ABRACEI AS ÁRVORES E PEDI PERDÃO AOS JESUÍTAS QUE AS HAVIAM PLANTADO

Crônica escrita no dia 31 de março de 2019.

José Ivo Follmann sj (31/03/2019)

Foi no último domingo de março. Eu havia celebrado a missa na antiga capela do Centro Cultural de Brasília – CCB. A capela estava lotada. Sabíamos que aquela era a última missa ali realizada. Mesmo que já eram passados muitos meses depois do anúncio deste encerramento, eu ainda notava tristeza no olhar de muitas pessoas. Afinal, eram muitas décadas de celebrações naquele espaço. Tentei penetrar no íntimo de cada um daqueles olhares, tentando vislumbrar a origem da tristeza no olhar, suas histórias de vida e de frequência naquele ambiente.

Uma crônica de despedida em homenagem às árvores do antigo Centro Cultural de Brasília – CCB

O ambiente não era só a capela. Era o Centro Cultural de Brasília, como um todo. O auditório, as salas, o contorno aconchegante e o abraço reconfortador do verde formado por um parque de plantas e árvores de todos os tamanhos, sinfonia de verde de muitas cores, odores e sons. Um verdadeiro oásis multicolorido e multifuncional no coração de Brasília, pulsando no ritmo dos anseios de muitas pessoas. Era, sobretudo, um espaço de fácil acesso e convergência para momentos de reflexão e encontro de movimentos e organizações populares e eclesiais do Distrito Federal. Um oásis de resistência, na mente de muitas pessoas. Tudo estava entristecido por um clima de melancólica expectativa da destruição. 

Fizemos uma foto coletiva. Foi grande o esforço dos fotógrafos e fotógrafas de plantão, para tentar incluir aquele grupo relativamente grande, na foto. Nos despedimos. Algumas pessoas visitaram as instalações novas provisórias, construídas com material de galpão de obra. Um espaço leve, atrativo. As pessoas mostraram alento e conforto. Diversos, no entanto, retomaram o seu grande desconforto pelas numerosas árvores que estavam prestes a serem cortadas.

Como eu fazia todos os dias, na tarde daquele domingo fiz a minha caminhada. Não é necessário dizer que aquela caminhada assumiu um sentido especial. No meio das árvores, havia uma trilha, em formato, ao mesmo tempo, alinhado e desalinhado. Eu conhecia aqueles alinhos e desalinhos nos mínimos detalhes. No período de chuvas tudo ali era repleto de infinitas surpresas diárias desenhadas no encanto de um verde exuberante e multicolorido.

Em cada caminhada, a primeira volta sempre exigia um pequeno esforço por desobstruir a trilha. No período da seca, eram frutas caídas, exalando odores fortes, misturando-se a folhas e galhos secos e verdes, insistindo em se atravessar desajeitados. No período das chuvas, era um explodir indomável de ervas verdejantes e vigorosas, se enroscando por cima do passeio, se pegando na roupa do transeunte intruso. Parecia estratégia da natureza, como um alerta invisível: Aqui deve-se ter cuidado ao caminhar! Este chão não tem a lógica da racionalidade viciada que domina!

Naquele domingo foi a caminhada de despedida. Eu tinha consciência disso. Estávamos no período da maior pujança do verde. Eu mal conseguia olhar para todas aquelas árvores. Meu coração estava apertado e eu balbuciava preces de constrangimento e confusão. Imaginava com tristeza a dor de meus companheiros de gerações anteriores, padres e irmãos jesuítas, que haviam plantado grande parte daquelas árvores. Comungava amargamente com a revolta que estava instalada no coração de muitos. Aquelas árvores estavam tão lindas! Tão vigorosas! Tão viçosas! Felizes por existirem, agitavam abundantes acenos, como quem celebra a sua contribuição para o grande equilíbrio da natureza. Pareciam homenagear com gratidão aqueles que lhes haviam dado a chance de ali crescerem e haviam cuidado delas.

Na terceira volta esqueci o exercício físico e reduzi o passo. Olhei demoradamente para cada árvore. Vi com tristeza que todas elas, sem distinção, estavam marcadas com um selo amarelo. Todas elas estavam rigorosamente numeradas. Marcadas para morrer? Era o controle ambiental (Selinhos do IBAMA? …). Desde os arbustos adolescentes mais magrinhos de alguns poucos centímetros de diâmetro em seu magro ensaio de tronco até os troncos enormes de mais de dois metros de diâmetro. A numeração das árvores marcadas para morrer ia até 242. A maioria daquelas árvores, pequenas e grandes, novas e velhas, não sobreviveria. O selinho amarelo era a marca da morte. Oxalá elas pudessem entender – pensei confusamente – que estava chegando o seu fim naquele espaço. Pedi a elas que nunca esquecessem de alimentar aquele espaço com a incomensurável energia que ali haviam acumulado ao longo de tantos anos.

Naquele domingo, que era 31 de março de 2019, minha mente e meu coração distribuíram abraços de despedidas. Eram árvores pequenas e grandes, novas e velhas acolhendo a minha dor. Meu delírio fazia pensar que elas sabiam o motivo daquele abraço. Meu coração pedia perdão aos que haviam cultivado com tanto carinho aquele verdadeiro jardim botânico. Foi a minha última caminhada naquele jardim. Não concluí as minhas seis voltas, que faziam parte do meu ritual diário sagrado. Me despedi apressado, sem olhar para trás. Apressei-me para abrir o computador e traçar o primeiro rascunho desta humilde crônica. Ela é uma homenagem. Um pedido de perdão. Um compromisso renovado. Homenagem, pedido de perdão e compromisso frente ao número 242 e toda memória de vida e história que nele se expressa. Que os 242 selinhos amarelos grampeados nos troncos pequenos e grandes nunca se apaguem de minha memória. (Nota: efetivamente, mais tarde, o número total da derruba foi de 233, permanecendo em pé 9 lindas árvores, nos fundos da residência da Comunidade dos Jesuítas. É um novo começo para novo belo jardim, agora em espaço mais apertado…)

O CUIDADO COMO UM LEGADO ESPIRITUAL INACIANO NA “PÓS-PANDEMIA”.

Publicado na Revista EM COMPANHIA, em julho de 2020.

Texto de reflexão espiritual com perspectiva formação pastoral

Artigo para a Revista Em Companhia, Província do Brasil, Companhia de Jesus

José Ivo Follmann sj – 15/07/2020

A palavra cuidado é muito importante no vocabulário interno da Companhia de Jesus. Pode-se dizer que o “cuidado das pessoas” e o “cuidado apostólico” fazem parte da espiritualidade inaciana e do modo de ser jesuíta. Também o “Cuidado da Casa Comum”, que se consagrou com a Carta Encíclica Laudato Sí, em 2015, com o Papa Francisco, reflete uma longa história de tomada de consciência interna à Companhia de Jesus, ao longo das últimas Congregações Gerais, na construção de relações justas com Deus, com os outros na sociedade e com os dons da criação, ou seja, no cuidado da vida em todas as suas dimensões e expressões.

