O CUIDADO COMO UM LEGADO ESPIRITUAL INACIANO NA “PÓS-PANDEMIA”.

Publicado na Revista EM COMPANHIA, em julho de 2020.

Texto de reflexão espiritual com perspectiva formação pastoral

Artigo para a Revista Em Companhia, Província do Brasil, Companhia de Jesus

José Ivo Follmann sj – 15/07/2020

A palavra cuidado é muito importante no vocabulário interno da Companhia de Jesus. Pode-se dizer que o “cuidado das pessoas” e o “cuidado apostólico” fazem parte da espiritualidade inaciana e do modo de ser jesuíta. Também o “Cuidado da Casa Comum”, que se consagrou com a Carta Encíclica Laudato Sí, em 2015, com o Papa Francisco, reflete uma longa história de tomada de consciência interna à Companhia de Jesus, ao longo das últimas Congregações Gerais, na construção de relações justas com Deus, com os outros na sociedade e com os dons da criação, ou seja, no cuidado da vida em todas as suas dimensões e expressões.

Foi o que me veio à mente, de imediato, frente à pergunta feita pela jornalista sobre qual o “legado da vida e espiritualidade de Santo Inácio” em vista de um compromisso nosso na “nova realidade pós-pandemia”. Mas, talvez, o início da resposta, deva ser: “ver Deus em tudo”. Também é uma expressão de síntese vigorosa na espiritualidade inaciana. Além de síntese vigorosa é uma expressão de força indescritível. É algo profundamente mobilizador. Muitas vezes me deixo arrebatar pela riqueza espiritual tremenda que está assim expressa.

Em Inácio de Loyola, isto se moldou dentro de um processo profundo de conversão. Ele se entregou radicalmente a esse processo deixando que uma nova espiritualidade reconfigurasse a sua vida.

A humanidade, hoje, tem a oportunidade de entregar-se, como um todo, a um processo de transformação em suas “normalidades”. A sacudida em Inácio de Loyola foi radical e gerou um projeto pessoal e coletivo totalmente novo. Cada um e cada uma de nós tem a alegria de participar e de estar envolvido e envolvida, de alguma forma, no projeto coletivo que resultou da conversão de Inácio de Loyola. Nós comungamos, através desse projeto, na mesma Missão de Jesus Cristo.

A sacudida da humanidade, no atual momento de pandemia, está sendo intensa e, por todos os recantos da terra despontam sinalizações e vislumbres consistentes de um novo mundo possível e necessário. Estão sendo tecidas novas lógicas em nível pessoal e coletivo. O seu alcance e sua consistência ainda não são mensuráveis. Mas, com certeza, apontam para a necessidade e a urgência da transformação radical.

Ainda estamos afundados na pandemia. Ainda não sabemos quando poderemos vislumbrar a nova realidade, que alguns estão chamando de “pós-pandemia”. Ainda temos dificuldades para desenhar, em nossas mentes e corações, essa realidade futura. Algumas ideias são repetidas. Vou citar duas: 1) A pandemia veio para inaugurar definitivamente aquilo que, há muito tempo, vem sendo denominado de “mudança de época”. 2) Com a pandemia as seguranças que marcaram as normalidades do século XX caem por terra e se inicia, de verdade, o século XXI.

Segundo o Cardeal José Tolentino Mendonça, a atual pandemia nos faz entrar em uma nova época da história. A pandemia vai passar. Mas nós já estaremos em outra época da história, em termos culturais, civilizacionais e espirituais: uma época espiritualmente outra. (Palestra, FAJE, junho 2020)

Como já sinalizei, Inácio de Loyola foi um radical. Foi personalidade que protagonizou rupturas radicais em sua própria trajetória. Inaugurou uma espiritualidade transformadora, radicalmente contestadora das lógicas dominantes em sua própria família e em seu contexto social e cultural. Ele mexeu nas estruturas de base que o sustentavam. A guinada espiritual lhe proporcionou um novo sentido à vida. Passou a ver as pessoas e as coisas a partir de uma lógica totalmente outra. Passou a “ver Deus em tudo”, assumindo um comportamento totalmente novo.

A pandemia também vem mexendo muito conosco. Mexeu com nossas lógicas. Mexeu com as estruturas de base e as certezas que nos sustentam. Ela reacendeu, em todos os recantos da terra, a busca e a escuta das diversas vozes da sabedoria humana na história. Essas vozes sempre estiveram presentes. Infelizmente a humanidade tornou-se surda a elas.

Em uma leitura que fiz em inícios de 2019, de um pequeno livro de Leonardo Boff (2018), de antes da pandemia, uma passagem me chamara particular atenção: “Vamos criar juízo e aprender a ser sábios e a prolongar o projeto humano, purificado pela grande crise que seguramente nos acrisolará”. O autor referia duas passagens riquíssimas da Sagrada Escritura, onde Deus aparece como “apaixonado amante da vida” (Sb 11, 24) e que nos faz um apelo radical: “Escolhe a vida e viverás” (Dt 30, 28). Leonardo Boff escrevia: “Andemos depressa, pois não temos muito tempo a perder”.

A pandemia me fez compreender mais profundamente aquela assertiva. Eu torço, agora, para que a pandemia possa efetivamente contribuir para que paremos de correr na direção errada (da morte) e para que aceleremos os passos na direção certa (da vida).

As nossas instituições vão estar povoadas de protocolos para o exercício do cuidado conosco e com quem está conosco. O nosso avanço, no entanto, deve apontar para muito além desses protocolos. Que o sonho, ou, o apelo à conversão, que o Cardeal Tolentino manifestou, ao falar em nova época “espiritualmente nova”, se faça um efetivo processo de transformação em nós!

Eu torço para que saltemos muito além dos protocolos e que o processo de conversão se faça realidade na disposição de nossos corações, fazendo-nos efetivos no cuidado: a) Cuidado por refazermos em nós a capacidade de reconhecer o outro em sua dignidade, mediante gestos concretos de fraternidade, acolhimento e denúncia de toda ordem de preconceitos e discriminações; b) Cuidado por delinear caminhos para a construção de sociedades geradoras de vida, sem as escandalosas e crescentes injustiças sociais e desigualdades; c) Cuidado por cultivar a vida em todas as suas expressões e dons da criação, em geral. Em suma, um cuidado regenerador nosso no amor a toda a vida que pulsa em nossa Casa Comum.

Colocados no horizonte da Ecologia Integral e do cuidado da Casa Comum de que nos fala a Laudato Sí (2015), todos os cuidados aqui mencionados são dimensões da prática da justiça socioambiental. A realidade “pós-pandemia” deverá encontrar-nos profundamente revigorados/as na disposição de sermos, em nosso cotidiano e em todos os níveis de nossa atuação, cultivadores/as da justiça socioambiental. Talvez deva ser um dos traços fundamentais da espiritualidade que necessitamos.

Neste sentido, o Marco da Promoção da Justiça Socioambiental da Província (Marco PJSA), em sua nova edição (2020), conclui com fortes apelos para que nos empenhemos em propor que a economia esteja a serviço das necessidades básicas de todos os seres humanos e de sua qualidade de vida, bem como conserve os dons da criação e não continue comprometendo mortalmente a natureza. Que, em nossas vidas, em nossas instituições e no mundo econômico, político e social, sejamos protagonistas do cuidado com a vida, uma vida digna para todos e todas.

É importante que junto com toda a humanidade tenhamos aprendido a lição da pandemia. Um aprendizado de que não podemos voltar a fazer as mesmas coisas e da mesma maneira.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *