BRASIL RELIGIOSO, PÓS-MODERNIDADE E PROCESSOS DE IDENTIDADE

Publicado em livro organizado por Carlos A. Gadea e E. Portanova Barros, em 2013.

Capítulo de livro

Artigo publicado como capítulo no livro organizado por C. A. Gadea e E. Portanova Barros. A ‘Questão Pós’ nas Ciências Sociais: crítica, estética, política e cultura. Curitiba: Ed. Appris, 2013, pp. 231-249

Resumo: A realidade complexa da esfera religiosa no Brasil no presente contexto de pós-modernidade, convida para uma reflexão sobre a importância do estudo de processos religiosos de identidade para uma compreensão mais apurada da sociedade. É o que o texto procura fazer pautando, no início, algumas observações empíricas para, num segundo momento, convidar para uma reflexão sobre o processo de secularização e os processos de identidade neste contexto.

Palavras chave: religiões e religiosidades no Brasil; processos de identidade; secularização encantada; pós-modernidade.

Abstract: The brazilian religious sphere´s complex reality in the present context of post modernity, invites to reflect about the importance of the identity’s religious processes for a more focused comprehension on the society. That´s what the text is trying to do, showing, at first, some empirical observations for, secondly, invite to a reflexion about the secularization process and the identity´s processes in this context.

Key words: religions and religiosities in Brazil; identity´s process; enchanted secularization; post modernity.

INTRODUÇÃO

Que significado têm as religiões e religiosidades para o estudo e a compreensão da sociedade em contextos de pós-modernidade? A pergunta não é nova. As respostas são diversas. Sem voltar a todas as respostas existentes, quero propor um passeio reflexivo por dentro do Brasil religioso em seu contexto atual. Partindo de uma pequena “roda de conversa” sobre as atuais estatísticas religiosas no Brasil, na qual são sinalizados diversos alertas e questionamentos empíricos, o texto envereda pela trilha da pergunta sobre a plausibilidade do religioso no mundo atual e da discussão sobre o impacto do processo de secularização para, no final, desembocar na questão dos processos de identidade. Trata-se de um conjunto de questões chaves para os estudos da sociedade em contextos pós-modernos e a pergunta final, que permanece, é: o que podemos colher do estudo sobre os processos de identidade nas manifestações religiosas no Brasil de hoje, para o avanço dos estudos da sociedade e das Ciências Sociais, neste contexto?

Um breve passeio por alguns atalhos empíricos destaca, inicialmente, quatro aspectos: 1) a questão dos hibridismos, bricolagens e arranjos religiosos do convívio na diversidade, com destaque ao modo como as religiões de matriz africana sobreviveram e se afirmaram; 2) a memória com relação à questão das fortes institucionalidades religiosas, mormente do catolicismo; 3) a atenção para o recente confronto de forças dentro da esfera religiosa, destacando a crescente afirmação das forças evangélicas pentecostais e neopentecostais; 4) a importância dos graus diversos de adesão ou envolvimento dos fiéis nas práticas de suas religiões. O texto também retoma a ideia, apoiada na percepção arguta de Martin N. Dreher, de que os comportamentos nas manifestações religiosas, no Brasil de hoje, são comportamentos, ao mesmo tempo, modernos, pré-modernos e pós-modernos. (Dreher, 2005).

O “MUNDO DAS RELIGIÕES” NO BRASIL

O “mundo das religiões” no Brasil é realmente um “mundo”. O fenômeno complexo que envolve crenças religiosas, descrenças, religiões, religiosidades e espiritualidades, mais do que nunca, desafia a pauta de estudiosos e cientistas sociais. As estatísticas fornecidas e conhecidas proporcionam uma aproximação útil, apesar das suas limitações que são amplamente conhecidas e já se tornaram quase paradigmáticas.

O Censo Demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostra uma nítida evolução do quadro estatístico de composições e recomposições na esfera religiosa da sociedade brasileira. São inumeráveis os comentários, nos meios de comunicação e, também, em grande variedade de publicações, dando conta da queda numérica sensível daqueles que se declaram católicos (de 95,2% da população em 1940 para 64,6% em 2010) e do aumento, sempre mais acelerado, daqueles que se declaram evangélicos (de 2,6% da população em 1940 para 22,2% em 2010), bem como aumento grande daqueles que se declaram “sem religião” (de 0,2% da população em 1940 para 8% em 2010), incluindo, neste último grupo, os descrentes ou ateus (que, provavelmente, não passa de 1% da população). A multiplicação do número de religiões que se somam no quadro das “demais” e “diversas” denominações (2% da população em 1940 para 5,2% em 2010), também é pauta nesses comentários e publicações, especialmente no que diz respeito ao paradoxo do pequeno percentual registrado quando se trata de seguidores das religiões da matriz africana (0,3% da população em 2010).

Apesar de limitados, os números falam por si, mas é importante que algumas questões básicas agravantes dos limites sejam mencionadas antes de avançarmos em nosso raciocínio: 1) Qual o efetivo grau de influência que teve sobre as religiões de matriz africana o fato de terem sobrevivido, ao longo de séculos, travestidas e camufladas, sob a sombra de formas e expressões religiosas católicas? Não estaria isto fazendo com que muitos seguidores dessas religiões continuem se identificando oficialmente como católicos? 2) A explosão inusitada da diversificação na esfera religiosa não estaria relacionada com o fato do longo represamento motivado pelos quase quatro séculos de opção religiosa única, tendo o catolicismo religião oficial no Brasil? 3) Qual a origem do acentuado incremento de evangélicos de recorte pentecostal e, sobretudo, neopentecostal, ao longo da segunda metade do século XX, gerando uma transformação radical na esfera religiosa brasileira?

Se estas, por um lado, são questões de recorte mais institucional, é importante, por outro lado, que se esteja muito atento a um aspecto que acontece por dentro e por fora das fronteiras institucionais, que é a crescente cultura de afirmação do sujeito individual. Trata-se de um processo que se acentua desde a segunda metade do século XX e perpassa praticamente todas as sociedades. Os contextos nos quais este processo é gerado e alimentado são, sobretudo, contextos de fragmentação, de incertezas e angústias para o ser humano. São contextos fornecedores de um terreno fértil para o cultivo dos processos religiosos de identidade autogeridos pelos próprios sujeitos.

São questões e apontamentos que ajudam a enriquecer as análises estatísticas com detalhes importantes, ou melhor, com questionamentos e pontos de interrogação… Mesmo que as questões e apontamentos feitos ajudem a ler com mais cuidado as estatísticas, está suficientemente claro que nem as estatísticas, nem as questões e apontamentos mencionados, conseguem dar conta da complexidade da dimensão religiosa na sociedade brasileira, que se desenha nos processos de identidade protagonizados no plano pessoal pelos sujeitos individuais.

ALGUNS ATALHOS EMPÍRICOS

Para quem estuda a sociedade brasileira, no atual contexto que assume também aspectos de pós-modernidade, os registros estatísticos no que diz respeito à dimensão religiosa, por si só, já apresentam grande complexidade apontando para um processo acelerado de diversificação. A sua realidade, no entanto, se faz incontavelmente mais complexa e desafiadora, quando espelhada no registro de episódios ou referências que são paradigmáticos desta dimensão. Trata-se de ingredientes vigorosos nos processos de identidade.  De uma forma singela, convido para uma rápida incursão por quatro atalhos empíricos que me parecem paradigmáticos, para uma compreensão maior dos processos de identidade:

O primeiro atalho empírico pode ser alcançado através de uma referência que é clássica, colhida em João Guimarães Rosa: “Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. (…) Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca.” (Rosa, 1980, p.15). Pode-se dizer que, de certa forma, existe uma mente pós-moderna sabiamente constatada e expressa na estética de alguns autores, romancistas e poetas da modernidade brasileira. O diálogo registrado pelo autor é paradigmático. Registra a cultura do jeitinho, do arranjo pessoal e das bricolagens espontâneas. Trata-se de uma cultura muitas vezes citada e gerada pela necessidade de sobrevivência da própria tradição religiosa, como foi o caso, por exemplo, das religiões de matriz africana. Pode-se levantar com segurança a hipótese de que, se houvesse um registro estatístico dando conta de dupla ou múltipla adesão religiosa, as estatísticas desenhariam um quadro diferente. Religiões como as de matriz africana e outras apareceriam com muito maior expressividade estatística e a informação estaria mais próxima dos verdadeiros processos religiosos de identidade.