Foi o que me veio à mente, de imediato, frente à pergunta feita pela jornalista sobre qual o “legado da vida e espiritualidade de Santo Inácio” em vista de um compromisso nosso na “nova realidade pós-pandemia”. Mas, talvez, o início da resposta, deva ser: “ver Deus em tudo”. Também é uma expressão de síntese vigorosa na espiritualidade inaciana. Além de síntese vigorosa é uma expressão de força indescritível. É algo profundamente mobilizador. Muitas vezes me deixo arrebatar pela riqueza espiritual tremenda que está assim expressa.

Em Inácio de Loyola, isto se moldou dentro de um processo profundo de conversão. Ele se entregou radicalmente a esse processo deixando que uma nova espiritualidade reconfigurasse a sua vida.

A humanidade, hoje, tem a oportunidade de entregar-se, como um todo, a um processo de transformação em suas “normalidades”. A sacudida em Inácio de Loyola foi radical e gerou um projeto pessoal e coletivo totalmente novo. Cada um e cada uma de nós tem a alegria de participar e de estar envolvido e envolvida, de alguma forma, no projeto coletivo que resultou da conversão de Inácio de Loyola. Nós comungamos, através desse projeto, na mesma Missão de Jesus Cristo.

A sacudida da humanidade, no atual momento de pandemia, está sendo intensa e, por todos os recantos da terra despontam sinalizações e vislumbres consistentes de um novo mundo possível e necessário. Estão sendo tecidas novas lógicas em nível pessoal e coletivo. O seu alcance e sua consistência ainda não são mensuráveis. Mas, com certeza, apontam para a necessidade e a urgência da transformação radical.

Ainda estamos afundados na pandemia. Ainda não sabemos quando poderemos vislumbrar a nova realidade, que alguns estão chamando de “pós-pandemia”. Ainda temos dificuldades para desenhar, em nossas mentes e corações, essa realidade futura. Algumas ideias são repetidas. Vou citar duas: 1) A pandemia veio para inaugurar definitivamente aquilo que, há muito tempo, vem sendo denominado de “mudança de época”. 2) Com a pandemia as seguranças que marcaram as normalidades do século XX caem por terra e se inicia, de verdade, o século XXI.

Segundo o Cardeal José Tolentino Mendonça, a atual pandemia nos faz entrar em uma nova época da história. A pandemia vai passar. Mas nós já estaremos em outra época da história, em termos culturais, civilizacionais e espirituais: uma época espiritualmente outra. (Palestra, FAJE, junho 2020)

Como já sinalizei, Inácio de Loyola foi um radical. Foi personalidade que protagonizou rupturas radicais em sua própria trajetória. Inaugurou uma espiritualidade transformadora, radicalmente contestadora das lógicas dominantes em sua própria família e em seu contexto social e cultural. Ele mexeu nas estruturas de base que o sustentavam. A guinada espiritual lhe proporcionou um novo sentido à vida. Passou a ver as pessoas e as coisas a partir de uma lógica totalmente outra. Passou a “ver Deus em tudo”, assumindo um comportamento totalmente novo.

A pandemia também vem mexendo muito conosco. Mexeu com nossas lógicas. Mexeu com as estruturas de base e as certezas que nos sustentam. Ela reacendeu, em todos os recantos da terra, a busca e a escuta das diversas vozes da sabedoria humana na história. Essas vozes sempre estiveram presentes. Infelizmente a humanidade tornou-se surda a elas.

Em uma leitura que fiz em inícios de 2019, de um pequeno livro de Leonardo Boff (2018), de antes da pandemia, uma passagem me chamara particular atenção: “Vamos criar juízo e aprender a ser sábios e a prolongar o projeto humano, purificado pela grande crise que seguramente nos acrisolará”. O autor referia duas passagens riquíssimas da Sagrada Escritura, onde Deus aparece como “apaixonado amante da vida” (Sb 11, 24) e que nos faz um apelo radical: “Escolhe a vida e viverás” (Dt 30, 28). Leonardo Boff escrevia: “Andemos depressa, pois não temos muito tempo a perder”.

A pandemia me fez compreender mais profundamente aquela assertiva. Eu torço, agora, para que a pandemia possa efetivamente contribuir para que paremos de correr na direção errada (da morte) e para que aceleremos os passos na direção certa (da vida).

As nossas instituições vão estar povoadas de protocolos para o exercício do cuidado conosco e com quem está conosco. O nosso avanço, no entanto, deve apontar para muito além desses protocolos. Que o sonho, ou, o apelo à conversão, que o Cardeal Tolentino manifestou, ao falar em nova época “espiritualmente nova”, se faça um efetivo processo de transformação em nós!

Eu torço para que saltemos muito além dos protocolos e que o processo de conversão se faça realidade na disposição de nossos corações, fazendo-nos efetivos no cuidado: a) Cuidado por refazermos em nós a capacidade de reconhecer o outro em sua dignidade, mediante gestos concretos de fraternidade, acolhimento e denúncia de toda ordem de preconceitos e discriminações; b) Cuidado por delinear caminhos para a construção de sociedades geradoras de vida, sem as escandalosas e crescentes injustiças sociais e desigualdades; c) Cuidado por cultivar a vida em todas as suas expressões e dons da criação, em geral. Em suma, um cuidado regenerador nosso no amor a toda a vida que pulsa em nossa Casa Comum.

Colocados no horizonte da Ecologia Integral e do cuidado da Casa Comum de que nos fala a Laudato Sí (2015), todos os cuidados aqui mencionados são dimensões da prática da justiça socioambiental. A realidade “pós-pandemia” deverá encontrar-nos profundamente revigorados/as na disposição de sermos, em nosso cotidiano e em todos os níveis de nossa atuação, cultivadores/as da justiça socioambiental. Talvez deva ser um dos traços fundamentais da espiritualidade que necessitamos.

Neste sentido, o Marco da Promoção da Justiça Socioambiental da Província (Marco PJSA), em sua nova edição (2020), conclui com fortes apelos para que nos empenhemos em propor que a economia esteja a serviço das necessidades básicas de todos os seres humanos e de sua qualidade de vida, bem como conserve os dons da criação e não continue comprometendo mortalmente a natureza. Que, em nossas vidas, em nossas instituições e no mundo econômico, político e social, sejamos protagonistas do cuidado com a vida, uma vida digna para todos e todas.

É importante que junto com toda a humanidade tenhamos aprendido a lição da pandemia. Um aprendizado de que não podemos voltar a fazer as mesmas coisas e da mesma maneira.

