UMA EM TRES: UMA SOCIOLOGIA EM TRES ABORDAGENS

O texto “Uma em três: uma sociologia em três abordagens” é uma síntese do modelo teórico usado na tese doutoral do autor. Foi usado em aulas de sociologia, como referência básica de abordagem teórica, desde final da década de 1990.

José Ivo Follmann (versão de 02 de outubro de 2003)

1) Três abordagens simultâneas (introdução)

              Em nossas pesquisas sobre a “Identidade dos Católicos no Partido dos Trabalhadores” e sobre as “Comunidades Eclesiais de Base no Estado do Rio grande do Sul” utilizamos uma abordagem teórica tríplice. Foi o próprio processo de pesquisa que foi nos induzindo a esta necessidade teórica, isto é, de tentar captar a realidade em questão, ao mesmo tempo, dentro de uma perspectiva de discussão da produção da historicidade, dentro de uma perspectiva de discussão das lógicas dos campos de atividade e dentro de uma perspectiva de discussão da dinâmica pessoal e identidade. Se, por um lado, o objeto específico de nosso estudo nos conduziu a esta opção teórica, por outro lado, o longo contato que tivemos com estas três produções teóricas, levou-nos, aos poucos, à conclusão sobre a pertinência deste tríplice emprego teórico para um bom tratamento das mais diferentes questões colocadas para a pesquisa sociológica.[1]

              Trata-se de três perspectivas, ligadas a diferentes paradigmas de interpretação da sociedade, implicando também que tenhamos presente e consideremos os pressupostos teóricos com os quais estes paradigmas estão carregados.

              Primeiramente, o ponto de vista da produção da historicidade tem como referência principal a existência do conflito central dentro da sociedade estando em questão a apropriação e gestão de sua historicidade. Este conflito central é marcado por uma lógica, que pode ser denominada de lógica dos movimentos sociais na concepção de movimentos sociais de A.Touraine.

              Em segundo lugar, o ponto de vista das lógicas dos campos de atividade apresenta como referência principal o espaço social onde se realizam a reprodução e a produção da sociedade “distribuídas” pelas diferentes atividades, tendo cada uma sua lógica social própria. No caso concreto dos estudos mencionados, estavam em questão o campo religioso (e o campo político), ou seja, a lógica religiosa (e a lógica política) seguindo concepção de P.Bourdieu.

              Finalmente, o ponto de vista da dinâmica pessoal e identidade apresenta como referência principal a importância das iniciativas ao nível do sujeito individual, apresentando-se este como um lugar de iniciativa coletiva. Em outras palavras, há uma lógica da dinâmica e identidade dos indivíduos que deve ser levada em conta nos estudos sociológicos. Consideramos em primeiro plano autores como J. Remy, G.Bajoit e A Melucci.

O debate está aberto. A rigor ainda não cabem conclusões… É um desses textos em construção, que o autor nunca quer concluir. O esquema sempre ajudou muito nas aulas de sociologia e, mesmo, em palestras com públicos diversos. O livre navegar por diversas perspectivas teóricas é, sem dúvida, um caminho interessante dentro do “fazer sociológico”. O grande desafio que se coloca é o de não se cair na tentação fácil da caricatura dos autores. A nossa intenção sempre foi a de respeitar rigorosamente o lugar epistemológico de cada um. Parafraseando Santo Agostinho[2], quase se poderia dizer: “Respeite o lugar epistemológico dos autores e faça o que quiser!”

2) Produção da historicidade (e lógica dos movimentos sociais)

              Nosso estudo da sociedade pode tomar como ponto de partida e sublinhar em primeiro plano a historicidade, ou seja, a capacidade de produção da sociedade por ela mesma. Isto nos conduz diretamente à concepção de movimentos sociais tal como A. Touraine a trabalha.

              Falar dos movimentos sociais significa, para A. Touraine, falar do coração da vida social. O conceito de movimento social ocupa o centro das atenções, na concepção sociológica deste autor. Isto está intimamente ligado à maneira como ele concebe tanto as relações de classe como a noção de historicidade. “O movimento social, diz ele, é a conduta coletiva organizada de um ator de classe lutando contra seu adversário de classe pela direção social da historicidade dentro de uma coletividade concreta.“(1978: 104)

              As classes sociais, no seu entender, são forças opostas neste conflito central. Na auto-produção da sociedade, é preciso sempre estar atento às relações de classes de que ela é portadora.