O segundo atalho empírico é feito mediante referência a um evento histórico de grande significação que foi a pronunciamento de Dom Sebastião Leme, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, por ocasião da inauguração da estátua do Cristo do Corcovado em 1931, quando assim se expressou, em tom de desafio: “Ou o Estado (…) reconhece o Deus do povo, ou o povo não reconhecerá o Estado!”. (Della Cava, 1975, p.15). A força das instituições religiosas faz efetivamente parte da história política do Brasil. Neste nível os nossos apontamentos podem acolher a busca recorrente e unilateral de atendimento de interesses institucionais, que sempre pesaram sobre a alma brasileira. Muitas manifestações públicas de massa, mobilizando grandes públicos, que são recorrentes hoje em dia, vão nesta linha. Podem ser olhados como demonstrações de força política, ou seja, de ocupação do espaço público. Uma complementação estatística neste sentido seria de fundamental importância para que se pudesse ter informação sobre o grau de consciência dos seguidores de determinada religião com relação ao impacto público esperado de sua instituição.

O terceiro atalho empírico dá conta do episódio do “chute da santa” ocorrido em 12 de outubro de 1995. Trata-se de um episódio, que, muito além de sua ruidosa repercussão midiática e social, tem um alcance simbólico sem igual em termos composição e recomposição da esfera religiosa brasileira. Naquela data, dia da santa católica “Nossa Senhora Aparecida”, culturalmente consagrada no mundo católico como a Padroeira do Brasil, o bispo Sérgio Von Helder da Igreja Universal do Reino de Deus, em um programa matutino, na Rede Record, chamado “O Despertar da Fé”, proferiu insultos e deu chutes na imagem desta santa, em frente às câmaras. O episódio tornou-se conhecido como o episódio do “chute da santa”. Ricardo Mariano (2005) se reporta diversas vezes a este episódio em seus estudos para uma sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. (Mariano, 2005). O “chute da santa” simboliza todo um movimento agressivo para provocar uma inflexão na esfera religiosa brasileira contra o predomínio religioso católico. As estatísticas parecem confirmar o amplo sucesso deste movimento. A prática de combater de forma recorrente, buscando desclassificar, símbolos e práticas religiosos do meio católico ou das religiões de matriz africana, é uma prática usual no meio neopentecostal e gera fortes repercussões nos processos de identidade.

O quarto atalho empírico está relacionado com uma frase que se ouve com muita frequência: “eu sou católico, mas não praticante!” ou, “eu sou espírita, mas não sou de frequentar!”. Ou seja, em termos de adesão ou envolvimento dos fiéis nas práticas de suas instituições religiosas, é notável o convívio ou a justaposição de adesões mais livres (light) e menos comprometidas, de participação e frequência mais rarefeitas, que, em muitas situações é o comportamento da maioria, ao lado de adesões mais densas (hard) e mais comprometidas de participação e frequência mais intensas. Em pesquisa realizada em alguns municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre[1] utilizamos como indicador de adesão densa (hard), a frequência semanal a celebrações em locais de culto e templos. Os resultados foram, no mínimo, curiosos, servindo como um contraponto às estatísticas conhecidas. Nos seis municípios estudados, aproximadamente 29% da população tem alguma participação religiosa semanal. Se olharmos só para estes 29% de frequentadores semanais, a pesquisa nos mostra que, destes, aproximadamente, 48% são de frequência em cultos evangélicos (8% evangélicos históricos e 40% evangélicos pentecostais e neopentecostais), 36% são de frequência em missas ou celebrações católicas, 10% em celebrações de matriz africana e/ou umbandista, 3% em sessões espíritas e 3% em outras celebrações religiosas. (Follmann e outros, 2005). Na atenção ao percentual dos que frequentam semanalmente (29%), cabe, no entanto, chamar a atenção para a importância de se identificar práticas religiosas existentes em nível dos outros 71% da população que não frequentam semanalmente em espaços de acesso público… Dados deste tipo em âmbito nacional certamente trariam um incremento impar na qualidade da informação das estatísticas religiosas. Neste sentido também poderia ser muito útil um levantamento do tempo de exposição a programas religiosos veiculados tanto pela rádio quanto pela televisão.

