O APOSTOLADO SOCIAL FAZ PARTE DO ‘DNA’ DA COMPANHIA DE JESUS

Entrevista publicada em agosto de 2010, em IHU OnLine.

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

Entrevista publicada por Graziela Wolfart no IHU OnLine Edição 337 | 09 agosto 2010. O entrevistado demonstra a sua crença de que os jesuítas têm por vocação buscar sempre o bem maior e mais universal e que o trabalho em rede pode ser um importante facilitador para isto. Depois de relatar aspectos da trajetória histórica do apostolado social da Companhia de Jesus, o professor e padre jesuíta José Ivo Follmann afirma, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line: “retomando e reforçando o binômio Serviço da Fé e Promoção da Justiça e a urgência do Diálogo Cultural e Inter-Religioso, as novas dimensões que apontam forte são o cuidado com o meio ambiente (dimensão ecológica) e a atenção às novas fronteiras, num mundo que avança vertiginosamente no meio científico e tecnológico levando às vezes de roldão a dignidade e o sentido da existência humana”. Mas reconhece que “nem sempre o social conseguiu ter a visibilidade e a importância que o carisma inaciano lhe exige”.

IHU On-Line – Qual a postura e as principais ações da rede SJ-CIAS na Província do Sul?
José Ivo Follmann – A Rede SJ-CIAS (Rede Jesuíta de Cidadania e Ação Social) nasce da urgência de termos uma ação articulada e efetiva no Setor Social da Província do Sul. Nasce, sobretudo, da necessidade de aprendermos a trabalhar em rede. A palavra chave é APRENDER. SJ-CIAS quer ser uma escola de aprendizado para que saibamos colocar-nos em rede nacional, latino-americana e mundial. Para trabalhar em rede é necessário que comecemos em nossa própria casa. Precisamos cultivar-nos nesta exigência que se faz sempre mais irreversível para que nossas ações ganhem em força e em amplitude. Como jesuítas, nós temos por vocação buscar sempre o bem maior e mais universal. O trabalho em rede pode ser, sem dúvida, um importante facilitador para isto.

IHU On-Line – O senhor poderia recuperar a história do apostolado social da Companhia de Jesus? Quando isso começa? Quais são as motivações iniciais? Como surgiram os CIAS? Como isto chegou até nós?
José Ivo Follmann – O Apostolado Social faz parte do DNA da Companhia de Jesus. Inácio de Loyola, que era de estirpe nobre, viveu o seu processo de conversão em uma profunda experiência de encarnação na condição de mendigo. Para ele e seus companheiros, na Itália, já a partir de 1537, (portanto dois anos antes da fundação da Companhia), o Apostolado Social (práticas junto aos empobrecidos) era uma das frentes de atividade, ao lado da pregação, do ensino catequético e da confissão. É de destaque uma importante iniciativa social junto às mulheres de rua ou prostitutas, em Roma. Por diversos fatores, o apostolado social, enquanto tal, não chegou a ser colado historicamente à “marca” jesuíta enquanto apostolado próprio da Companhia, até a primeira metade do século XX. Isso está relacionado, em grande parte, com a concepção de pastoral que predominava na Igreja católica e também, mais tarde, com a maneira como esta Igreja se relacionou com o mundo moderno, em todos os campos, mas, sobretudo, no campo social. Também está associado à supressão sofrida pela Companhia de Jesus e a maneira como ela se restaurou buscando, em primeiro plano, afirmar-se no campo educacional. No entanto, alguns nomes são notáveis e exemplares, tais como: o Pe. Francisco Xavier , no Oriente, o Pe. Ricci , na China, o Pe. Nobili , na Índia, o Pe. Pedro Claver , na Colômbia, o Pe. Von Spee , na Alemanha e os padres Nóbrega, Anchieta , Vieira , Malagrida e outros, no Brasil. Não se pode deixar de referir, sobretudo, o monumental trabalho junto aos povos indígenas guarani, os “povos das missões” , ao longo dos séculos XVII e XVIII. Ao longo do século XX, especialmente nas décadas de 1930 a 1960, foram notáveis algumas presenças organizadoras, promocionais e assistenciais junto à classe operária urbana. Devem ser lembrados, próximos de nós, os padres João Batista Reus, Leopoldo Brentano, Inácio Valle, Cândido Santini, Claudio Mascarello e outros. Destaque grande também deve ser feito à incidência no desenvolvimento e organização social no meio rural. Devem ser citados diversos nomes, neste sentido, mas vamos destacar o nome do Pe. Max Von Lassberg e do Pe. Theodor Amstad . O primeiro como desbravador de novas fronteiras agrícolas ajudando a fundar novas comunidades; e o último pela maravilhosa obra das cooperativas no meio rural. Os quatro últimos Superiores Gerais passaram a sublinhar com maior insistência a importância do Apostolado Social na Companhia de Jesus. A começar pelo Pe. João Baptista Janssens, passando pelo Pe. Pedro Arrupe, depois Pe. Peter-Hans Kolvenbach e hoje o Pe. Adolfo Nicolás .

