INTERPELADAS E INTERPELADOS POR UMA CULTURA AFIRMATIVA

Reflexão feita a partir de uma reunião no Colegiado do PPG de Ciências Sociais, em outubro de 2019.

Falar de raça é urgente e necessário, no Brasil

José Ivo Follmann (06/10/2019)

Contextualização

Na reunião que tivemos, no dia 05/09/2019, esbocei algo sobre o que venho chamando de necessidade de instaurar uma CULTURA AFIRMATIVA em nível de Educação Superior, para que se criem condições efetivas de educação das relações étnico-raciais no Brasil (lei 10639/03 e 11645/08). Eu estava focado especificamente naquilo que consigo entrever como um dos papéis chaves de nosso Programa, sobretudo, em relação a essa temática. Lidar com isso exige, em primeiro lugar, o reconhecimento daquelas e daqueles que provêm de um acumulado histórico de exclusões e invisibilidade. Essas pessoas são os principais sujeitos da temática e têm uma percepção especial e única da mesma. A sua afirmação é chave. Todas/os concordamos e temos consciência disto.

A nossa reunião foi boa e oportuna, apesar de um pouco estrangulada no tempo com relação a algumas demandas que exigiam muito mais aprofundamento. Diversas ideias vieram me acompanhando em minha viagem de retorno a Brasília. Tento colocar algo no papel aqui, para complementar o que apenas me foi possível esboçar. Tivemos muitos outros atravessamentos no diálogo, perfeitamente compreensíveis. Agradeço a uma das colegas que lembrou, no decorrer da reunião, a expressão “Universidade inclusiva”.

Trata-se de uma contribuição simples e coloquial, sem outras pretensões além de querer provocar a continuidade e o aprofundamento de nosso diálogo.

Ações afirmativas

Nós sabemos que as ações afirmativas têm caráter inclusivo e compensatório ou mesmo restaurativo para grupos (pessoas) na sociedade, que foram e estão sendo lesados no acesso pleno aos direitos, devido a discriminações e preconceitos produzidos e reproduzidos pela mesma sociedade.

As ações afirmativas são importantes e necessárias para ajudar a acelerar processos de inclusão, favorecendo a instauração de condições mais condizentes em termos de democracia e justiça na sociedade. É necessário que nós cientistas sociais estejamos muito atentas/os para desvendar necessidades de ações afirmativas, apontando para a potencialização de políticas neste sentido. Ao falar políticas tenho presente um sentido amplo, indo desde políticas internas a instituições específicas até políticas públicas de Estado.

Seria ingênuo, no entanto, pensarmos que as ações afirmativas resultarão em uma sociedade inclusiva pela simples criação, formulação e publicação de políticas e suas regulamentações. Aliás, nem mesmo a sua efetivação na prática, dessas políticas, é garantidora do sucesso. Sendo mais explícito, as ações afirmações, formuladas como políticas, mesmo quando colocadas em prática, não terão automaticamente os efeitos desejados se não forem sustentadas por uma sinergia cultural proativa.

Cultura afirmativa

É no cultivo dessa sinergia cultural proativa que o papel das/os intelectuais e especialmente das/os profissionais da Educação Superior é chave. Aliás “ações afirmativas” são perigosas e podem causar efeitos perversos quando não estiverem revestidas e acompanhadas de uma cultura afirmativa.

O sucesso das ações afirmativas depende disto. Como gerar uma cultura afirmativa? Quais os caminhos para facilitar isto? Já sinalizei para o papel chave da Educação Superior, mas vamos descer ao chão concreto. Fazendo um atalho, eu creio que o caminho principal se desenha sempre que pudermos “povoar” o contexto no qual trabalhamos e vivemos com práticas pedagógicas testemunhais, que evidenciem, no dia-a-dia, posturas afirmativas focadas na correção (desconstrução) de ideologias, preconceitos e vícios constituintes do plano mais profundo do convívio social e da estrutura da sociedade.

Somos muito privilegiadas/os, neste sentido, pelas múltiplas oportunidades de uso do espaço da sala de aula e produção de textos. É um privilégio que suporta também uma imensa responsabilidade, pois pode acontecer que transformemos esses espaços em ambiente de reforço perverso das mesmas ideologias, dos mesmos preconceitos e vícios, revestindo-os de belas e atraentes teorizações. Às vezes, as ricas elaborações teóricas passam a servir de cortina de fumaça, para ocultar o nosso absenteísmo ou omissão por encarar em sério os reais conflitos, que não enxergamos vivamente desenhados e presentes na própria sala. Podemos também ser omissas/os e ausentes, quando as nossas interlocuções no espaço da sala de aula e nos textos que escrevemos ou orientamos, não contribuem para a desconstrução da hegemonia das euro-referências deixando de afirmar as afro-referências e as referências nossas autóctones.

Um conceito que foi muito pautado na reunião é o conceito de racismo estrutural. É um conceito muito oportuno para esta nossa conversa, reflexão e encaminhamentos coletivos. Agradeço à coordenadora da reunião ter lembrado para todas/os isto, com o texto que disponibilizou. É oportuno, sobretudo, para colocar em pauta o que aqui estou chamando de cultura afirmativa. Ou seja: nascemos e vivemos marcados pelo racismo; existe uma espécie de “normalidade racista” nos embebendo em todos os níveis, impregnando nossas mentes e corações. O racismo estrutural, que no Brasil apresenta traços particularmente carregados, necessita de medidas que possam ter impacto estrutural intenso, abrangente, profundo e permanente. Afinal, somos apeladas/os a desconstruir os efeitos dos mais de 350 anos de regime de escravidão negra. Sabemos que são mais de 350 anos, se considerarmos, sobretudo, o processo político e social de não afirmação e de exclusão que se seguiu à abolição. Esta herança maldita, queiramos ou não, habita as mentes e corações da sociedade brasileira. Somos uma sociedade artificial e perversamente branqueada.

