JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL: BUSCANDO UM CONCEITO OPERACIONAL NO HORIZONTE DA ECOLOGIA INTEGRAL

Reflexão elaborada em julho de 2019. Com ampliações posteriores para Revista Convergência e para VII Congresso de Teologia na PUC-Rio

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

José Ivo Follmann (1)

(Este texto reproduz parcialmente uma reflexão abordada em artigo em fase de publicação na Revista Convergência, CRB)

Introdução

O conceito de “justiça socioambiental” circula, há alguns anos, no meio acadêmico, na prática das organizações sociais e religiosas e em movimentos sociais, mas não está perceptível nele uma efetiva distinção com relação ao conceito de justiça ambiental. É prática da academia a existência de uma clara distinção entre justiça social e justiça ambiental. No entanto, para proporcionar um entendimento mais efetivo do conceito de justiça ambiental, passou-se a denominar como “justiça socioambiental”, com o argumento de que não existe como encontrar solução de crise ambiental, sem a promoção da justiça social, ou seja, sem ter um olhar de justiça para os que mais sofrem os desmandos com relação ao meio ambiente.

Se existe conflito ambiental, o mesmo se dá devido à desigualdade social no acesso a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, para usar expressão da Constituição Brasileira, art. 225. Ou seja, existe uma desigualdade social com característica ou relação ambiental.

Certamente houve muitos avanços importantes e pertinentes a celebrar neste debate. Entendo, no entanto, que é urgente desvincular a ideia da “justiça socioambiental”, do conceito de justiça ambiental. Mas, também, obviamente, não se deve partir parra a simples soma da justiça social e justiça ambiental. É necessário que se retome a questão fundamental da interlocução, diálogo de par a par, interconexão entre justiça social e justiça ambiental. A justiça socioambiental acontece nesta complexa inter-relação e conexão entre justiça social e justiça ambiental. Não é necessário negar a importância didática dos dois conceitos – justiça social e justiça ambiental – em seu uso conforme as diversas situações. O que deve ser evitado é o remendo conceitual da sobreposição pura e simples do “socioambiental” ao “ambiental” na definição da “justiça socioambiental”.

O que o presente texto quer ensaiar é a construção de um conceito de Justiça Socioambiental – JSA que seja coerente com o paradigma da Ecologia Integral, apresentada pelo Papa Francisco na Encíclica Laudato Sí, tentando construir uma operacionalidade teórica e prática deste conceito.

Praticando a justiça socioambiental: em três dimensões e diferentes níveis de ação

A referência de fundo é o paradigma da Ecologia Integral. Nesta perspectiva, ao falar em justiça socioambiental – JSA estamos focados na complexa interlocução, diálogo de par a par e interconexão entre justiça social e justiça ambiental. A JSA acontece nesse entrelaçamento entre justiça social e justiça ambiental, que diz respeito à busca de vida justa e equilibrada em todas as dimensões e níveis de ação humana e social e na sua relação com os dons da criação.

Na Laudato Sí (L.S. n. 49), o Papa Francisco, assim se expressou: hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres.

Entendo que, de fato, no chamado do Papa está embutido um desafio à realidade humana como um todo, em toda a sua complexidade. A JSA não pode ser, simplesmente, pautada como conjunto de práticas reativas a situações pontuais, decorrentes dos chamados conflitos ambientais, como sinalizei acima. Ela é uma intervenção na sociedade como um todo em seu modo de ser e se organizar, incluindo a relação com os dons da criação.

Estamos vivendo em um mundo estragado (degradado) em todos os aspectos. Isto envolve as pessoas em suas relações, a organização social em suas relações políticas, econômicas e culturais, e, também, o meio ambiente como um todo. É neste mundo como um todo que incide a justiça, que será JSA na medida em que tiver no horizonte o grande “tecido inconsútil” (L.S. 9) onde “tudo está estreitamente interligado”. (L.S. 16)

O desafio está em propor um conceito de JSA que seja efetivamente operacional, que possa dar conta das principais dimensões da complexa existência humana em sociedade e na sua relação ambiental e dos níveis de ação mais decisivos e chaves neste existir.

Fonte: Elaboração de José Ivo Follmann

Três dimensões operacionais

O Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA,(2) tem buscado enfrentar esse desafio construindo, teórica e empiricamente, um conceito de Justiça Socioambiental – JSA, centrado na atenção a três eixos ou dimensões, que perpassam transversalmente os diferentes níveis níveis de ação. Falando a linguagem da cultura do cuidado, estamos focados em três grandes cuidados: o cuidado da dignidade humana, o cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas e o cuidado dos bens da criação.

O Reconhecimento da dignidade do ser humano.

É a dimensão do cuidado da dignidade humana, amparada no reconhecimento. Esta dimensão acontece, na prática, nas relações com o diferente, nas relações étnico-raciais, religiosas, de geração, de origem nacional, de visões de mundo e opções, buscando sempre formas de estabelecer o diálogo, o valor da pluralidade e a inclusão de todos/as.

A justiça começa a ser construída na medida da tomada de consciência de que todos somos habitantes e fazemos parte da Casa Comum e cada um/a tem o direito de ser reconhecido em dignidade nas suas diferenças. Assim são práticas de JSA, todas as práticas que reconhecem e cultivam por dentro das diferenças de todas as ordens, a dignidade do ser humano e suas particulares repercussões na vida pessoal e cultivo da própria dignidade em nossa Casa Comum.

Cuidado dos dons da criação, da vida e da saúde dos ecossistemas.

É a dimensão do cuidado dos dons da criação. Esta dimensão está expressa na constante atenção à conservação, preservação e usos adequados dos dons da criação, em vista do cuidado dos ecossistemas saudáveis e da vida para o presente e futuro do planeta terra e dos seres nele habitantes.