SUPERANDO AS MESMICES: EM BUSCA DE UMA PROPOSTA TRANSDISCIPLINAR

Palestra proferida em setembro de 2006 em Seminário Internacional, UNISINOS.

A tábua de salvação da universidade

P. José Ivo Follmann sj [1]
Secretário para a Justiça Socioambiental
Província dos Jesuítas do Brasil;
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos.

Palestra proferida no III Seminário Internacional sobre Limites e Possibilidades do Direito Moderno – Uma Visão Transdisciplinar, UNISINOS, Setembro de 2006.[2]

São Francisco Xavier, como missionário atuante no Extremo Oriente, em um dos contatos escritos, através de carta,[3] manifestava uma grande ansiedade com relação à acomodação e ao pouco resultado das Universidades Européias, frente às grandes necessidades da humanidade. Ele escrevia que tinha vontade de retornar à Europa e, “se fazendo de louco”, andar pelos corredores dessas Universidades e denunciar, aos gritos, a “insensibilidade e indiferença” delas e dos seus estudantes, com relação ao que a humanidade efetivamente mais estava necessitando. Esse santo, nos limites de sua compreensão, dentro de seu ardor missionário, se referia, evidentemente, à necessidade da evangelização e do anúncio dos valores cristãos para toda a humanidade.

Sem repetir a mesma visão de mundo desse heróico jesuíta do século XVI, hoje, são muitas as vozes que se levantam e que gostariam de “se fazer de louco” para sacudir as Universidades de seu torpor e sua acomodação nas mesmices de uma Academia insensível e indiferente frente aos destinos da humanidade e dos problemas concretos existentes no cotidiano das pessoas e da sociedade.

Talvez devamos dizer que não se trata, tanto, de insensibilidade e indiferença frente aos problemas humanos, mas da própria incapacidade de perceber e reconhecer as potencialidades da Universidade e os múltiplos valores que nela estão escondidos e são mal aproveitados.

O título desta minha participação neste III Seminário Internacional sobre Limites e Possibilidades do Direito Moderno – Uma Visão Transdisciplinar, foi inspirado em uma frase do Professor Ubiratan D’Ambrosio, em recente palestra nesta casa,[4] onde ele disse que “a transdisciplinaridade é o caminho de superação da mesmice.” Quero expressar a minha admiração em relação a toda a equipe que preparou o presente Seminário. Já é o terceiro e, portanto, existe uma história acumulada. Trata-se de uma história que faz parte, também, de um importante processo vivido pela nossa Universidade, sobretudo, desde o ano de 2001, na busca de definir-se como Universidade que faz uma opção institucional pela transdisciplinaridade. Já foram dados vários passos e, talvez, já possamos dizer que a superação da mesmice, ainda que débil e tributária dos rancorosos limites de uma cultura disciplinar secular, está sendo esboçada com firmeza.

Colocando-me na seqüência de minhas contribuições nos Seminários anteriores, onde fui desafiado, por duas vezes consecutivas, a trazer reflexões para uma discussão do conceito de transdisciplinaridade e de sua pertinência no atual contexto acadêmico e profissional, trago para este momento mais três fragmentos ou recortes, que, no meu entender, poderão jogar novas luzes ou interrogações sobre a temática.

Em minha participação no Primeiro Seminário, preocupei-me em propor algumas reflexões sobre o conceito de transdisciplinaridade, diferenciando-o de multi, pluri e interdisciplinaridade, e usei, na oportunidade, diversas imagens para ajudar a definir a essencialidade do conceito.

Desde o Primeiro Seminário, acostumei-me a falar em quatro momentos metodológicos de um mesmo “que fazer” científico: 1) a disciplinaridade; 2) a multi e pluridisciplinaridade; 3) a interdisciplinaridade; 4) a transdisciplinaridade. Com a afirmação da transdisciplinaridade não se está deixando de afirmar a importância da contribuição específica das disciplinas, seja em suas produções isoladas, seja na forma multi ou pluridisciplinar de produção do conhecimento, somando, justapondo ou criando interfaces entre disciplinas, ou, ainda, na forma interdisciplinar, de efetivo diálogo e intercâmbio conceptual e metodológico entre disciplinas. A transdisciplinaridade estará presente em todos esses momentos metodológicos, na medida em que houver uma madura abertura para a integração dos saberes, seja saberes de disciplinas, seja saberes de “interrogantes externos”, que as transcendem.[5] Para Basarab Nicolescu, no qual esta conceituação se apóia, “a transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica, diz respeito àquilo que está, ao mesmo tempo, entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina.”[6]

No Segundo Seminário aprofundei algumas imagens, como: a do “poço”, utilizada freqüentemente por Ubiratan D’Ambrosio; a da “ultrapassagem”, buscada numa reflexão de Dom Helder Câmara; a do “menino que queria conhecer o mundo”, título de um livro de Carlos Rodrigues Brandão.

Retomando sinteticamente: 1) Ubiratan D’Ambrosio, ao falar do conhecimento, utiliza a analogia do poço, “assim, como ao descer num poço a percepção do terreno ao redor vai se tornando mais e mais difícil, o conhecimento especializado pode conduzir a uma falta de percepção do contexto em que tal conhecimento foi produzido.”[7] 2) Dom Helder Câmara um dia, inquieto, exclamou “Ah! Se a sede de ultrapassagem – comum a todos os volantes – levasse volantes e passageiros a aprenderem a ultrapassar-se!” É necessário que saibamos ultrapassar a nós mesmos, constantemente, para não nos tornarmos ultrapassados. A Academia facilmente corre o risco de ser ultrapassada, voltada que está para os seus disciplinamentos e os regramentos internos de seu mundo. Os Acadêmicos correm o risco de ficar à parte do contexto no qual se inserem, movimentando-se de forma paralela e construindo ‘torres de marfim’, à parte, alheios aos grandes debates e embates da humanidade. 3) Carlos Rodrigues Brandão, em um de seus livros no qual retrata a história de Paulo Freire “A história do menino que lia o mundo”,[8] destaca que esse menino que lia o mundo, aprendeu a perder o medo porque começou a entender as coisas e o mundo. Só temos medo frente ao que não entendemos. É preciso saber colocar no background de nossas análises científicas disciplinadas e de alta qualidade e habilidade, o “isso não é tudo”, esses caminhos não são suficientes! É importante repetir permanentemente para nós mesmos: Existem outras percepções, que transcendem a percepção disciplinar.[9]

Hoje vou propor novas aproximações… Os três fragmentos ou recortes que vou sinalizar, aqui, de forma sucinta, pretendem colocar-se numa seqüência das reflexões anteriores, buscando aprofundamentos, através da provocação de novos diálogos. Vou falar de: 1) a “lição de uma Mãe-de-Santo”; 2) a “leitura de um documento dos Jesuítas”; e, 3) o “o triângulo da vida de Ubiratan D’Ambrosio”.[10] Após essas três entradas, aparentemente desencontradas, tentarei, a título de conclusão ou encaminhamento de debate, levantar algumas questões direcionadas para a temática central do presente Seminário.