As questões e apontamentos mencionados no início do texto e estes quatro atalhos empíricos, adjetivados com rápidos devaneios com relação aos Censos Demográficos, devem ser complementados, ainda, com uma observação, que considero fundamental para um desenho mais apurado dos processos de identidade. Trata-se da população denominada “sem religião”. Se nas estatísticas oficiais 8% da população são registrados como “sem religião” e os ateus ou descrentes, somados neste segmento representam provavelmente somente 1%, seria muito importante que se pudesse ter acesso a melhores detalhamentos e informações a respeito das formas de religiosidades e espiritualidades vivenciadas por este grande contingente populacional, inclusive com atenção a religiosidades e espiritualidades praticadas e cultivadas via meios de comunicação, bem como o acolhimento de práticas de autoajuda bem sucedidas.

TRES ATALHOS TEÓRICOS

Este rápido sobrevoo empírico e o conjunto de devaneios e proposições, que o acompanhou, com todos os riscos de superficialidade, fazem perceber que existem traços no Brasil religioso que são importantes para o debate sobre a sua incidência no processo de compreensão da vida humana em sociedade em suas diferentes expressões nestes tempos de pós-modernidade. Sem pretender esgotar o assunto, proponho três atalhos teóricos, retomando reflexões sobre: a “plausibilidade do religioso no contexto pós-moderno”, a “teoria da secularização e a ideia da secularização encantada” e a questão central deste texto que são os “processos de identidade ou processos religiosos de identidade”. Estes atalhos teóricos ajudam a lançar luzes para avançarmos na questão central deste texto: Qual a importância dos processos de identidade em contextos de pós-modernidade, considerando o Brasil religioso nos tempos atuais?

PLAUSIBILIDADE DO RELIGIOSO NO CONTEXTO PÓS-MODERNO

Em sua obra O Dossel Sagrado, Peter Berger faz dois movimentos importantes de reflexão. Num primeiro movimento reflexivo, ele nos conduz por questões que relacionam a religião com a construção e a manutenção do mundo, e, num segundo movimento reflexivo, traz aportes fundamentais para o entendimento do processo de secularização e as implicações do mesmo para a plausibilidade da religião. (Berger, 2004)

Este autor tornou-se referência obrigatória na sociologia contemporânea das religiões e na sociologia em geral. Logo no início de sua obra, ele retoma a sua premissa de que a sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo e realça que a religião ocupa um lugar de destaque nesse empreendimento.  Cabe ressaltar a atenção dada por ele à função de legitimação da religião e aos processos de alienação e des-alienação, nos quais a religião também participa.

Peter Berger escreveu esta obra em 1967 (Berger, 2004) e, na época, segundo o seu entendimento, o processo de secularização estava levando a uma fragilização do religioso, decorrência da perda de força de referência das grandes instituições religiosas como garantidoras de uma visão ordenada dos mundos. O pluralismo religioso estaria debilitando a própria religião em sua plausibilidade. O sociólogo brasileiro que mais vigorosamente se alinhou com a tese de fragilização do religioso a partir da secularização, foi Antonio Flavio Pierucci (2004). Chegou a falar da desmoralização das religiões na medida em que vão sendo forçadas a se lançarem em um mercado sempre mais competitivo. (Pierucci e Prandi, 1996).