O papel do Pe. Janssens:  A começar pelo Pe. João Batista Janssens, que na célebre Instrução Apostólica de 10/10/1949, justifica a necessidade do Apostolado Social como expressão genuína da nossa vocação, explicitada nas prescrições do Instituto, e exigência diante dos danos produzidos pelo comunismo ateu e do liberalismo capitalista e suas consequências indesejáveis: a situação dos trabalhadores, produto nefasto das injustiças sociais e das perturbadoras estruturas econômicas. Em meados da década de 1950, o mesmo Pe. Janssens confiou ao Pe. Foyaca, uma visita a todas as Províncias da América Latina, tendo como ponto de atenção: os jesuítas e a questão social. É a partir da Instrução Apostólica de 1949 e desta visita do Pe. Foyaca, que devemos ler a origem dos CIAS (Centros de Investigación y Acción Social). Em carta a todos os Provinciais da América Latina, em 24/12/1962, Pe. Janssens incentivava, na época, a promoção e o desenvolvimento dos CIAS no contexto latino-americano. O Pe. Pedro Arrupe, ao assumir como Superior Geral, em 1965, herdou, assim, um grande dinamismo no Setor. Já em 1966, registrava-se a existência de 23 CIAS, com 165 jesuítas neles atuantes, em toda a Companhia Universal. Sendo que, destes, 11 na América Latina, com 87 jesuítas neles atuantes. Em Carta sobre o Apostolado Social na América Latina, 12/12/1966, o Pe. Arrupe anunciava a criação do CLACIAS (Consejo Latino Americano de CIAS), e escrevia o seguinte: “O objetivo fundamental dos CIAS (e, consequentemente, do Apostolado Social) será a transformação da mentalidade e das estruturas sociais no sentido da justiça social, preferentemente no setor da promoção popular, com a finalidade de possibilitar uma maior dedicação, participação e responsabilidade, em todos os níveis da vida humana”.

A condução de Pe. Arrupe:A partir da Congregação Geral XXXI, o Pe. Arrupe assim se refere ao Apostolado Social: “O que o Apostolado Social diretamente pretende, com todo o empenho, é informar as próprias estruturas da convivência humana de mais justiça e caridade, para poder qualquer homem participar em pessoa, e exercer a sua iniciativa e responsabilidade em todos os setores da vida social”. A Congregação Geral XXXII, em grande parte devido à forte liderança do Pe. Pedro Arrupe, ao definir a Missão da Companhia, deu centralidade ao binômio integrado: serviço da fé e promoção da justiça, recuperando para os dias de hoje o que está expresso, em outras palavras, na Fórmula Originária do Instituto. Nem tudo foi tranquilo e sem sofrimento no seguimento fiel a esta Missão. Houve desconfortos e desilusões, para não falar de perseguições.