1. A Lição de uma Mãe-de-Santo

Aproveito para trazer, aqui, a lição que recebi de uma Mãe de Santo.[11] Estava participando de um seminário sobre teologia das religiões de matriz africana. A Mãe de Santo, que era uma das painelistas, acabara de fazer uma reflexão de grande profundidade e, no meu entender, de registro escrito necessário. Perguntei-lhe, no final de sua colocação, por que as religiões de matriz africana, ainda hoje, continuavam resistentes ao registro escrito das grandes lições de vida e fé de seus líderes e, também, de suas reflexões espirituais e religiosas. Ela me respondeu: “Padre Ivo, se a gente escreve, aí vêm outros, leem e saem fazendo bobagem!…” Foi uma resposta inesperada, que já me oportunizou muita reflexão.

Em primeiro lugar: valores e atitudes não se aprendem em livro! Ou seja, existem dimensões no conhecimento que não passam pela simples captação da razão. As formulações da linguagem sempre serão pobres para dar conta delas. Só podem ser colhidas na vivência e no coração. A simples apreensão pela leitura, quando não acompanhada pela acolhida vivencial, proporciona uma falsificação cognitiva. A frase “aí vêm outros, lêem e saem fazendo bobagens!” pode ser entendida também como “aí vêm outros, lêem, acham que sabem e saem fazendo bobagens!

Quantas bobagens fazem professores em sala de aula, porque leram (talvez tudo de sua matéria) e acham que sabem, mas não são capazes de estar atentos à vida de seus alunos ou mesmo à sua própria vida! Quantas bobagens fazem profissionais da lei em seus afazeres jurídicos, porque leram e acham que sabem!

Em segundo lugar: a Academia e as instituições consolidadas não são os únicos espaços de estruturação das áreas de conhecimento ou dos campos de saber. Existem áreas e campos de conhecimento e saber, cujas hierarquias de poder estão situadas fora do meio acadêmico e das instituições consolidadas.

A lembrança da Mãe de Santo nos faz retomar uma imagem que é muito cara a Ubiratan D’Ambrosio. Ele fala das “gaiolas epistemológicas”. As grades das gaiolas epistemológicas só serão, efetivamente, rompidas na medida em que o conhecimento puder ser construído em profundo diálogo com atitudes e valores. Só num processo assim, estaremos formando homens e mulheres com capacidades efetivas e humanas para construir cultura nos lugares onde estiverem atuando, compartilhando conhecimentos, compatibilizando comportamentos e afirmando valores.

No diálogo inter-religioso aprende-se muito. O diálogo inter-religioso já me fez aprender muito. É um processo no qual se aprende, por exemplo, a aceitar que o outro, que antes era talvez simplesmente uma realidade que se tolerava, possa ser alguém em pé de igualdade, sendo, inclusive, referência para nós. Ele ajuda a aceitar a possibilidade de outras hierarquias na produção do conhecimento, para além daquelas que normalmente consideramos válidas. No diálogo inter-religioso experimentamos a ajuda desses outros. Eles nos ajudam a sermos melhores em nossa própria religião. O caminho do diálogo inter-religioso é um bom caminho de aprendizagem para uma cultura transdisciplinar.

Com a licença da Mãe de Santo, permitam-me fazer um pequeno parêntesis, aqui: Em determinada ocasião, numa das muitas participações em encontros que envolvem a temática do diálogo inter-religioso, estávamos reunidos com um grupo grande de seguidores do Movimento Brahma Kumaris. No final daquele evento, alguém nos trouxe uma proposta, que achei muito inspiradora. A pessoa falou em vibrações da paz. Só um minuto! “Convidamos você a fazer esta experiência: a cada hora, interrompa a sua ação e o fluxo do seu pensamento, com a seguinte mensagem: Sou um ser especial, somos seres especiais e com outros seres especiais dançamos e formamos a ‘ciranda da vida’.” (BK) É a idéia do Ano Sabático, em forma de comprimido. Trata-se do momento de retomar a visão do todo. Momento de fazer as pazes conosco mesmos. Fiquei pensando: talvez necessitemos, efetivamente, mais disso. Para que o nosso conhecimento seja mais verdadeiro e para que os nossos conhecimentos nos levem a fazer menos bobagens, esses momentos de encontro conosco mesmos, fazem uma tremenda falta!

2. Um Desafio para os Jesuítas

Sem sair da esfera religiosa e do diálogo inter-religioso, faço agora um convite para nos determos brevemente diante de um texto atual que circula no meio jesuítico.[12] Estamos em uma instituição jesuítica, por isso é mais do que oportuna esta nota… Com uma distribuição de alcance restrito, circula no meio jesuíta, um texto intitulado “Globalização e marginalização”, abril de 2006.[13] Ele foi elaborado por uma equipe internacional e intercultural de jesuítas, nomeada pelo Superior Geral, sob a coordenação do Secretariado de Justiça Social, da Companhia de Jesus. Trata-se de um dos textos de trabalho que vêm preparando, de forma longínqua, a Congregação Geral da Ordem, a realizar-se em janeiro de 2008.

Quero trazer duas recomendações que, entre outras muitas, dignas de serem ressaltadas, chamaram a minha particular atenção: a) é recomendável, que cada jesuíta se empenhe em defender ao menos uma cultura, que não seja a sua; b) é recomendável, que cada jesuíta se empenhe em conhecer a fundo ao menos mais uma religião, além da sua própria.

Não se trata, portanto, de ter simplesmente uma atenção e procurar conhecer as outras culturas e religiões e dialogar com as mesmas, mas empenhar-se em defender e empenhar-se em conhecer a fundo. Trata-se de uma provocação grande.

Não é, evidentemente, um documento oficial da Ordem, mas, certamente, ele aporta indicativos muito sérios e pertinentes para a nossa reflexão, para que se possa avançar, de forma efetiva, na construção da transculturalidade e da transdisciplinaridade.

Retomar esta reflexão fará muito bem para a Ordem Religiosa em questão, mas convido a todos aqui presentes, ou aos que tomarem contato com este texto, a deixarem que este desafio os provoque.

Ubiratan D’Ambrosio também falou: “No encontro com o outro tem que ter ética!” Sugerindo, é claro, o respeito pela essencialidade do ser humano. Eu logo fiz o link com a questão de inclusão social, tão falada e talvez tão mal praticada! Nós, em geral, gostamos muito de fazer inclusão. De fazer dos outros objetos de nosso trabalho de inclusão. As coisas começam a se complicar no momento em que temos que dar o passo para o reconhecimento do sujeito do outro que está sendo incluído: aceitá-lo como sujeito de sua própria inclusão. Com muita facilidade nos deixamos cegar por pequenas limitações (maneiras de se comportar não condizentes com o nosso padrão estabelecido, etc), para perpetuar, de forma inconsciente, a condição de objeto do outro a ser incluído.