A JSA, nesta dimensão, se expressa através de práticas com relação aos dons da criação, que podem ser percebidas nos diferentes níveis de participação social, indo desde uma radical revisão das práticas na produção do conhecimento, das tomadas de decisão e do tratamento harmonioso e equilibrado dos dons da criação, no seu cultivo e uso no dia-a-dia. Estão em pauta, neste ponto, as repercussões destas práticas do bom equilíbrio e harmonia das condições da nossa Casa Comum.

O Ordenamento da sociedade ou a superação das desigualdades sociais.

É a dimensão do cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas. Nesta terceira dimensão está fundamentalmente em questão a superação das desigualdades, das exclusões sociais e da pobreza, pela busca do acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, segurança, saúde, moradia, educação, alimentação e nacionalidade. A rigor, o que está em pauta, são os grandes e pequenos processos decisórios na sociedade em seus ordenamentos políticos e econômicos e na condução das políticas públicas. Estão em pauta bons resultados de tudo isto, para um convívio harmônico e inclusivo em nossa Casa Comum.

Assim, com o foco na ideia de que tudo está interligado nesta nossa Casa Comum, são práticas de JSA, práticas econômicas e políticas pautadas no atendimento aos direitos sociais e humanos básicos, no reconhecimento da dignidade do ser humano e no cuidado dos dons da criação como dimensões básicas no Cuidado da Casa Comum.

Diferentes níveis operacionais

Além das três dimensões, em termos operacionais necessitamos de outros atalhos garantidores de operacionalidade conceitual. Podemos, neste sentido, distinguir níveis concretos, como diferentes instâncias ou espaços de expressão e realização da justiça ou da JSA. Identificamos três como chaves para isto. As práticas de justiça podem ser identificadas no nível da produção do conhecimento, no nível das tomadas de decisão, e, sobretudo, no nível cotidiano de nosso ser, viver e agir, no dia-a-dia.

Em nível de conhecimento, através do reconhecimento das diversas formas de saber e de percepção da vida e das coisas, muito para além dos simples conhecimentos disciplinados pelo mundo acadêmico. Destaca-se a busca da superação da linha abissal que separa, por um lado, conhecimentos academicamente valorizados e, por outro lado, saberes excluídos do mundo racional-científico. Destaca-se a valorização dos diversos saberes. (Nos aspectos relacionados à Igreja, somos convidados a absorver com humildade, os conhecimentos populares e tradicionais em nossas práticas religiosas, através da consolidação de uma “Igreja em Saída”.)

No nível da tomada de decisões, a postura de cultivo aberto e não exclusivista do conhecimento, é, sem dúvida, aporte fundamental para um maior acerto na gestão, dando conta de autêntica e ampla cultura de participação e de reconhecimento da dignidade dos sujeitos envolvidos nas decisões. Neste sentido, sugere-se caminhar para formas inovadoras de implementar e avaliar as políticas públicas, formas estas embasadas em indicadores mais sustentáveis e na busca de uma sociedade igualitária e inclusiva.

Enfim, no nível das práticas do cotidiano, estamos no chão do cuidado por dentro das pequenas práticas pessoais e coletivas no dia-a-dia. É o campo do cotidiano, o campo das pequenas coisas do dia-a-dia, do cuidado e da justiça, na vida como ela acontece. O espaço e tempo de profundo sedimentar o cuidado da nossa Casa Comum, no testemunho vivo dentro das práticas pessoais e coletivas do dia-a-dia. Aqui, sem dúvida, todos/as somos chamados/as a uma profunda conversão socioambiental.

São diferentes níveis de ação, nos quais se pode manifestar o chão concreto de realização da prática da justiça e, mais especificamente, a prática da JSA. Precisamos de JSA em nossos meios de produção de conhecimento, em nossos processos de tomadas de decisão, em nosso modo de proceder nas práticas cotidianas em geral.

Concluindo

A reflexão aqui apresentada não pretendeu ser mais do que chave de provocação, visando a sua continuidade. Penso que, sempre tendo presente as três dimensões em pauta (o ser humano em sua dignidade, o convívio com os dons da criação e o ordenamento socioeconômico e das políticas púbicas), a humanidade, em geral, e a sociedade brasileira, em particular, necessitam urgentemente centrar-se na cultura do cuidado e desfazer-se da tragédia da cultura da indiferença. A atenção central deve ser colocada na dimensão relacional e na interligação de tudo dentro da experiência humana na criação.

Assim, retomando os níveis de intervenção, referidos neste texto, podemos dizer que a JSA é praticada na medida em que, tanto nas dimensões do cuidado da dignidade humana e do cuidado dos bens da criação, como na dimensão do cuidado do ordenamento social e econômico de inclusão e igualdade, estiverem sendo adotadas medidas de prática de justiça, na produção do conhecimento, nas tomadas de decisão e no modo de ser, viver e agir dentro do cotidiano.

A prática da Justiça Socioambiental – JSA, assim definida, tem muito a contribuir no momento difícil que enfrenta a sociedade brasileira. Trata-se de um desafio que pede, em primeiro lugar, a realização do nosso próprio “tema de casa”, dentro de nossa Casa Comum.

NOTAS:

  1. Doutor em Sociologia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Mestrado e Doutorado), UNISINOS. Sacerdote jesuíta e Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil. (O presente texto repete e reproduz parcialmente, artigo a ser publicado na Revista Convergência, CRB e conferência a ser proferida no VII Congresso de Teologia, Rio de Janeiro).
  2. Trata-se de um “Observatório em Rede” da Província dos Religiosos Jesuítas do Brasil, com núcleo articulador em Brasília, DF. www.olma.org.br