista, jogando a academia na vala fácil da reprodução deste viés. A expressão mais patente disso era e é que, por exemplo, negros/as, mesmo quando bem formados/as na academia, continuavam e continuam sendo vistos/as e tratados/as como problema e objeto de pesquisa, e não como protagonistas, sujeitos de produção do conhecimento. (7)

Existe um vigoroso despertar em relação aos limites do mundo acadêmico acompanhados de forte crise epistemológica. Talvez quem melhor conseguiu pautar esta questão tenha sido o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2002; 2007), internacionalmente conhecido e aceito. Trata-se de alguém que nos ajuda a refletir sobre a incapacidade que herdamos para gerar um presente e um futuro condizentes com o que a humanidade espera. Nossas categorias e nossos métodos são insuficientes para dar conta da complexidade da experiência humana. Já não se tem segurança para dar respostas categóricas. (8)

Mais do que uma época de mudanças, estamos vivendo uma mudança de época. Esta assertiva tornou-se um verdadeiro “mantra” repetido ao longo das últimas décadas, a partir das reflexões de Ilya Prigogine (2002) a respeito da ciência cujos paradigmas clássicos atingiram os seus limites exigindo nova visão de ciência e de realidade. Outros pensadores e outras pensadoras fizeram coro a essas constatações. Se estivesse amparando a minha reflexão na filosofia, teria que colocar, sem dúvida, em primeiro plano o filósofo brasileiro P. Henrique de Lima Vaz. No entanto, como a referência de base é a sociologia, devo destacar o português Sousa Santos, aqui referido, que muito transita no Brasil. No pensamento dele fica clara a atenção à mudança de época em termos de epistemologia. Este sociólogo é certeiro ao propor que estamos passando da razão indolente característica do paradigma da ciência moderna, para a razão cosmopolita característica do paradigma emergente.

Ou seja, aquilo que se supunha que estaria sempre mais sob nosso controle e comando, parece tornar-se de mais a mais, um “mundo em descontrole”. A repetição cômoda (indolente) da lógica disciplinar não dá conta da explosão da novidade emergente. Existe uma “linha abissal” entre a reprodução acadêmica cômoda e redutora e a necessária interlocução entre os diversos saberes. O autor nos propõe uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências e fala da importância do trabalho de tradução.

De uma forma, talvez caricatural, ouso ensaiar que Sousa Santos, quando fala das ausências, se refere a todos aqueles “mundos” que foram tornados invisíveis pelo processo civilizatório colonialista. Quando fala das emergências, se refere às múltiplas resistências, iniciativas e criações que foram ignoradas no passado ou não mereceram o registro que lhes era devido ou que despontam e se afirmam nas sociedades em ebulição que vivemos. Quando fala em tradução, se refere ao esforço de romper com a estreiteza epistemológica, lançando pontes de diálogo fecundo entre os saberes “disciplinados” e “não disciplinados”.

Este autor consagrou a concepção de “ecologia dos saberes” (9), apontando para o significado profundo daquilo que outros denominam de “transdisciplinaridade” (10) ou “teoria da complexidade” (11) . A sua reflexão conduz a uma crítica radical ao modo de ser da academia, em geral, quando se fecha sobre si, não deixando fluir por dentro dela a vida da sociedade em sua complexidade, ou seja, quando deixa de ter sintonia e compromisso com os problemas, os movimentos e as expectativas da sociedade. Ele também sinalizou uma postura crítica certeira contra as práticas de extensão da universidade, quando estas não repercutem na própria vida e modo de produzir conhecimento da mesma. Ficou consagrada uma frase dele, em epígrafe na apresentação do texto do Plano Nacional de Extensão:
Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino. (12)