É muito difícil e, às vezes, quase impossível, a tarefa de enfrentar essa nossa limitação. Precisamos, em primeiro lugar, reconhecer os nossos próprios limites, preconceitos e estereótipos, para podermos aceitar o outro como sujeito, sujeito de inclusão e sujeito também incluído (como nós). Mais difícil, ainda, se faz a tarefa de reconhecer no outro, o qual, na minha cabeça, deve ser incluído, como um possível sujeito de minha própria inclusão. Isto é: como alguém que pode contribuir para que eu seja mais gente!

Talvez as duas recomendações destacadas do texto aqui referido possam traçar novos caminhos para os nossos trabalhos de inclusão social…

3. O “Triângulo da Vida” de Ubiratan D’Ambrosio

Um terceiro apontamento, que gostaria de fazer, diz respeito a uma interrogação pedagógica que me ocorreu ao ouvir o Professor Ubiratan D’Ambrosio apresentar a bela síntese explicitada no que ele denomina de “triângulo da vida”. Trata-se de uma metáfora matemática: o fenômeno da vida sintetizado nos seis elementos de um triângulo, onde os três vértices, – o indivíduo, a natureza e a sociedade (os outros), – estão complexamente “intermediados por instrumentos, comunicação e emoções, trabalho e poder, que foram e são essenciais para o desenvolvimento das civilizações”. Podemos falar em atitudes, conhecimentos e capacidades.

Tendo presente o rico conceito de conhecimento com o qual o palestrante costuma trabalhar, no qual se misturam fecundamente também as dimensões do comportamento e dos valores. Aliás, comportamento e valores são indissociáveis.

Ubiratan D’Ambrosio diz: “Eu acredito que é possível uma sociedade onde a arrogância, a desigualdade e o fanatismo não existam mais. Para tal, nós precisamos de uma dramática mudança nos fundamentos de nossa civilização. As normas e valores universalmente aceitos, assim como os sistemas de criação de valor e trabalho, baseados no ganha/perde e na escassez/abundância, são insustentáveis. Nós precisamos de uma ética, focada na mudança da competição para a cooperação, do seccionamento humano para a interconectividade humana, da dependência humana para a interdependência humana, do medo para o amor, do individualismo para o altruísmo. Esta será a mais significativa mudança em toda a história humana e o início de uma caminhada na direção de uma civilização planetária.” Se consideramos estes desafios isoladamente, parecem simplórios e até ingênuos, mas eles, considerados em seu conjunto, refletem um complexo sistema de conhecimento, ou seja, envolvem modos ou estilos de relacionar-se, de entender, de expor o contexto natural, sócio-cultural e imaginário. Segundo Ubiratan D’Ambrosio, por razões até agora pouco explicadas, a espécie humana deu absoluta prioridade a um dos vértices do triângulo: o vértice do indivíduo.

Nós poderíamos pensar uma “matriz” pedagógica, na qual valores, atitudes e conhecimentos de professor e alunos entrassem em permanente roda de explicitação, no momento do indivíduo, no momento social e no momento natural, ou seja: em relação a si, em relação aos outros, em relação à sociedade e em relação à natureza. Em suma, como fazer para que numa sala de aula aconteça a verdadeira construção da cultura e não simples transmissão?

Para concluir…

Em primeiro lugar, não é necessário dizer que o “desafio da Mãe de Santo” fala por si. “Se a gente escreve, aí vêm outros, lêem e saem fazendo bobagem!” “Aí vêm outros, lêem, acham que sabem e saem fazendo bobagem!” Que saibamos ter todos os nossos sentidos muito abertos para apreender a realidade viva que não consegue estar abarcada nos textos e documentos frios que desfilam na nossa frente. Que, sobretudo, nunca deixemos de voltar a nossa atenção aos sujeitos sobre os quais está escrito nos textos e documentos que manipulamos.

Em segundo lugar, a palavra de ouro é o diálogo. Este supõe radical abertura ao outro, ao diferente, a ponto de chegar a um conhecimento profundo dele e de colocar-se em defesa do mesmo. O conhecimento profundo do outro só é possível quando conseguimos des-absolutizar a nossa posição. A maior prova dessa “des-absolutização” está em colocar-se na defesa do direito de realizar-se plenamente dentro dos ditames de outra cultura, que o outro tem.

Em terceiro lugar: O “triângulo da vida” que Ubiratan D’Ambrosio propõe, deve ser para nós uma chamada para a superação da racionalidade individualista para uma racionalidade planetarista, onde o nosso pensar e o nosso agir estão sempre atentos às conseqüências que este pensar e agir têm na sociedade e na natureza. Para que a nova sociedade, onde arrogâncias, desigualdades e fanatismos não tenham mais vez, seja possível, é necessário que as nossas atitudes, os nossos conhecimentos e as nossas capacidades se revistam sempre mais dessa racionalidade que integra, de forma harmônica, a relação com os indivíduos, a sociedade e a natureza.

Em suma, estas são as três pontuações que queria trazer para o presente Seminário e faço votos que possam ser transformadas em pistas inspiradoras na construção de uma cultura da transdisciplinaridade.

NOTAS

[1] Doutor em Sociologia, Padre Jesuíta, Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNISINOS.

[2] Palestra transcrita e revisada pelo autor.

[3] A prática das cartas era uma prática muito usual na recém criada Companhia de Jesus, no século XVI.

[4] Ubiratan D’Ambrosio. Conhecimento e Valores Humanos. Programa de atualização dos docentes. UNISINOS, Unidade de Apoio de Recursos Humanos, setembro de 2006.

[5] Ver Follmann, J. Ivo; Lobo, Ielbo M. et allii. Transdisciplinaridade e Universidade: uma proposta em construção. São Leopoldo: Edunisinos, 2003, p.10.

[6] Nicolescu, Basarab. Educação e transdisciplinaridade. Brasília: Ed. Unesco Brasil, 2000, p.15.

[7] Conferência realizada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, 08 de maio de 2003. (Ver também D’Ambrosio, Ubiratan. Transdisciplinaridade, São Paulo: Palas Athena, 1997).

[8] Brandão, Carlos R. A história do menino que lia o mundo. São Paulo: ANCA, 2002. (Fazendo Hist. nº7, MST)

[9] Desenvolvemos mais amplamente a descrição destas “imagens” em artigo publicado na Revista Ciências Sociais Unisinos. Vol. 41, N. 1, jan/abril 2005: “O Desafio Transdisciplinar: alguns apontamentos” (p. 53-57) [1] D’Ambrosio, Ubiratan. Knowledge and Human Values. Segundo Congresso Mundial de Transdisciplinaridade

[10] D’Ambrosio, Ubiratan. Knowledge and Human Values. Segundo Congresso Mundial de Transdisciplinaridade. Vila Velha, Vitória, ES, setembro de 2005.

