PROFETAS DA JUSTIÇA E RECONCILIAÇÃO

Este texto teve a sua primeira publicação em agosto de 2019.

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

Este texto foi escrito para a Revista do Colégio Medianeira, Curitiba, PR, dirigida à comunidade educativa daquela instituição.

P. José Ivo Follmann sj
Secretário para a Justiça Socioambiental
Província dos Jesuitas do Brasil
(agosto de 2019)

Há algum tempo, em uma das redes sociais na qual costumo me comunicar, alguém postou a mensagem de uma senhora trabalhadora vinculada a uma cooperativa de reciclagem de lixo. Na mensagem ela fazia um apelo veemente, acompanhado de uma recomendação muito justa: uma verdadeira lição de justiça socioambiental para nós.

Depois de se apresentar, ela (aquela trabalhadora) pedia para que fôssemos mais atentos em facilitar a coleta seletiva dos lixos. As palavras dela foram um misto de agradecimento pela separação da “matéria prima” do trabalho de quem faz disso a sua profissão, e de estímulo para ampliarmos a nossa contribuição no combate à contaminação, à poluição e ao estrago que vem castigando e destruindo a nossa mãe terra. As palavras dela foram, também, um lembrete delicado para ajudarmos a melhorar as condições de trabalho das pessoas envolvidas nessas frentes.

Na fala suave e decidida daquela mulher, – uma senhora negra cujo olhar sofrido não escondia um forte brilho repleto de sabedoria e liderança -, suas palavras foram finalizadas com uma recomendação muito oportuna, repleta de profundo senso de humanidade.

Ela dizia: “Quando separam as caixinhas de leite vazias e garrafas vazias de yougurtes ou coisas parecidas, procurem, por favor, passar uma água, deixando, depois, os frascos abertos no lixo. Isto ajuda muito para nossos narizes. Isto torna o nosso trabalho menos insalubre. Vocês não imaginam os cheiros que às vezes temos que suportar em nosso trabalho. É um pedido! Não custa”!

Confesso que aquela fala ressoa em mim até hoje. Aprendi e agradeço! Sempre que vou descartar algum frasco de leite, garrafas de yougurtes ou embalagens parecidas, me lembro de quem estará lá na outra ponta recolhendo aquela “matéria prima” para o seu trabalho.

Em minha função de Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil, tenho viajado bastante e frequentado muitos aeroportos. Um dia, no espaço de um banheiro de aeroporto, a atitude de um senhor de idade – “senhor da bengala” – me chamou a atenção. Ele era bastante idoso. As suas limitações físicas eram visíveis. Apesar de trêmulo, ele manejava com destreza a bengala, na qual se apoiava. Chamou-me a atenção que ele, no meio da correria e do tumulto dos que entravam e saíam, naquele recinto, serviu-se da bengala para juntar os pedaços de papel no chão; pedaços de papel que outros, na pressa e no desleixo, descuidadamente, haviam largado ao redor da lixeira. Na sequência, com cuidado e certa dificuldade, ele se inclinou diversas vezes, para com uma das mãos, – a que estava livre da bengala -, colocar os papéis no recipiente do lixo, sem se perturbar com os transeuntes.

Observei com atenção os movimentos daquele senhor da bengala. Terminada a sua ação, que parecia um evidente hábito rotineiro, ele encostou a bengala, pegou o papel, lavou tranquilamente as suas mãos, as enxugou e colocou o papel, cuidadosamente, na lixeira. Depois, armando-se de novo com a bengala, caminhou para a porta, tranquilo, sem se fazer notar. “Que exemplo de delicadeza humana”, pensei comigo. “Preocupar-se em deixar o ambiente limpo para os outros…” “Quem não se sente bem, quando encontra um ambiente desses, limpo e asseado, sem o horror do desleixo e dos papéis espalhados pelo chão”? Tornei-me um fiel seguidor desse “senhor da bengala”, anônimo, discreto, fisicamente frágil, mas tremendamente robusto em humanidade.

Se queremos falar em justiça e reconciliação, precisamos começar pelas pequenas coisas do dia-a-dia. O cuidado da “nossa casa comum”, é, em primeiro lugar, o cuidado de quem frequenta ou trabalha nessa “casa”. Saber importar-se com as outras pessoas, com o seu bem-estar. Hoje, sempre que entro em algum banheiro bem cuidado e limpo, sem papéis espalhados no chão, lembro-me do “senhor da bengala”. Também me dou conta que existem gestores/as que têm sensibilidade e se preocupam para que as pessoas que usam os ambientes que estão sob sua responsabilidade não se sintam agredidas em sua dignidade. Escalam para tal zeladorias permanentes e atentas. A boa gestão pede este cuidado.