Mudando de registro, mas sem sair do foco, quero fazer três menções, que considero oportunas e relevantes, para encerrar o presente item: Em primeiro lugar, a contribuição de Jabier Gorostiaga sj, um economista jesuíta, que conheci quando ele atuava como secretário executivo no Planejamento Estratégico da Associação das Universidades Jesuítas de América Latina – AUSJAL. Ele liderou, nos inícios dos anos 2.000, o processo de planejamento em pauta, no contexto do qual foram formuladas três perguntas-chave: – Que tipo de sociedades queremos? – Que sujeitos precisamos para que essa sociedade aconteça? – Como devem ser nossas universidades, em vista disso? (13) Estas perguntas ficaram registradas profundamente no meu horizonte. Cultivei um grande apreço por Gorostiaga e a maneira concreta como ele e os demais envolvidos no Planejamento da AUSJAL se empenharam em aplicar para a América Latina as orientações para a educação da Companhia de Jesus. Trata-se de uma educação cujo fim não está nela mesma, mas no serviço à sociedade, na construção de uma sociedade inclusiva e justa onde o centro de tudo está no ser humano e sua dignidade. Isto exige que o nosso foco como intelectuais envolvidos/as em universidade, nesse contexto, seja o ser humano e sua dignidade.

Em segundo lugar, de forma complementar, jogando-nos de cara na realidade brasileira, as importantes provocações dos textos e falas do sociólogo Jessé Souza (2015; 2017; 2018a,b), talvez o sociólogo mais em evidência nos últimos anos no Brasil, quando ele faz uma crítica consistente à universidade brasileira, atrelada em grande parte, de forma geral não consciente, à reprodução do modelo de educação e de produção do conhecimento, alinhado ao serviço de uma perspectiva de desenvolvimento que constrói um Brasil insensível, de 20% da população de “gente bem”, sem gerar mecanismos efetivos de inclusão dos demais 80% submetidos/as às mais diversas formas de privação e de exclusão. Segundo o autor:
Pelo menos 90% do que se passa por científico nas ciências sociais e costuma ser ensinado nas universidades não passa de mera confirmação de um conjunto de preconceitos que visa eternizar a dominação social de uns poucos sobre muitos. (SOUZA, 2018b, p.11)

O mesmo autor, em termos que caracterizo como “denúncia profética”, nos fornece um comentário complementar, afirmando ainda que:

O essencial é constatar o papel do conhecimento como um capital tão importante para o funcionamento do capitalismo quanto o próprio capital econômico. O próprio dinamismo econômico do capitalismo advém de seu aproveitamento sistemático da ciência e do conhecimento nos meios de produção”. (SOUZA, 2018b, p.69-70)

Em terceiro lugar, ao falar em “gente bem” e falando da intelectualidade das universidades, cabe uma nota e uma interrogação a respeito da meritocracia hipócrita, da qual o mesmo autor fala repetidamente em suas obras. Existe, na sociedade brasileira, uma cultura de classificação e hierarquização intelectual por méritos curriculares, baseada em indicadores, imputados como universais. Estes mecanismos, embora possam ser, sem dúvida, impulsionadores de “produção acadêmica”, apresentam aspectos questionáveis. Uma revisão nessa prática se faz urgente, caso o país queira livrar-se dos seus próprios vícios estruturais geradores de desigualdade e exclusão porque a chamada meritocracia está aí para premiar os já premiados e, sobretudo, legitimar a distinção dos premiados. Assim, vantagens e privilégios herdados de berço, em geral sem esforço, acabam sendo revestidos e mascarados como “méritos”. Quem não herda as vantagens e privilégios de berço tem a sua trajetória intelectual prejudicada de raiz.

Que sociedade queremos? Uma sociedade que exclui a maioria de sua população das condições de vida digna, ou uma sociedade onde todos/as tenham chances e condições de vida digna? Uma sociedade onde os indivíduos possam exercer os seus dons naturais, independente das condições de herança? Quais os apelos que devemos dirigir aos/às intelectuais que consubstanciam a vida das universidades brasileiras? Que critérios além dos existentes, devem ser considerados na classificação e hierarquização da intelectualidade na sociedade?