[11] Ialorixá Dolores Senhorinha Dornelles, Associação Africanista Santo Antonio de Categeró, São Leopoldo, RS.

[12] Da mesma Ordem Religiosa, a Companhia de Jesus, da qual faz parte São Francisco Xavier, referido, no início.

[13] Social Justice Secretariat. Globalisation and Marginalisation; our global apostolic response. (Report of the Task Force on Globlisation and Marginalisation). Rome, February 2006.

TRANSDISCIPLINARIDADE, DIÁLOGO E COMPROMISSO SOCIAL: DESAFIOS PARA A RENOVAÇÃO DA ACADEMIA

Palestra proferida em Liverpool, Inglaterra, em abril de 2014.

A tábua de salvação da universidade

P. José Ivo Follmann sj
Secretário para a Justiça Socioambiental
Província dos Jesuítas do Brasil;
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos.

MESA REDONDA: INTERNATIONAL FEDERATION OF CATHOLIC UNIVERSITIES – IFCU; XXV Colloquium of ACISE “Being open to the others” – Liverpool Hope University, 04/23-25/2014

RESUMO:

O artigo propõe uma reflexão sintética sobre o possível papel da educação superior na realização do sonho de sociedades sustentáveis, pautando, para tal, a importância da cultura transdisciplinar, do diálogo e do compromisso social na produção do conhecimento e na formação dos profissionais. As concepções de ‘transdisciplinaridade’ (Basarab Nicolescu) e de ‘ecologia dos saberes’ (Boaventura de Souza Santos) são retomadas na perspectiva de se repensar o sentido da universidade hoje, enriquecendo-as com apontamentos a partir de estudos sobre a importância do compromisso social da universidade e da extensão universitária, através do conceito de responsabilidade social universitária (François Vallaeys). Além de estabelecer uma aproximação sugestiva entre as concepções de ‘ecologia dos saberes’ e de ‘transdisciplinaridade’ e sua importância para a educação superior, hoje, o texto partilha algumas reflexões a partir do cotidiano de ‘que fazer’ universitário. A reflexão é desenvolvida no horizonte dos desafios que a universidade enfrenta dentro do contexto social brasileiro e latino-americano, tendo em vista a sociedade sustentável. O artigo conclui com apontamentos e questionamentos que sugerem a necessária ‘reinvenção’ da universidade na perspectiva do ‘abrir-se para os outros’.

Palavras Chave: Transdisciplinaridade; Responsabilidade Social Universitária; Diálogo

INTRODUÇÃO

Tendo como horizonte, o contexto latino-americano e, especificamente, o contexto brasileiro, e a urgência de se pensar a responsabilidade das universidades para ajudar a garantir o futuro da humanidade mediante sociedades sustentáveis, são dados quatro passos na reflexão: – Horizontes Direcionadores da Universidade e Responsabilidade Social Universitária; – As Cinco Dimensões do ‘Que Fazer’ Universitário; – Transdisciplinaridade e Diálogo de Saberes: Um Atalho Fundamental; – Extensão Universitária, Caminhos de Ruptura do Abismo e ‘Reinvenção’ da Universidade na Perspectiva do ‘Abrir-se para os Outros’.

HORIZONTES DIRECIONADORES DA UNIVERSIDADE E RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA

Hoje em dia, em nosso meio, muitas vezes se ouve dizer que existe uma defasagem grande entre o que a sociedade em geral, o mercado em particular e os governos esperam do sistema de ensino, particularmente da educação superior e quais as condições efetivas existentes neste sistema para uma produção de conhecimentos e formação de profissionais condizentes com as reais necessidades da sociedade. Isto redobra de importância e urgência quando colocamos no horizonte a construção de sociedades sustentáveis, como é o horizonte direcionador da proposta contida neste texto. Ou seja, a questão se centra sobre as condições que as universidades apresentam para dar conta daquilo que deveria ser a sua finalidade como produção de conhecimentos e formação de profissionais condizentes com a construção de sociedades sustentáveis.

Às vezes nos deparamos com comentários que sugerem que existe um verdadeiro abismo, quase intransponível, entre estes dois mundos. Mesmo que sejam conhecidos diversos esforços para superar este abismo, existem muitos outros processos em andamento que acabam aumentando o mesmo.

Como romper este abismo? Como construir pontes efetivas que permitam o trânsito sobre o mesmo? Sem fazer rodeios, entendo que, em primeiro lugar, é necessário que se coloque no centro do horizonte direcionador algumas questões chaves: – Que sociedade humana nós queremos? Queremos efetivamente construir sociedades sustentáveis? – Que tipo de sujeitos (pessoas) deve ser formado, para que este tipo de sociedade se faça possível? – Que educação nós necessitamos e que universidade queremos para sermos coerentes com a educação necessária para os sujeitos e a sociedade buscados?

Se o nosso sonho é com uma sociedade sustentável, isto é: com uma inovação tecnológica permanente e com o estabelecimento de garantias de sustentabilidade social e ambiental, em vista da sobrevivência equilibrada da sociedade e do meio ambiente no presente e no futuro, os cidadãos e profissionais desta sociedade devem passar por um processo de formação condizente e o sistema, no qual este processo formativo se dá, deve ser impulsionador disto. Quando eu falo em Universidade, o faço dentro deste horizonte. Ou seja, só vejo sentido em lutar por uma Universidade que efetivamente se coloque nesta perspectiva.

Tornou-se bastante usual em debates recentes, sobretudo, a partir do incentivo da UNESCO, o conceito de Responsabilidade Social Universitária – RSU. O conceito tem em si uma riqueza muito grande e traz para o centro das atenções a importância de se ver o processo universitário em sua totalidade orgânica e transversalmente integrada. Reproduzo aqui o conceito formulado pela Associação das Universidades Jesuitas de América Latina – AUSJAL, inspirado em Vallayes (2006), nos seguintes termos: “A habilidade e efetividade da universidade em responder às necessidades de transformação da sociedade em que está imersa, mediante o exercício de suas funções substantivas: ensino, pesquisa, extensão e gestão interna. Estas funções devem estar animadas pela busca da promoção da justiça, da solidariedade e da equidade social, mediante a construção de respostas exitosas para atender aos desafios implicados em promover o desenvolvimento humano sustentável.”[i]