Estaria a religião fadada a um processo irrecuperável de desmoralização? Ou, pelo contrário, estaria acontecendo, um processo de remoralização do religioso via processos de identidade?

Segundo Ricardo Mariano, o próprio Peter Berger, vários anos depois de ter lançado o seu clássico O Dossel Sagrado, teria rejeitado sua perspectiva teórica pregressa, afirmando ser “falsa a suposição de que vivemos em um mundo secularizado” e que “toda a literatura escrita por historiadores e cientistas sociais, chamada vagamente de ‘teoria da secularização’, está essencialmente equivocada”. (Berger, apud Mariano, 2011, p.241)

De fato, o que se conhece por secularização não pode ser considerado um processo que leva ao fim da religião, mas sim o processo que institui um novo momento na esfera religiosa, onde a religião ganha novos modos de ser e agir, novo dinamismo e formas novas, novo nascimento e nova presença. Enquanto as instituições religiosas se veem diminuídas em sua incidência social e pública, a religião parece restabelecer-se com vigor e vida renovada, em nível dos sujeitos individuais em seus processos religiosos de identidade.

Assim a ação eficaz para a vida, garantidora de uma visão ordenada dos mundos, que era sempre ação precípua das instituições religiosas enquanto empreendimentos humanos através dos quais se estabelece um “cosmos sagrado” (Berger, 2004), tende a ser assumida e assimilada de mais a mais no plano do sujeito individual ou no plano pessoal, fazendo com que, em lugar de grandes “cosmos sagrados” tenhamos uma constelação de “microcosmos sagrados”, refletindo “sínteses pessoais” vividas com profundidade e garantindo, por baixo da aparente fragmentação e caos, a visão ordenada dos mundos consistente e, mais do que nunca, dinâmica. Oneide Bobsin, em recente artigo (2011), acresce um viés interessante de reflexão com a ideia de “humanismo de auto-transcendência”, que inclusive extrapola a própria esfera religiosa propriamente, manifestando-se também pela via de fórmulas bem sucedidas de autoajuda.

A SECULARIZAÇÃO ENCANTADA

A antropóloga Regina Novaes lembrava, em 2005, que vivemos num tempo de “ventos secularizantes”, mas, ao mesmo tempo, devemos estar atentos ao “espírito do tempo”. Segundo esta antropóloga, dá-se, de fato, “um tipo de secularização quando diminui o peso das autoridades religiosas tradicionais e a obrigação de um jovem seguir a religião dos pais”. No entanto, “partilhando das possibilidades culturais desta época, os jovens desta geração estão sendo chamados a fazer suas escolhas em um campo religioso mais plural e competitivo”. (Novaes, in Teixeira e Menezes, 2005, p.16). O “espírito do tempo” de que fala esta antropóloga, tem a ver com a ideia de multiculturalismo, de reconhecimento do diferente, de desmonte da monopolização da cultura e da religião.

Os “ventos secularizantes” misturados com o “espírito do tempo” nos colocam no centro de nosso ponto de reflexão. Talvez para abreviar, pudéssemos falar que vivemos tempos de secularização encantada (Follmann, 2007). A expressão se apoia na “teoria da modernidade religiosa”. (Hervieu-Léger e Champion, 1986). A secularização não pode ser tomada como sinônimo de desencantamento ou de perda da alma humana. Estamos falando de uma secularização que ajuda a restabelecer a verdadeira alma roubada (ou usurpada) pelos racionalismos e racionalidades e, também, sobretudo, por poderios sagrados, que construíram uma superestrutura desconectada com a realidade interferindo na condução da vida humana, da organização social e da natureza, com regramentos ditados por interesses institucionais.