O Pe. Peter Hans Kolvenbach, mesmo que marcado inicialmente pelo cuidado por curar algumas feridas no tecido social da Companhia e em sua relação com o corpo todo da Igreja, ao longo de sua longa trajetória como Superior Geral, no entanto, manifestou de forma crescente a sua apreensão e preocupação para que se encontrassem formas de redimensionar e revigorar o Apostolado Social na Companhia, como expressão importante de sua Missão nos dias de hoje. A Congregação Geral XXXIV, sob a sua liderança, reafirmou a formulação da Missão, seguindo a Congregação Geral XXXII, que apresentara o binômio integrado do Serviço da Fé e Promoção da Justiça e acrescentou novos aspectos, chamando a atenção, também, para a importância fundamental do Diálogo Cultural e Inter-Religioso.

Com o Pe. Adolfo Nicolás, amparado pela Congregação Geral XXXV, o Apostolado Social desponta com novas dimensões e renovado vigor. Retomando e reforçando o binômio Serviço da Fé e Promoção da Justiça e a urgência do Diálogo Cultural e Inter-Religioso, as novas dimensões que apontam forte são o cuidado com o meio ambiente (dimensão ecológica) e a atenção às novas fronteiras, num mundo que avança vertiginosamente no meio científico e tecnológico levando às vezes de roldão a dignidade e o sentido da existência humana. Mais do que nunca, a partir da Congregação Geral XXXV, se insiste na importância de um vigoroso trabalho em rede para termos condições de fazer algo que tenha efetivo impacto e alcance.

IHU On-Line – Nesse contexto histórico e dentro da proposta dos CIAS, como surgem o Cedope e o IHU? O que influencia o fato de surgirem dentro de uma universidade?
José Ivo Follmann – Eu tive, pessoalmente, a sorte de acompanhar o CEDOPE ao longo de toda a sua história desde o ato formal de sua criação em 1971 até o ato formal de sua extinção em 2001. Também fiz parte da criação do IHU em 2001, liderando como Diretor do então Centro de Ciências Humanas da Unisinos o longo processo de reflexão, e, por que não, negociação, relativo a esta nova criação. O CEDOPE foi liderado na sua criação e grande parte de sua existência, nas primeiras duas décadas, pelo Pe. Pedro Calderan Beltrão que adotou uma postura diferenciada com relação aos CIAS (Centros de Investigación y Acción Social). Ele postulava um trabalho social mais científico e de caráter acadêmico. O Pe. Beltrão nunca quis de fato que o CEDOPE fosse considerado como um CIAS, pois ele tinha diferenças ideológicas e teóricas com relação à linha em geral adotada nos CIAS. No final de três décadas de existência o CEDOPE talvez estivesse mais próximo da ideia originária de CIAS, mas estava se sentindo a necessidade de maior foco e também integração com a universidade. Foi o que desencadeou a ideia da criação do que hoje é o IHU (Instituto Humanitas Unisinos) somando-se neste processo, além do CEDOPE, o Núcleo de Humanismo Social Cristão e a própria Pastoral da universidade.

IHU On-Line – Qual seria a principal diferença do IHU em relação aos outros CIAS?
José Ivo Follmann – O IHU nasce como proposta de renovação ou de ressignificação da própria ideia de CIAS para os nossos tempos. Ele foi construído inspirado basicamente na ideia dos CIAS, mas dando a esta ideia um novo rosto e uma nova dinâmica de interlocução dentro dos grandes debates presentes nos dias de hoje, tendo como apoio facilitador a interface e a estrutura da universidade. O IHU, no meu entender, consegue ser a expressão daquilo que, em muitos momentos, foi e está sendo almejado por diversos CIAS, na busca de uma maior aproximação com o debate acadêmico, sobretudo quando se trata de trabalhos de pesquisa.

IHU On-Line – O senhor, de fato, vê a questão social como central na Companhia de Jesus?
José Ivo Follmann – Para mim, a questão social é central na Companhia de Jesus. Como eu disse no início, faz parte do seu DNA. Sempre me empenhei por isto. Entrei na Companhia de Jesus com esta perspectiva no meu horizonte. Mas creio que existem entendimentos diferentes do que significa questão social e de como fazer frente a ela. São entendimentos que se expressam em posturas teóricas e metodológicas diferenciadas, às vezes até opostas.