Fazer gestão com justiça é cuidar da dignidade humana. Praticamos a justiça, como gestores e gestoras, quando as tomadas de decisão, em todas as instâncias de nossos empreendimentos, estão revestidas de sensibilidade e humanidade. Trata-se da atenção permanente de garantir que as pessoas se sintam bem e respeitadas em sua dignidade. Nada melhor para o ser humano do que poder frequentar ambientes limpos e acolhedores. Isto ajuda a cultivar a própria dignidade.

Falando em “ambientes limpos e acolhedores”, fico escandalizado, com a mente e o coração perturbados, sempre quando me deparo com cenas em que os nossos irmãos e irmãs estão jogados nas calçadas das ruas ou “residindo” em ambientes sórdidos, amontoados em barracos, rodeados de esgoto e lixo, imundos, como se eles fossem o próprio lixo da humanidade. São vidas humanas desfiguradas, no meio da imundície, que clamam por justiça! Elas clamam para que não sejamos insensíveis e não consideremos estas cenas como normal e como algo que não tem solução. Elas clamam para que não repitamos o mantra horrível: “Infelizmente é assim mesmo; não dá para fazer nada”, como se isto fosse uma espécie de destino fatal dos “deserdados da sorte” ou “descartados do mundo”.

O número desses “deserdados” e “descartados” vem-se multiplicando nos últimos anos. É um escândalo! É uma interrogação inquieta com relação aos nossos sistemas econômicos, políticos e sociais. Como reverter essa calamidade? Como calar a ignorância cínica, que pensa, diz e age como se isto devesse ser assim mesmo? Como calar essa ignorância cínica que habita, também, dentro de nós? Muitas vezes, a perversidade nos leva ao extremo de jogar a culpa de tudo nas próprias vítimas. Pobre humanidade! A que extremo estamos reduzidos? “Sempre foi assim…”

Há um caminho possível para além destes cinismos acomodados e inoperantes. Levar a sério a dignidade humana deve interpelar, de forma permanente, a todos/as nós, e, sobretudo, as pessoas responsáveis pela tomada de decisão com relação aos destinos dos recursos e dos bens dos quais a humanidade dispõe.

Só os exemplos aqui relatados já deveriam ser suficientemente mobilizadores para nos fazer acordar e chamar à responsabilidade. Para nós que somos cristãos ou para quem, seguindo o cristianismo ou não, atua em uma organização dirigida pela Companhia de Jesus, tudo isto fala com redobrado vigor porque somos orientados a nos colocarmos na perspectiva da reconciliação como caminho da justiça. Para a Companhia de Jesus e para quem orienta a sua vida religiosa pelo cristianismo, Jesus Cristo é o caminho da reconciliação de tudo, ou seja, da reconciliação consigo mesmo/a, com as outras pessoas em sociedade, com os dons da criação e com Deus. Por um caminho ou outro, somos convidados/as a assumir a participação na ação de reconciliação em todos os níveis. Este é um caminho de construção da justiça.

No Estatuto da Província dos Jesuítas do Brasil, recentemente aprovado, consta que uma das competências do Secretário para a Justiça Socioambiental é a de “promover a consciência da justiça socioambiental na Província em coerência com o paradigma da Ecologia Integral e da Teologia da Reconciliação” (Estatuto da Província, Art. 27, & 7-a).

O paradigma da Ecologia Integral, introduzido pelo Papa Francisco em sua Carta Encíclica Laudato Sí (2015), baseando-se no princípio da relacionalidade de tudo em nossa “casa comum”, é uma chave que ajuda a pensar a promoção da justiça, como um processo de reconciliação, em todas as dimensões. “Tudo está interligado, nesta casa comum”, diz uma das canções que acompanha o movimento do Sínodo para a Amazônia, em realização de outubro de 2017 a outubro de 2019. É o que chamamos de justiça socioambiental, amparada na Ecologia Integral e na Reconciliação. Trata do trabalho pela justiça, no qual as injustiças sociais e injustiças ambientais aparecem profundamente interligadas. Não temos como fazer justiça social sem justiça ambiental e não temos como fazer justiça ambiental sem justiça social.

No meio da perversidade humana e estrutural, que nos assola, o “senhor da bengala”, a senhora da cooperativa de reciclagem de lixo e gestores e gestoras que, em suas decisões, colocam a atenção primeira na dignidade humana e no ambiente digno de vida, são profetas da justiça socioambiental: profetas da justiça e da reconciliação de todas as pessoas e de todas as coisas.

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