Secularização é um processo que conduz, essencialmente, à afirmação da autonomia das realidades terrestres. Após tempos de distorções e ressecamentos, e como resultado inesperado da modernidade, de mais a mais, desperta a consciência de que essas realidades são complexas e cheias de encanto e de dimensão do eterno. Existe um novo encontro com o religioso, mediado pela liberdade de opção e não pela determinação institucional. Vive-se hoje um tempo muito favorável de libertação dos sujeitos humanos com relação às instituições religiosas, as quais às vezes exerceram e exercem papel de atrofiamento do próprio religioso. Carlos Eduardo Sell e Franz Josef Brüseke (2006) apontam exatamente para isto. Estes dois autores, retomando a contribuição da socióloga francesa, lembram que “o que caracteriza a nossa época não é tanto a indiferença religiosa ou a descrença; mas, acima de tudo, o fato de que as crenças religiosas escapam ao controle das grandes igrejas e das instituições religiosas”. (Sell e Brüseke, 2006, p.189-190).  Trata-se de uma busca do ser humano em pensar-se por si mesmo e diz respeito a um processo de individualização e de subjetivação da vida religiosa.

Às vezes as religiões, no afã de colocar-se a serviço dessa dimensão de encanto, do sentimento de plenitude e de ruptura com o vazio e a angústia frente às incertezas de referência dentro das realidades terrestres, se apropriaram e apropriam de tal modo da mesma, que a sufocam, ressecam ou atrofiam.

OS PROCESSOS DE IDENTIDADE

O presente texto iniciou colocando na roda de conversa algumas aproximações em torno das estatísticas religiosas no Brasil. Não foi algo fortuito, nem casual… Procurou-se sinalizar que o quadro estatístico religioso é uma ponta visível de um enorme ‘iceberg’ constitutivo da complexidade dos processos de identidade que acontecem na sociedade, mediados pela dimensão religiosa. As diferentes questões e uma série de atalhos empíricos, explicitados no início do texto, apontam para dimensões desta complexidade nem sempre suficientemente conhecidas. Destaque especial deve ser dado à simultaneidade de formas modernas, com formas pré-modernas e pós-modernas que caracteriza a esfera religiosa nos atuais contextos de pós-modernidade da sociedade brasileira.

O sujeito religioso no contexto de pós-modernidade, no Brasil de hoje, se movimenta permanentemente em encruzilhadas que são ao mesmo tempo complexas e móveis. Trata-se de um contexto de vias que se movimentam compondo e recompondo cruzamentos e acessos. Todo o ser humano vive e sobrevive na sociedade organizando-se em um projeto de vida, o qual é por ele articulado, com maior ou menor consistência, com maior ou menor condição de autogestão. Quando se perde totalmente a força articuladora própria, pode-se falar que o ser humano está afundado em processos de alienação, tendo que viver ou sobreviver segundo projetos de outrem. Peter Berger, na mesma obra já referida anteriormente, ao falar da alienação contrapõe a ideia de opus alienum à de opus proprium. (Berger, 2004). Parece elementar, mas é tremendamente inspirador.

Quando na minha pesquisa de doutorado trabalhei o conceito de identidade, inspirei-me com a ideia de “encruzilhada” ou de “cruzamento complexo” de vias (sem semáforo), ou, ainda, de “lugar de encontro” e de “cruzamento” de diferentes projetos. Em uma palavra: o conceito nasceu da ideia da interação, ou seja, a identidade é uma constante “costura” que se faz no seio da interação. “Costuras” fazem-se sempre necessárias. (Follmann, 2001).

Segundo Gilberto Velho (1987, p. 26ss), os projetos estão sempre ligados a contextos específicos. Um projeto não é jamais um fenômeno puramente subjetivo. Ele sempre é elaborado em um “campo de possibilidades”. As questões e atalhos empíricos explicitados anteriormente sinalizam para alguns “campos de plausibilidades”. O projeto, segundo o autor, pode ter a inspiração em outro lugar, mas o sujeito do projeto deve fundamentalmente considerar seus contemporâneos com os quais deverá estar em contato para atingir seus objetivos.  Levando essa ideia ao extremo, o projeto, dentro da experiência de fragmentação, que é a experiência diária dos indivíduos em sociedade especificamente em contextos de pós-modernidade, não é nada mais que a tentativa permanente de dar sentido e coerência à sua existência em interação com a complexidade plural que os envolve e atravessa.