AÇÕES AFIRMATIVAS

Texto preparado para publicação na plataforma do Curso de Especialização em EaD Cidadãos para o Mundo, 11 de maio de 2019

A cidadania se expressa sobretudo na vigilância sobre as políticas públicas

Texto preparado para Curso em EaD pela Faculdade dos Jesuítas de Filosofia e Teologia – FAJE, Belo Horizonte, MG, Cidadãos para o Mundo (2019-2020).

José Ivo Follmann sj

Introdução e contextualização

A Constituição Brasileira de 1988 está pautada por e para um Estado Democrático e se destina a “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (…)”. Esta Constituição afirma no seu artigo 5º que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)”. Além disto deve ser lembrado o artigo 225º que fala: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. (BRASIL, 1988)

A necessidade de afirmar aquilo que já está garantido na lei, poderia parecer redundante, se não fosse, por um lado, a histórica e permanente desigualdade brasileira que subtrai de segmentos significativos da população, o acesso aos direitos mais básicos para a sua vida cidadã, e, por outro lado, a escandalosa degradação de todo nosso habitat vital ou, em termos mais amplos, o meio ambiente. Chama a atenção a naturalização e a banalização que se consolidou na sociedade brasileira, frente as suas desigualdades e degradações socioambientais. Esta banalização é tão forte, que iniciativas contra a realidade desigual e degradante acabam sendo vistas como algo anormal ou inusitado. Este aparentemente “anormal” e “inusitado” deve ser afirmado. Felizmente, de tempos em tempos, esta afirmação acontece com mais intensidade.

Para corrigir o descompasso entre o direito ao acesso igualitário sobre bens e serviços públicos afirmados na lei, por um lado, e a realidade social desigual e de degradação ambiental, por outro lado, o Estado e a sociedade civil, quando existe vontade política, ensaiam esforços, mais ou menos consequentes, para estabelecer políticas de superação do paradigma do “normal” das desigualdades e degradações, buscando garantir o acesso aos direitos e buscando promover melhores condições de vida para o futuro. Tais políticas, formuladas pelo Estado em conjunto com a sociedade civil, são práticas instituídas na sociedade, cultivadas a partir de valores amplamente aceitos, que inspiram e respaldam as garantias de direitos constitucionais.

Podemos falar de formas de políticas que são muito anteriores ao surgimento do próprio Estado e da atual sistemática visibilizada nas chamadas “políticas de ações afirmativas”. Podemos inclusive nos remeter ao amplo cultivo de práticas sociais, respaldadas ou motivadas por valores de origem religiosa ou não, consolidando-se muitas vezes na instituição de obras sociais, mais ou menos vigorosas, para o atendimento dos segmentos mais fragilizados da população, movendo verdadeiras políticas de atendimento humanitário e caritativo, através de ações permanentes que garantem o acesso ao mínimo necessário à sobrevivência humana.

Se em geral se fala em ações afirmativas de caráter compensatório ou mesmo restaurativo para grupos de pessoas na sociedade, pode-se também falar em ações afirmativas de caráter testemunhal e pedagógico, que têm como função a aceleração da correção de ideologias, preconceitos e vícios (culturais ou tecnológicos) da sociedade em todos os seus níveis, seja nas relações interpessoais, seja no nível organizacional enquanto tal ou seja na relação da sociedade e dos indivíduos com a natureza.

O Estado e o processo de cidadania no Brasil

O processo histórico brasileiro fez com que o Estado fosse constituído de uma forma muito lenta no seu papel precípuo de efetivação de políticas públicas, em geral, e, particularmente, de políticas públicas de defesa e garantia de direitos humanos e sociais, bem como, de cuidado ambiental.

Na medida em que o Estado foi sendo fortalecido pela instituição de legislações voltadas para a defesa dos direitos humanos e sociais universais, incluindo, consequentemente, os segmentos mais desfavorecidos, ficou, também, sempre mais evidenciada a necessidade de regulamentar e garantir o efetivo acesso a tais políticas. A garantia destes direitos para todos e todas é dever do Estado que, na qualidade de Estado Republicano deve prezar pelo bem comum de todos cidadãos e cidadãs, em condições de vida favoráveis à sua dignidade em habitat apropriado.

Trata-se de direitos para o exercício pleno da cidadania. Estes direitos, segundo Evaldo Vieira (2018, p.191) vão desde poder usufruir de condições mínimas de segurança e conforto socioeconômico, até acessar ao legado sociocultural e a um padrão de vida que possa ser considerado o mínimo para o exercício da cidadania.

Sempre que se busca efetivar políticas públicas, a complexidade social e humana também se evidencia. Não podemos buscar soluções, segmentando a realidade. Torna-se visível a existência de situações que exigem, para além do cumprimento da aplicação das políticas instituídas, ações afirmativas especiais, e, sobretudo, uma visão integral da realidade. A história vem nos mostrando que o simples fato de existirem leis que preconizam a igualdade e a equidade no acesso aos direitos básicos, não garante, por si só, o acesso a estes direitos. Ademais, em geral, o simples acesso a direitos em si, de pouco vale para a busca das verdadeiras soluções.

Assim é que diferentes campos setoriais das políticas públicas se constroem somente mediante pressão sistemática dos segmentos envolvidos nas referidas políticas, com o apoio ou intermediação de movimentos sociais e organizações da sociedade civil. Isto se faz mais evidente naquelas situações nas quais existem agravantes que podem ser impeditivos ou de freio à eficácia das mesmas políticas instituídas, caso não tiverem um tratamento de reforço especial.

Políticas de ação afirmativa são imprescindíveis

São situações em que segmentos que sofreram e sofrem discriminação social por preconceito culturalmente arraigado têm o seu acesso ao pleno exercício cidadão muito mais prejudicado do que outros vivendo em situação econômica similar, mas não sendo alvos de semelhante discriminação. Situações em que a máxima preconizada pela Constituição sobre a igualdade no acesso de direitos, é negada. Situações em que se faz evidente a degradação do habitat, de extrema calamidade ou de risco grave para o futuro da vida e do planeta terra. Nestes casos, as ações devem ser ostensivamente afirmativas para fazer frente à cultura de negação ou de negatividade desfavorável aos segmentos sociais em questão. A instituição de políticas de ação afirmativa se faz imprescindível para que os acessos ao convívio cidadão não se posterguem.

Ações afirmativas são conjuntos de medidas que se amparam no fato de que as pessoas não são tratadas de forma igual no que tange ao acesso aos seus direitos, devido a processos discriminatórios subjacentes às relações. São processos muitas vezes sutis e dissimulados, de difícil apreensão, fazendo com que as mesmas oportunidades juridicamente preconizadas não sejam de fato as mesmas oportunidades reais. Os próprios prejudicados nem sempre se dão conta de que são vítimas de processo discriminatório, muito menos dos prejuízos que isto lhes acarreta. No mesmo sentido, as situações de degradação do habitat humano estão tão degradadas que parece que “assim deve ser” e que “não há solução possível”…

Elas (as ações afirmativas) são, ao mesmo tempo, processos de aceleração para compensar desvantagens históricas sofridas e processos de desmonte dos obstáculos interpostos na sociedade por este mesmo passado histórico e pelas elites dominantes.

Como também podem ser ações testemunhais contra a fácil acomodação frente à degradação ambiental. Trata-se de ações de discriminação positiva visando sacudir o torpor da discriminação negativa subsistente na sociedade. Em vista disso é fundamental que essas ações sejam protagonizadas pelos próprios sujeitos afirmados.
Os principais alvos de ações afirmativas sempre são as diferentes ideologias e práticas discriminatórias, tais como: o racismo, o machismo, a xenofobia, a homofobia, entre outras. São ideologias e práticas que imputam a determinados segmentos sociais características coletivas e pejorativas que impedem o pleno e livre exercício cidadão. Essas ideologias e práticas, como já sinalizei anteriormente, são em geral dissimuladas, manifestando-se “por baixo dos panos”. Elas são de difícil objetivação. As vítimas em geral vivem desamparadas e “sem testemunhas”.

Além das ideologias e práticas discriminatórias, que exigem ações afirmativas, existem também processos ideológicos e consequentes comportamentos, que marcam a sociedade e são destrutivos da boa convivência humana e no meio ambiente. Também são necessárias, neste sentido, ações afirmativas que testemunhem caminhos corretos no trato dos dons da natureza e da coisa pública.

As ações afirmativas são, a rigor, mecanismos catalizadores para o estabelecimento do verdadeiro processo democrático no País. Através delas são facilitados: – a concretização da igualdade de oportunidades; – a transformação cultural, psicológica e pedagógica; – o pluralismo e a diversidade; – a eliminação de barreiras invisíveis que impedem a plena cidadania de negros, indígenas, mulheres e outros segmentos discriminados; – a erradicação da cegueira frente aos desmandos da humanidade com relação aos dons da criação e vida do planeta terra.

Ações afirmativas como fatores de mudança cultural

Em sua dimensão mais profunda, as ações afirmativas são fator de mudança cultural, auxiliando a criar novas visibilidades e parâmetros sociais, no trato dos seres humanos entre si, no convívio social, no trato da organização da sociedade e no trato da nossa relação com os dons da criação. Ações afirmativas, neste sentido, são possíveis e necessárias nos diferentes âmbitos. Podemos destacar: 1) Ações afirmativas na busca do reconhecimento profundo da dignidade de todos os seres humanos, por dentro das relações étnico-raciais, da diversidade religiosa, geracional, de gênero, de visões de mundo e opções, na busca proativa do diálogo, do valor da pluralidade e da dinâmica da reconciliação; 2) Ações afirmativas em prol da melhoria e efetivação de políticas de superação das desigualdades sociais, promovendo o acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, saúde, moradia, educação e alimentação; 3) Ações afirmativas de conservação, preservação e usos adequados dos dons da natureza, em vista do cuidado dos ecossistemas saudáveis e da vida para o futuro do planeta terra e de seus habitantes.

Em suma, trata-se de diferentes parâmetros que acabam se tornando referências emblemáticas para o cultivo da autoestima e do desmonte dos preconceitos, gerando visibilidades, outrora ofuscadas, no mercado de trabalho, na representação política, nas instituições de produção de conhecimento, nos meios de comunicação e no próprio convívio com a natureza. Trata-se de movimento fundamental para a consolidação de um Estado Democrático de Direito, que seja promissor para as gerações presentes e futuras.

A Campanha da Fraternidade 2019 e as ações afirmativas

A Campanha da Fraternidade organizada pela Conferência dos Bispos do Brasil – CNBB, da Igreja Católica, no presente ano de 2019, tem como tema “Fraternidade e Políticas Públicas”. É uma temática muito oportuna e seu texto base e demais materiais têm um caráter ao mesmo tempo conceitualmente consistente e politicamente didático. É um tema que certamente não pode ficar confinado a um período limitado de tempo…

O texto da CF 2019 dá uma visão ampla sobre o que são políticas públicas e descreve sucintamente as suas diferentes expressões. Sente-se, no entanto, a lacuna de uma referência específica às “políticas públicas de ações afirmativas”. Não tenho condições de medir a intencionalidade desta lacuna, mas chama atenção, mais uma vez, que “ações afirmativas” não são um assunto tranquilo e continua sendo um terreno minado. É uma constatação a mais para que se afirme a sua importância e urgência. Mais do que nunca políticas de ação afirmativa são urgentes.

O que deve ser observado, nesta referência à Campanha da Fraternidade, é o fato que toda “campanha” tem em si um significado de ação afirmativa com relação a algo de não está sendo suficientemente afirmado ou considerado na sociedade.

Como entender o “ódio de classe” por causa de ações afirmativas?

Em recente texto que publiquei em uma obra coletiva – “Dialogando com Jessé Souza” (FOLLMANN, 2018) – desenvolvi a reflexão seguinte:

Vivemos, hoje, na sociedade brasileira, como Jessé Souza muito bem aponta em diversas passagens de seus textos, um clima de ódio ao pobre, uma verdadeira cultura de ódio ao pobre. Trata-se de ódio a uma política de “ações afirmativas”. Trata-se de ódio a segmentos da população que teriam sido favorecidos “indevidamente” por essa política, tendo o seu caminho facilitado para o acesso a benefícios e a espaços que nunca antes podiam ser imaginados. Ou seja, ousou-se romper com a velha estrutura mental preservada intacta desde o longo período de escravidão. Na verdade, o ódio ao escravo, no período da escravidão, foi transposto hoje para o ódio ao pobre. No Brasil de hoje, mata-se mais pobres do que se mata, por exemplo, na guerra da Síria. Note-se que a maioria dos pobres é de população negra. Não se trata, portanto, só de um esquema mental que não mudou. As próprias relações étnico-raciais concretas não se alteraram.

Vivemos em uma sociedade na qual nunca, efetivamente, se criaram condições de verdadeira democracia intelectual… (…) A ideologia da meritocracia talvez possa servir como exemplo. Jessé Souza chega a dizer que não merece o nome de cientista quem defende a meritocracia tal como é cultivada no Brasil, pois é óbvio que a desigualdade vem do ventre materno e não da escola. As pessoas são olhadas de cima para baixo. O que incomoda hoje a classe média é que se ousou, em nível de poder executivo central, olhar para a ralé, olhar de baixo para cima. Houve empenho por promover a inclusão. O acesso aos benefícios. Pela primeira vez em 500 anos se conseguiu mexer com um velho e tácito “acordo” de classes, fazendo com que diminuísse verdadeiramente a desigualdade. Isto mexeu muito com a classe média elitizada. Aliás, sempre continuando com o pensamento de Jessé Souza, dá-se hoje uma verdadeira criminalização do próprio princípio da igualdade. Parece que o fato de se ter questionado a “linha da dignidade”, não tem perdão. Ousou-se tornar visível o que é real, mas deveria ser mantido na invisibilidade. Aquele que ousou fazer isto, merece ser jurado de morte.

As cotas raciais e as políticas de inclusão em favor de determinados segmentos sobre os quais pairam fortes preconceitos na sociedade, são um dos maiores combustíveis para ajudar a reproduzir este ódio. No entanto, sabemos que ao longo da história brasileira, existem abundantes exemplos de políticas afirmativas, estabelecendo cotas sociais ou outros mecanismos (de discriminação positiva) para atender a urgências reconhecidas em favor de segmentos sociais diversos.

Mencione-se, por exemplo, as políticas de favorecimento às diferentes levas de migrantes europeus já ao longo do século XIX e século XX. Pode-se dizer que no período imediatamente após a abolição da escravatura houve mais empenho em ações afirmativas em prol da população branca de descendência europeia do que em prol afrodescendentes, provenientes da população majoritária negra que fora escravizada.
Mas existem exemplos mais recentes de políticas de cotas, que não causaram o ruído que as cotas raciais causam. O exemplo mais evidente é a lei que em 1968 estabeleceu cotas que favoreciam integrantes de famílias rurais – Lei nº 5.465, de 3 de julho de 1968 – que teve durabilidade até 1985.

O papel revolucionário da educação das relações étnico-raciais

Tomando como exemplo principal as ações afirmativas com relação aos afrodescendentes em nossa sociedade, podemos fazer o seguinte resgate histórico recente: Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o Ministério da Justiça criou em 1996 o I Programa Nacional dos Direitos Humanos (I PNDH) e dentro do mesmo contexto foi nomeado um Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra (GTI População Negra) o qual entre diferentes temas, pautou especificamente a questão das ações afirmativas. Para este GTI a ação afirmativa diz respeito a medidas especiais e temporárias, tomadas pelo Estado e/ou pela iniciativa privada, espontânea ou compulsoriamente, voltadas para a eliminação de desigualdades historicamente acumuladas, em vista da garantia de igualdade de oportunidade e tratamento, com a compensação de perdas provocadas pela discriminação e marginalização. Esta discriminação e marginalização pode dar-se por motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero entre outros.