3) A descolonização das mentes (14)

O Papa Francisco, em um de seus gestos, alguns meses depois de assumir como bispo de Roma e líder máximo da Igreja Católica, visitou, em 08 de julho de 2013, a ilha siciliana de Lampedusa, local que testemunhava a tragédia cotidiana de grupos de africanos, buscando desesperadamente entrar em território europeu. “Vivemos em uma globalização da indiferença”, clamou o Papa. Com palavras duras contra a insensibilidade humana que impera, o Papa orou, dizendo: “Peçamos ao Senhor que nos dê a graça de chorar por nossa indiferença, pela crueldade que existe no mundo, dentro de nós e naqueles que, no anonimato, tomam decisões socioeconômicas, a nível mundial, que levam a dramas como este”. (15)

A palavra chave no combate à insensibilidade e indiferença é o reconhecimento. A insensibilidade e a indiferença com relação ao outro e à outra só são superadas com atitude decidida de reconhecimento deste/a outro/a em sua dignidade. Inspirados no Papa Francisco, talvez devamos dizer que a epidemia mais forte, vivida pela humanidade, hoje, é a insensibilidade/indiferença frente às condições indignas vividas por segmentos sempre mais amplos da população mundial. A falta do reconhecimento concreto dos sujeitos desses segmentos clama por nossa responsabilidade. Clama pela responsabilidade das universidades e dos/as intelectuais que as consubstanciam. É algo que não pode ficar fora dos indicadores de avaliação de um/a intelectual em nossos dias.

Trata-se de um apelo desafiador para os/as intelectuais das universidades brasileiras uma vez que é conhecido que o Brasil vem gerando uma das desigualdades sociais mais iníquas e escandalosas. Devemos perguntar-nos: Como lidar com este apelo, quando sabemos que somos vítimas de mecanismos e vícios, que, de forma perversa, facilitam o trânsito da insensibilidade e da indiferença irresponsáveis? Talvez entre esses mecanismos e vícios o mais tremendo e fatal seja a estreiteza hipócrita da já referida meritocracia, na forma como é praticada em nossa sociedade, às vezes não conseguindo disfarçar o próprio racismo que ainda impera nesta sociedade. Ou, talvez, sejamos presas fáceis das soluções hipócritas e interesseiras tanto de “direita” como de “esquerda”?

A mentalidade colonial permanece muito acesa em grande parte dos âmbitos de nossa sociedade, que leva a marca de uma elite branca que se cega em seus privilégios e “méritos”. Continuamos tendo sinais vivos do racismo colonial hipócrita e mal disfarçado no Brasil, sempre que prestamos atenção aos grupos marginalizados de negros, indígenas e outros, que seguem sendo empurrados para as classes inferiores da sociedade, assim como o foram ao longo de todo processo histórico. Este processo foi e continua sendo um processo de branqueamento. Descolonizar as mentes embranquecidas da sociedade brasileira, é, sem dúvida, um dos primeiros desafios do/a intelectual nas universidades de nossa sociedade.

Um dos motes mais vigorosos nas reflexões de Petronilha Beatriz Gonçalves da Silva sobre a Educação das Relações Étnico-raciais – ERER é a importância e urgência da “descolonização das mentes”. (16) Podemos dizer, talvez, sem receio, que na medida em que o Brasil souber levar a sério o processo de educação das relações étnico-raciais tal como está prevista na Lei de Diretrizes e Bases – LDB (1996), através de instituição da lei complementar 10.639/2003 e 11.645/2008, a sociedade brasileira não será mais a mesma. Os/as intelectuais estarão libertos/as dos constrangimentos mesquinhos no convívio com falseamentos e embustes, no que diz respeito aos preconceitos e discriminações étnico-raciais e outros, ainda profundamente presentes na mente e no coração da maioria.

4) Brasil, uma intelectualidade de brancos?

Segundo Jessé Souza, vivemos em uma sociedade que conseguiu trazer até nossos dias com muito sucesso e praticamente intacta a marca ideológica da estrutura escravocrata, gestada ao longo dos quase quatro séculos. É a estrutura mental de uma sociedade dividida entre “senhores” e “escravos”, entre cidadãos/ãs e não cidadãos/ãs, entre os que “naturalmente” merecem ser incluídos/as e os que “naturalmente” são excluídos/as. Esta estrutura mental transita tranquila, acobertada e dissimulada pela ideologia perversa de um povo alegre e pacífico e pelo mito da “democracia racial”. Nem mesmo a violência que desponta por todos os lados, parece alertar suficientemente para o desafiante embuste ideológico que caracteriza a sociedade de classes, que é o Brasil, e que marca todo processo vivido por nossa sociedade. As classes dominantes no Brasil efetivamente tiveram sucesso na sua elaboração ideológica. Isto se deu, sobretudo, porque a intelectualidade brasileira pendeu para o reforço dessa ideologia de reprodução colonial. (17)