A grande fragilização e ameaça constante de fragmentação vivida pelos indivíduos em sociedade e, sobretudo, o vazio e a angústia em contextos onde as referências institucionais perderam força, fazem com que os mesmos busquem alguma referência, que ao mesmo tempo seja suficientemente segura (para a realização do projeto pessoal) e suficientemente independente para que a autonomia pessoal seja preservada. Em uma sociedade na qual a dimensão religiosa exerce um substrato cultural predominante e historicamente consolidado, é fácil de entender que as sínteses religiosas pessoais possam tornar-se as principais formas de se potencializar isto. Elas sempre são construídas mediadas pela complexidade concreta presente na esfera religiosa. Talvez tenhamos uma boa chave de explicação do fenômeno da alta expansão religiosa independente de vinculação institucional. Religiosidade que convive com a secularização e nela, inclusive, se fortalece.

CONCLUSÃO

Para concluir, faço três apontamentos… O apontamento inicial é um convite a retornarmos às estatísticas religiosas apresentadas pelo IBGE. Chama atenção o fato de em alguns Estados da Federação, como Acre, Rio de Janeiro, Rondônia e Roraima e poder-se-ia ainda acrescentar Espírito do Santo e Distrito Federal, que apresentam um elevado percentual de evangélicos, concentram também os percentuais mais elevados de pessoas sem religião. (IBGE, 2012). O crescimento acelerado do percentual de evangélicos se dá, em grande parte, devido ao aumento da incidência do segmento neopentecostal. Este fato vem ao encontro da hipótese de certa proximidade, em determinadas circunstâncias, entre fatores que desencadeiam a busca da solução neopentecostal, com apelo ao sucesso pessoal sem compromisso de participação e vinculação comunitária, e a identificação como sem religião, traduzível, em muitos casos, como religiosidade de “arranjo pessoal”. Ambas são soluções individualizantes e de reforço da subjetividade pessoal. São, a rigor, neste sentido, soluções secularizantes e apontam na direção das principais interrogações teóricas aqui expostas.

O segundo apontamento vem ao encontro da radical importância manifesta na intuição que nos alerta sobre a simultaneidade e justaposição das formas pré-modernas, modernas e pós-modernas no cotidiano da esfera religiosa brasileira em nossos dias. Existe certamente uma acentuada tendência de ampliação na margem de participação das soluções pós-modernas que podem ser visibilizadas mediante os seguintes fatos: – o grande segmento populacional que se diz religioso, mas com nenhuma adesão ou envolvimento institucional mínimo; – a proliferação sem conta de fórmulas de autoajuda e programações religiosas de massa e midiáticas; – a já mencionada coincidência entre contextos de crescimento do segmento neopentecostal e aumento da população que se diz sem religião.

Por fim, o último apontamento retorna à pergunta formulada inicialmente: o que podemos colher do estudo sobre os processos de identidade nas manifestações religiosas no Brasil de hoje, para o avanço dos estudos da sociedade e das Ciências Sociais, neste contexto?  Para abreviar o argumento, me associo ao antropólogo Otávio Guilherme Velho (in Teixeira e Menezes, 2005: p.11-12) para dizer que é fundamental que as ciências sociais e os estudos da sociedade no Brasil, mais do que nunca, se desfaçam de certos ranços que ainda dominam a academia brasileira, para assumir com humildade um olhar mais atento, de forma transdisciplinar, para a dimensão religiosa da sociedade, condição fundamental para uma compreensão em profundidade desta mesma sociedade.

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[1] A pesquisa sobre os Locais de Culto e Templos na Região Metropolitana de Porto Alegre abrangeu os municípios de Canoas, Cachoeirinha, Esteio, Sapucaia do Sul, São Leopoldo e Novo Hamburgo (a pesquisa se estendeu de 1994 a 2004)

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