Na verdade, vítima de um processo de políticas de branqueamento de muitas mãos, o Brasil e a sociedade brasileira têm dificuldade em recuperar a sua afro referência e também auto referência. Fomos viciados em nos enxergar como euro referentes. Um passo de suma importância, apontando para uma política pública inteligentemente pensada, foi sem dúvida a “Lei da Educação das Relações Étnico-raciais” – Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003 – assinada pelo Governo Luiz Inácio Lula da Silva, logo no início de seu mandato. Esta lei que está focada na inclusão dos afrodescendentes foi ampliada através da Lei nº 11.745 de 10 de março de 2008, acrescentando as populações indígenas dentro da mesma preocupação política.

Já vimos acima como essas políticas não caíram do céu, como uma iniciativa de governantes iluminados ou sensíveis. Referimos aqui Fernando Henrique Cardoso e depois Luiz Inácio Lula da Silva. Existe um longo acúmulo de lutas e pressões tanto dos movimentos negros através de suas diversas articulações e frentes, como dos movimentos e organizações que refletem os interesses da causa indígena.

A grande novidade e esperança que está presente na Educação das Relações Étnico-raciais – ERER, apesar das fortes turbulências hoje vividas e dos reais riscos de atrasos, dentro da conjuntura política presente, está em estabelecer mecanismos concretos de recuperação do horizonte cultural e referência africano (raízes africanas) e do horizonte cultural e referência autóctone (raízes originárias/indígenas).

Assim, além dos diferentes formatos ou modalidades de políticas de cotas raciais (ou étnico-raciais) que têm a sua importância transitória de aceleração, o foco principal das políticas públicas de ações afirmativas em favor da população afrodescendente e dos integrantes dos povos indígenas está na Educação das Relações Étnico-raciais cultivada em sala de aula em todos os níveis e segmentos educacionais. É, com certeza, um dos caminhos mais razoáveis para contribuir na desconstrução do nosso embotamento euro referente e da afirmação dos horizontes auto e afro referentes. A Educação das Relações Étnico-raciais,(1) na medida em for levada a sério, contribuirá essencialmente na derrubada da clausura alienada dentro do imaginário euro-referente, que sobre todos nós, brasileiras e brasileiros: brancos/as (eurodescendentes), indígenas (autóctones) e negros/as (afrodescendentes).

Notas:

Um exemplo de boa prática na aplicação da ERER é o da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, na qual a partir de coordenação de Profa. Dra Adevanir Aparecida Pinheiro, coordenadora do NEABI – Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas, foi criada uma disciplina de “Educação das Relações Étnico-Raciais e Culturais para o Ensino Básico”, como atividade obrigatória para todos os Cursos de Licenciatura da Universidade.

Referências bibliográficas:

BRASIL. Constituição – República Federativa do Brasil 1988. Brasília: Presidência da República, 1988.

BRASIL. Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: MEC-SECAD, 2006.

BRASIL. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC-SECAD. 2009.

CNBB. Campanha da Fraternidade 2019: Fraternidade e Políticas Públicas. (Texto Base). Brasília: CNBB, 2019.

FOLLMANN, J.I. (org). Dialogando com Jessé Souza. São Leopoldo: Casa Leiria, 2018.

PINHEIRO, A. A.; FOLLMANN, J.I. Negros e Brancos no Brasil: três pontos de reflexão. Revista Identidade! São Leopoldo: Escola Superior de Teologia -EST., 2011. http://professor.unisinos.br/joseivofollmann/2019/03/01/negros-e-brancos-no-brasil-tres-pontos-de-reflexao/

VIEIRA, Evaldo. Os Direitos e a Política Social. São Paulo: Cortez, 2018.