Revestir-se de forma consciente e sempre renovada de posturas afirmativas (ou de uma cultura afirmativa) é o que melhor deveria identificar, neste sentido, profissionais que atuam na Educação em Nível Superior e, particularmente, aquelas/es que atuam na Produção de Conhecimento e Formação Acadêmica, em nível de pós-graduação.

Sublinho a expressão “revestir-se de forma consciente e sempre renovada de posturas afirmativas”, porque todas/os somos permanentemente envenenadas/os pelo racismo estrutural, sendo facilmente reprodutoras/es do mesmo, em manifestações de sentimentos, em falas, gestuais, silêncios, posturas e, até, em formas de avaliação de textos.

Ser de cultura afirmativa exige, da educadora e do educador, vigilância permanente. Vigilância, sobretudo, para não sucumbir à solução fácil de se proteger atrás da trincheira das normas e padrões estabelecidos. Muitas injustiças são cometidas exatamente quando os juízes em vez de serem efetivamente juízes, se sentem no dever de “ser justos”, se escondendo na cômoda trincheira do estabelecido na lei… Não se trata de nivelamento por baixo. É questão de procedimento pedagógico diferenciado e afirmativo, alcançando o mesmo nível de exigência.

Na contextualização inicial, referi que lidar com a temática do racismo exige, em primeiro lugar, o reconhecimento daquelas e daqueles, que são as vítimas deste racismo, como sujeitos protagonistas e interlocutores fundamentais. Um Programa como o nosso só fará jus ao seu papel, na medida em que conseguir ter efetivamente o reconhecimento interno e externo, neste aspecto.

Eu até ousaria concluir esta pequena reflexão com uma provocação: será que intelectuais de nosso nível e área de formação que não se empenham ativamente em ajudar a desconstruir o racismo estrutural, não estariam sendo elas/es mesmas/os imputáveis de racistas, por omissão ou absenteísmo?

Questões para aprofundar:

1) Será que não corremos o risco de sermos alvo de desconfiança ou até de deboche, quando a nossa emblemática e tão zelosamente buscada “excelência acadêmica” não vier acompanhada e entranhada numa autêntica cultura afirmativa? Isto é particularmente sério, considerando a nossa área de concentração.

2) Estamos suficientemente confortados com os critérios de avaliação praticados? Até que ponto não somos também vítimas da “ideologia da meritocracia”? Uma cultura inclusiva não deveria fazer com que revíssemos procedimentos de avaliação para colocarmos critérios de mérito efetivamente justos na balança? Podemos estar sendo vítimas de nossas próprias inseguranças ao nos protegermos atrás de critérios “objetivos” instituídos, nos tornando incapazes de enxergar os verdadeiros méritos, desenhados nas trajetórias pessoais de produção do conhecimento das pessoas que são nossas/os orientandas/os e de outras/os profissionais.

3) Precisamos urgentemente, em minha opinião, revisar de forma mais aprofundada algumas das pautas de ação de nosso Programa. É necessário retomar a história do Programa para possíveis correções de rumo em alguns pontos que são chaves na interlocução com a comunidade e as necessárias interfaces para sermos efetivos interlocutores reconhecidos pela excelência e, também, por uma cultura afirmativa (a construir). É necessário que se ganhe em institucionalidade de produção do conhecimento e em protagonismo das instâncias e dos grupos envolvidos, talvez, através de núcleos de pesquisa dinamicamente integrados com sua face de extensão.

Pela história da instituição, em grande parte, os caminhos estão facilitados. Tenho, no entanto, plena certeza que diversas iniciativas poderiam ter sido muito melhor articuladas e potencializadas. Mas, ainda está em tempo. Que a presente “oportunidade da crise” possa ser efetivamente fecunda. É preciso um exercício de cultura afirmativa, encontrando os melhores meios para que todas as instâncias que estão na ponta das interlocuções possíveis em questão, sejam efetivos protagonistas autorais, contando com as interlocuções proativas instituídas no PPG.

4) Vou ser repetitivo, na última questão: Todas/os concordamos com a real existência do racismo estrutural. Temos consciência, também, que a sua persistência na sociedade é muito destruidora do convívio social democrático e justo, prejudicando inclusive as boas condições de produção de conhecimento. Penso, neste sentido, que deveríamos ser zelosos em “povoar” as nossas reflexões e produções científicas com mais referências explícitas a essa questão. Muitas vezes, ao ler teses, dou-me conta de oportunidades de diálogo sobre isto que se deixa passar “em silenciosos vazios”. A vigilância permanente é importante. Em geral a opção por não tocar no tema se baseia num falso protecionismo (para com a orientanda ou o orientando) para não entrar numa temática que exigiria “nova” tese. Às vezes, no entanto, será a única oportunidade na formação desta/e profissional para se deixar interpelar conscientemente por esta temática.

Eu sou, pessoalmente, de opinião que nós deveríamos fazer o esforço, sempre que a oportunidade se oferece, de orientar para que se deixe algo explícito no texto da tese, neste sentido, nem que seja através de nota de roda pé. De uma forma bem singela, eu veria isso como um procedimento interessante e oportuno para o processo educativo de nossas/os orientadas/os, gerando também nelas/es uma cultura afirmativa. É na minha opinião um caminho interessante para a “educação das relações étnico-raciais”.

Apoiando-me na interessante e conhecida contribuição da coordenadora do NEABI, poder-se-ia dizer que uma postura vigilantemente ativa, neste sentido, nos fará contribuir para diminuir a reprodução da “branquidade” e aumentar a produção de “branquitude”, gerando uma sociedade mais sadia nas relações étnico-raciais.