AS CINCO DIMENSÕES DO ‘QUE FAZER’ UNIVERSITÁRIO

O sistema de avaliação implantado na AUSJAL para dar conta do conceito de Responsabilidade Social Universitária – RSU está pautado na avaliação de cinco impactos, dando conta de cinco dimensões chave da vida da universidade. Estou sempre mais convencido, em coerência com o que coloquei como horizonte direcionador da Universidade, que devemos estar atentos, de forma integrada, a essas cinco dimensões: a educativa (a vida acadêmica em seu processo de ensino-aprendizagem), a epistemológica e cognoscitiva (a vida acadêmica em seu processo de produção de conhecimento), a organizacional (a vida acadêmica em sua gestão organizacional e administrativa interna), a social (a vida acadêmica em sua relação com a sociedade), e a ambiental (a vida acadêmica em sua relação com o meio ambiente). Trata-se de cinco dimensões da universidade que, a rigor, nos proporcionam ângulos suficientes para visualizar a totalidade da vida de uma Universidade. A avaliação da vida acadêmica só será efetiva e completa quando conseguirmos dar conta destas cinco dimensões de forma integrada, no próprio processo avaliativo. O impacto ou a presença da academia se dará através destas cinco dimensões. O que a AUSJAL faz para avaliar a Responsabilidade Social Universitária pode ser um modelo inspirador para uma avaliação mais ampla de todo o ‘que fazer’ universitário e de avaliação da excelência acadêmica.

Tendo em vista a produção de conhecimentos e a formação de profissionais para a construção de sociedades sustentáveis, é importante que, na avaliação da vida acadêmica, se esteja atento: a) em seus processos de ensino-aprendizagem e de produção de conhecimento, ao compromisso socioambiental, junto à excelência acadêmica e ao espírito inovador e empreendedor; b) em sua gestão organizacional e administrativa interna, à sustentabilidade socioambiental junto à sustentabilidade econômico financeira; c) em sua relação com a sociedade, ao testemunho institucional e práticas de incidência externa no que tange à reconstrução das relações humanas de reconhecimento e valorização dos diferentes (combate ao preconceitos e discriminações) e à busca de formas de combate às desigualdades sociais no que tange ao trabalho e acesso aos bens; d) em sua relação com o meio ambiente, da mesma forma, ao testemunho institucional e às práticas inovadoras na relação sustentável com o meio ambiente.

Uma aventura destas é tremendamente difícil e quase inconcebível dentro das estruturas comuns da academia seccionada em pesquisa, ensino e extensão, seccionada em departamentos, seccionada em faculdades, institutos ou centros. É, também, muito difícil e quase inconcebível dentro de um esquema de produtividade puramente quantitativa e vazia, como vem acontecendo em muitas situações.

Em tais situações, o sistema de avaliação da chamada ‘excelência acadêmica’ deve ser radicalmente revisto, pois está exacerbando uma corrida quantitativa de ‘produtividade científica’, em grande parte inócua e desconectada com o que deveria ser a finalidade central da universidade. É fundamental que avaliação seja realizada no contexto institucional tendo em vista a continuidade, permanência e garantia de futuro e no contexto da relação da instituição com a realidade social e ambiental envolvente tendo em vista a capacidade de interlocução nos processos de produção do conhecimento e de formação de profissionais. O contexto institucional e a sua capacidade de interlocução devem ser identificáveis tanto em relação ao passado, aos valores e saberes acumulados pelas mais diversas vias, como em relação ao futuro, à busca inovadora de soluções para a humanidade em vista de sociedades sustentáveis e universidades que sejam preparadas e propícias para tal. Este deve ser o referencial para adjetivar de forma coerente a excelência acadêmica. Ou seja, se formos coerentes com a busca por eliminar a grande defasagem entre academia e sociedade, em vista de produção de conhecimentos condizente e da formação de profissionais condizente, a avaliação da excelência acadêmica terá que levar em conta, sobretudo, o tipo de processo desenvolvido na academia, a sua efetiva capacidade de abertura e interlocução com as múltiplas formas de saber e o tipo de impacto gerado por este processo no contexto socioambiental.

TRANSDISCIPLINARIDADE E DIÁLOGO: UM ATALHO FUNDAMENTAL

Para que se possa trilhar o caminho complexo aqui sinalizado, muitos passos devem ser dados, a depender dos diferentes contextos e limitações institucionais. Quero, no entanto, destacar um atalho que entendo como fundamental: o cultivo da ‘cultura da transdisciplinaridade’.

Havendo este cultivo, o ambiente estará facilitado e fecundo para que se concebam e se desencadeiem iniciativas acadêmicas (programas, projetos e atividades) de formação profissional e de produção de conhecimento de efetiva incidência no contexto em todos os níveis.

Mas o que é transdisciplinaridade? O que explica toda esta atenção? Por vezes não nos damos conta de que é dentro do processo de interrogações sobre

a defasagem entre a Universidade e o seu contexto, ou sobre a busca de aproximação entre academia e sociedade que se acelerou o processo de gestação da transdisciplinaridade. Fica sempre mais claro que as opções por buscar soluções transdisciplinares são as que criam as melhores condições para acelerar a aproximação entre academia e sociedade. Talvez se possa dizer que é nas soluções transdisciplinares que reside, em grande parte, a salvação para o futuro das próprias universidades e seu sentido na sociedade. Entendo que as práticas transdisciplinares, no cotidiano das instituições de educação superior, – e isto é válido para o sistema educativo em geral, – serão um grande facilitador para superar a lacuna entre os dois mundos, promovendo uma maior aproximação entre o meio acadêmico e as demandas da sociedade.

O mundo acadêmico é o mundo das disciplinas. É, também, muitas vezes, um mundo que sucumbe a certas arrogâncias disciplinares… As certezas disciplinares são reconduzidas à aproximação da verdade na medida em que se instauram processos multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. A rigor, são diferentes ‘movimentos’ metodológicos de um mesmo ‘que fazer’ científico.[ii] O último desses ‘movimentos’, a transdisciplinaridade, não significa um momento ou etapa de superação ou desconsideração da contribuição específica dos outros ‘movimentos’ das disciplinas, seja em suas produções isoladas, seja na forma multidisciplinar de produção do conhecimento, somando, justapondo ou criando interfaces complementares entre disciplinas, ou, ainda, na forma interdisciplinar, de efetivo diálogo e intercâmbio conceptual e metodológico entre as mesmas. A transdisciplinaridade reflete, em si, todos esses ‘movimentos metodológicos’, acrescendo-lhes uma abertura madura para a integração de saberes diferentes, sejam eles saberes de disciplina, combinação de disciplinas ou, ainda, saberes de outras ordens, que transcendem as disciplinas, atuando como “interrogantes externos”.[iii] Para Basarab Nicolescu, no qual me apoio mais diretamente, “a transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica (…) diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina”.[iv]

A transdisciplinaridade nasceu com essa vocação. Por meio dela se busca a integração dos saberes externos aos esquemas internos disciplinares, onde os saberes de fora da academia (buscados nas percepções do cotidiano, nas

percepções artísticas e outras sensibilidades ou criatividades, ou, mesmo, nas tradições sapienciais da humanidade, sem falar nas percepções concretas na prática dentro dos diversos campos, como saúde, lazer, política, trabalho fabril, etc), funcionam como interrogantes externos dentro do processo de produção do conhecimento e do processo educativo.