Este autor faz críticas severas ao papel das universidades e dos/as intelectuais, dentro delas, por não terem contribuído suficientemente para romper esse esquema. Pelo contrário, como já foi referido anteriormente, serviram de reforço e reprodução do mesmo. Ele dirige as suas críticas a diversos autores de renome na história da sociologia brasileira (18) , cujas contribuições, às vezes geniais, acabaram reforçando mais a reprodução da estrutura de dominação do que a instauração de processos de transformação e superação da herança colonial.

As críticas de Jessé Souza são consistentes, sobretudo, quando demonstram a perversidade de ideias veiculadas na academia, na mídia falada e escrita, na política e na sociedade em geral, reproduzindo ou usando de forma simplificada e caricatural concepções elaboradas, dentro do meio acadêmico. As críticas incidem, sobretudo, no descuido intelectual com relação à estrutura de desigualdade social, gerada pela ganância desmedida da elite econômica brasileira, mas também incidem na forma, ingênua ou não, de acobertar ou dissimular esta mesma estrutura.

Somos uma sociedade cuja história veio sendo sistematicamente falseada e reproduzida, onde a mentalidade em geral tende a permanecer desgraçadamente obtusa e colonizada. Somos uma sociedade na qual a questão racial habita no cerne da questão social. No entanto, é necessário estarmos atentos: em geral, quando se fala da marca racial dentro das relações de classe a atenção se volta para a população negra, como objetos de análise. A professora Adevanir Aparecida Pinheiro (2018), mesmo reconhecendo o importante mérito de Jessé Souza, pela forma genial de pensar o Brasil, destacando os quatro séculos de estruturação da sociedade brasileira sob a marca da escravidão, ensaia uma crítica ao autor, retomando o argumento de que:
O problema é que quando se fala dessa marca racial, normal-mente toda carga de reflexão é colocada para o lado dos negros e pouco se fala dos brancos. Às vezes parece que na cabeça dos intelectuais, o problema racial existe porque existem os negros, quando é exatamente o contrário. É fundamental que a nossa atenção de estudo se volte para os brancos. (PINHEIRO, 2018, p. 170)

Mesmo que Jessé Souza não dê vazão para este tipo de postura, pois inclusive distingue entre “racismo racial”, “racismo de classe” e “racismo cultural”, ele se exime da oportunidade de denunciar com veemência o risco do “esquecimento”, mais uma vez, do racismo de brancos/as contra negros/as na sociedade que persiste forte, inclusive no meio acadêmico. Ele perde a oportunidade de colocar em evidência a mente colonizada do/a branco/a. É necessário que as mentes sejam descolonizadas. É necessário ampliar o estudo da “branquidade”. É necessário que as cabeças dos/as intelectuais sejam descolonizadas.

Os três eixos temáticos centrais de Jessé Souza (2017) em sua sociologia da sociedade brasileira, são: a marca da escravidão na sociedade; a força da perspectiva economicista na percepção das classes; e o racismo cultural na atualidade. Pinheiro (2018), atenta a esses três eixos do autor, registrou ter ficado intrigada com o fato de não ter tido respostas suficientes à questão do “branco na sociedade”:

A história da sociedade brasileira foi marcada profundamente em sua identidade por todo um conjunto de políticas de branqueamento que foram se sucedendo até nossos dias. O Brasil acabou se concebendo como uma sociedade branca. Ou, então, mestiça, com uma radical referência branca europeia. Como se explica isto, quando estatisticamente a maioria dos brasileiros tem em suas veias correndo o sangue africano? O que fez com que a branquidade tomasse conta da alma brasileira? Por que a intelectualidade brasileira não se insurge contra isto? Até parece que a própria academia tem pacto firmado com as elites brancas. Jessé Souza nos conduz muito bem para este horizonte de interrogações, mas acaba ficando a meio caminho neste ponto. (PINHEIRO, 2018, p. 177)

Segundo a autora, que faz uma distinção muito didática entre “branquidade” e “branquitude”,(19) é urgente que as mentes brancas sejam libertadas de sua branquidade. Talvez o sociólogo pudesse completar a sua obra avançando para um quarto eixo de atenção, além dos três eixos que são os direcionadores da mesma. Este quarto eixo poderia ser algo como: o branco brasileiro e a branca brasileira, quem são como se comportam? (PINHEIRO, 2018, p.178). No mesmo sentido este quarto eixo ajudaria também a aprofundar como este ser e este comportamento do branco brasileiro e da branca brasileira repercutem na mente e no coração dos negros e das negras e dos povos indígenas em nossa sociedade? (20)

Como descolonizar as mentes embranquecidas? Para abreviar, como já fiz em outros textos, vou trazer um registro para a reflexão que pode parecer estranho, mas tem vigor estratégico: Em um documento elaborado por uma equipe internacional e intercultural de jesuítas, sob a coordenação do Secretariado de Justiça Social da Companhia de Jesus, que circulou, a partir de fevereiro de 2006, no meio dos jesuítas em vista da preparação da 35ª Congregação Geral (Parlamento Superior dos Jesuítas), encontravam-se, entre outras, as seguintes recomendações: – “é recomendável que cada jesuíta se empenhe em defender ao menos uma cultura, que não seja a sua” (…); – “é recomendável que cada jesuíta se empenhe em estudar a fundo uma religião que não seja a sua” .(21)

Isto não está formulado assim em nenhum texto oficial. Trata-se, no entanto, de recomendações inspiradoras e que fazem parte do espírito da Companhia de Jesus. É uma ótima fórmula, por exemplo, para um/a branco/a romper as algemas de seu embotamento racial, colocando-se na efetiva defesa da população negra (ou indígena), tomando atitude e fazendo de sua prática cotidiana uma ‘prática afirmativa’ destes/as outros/as tão espezinhados/as em nossa história; ou, então, para um/a católico/a tomar conhecimento da profundidade das concepções teológicas das religiões de matriz africana ou outras, para conhecê-las, antes de julgar a partir de informações preconceituosas e carregadas de medo. Para se perder os preconceitos e o medo é necessário conhecer. Ninguém pode reconhecer a outrem quando nem sequer conhece. O conhecimento do outro e da outra, não como objeto de nosso estudo, mas como sujeito que se dá a conhecer, é um caminho infalível para descolonizar as nossas mentes e nossos corações. (22)

5) A “linha da dignidade” e os/as intelectuais.

Este subtítulo é uma provocação para o/a intelectual na educação. Mas é, especialmente, uma provocação dirigida àqueles/as que lidam com a chamada “pedagogia inaciana” ou “pedagogia inspirada na espiritualidade inaciana” e àqueles/as que lidam com “educação popular”, quando se quer pensar e propor um processo educacional condizente com as classes populares em nossa sociedade.

Inspirado em Charles Taylor (1979) e suas reflexões sobre a dignidade, Jessé Souza concebe a “linha da dignidade” na sociedade brasileira, como uma divisão, mais ou menos definida na sociedade, entre aqueles/as que são a “gente bem”, os cidadãos e cidadãs que usufruem com maior ou menor facilidade as condições de uma vida digna em sociedade, e aqueles/as que se encontram privados/as dessas condições e sobrevivem em condições não dignas do ser humano: a “ralé” brasileira como o autor afirma, sem dar a esta expressão conotação pejorativa ou ofensiva. O que está em questão é o ser humano em sua dignidade.

Constatei, ao longo de meu aprendizado, que existem importantes e oportunas aproximações que podem ser feitas entre a pedagogia inerente à espiritualidade inaciana e a proposta do educador brasileiro Paulo Freire (2000), pai da educação popular no Brasil.

As duas propostas centram a sua preocupação na existência do ser humano no mundo e sua vocação de se tornar mais humano. Ambas propõem uma ação educativa libertadora, buscando possibilitar a humanização do ser humano e do mundo. A humanização é a grande tarefa apontada nas duas propostas. Ou seja, tanto a espiritualidade inaciana, quanto a educação popular freireana trazem, inerentes à sua proposta, a dignidade da pessoa humana. Ambas propostas denunciam a perversidade da “linha da dignidade”, acima referida, as suas causas perversas e apontam caminhos de superação da mesma.

Existem evidentes restrições a serem feitas nesta comparação uma vez que os dois nomes em pauta viveram com concepções teóricas e visões de mundo muito diferentes, distantes, no tempo, mais de quatro séculos e em contextos culturais muito diversos. O fundador dos jesuítas viveu no século XVI e, obviamente, não tinha condições de ter a mesma análise da sociedade (análise de classes) que Paulo Freire teve, no século XX. O próprio conceito de educação popular, tal como o conhecemos, está obviamente vinculado à educação dos sujeitos das “classes populares”.

O que nos interessa, na comparação feita, é a concepção de pessoa do/a educando/a e o modo como o/a educador/a se relaciona com esta pessoa. A espiritualidade inaciana nos fornece chaves importantes no cultivo permanente da coerência evangélica, apontando para a importância radical da vigilância para não entrarmos em contradição entre o nosso modo de ser e o nosso modo de fazer. No paradigma pedagógico freireano, o nosso ser e o nosso fazer devem estar harmonicamente integrados, como ponto fundamental de uma metodologia imbuída de solidariedade concreta com os pobres.

Ou seja, tanto para inacianos/as como para freireanos/as, não cabe um trabalho sobre pobres ou para pobres; é necessário que isto passe pela nossa radical solidariedade com os sujeitos pobres. Para ambos é importante a vigilância com relação a isto. A busca do magis inaciano ou do ser mais freireano é um princípio de permanente de desacomodação, sem comprometer a coerência evangélica e a integração harmônica entre o ser e o fazer.

Tanto na pedagogia inspirada na espiritualidade inaciana, quanto na pedagogia de perspectiva freireana, destaca-se a centralidade da pessoa humana no processo educativo e de todo processo de planejamento da ação. Ou seja, a centralidade da dignidade humana é o mote supremo do trabalho intelectual na educação.

Eu trouxe este breve encarte, estabelecendo um paralelo entre a pedagogia inspirada no paradigma inaciano e a pedagogia inspirada no paradigma freireano, para lançar uma questão mais ampla: “o que esperar dos/as intelectuais nas universidades no confronto com a linha da dignidade”? Sugiro que, assim como Santo Inácio e Paulo Freire – em situações e soluções totalmente distintas -, tiveram como mote supremo a dignidade humana, assim também o mote supremo do trabalho intelectual deveria ser a superação da linha da dignidade.

Nos tempos de risco obscurantista em que vivemos, mais do que nunca precisamos estar alertas para a superação da chamada linha da dignidade. Concluo com o nosso ponto de partida, na reafirmação das conquistas que a humanidade veio realizando, sobretudo, depois dos escândalos das guerras mundiais e da crença pessoal de que os/as intelectuais têm as melhores condições para estar livres dos embrutecimentos e despertar para a sensibilidade humana e o rompimento com a insensibilidade/indiferença frente às condições não dignas de seres humanos.

Palavras para (não) concluir. (23)

Um dia, em uma palestra para estudantes e professores/as de Direito, fiz referência à passagem da Sagrada Escritura, que trata da breve narrativa intitulada “o jovem rico”. A frase que eu queria relembrar era: “Como é difícil um rico entrar no Reino dos Céus”! Trata-se de uma narrativa conhecida. O que está registrado é que os discípulos reagiram escandalizados, frente ao Mestre, dizendo: “Mas, então, Mestre, quem poderá se salvar”? Ou seja: Como assim? Até agora sempre nos foi ensinado o contrário. Foi-nos ensinado que os ricos são abençoados… Jesus conclui: “Para os homens isto parece impossível, mas para Deus tudo é possível”. Eu concluía minha reflexão, depois da leitura do texto, dizendo: Ser rico, no sentido bíblico, significa ser insensível e indiferente frente à sorte dos outros. Deus não é insensível/indiferente para com os seres humanos. Para nós, também, tudo será possível na medida em que não formos insensíveis/indiferentes para com os outros.