Pessoalmente tenho uma longa experiência na percepção do papel importante que os saberes religiosos e as sensibilidades dessas tradições podem contribuir no processo de produção do conhecimento. Inclusive o diálogo inter-religioso pode ser considerado como um excelente laboratório testemunhal de prática transdisciplinar.

EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, CAMINHOS DE RUPTURA DO ABISMO E ‘REINVENÇÃO’ DA UNIVERSIDADE NA PERSPECTIVA DO ‘ABRIR-SE PARA OS OUTROS’

Como já foi mencionado, na legislação que rege as universidades brasileiras são destacadas três finalidades chaves das mesmas: o ensino, a pesquisa e a extensão. Esta última finalidade envolve toda função de interface da universidade com o contexto no qual ela está inserida. A academia aparece como ator social, que, além das pesquisas que são desenvolvidas e do ensino que é pautado nos processos de formação dos profissionais, também exerce um papel de incidência direta no meio socioambiental em que se insere, contribuindo no desenvolvimento da sociedade na busca de soluções inovadoras nas relações humanas e na superação das desigualdades, bem como, na relação com o meio ambiente. No exercício deste papel ela oferecerá a seus alunos, espaços de formação profissional mais próxima e comprometida com todo o contexto humano, cultural, social, tecnológico e ambiental, que os envolve.

É urgente que a academia refaça alianças e se reconcilie com um imenso acervo de saberes que foram tornados ausentes por ela mesma. Esta riqueza pode estar fazendo falta para a humanidade. Mencionei a dimensão religiosa, que é portadora de parcela desta multi variada riqueza não suficientemente presente nos processos de produção do conhecimento e formação de profissionais. Mencionei esta dimensão por fazer parte de minha prática

imediata. Muitas outras dimensões, mais ou menos importantes, deveriam ser mencionadas. Como foi observado anteriormente, isto está presente tanto nas tradições sapienciais, como nas percepções na vida do dia-a-dia e em todos os campos de relações.

O sociólogo português Boaventura de Souza Santos (2007) avançou muito no debate sobre transdisciplinaridade, com o conceito de ‘ecologia dos saberes’ resultando da ruptura com a linha abissal criada entre os saberes disciplinados na racionalidade acadêmica (cultivados na ‘razão indolente’) e os demais saberes portadores de riquezas infindas que foram tornadas ausentes no processo de produção do conhecimento e formação de profissionais. A contribuição deste sociólogo consegue radicalizar de forma mais contundente o mesmo conteúdo presente no conceito de transdisciplinaridade, chamando a atenção para este processo de geração das ausências na produção do conhecimento, ou seja, o processo acadêmico acabou gerando perdas para o conhecimento no seio da humanidade contemporânea, que podem vir a ser irreparáveis, se essa linha abissal não for rompida.

Entendo que um caminho privilegiado para a ruptura da linha abissal pode ser a extensão universitária quando desenvolvida de forma transversal envolvendo todas as dimensões da Universidade e não como serviços extensionistas à parte como muitas vezes acontece sem repercutir na vida da própria academia como um todo. Aliás, o próprio Boaventura de Souza Santos, em um texto que se tornou paradigmático, colocado em epígrafe na apresentação do texto do Plano Nacional (Brasileiro) de Extensão, expressou claramente que: “Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino”.[v]

Neste sentido o sistema de avaliação da Responsabilidade Social Universitária, proposto pela AUSJAL pode ser um referente muito apropriado para repensar a extensão universitária transversalmente perpassando todas as dimensões do ‘que fazer’ acadêmico. Eu ousaria propor isto como uma fórmula revolucionária de ‘reinvenção’ da própria universidade, fazendo dela um novo espaço transdisciplinar de produção de conhecimento e de formação profissional, espaço no qual, ao lado dos saberes disciplinados da academia, a riqueza de todos os demais saberes, muitas vezes tornados ausentes, esteja reconhecida de forma ativa.

CONCLUSÃO

Em todo este passeio breve feito pelos meandros da responsabilidade social universitária, da transdisciplinaridade – com breve incursão no conceito de ecologia dos saberes – e da extensão universitária, sempre trilhando o pavimento do cotidiano da academia em sua complexidade, podemos anotar que ‘abrir-se para os outros’ pode ser sugerido como um tema principal na ‘reinvenção’ da Universidade. A extensão universitária, enquanto pulsando em todo organismo vivo da Universidade, é espaço de cultivo da transdisciplinaridade e chave para o sucesso na aproximação da academia com a sociedade, podendo ser vista como condição de inovação nos processos de formação profissional e de produção do conhecimento.

Ao concluir esta reflexão sintética, tenho a consciência renovada da grande distância existente entre o sonho e a realidade. No entanto, os limites só serão superados na medida em que forem dados passos concretos, no dia a dia do ‘que fazer’ acadêmico, perpassando todas as suas dimensões.

REFERÊNCIAS

AUSJAL – Associação das Universidades Jesuítas da América Latina (2010). Políticas e Sistema de Autoavaliação e Gestão da Responsabilidade Social Universitária da Ausjal. São Leopoldo: Edunisinos.

FOLLMANN, J. Ivo; LOBO, Ielbo M. (orgs) (2003). Transdisciplinaridade e Universidade: Uma proposta em construção. São Leopoldo: Edunisinos.

NICOLESCU, Basarab (2000). Educação e Transdisciplinaridade. Brasília: Ed. Unesco Brasil.

SANTOS, Boaventura de Souza (2007). A Crítica da Razão Indolente: Contra a lógica do desperdício da experiência. São Paulo: Cortez.

VALLAEYS, François (2006). Que Significa Responsabilidade Social Universitária. Revista Estudos. São Paulo: ABMES – Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior, Ano 24, N. 36, pp. 35-56.

WEIL, P.; D’AMBROSIO, U.; CREMA, R. (1993). Rumo à nova transdisciplinaridade; sistemas abertos de conhecimento. São Paulo: Ed.Summus.

NOTAS

[i] Ausjal, 2010, p.23
[ii] Não são momentos, nem fases no processo de aquisição do conhecimento, como muito bem detalha Pierre Weil in Weil, P., D’Ambrosio, U. e Crema, R., 1993, p.9-75
[iii] Follmann, J.I., Lobo, I. M. et allii, 2003, p.10.
[iv] Nicolescu, 2000, p. 15..
[v] Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e SESu / MEC. Plano Nacional de Extensão. (Edição Atualizada, 2000/2001