No paradigma pedagógico inaciano, do qual alguns aspectos foram lembrados anteriormente, são conhecidos cinco passos (ou momentos) fundamentais: – o estar atento ao contexto; – o reviver as experiências; – o aprofundamento na reflexão; – a ação coerente com os passos precedentes; – a avaliação de todo o procedimento.

Dentro do tema aqui em pauta, chamo a atenção para os três primeiros passos ou momentos, ou seja: Em primeiro lugar, a tradição inaciana nos ensina que devemos ter sempre uma grande atenção ao contexto. Em segundo lugar, não se trata de um contexto simplesmente externo ou visto – friamente -, de fora, mas de um contexto com vida. Contexto no qual a vida é experimentada concretamente, com suas alegrias, sofrimentos, esperanças e angústias. Precisamos estar atentos aos sentimentos envolvidos e à capacidade de “com-paixão”. Em terceiro lugar, o ato de reviver pessoalmente – saborear internamente – as experiências, nos dá as bases necessárias para que a nossa reflexão – a aplicação dos nossos conhecimentos teóricos – seja realmente um momento que leve em conta radicalmente o ser humano envolvido, dando-nos maiores garantias de acertarmos na ação. Uma reflexão, por mais competente que seja em termos de conhecimento da legislação e de sua formalidade processual, pode levar a tremendos limites, se não estiver ancorada neste mergulho experiencial no contexto.

O meu pensamento retornou à reflexão bíblica apontada inicialmente, inquirindo: O que é ser rico? O texto sagrado aponta claramente em outra passagem – O Rico Epulão – associando o “ser rico” à insensibilidade e às indiferenças frente ao sofrimento e à desgraça alheia. Para não corrermos o risco da insensibilidade/indiferença para com os seres humanos, como intelectuais, é necessário que a formação nos proporcione condições de enxergar para além dos estreitos limites disciplinares. A ecologia dos saberes, a prática transdisciplinar e o pensamento complexo são uma chave importante para tal. Isto, no entanto, só será completo se, por dentro de tudo, fluir o reconhecimento do outro como sujeito com dignidade e a postura ética de valorização do ser humano enquanto tal.

A rigor, quem for atento à pessoa humana, à dignidade da pessoa humana, quem for radicalmente voltado ao valor da vida humana, sempre irá para além das compreensões disciplinares, dos posicionamentos teóricos, dos posicionamentos ideológicos de “direita” ou de “esquerda” e dos rumores do cotidiano. O/a intelectual não se reduzirá a ser mais ou menos transgressor/a disciplinar, a ser mais ou menos habilidoso/a em transitar entre as diferentes disciplinas e posicionamentos teóricos, a ser mais ou menos malabarista do cotidiano. Sairá, também, da vala comum da meritocracia hipócrita. A sua verdade (a ser buscada) é a dignidade humana, na superação de todos os obscurantismos e negações desta dignidade.

A sua prática sempre levará a transcender as suas aptidões e malabarismos, para buscar uma ancoragem firme em valores éticos de respeito à dignidade humana e o sincero empenho em construir sociedade onde todos e todas possam viver com dignidade. Tenho a certeza de que no entender da maioria que lê o presente texto, é nisto que reside o ser intelectual de verdade, porque é ser humano de verdade, que honra o pacto com a verdade humana.

Notas:

  1. Revista Estudos Leopoldenses, Série Educação, V. 1, N. 1, 1997, p.9-26
  2. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Linha de Pesquisa: Identidades e Sociabilidades, UNISINOS. (A partir de 1999).
  3. Diretor do Centro de Ciências Humanas (1998-2003), Diretor de Ação Social da Universidade (2004-2007), Vice-Reitor da Universidade (2007-2017).
  4. Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas – NEABI (Coordenado pela Profa. Dra Adevanir Aparecida Pinheiro). (A partir de 2008)
  5. Grupo Inter-religioso de Diálogo – GIRD (hoje integrando o NEABI). (A partir de 2002)
  6. Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA, da Província dos Jesuítas do Brasil. (A partir de2016)
  7. Um exemplo bastante evidente foi o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, um renomado sociólogo a partir da década de 1950, com muitas obras publicadas, mas que sofreu um certo processo que “misteriosamente” o tornou bastante invisível, com dificuldade de acesso ao “convívio dos eleitos” na academia branca, talvez vítima da “patologia social do branco” sobre a qual ele tem importantes reflexões.
  8. Talvez tenhamos que acrescentar, com Jessé Souza (2015, 2017, 2018a, 2018b), que nossas categorias e métodos não ajudam suficientemente para nos livrar da marca do longo período de escravidão que pesa na mente e estrutura de nossa sociedade.
  9. Como que sugerindo que os intelectuais são os organizadores de todos os saberes (não só os disciplinados) da mesma casa comum…
  10. Para Basarab Nicolescu, “a transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica (…) diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina”. (NICOLESCU, 2000, p.15)
  11. Edgar Morin é a referência na teoria da complexidade. Um destaque didático pode ser dado à obra ‘os setes saberes necessários à educação do futuro’ (MORIN, 2002).
  12. Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e SESu / MEC. Plano Nacional de Extensão. (Edição Atualizada, 2000/2001).
  13. AUSJAL. Plan Estratégico de la Asociación de las Universidades Jesuítas de América Latina – AUSJAL 2000-2005. Caracas, Venezuela, 2000.
  14. Este ítem, nos primeiros três parágrafos, transcreve partes adaptadas de FOLLMANN (2014).
  15. Homilia do Papa Francisco na visita a Lampedusa: http://papa.cancaonova.com/homilia-do-papa-na-missa-em-lampedusa-08072013/ .
  16. Conferência proferida no Encontro de Formação Docente na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, em 2013. A Prof. Dra. Petronilha B. Gonçalves da Silva é uma das principais referências na elaboração e condução da política da Educação das Relações Étnico-raciais no Brasil – ERER.
  17. Este parágrafo é transcrição literal adaptada de excerto de capítulo do próprio autor publicado em Follmann (2018).
  18. Os principais alvos de crítica do autor são: Gilberto Freyre (1987), Sérgio Buarque de Holanda (1993), Roberto Da Matta (1986), Raymundo Faoro (2012) e outros.
  19. …a distinção entre “branquidade” e “branquitude”, ou seja, para uma percepção mais próxima da realidade vivida pelos/as brancos/as na sociedade, temos, ao menos, duas grandes categorias: aqueles/as que são branquidade e que não estão nem aí com a questão racial, vivem como se ela não existisse, não têm o mínimo de consideração com os diferentes, isto é, a única consideração que têm é o desprezo. Há aqueles/as que são branquitude, que reconhecem o problema, reconhecem o diferente e assumem atitude frente à questão. (PINHEIRO, 2018, p. 170-171)
  20. Segundo Souza (2018b, p.74) existe um sadismo e perversidade das classes privilegiadas, na herança escravocrata, intocada no seu “núcleo patológico”. Poderíamos estabelecer uma ponte com a “patologia social do branco” de Guerreiro Ramos?… Jessé Souza é recorrente em chamar a atenção para o “racismo de classes” contra os pobres, de todas as cores, se bem que a grande concentração nesse meio, ele lembra sempre, é de negros/as…
  21. SJS-SJ. Globalizacion y Marginación: Nuestra Respuesta Apostolica Global. Roma: Companhia de Jesus-Secretariado para la Justicia Social, fevereiro, 2006.
  22. A experiência pessoal em um Grupo Inter-religioso de Diálogo, a partir de 2002, fez com que eu tivesse uma percepção nítida de que o diálogo inter-religioso é um verdadeiro laboratório transdisciplinar. Como sociólogo das religiões, tenho a certeza de que se trata de um dos caminhos mais fecundos nas ciências da religião. (A experiência referida foi no quadro do Programa Gestando o Diálogo Inter-religioso e o Ecumenismo – GDIREC, UNISINOS).
  23. Este texto (in)conclusivo retoma excertos de publicação Follmann (2015) em livro organizado por Sandra Martini e Bárbara Costa.

Referências

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