              Segundo A. Touraine, é necessário ultrapassar as abordagens reducionistas e unilateriais e, colocando a sociedade sobre seus pés, reconhecer nela a verdadeira realidade das relações de classe.

              Ele entende por relações de classe “os conflitos entre os que detém o poder de dirigir a intervenção da sociedade sobre ela mesma, e os que lutam contra esta apropriação privada da historicidade e particularmente dos instrumentos e dos produtos da acumulação e do investimento.“(1976: 38). A questão central destes conflitos não é outra coisa senão acesso à historicidade e sua apropriação. A historicidade é expressão da capacidade da sociedade de autoproduzir-se tanto em nível de gestão dos recursos quanto em nível de orientação. Em outras palavras, cada sistema de ação histórica (de historicidade) ou cada estado da produção define-se pela maneira própria pela qual o saber, os investimentos e a ética são produzidos dentro de uma sociedade ou são expressão da auto-produção da sociedade por ela mesma.

              Para situar melhor o conceito de movimento social de A. Touraine, se faz necessário notar a dupla dialética assinalada por este autor no que concerne às relações de classe. Para ele, “a classe dirigente se identifica com a historicidade, a assume, dirigindo particularmente os investimentos, mas ela torna-se dominante pelo movimento inverso que a empurra a transformar esta direção em ordenamento e em mecanismo de reprodução e de defesa do mesmo (ordenamento). A classe popular é dominada, não somente por ser direcionada mas sobretudo por sofrer o direcionamento de seu adversário; ela é também contestatária, tanto na medida em que ela se opõe a esta ordem em nome da historicidade enquanto tal, tanto como para sua própria libertação”.(1978: 88-89).

              Esta dupla dialética, em nível de relações de classes, conduz em seu bojo a dinâmica da sociedade que traz confronto e conflito entre movimentos sociais da classe popular e movimentos sociais da classe dirigente (e dominante). Estes movimentos sociais são manifestações efetivas de dois atores de classe fundamentalmente opostos na sociedade.          

              O movimento social popular se evidencia numa sociedade toda vez que se manifesta uma ação coletiva porque carrega no seu projeto “componentes” com os quais a classe popular contesta a apropriação da historicidade em mãos da classe dirigente (e dominante). Os movimentos sociais (de classe popular) não são outra coisa que manifestações concretas deste ator fundamental.

3) Campos de atividade e suas lógicas

              Nosso estudo da sociedade pode tomar como ponto de partida e sublinhar em primeiro plano a idéia de espaço social enquanto dividido em diferentes campos ou subconjuntos.  Estes, a modo de mercados especializados, reúnem agentes e instituições em torno de questões e interesses específicos, isto é, de questões, motivos e projetos específicos. Trata-se dos diferentes campos de atividade, segundo P. Bourdieu.

              Cada campo de atividade se estrutura dentro de uma lógica própria, constituída de relações entre produtores e consumidores dos bens específicos do campo. Dito de outra forma, existem “instâncias objetivamente estabelecidas para assegurar a produção, a reprodução, a conservação e a difusão” dos bens próprios do campo. (P. Bourdieu, 1971: 305).

              A construção que P. Bourdieu faz, por exemplo, do campo religioso, é contribuição importante que constitui instrumento apto para a compreensão dos mecanismos internos à atividade religiosa. Segundo ele, a constituição de um campo religioso leva normalmente a uma “monopolização da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas religiosos”. (1971: 304). Está claro, entretanto, para o autor que, se aqueles que dominam um campo têm os meios de o fazer funcionar em seu próprio proveito, isto é, em proveito de suas disposições e interesses, eles não podem deixar de estar constantemente atentos à resistência dos dominados. Esta resistência é importante para que se possa falar de campo. Se todas as resistências estivessem neutralizadas, estaríamos na presença de um aparelho e não de um campo…  (Igreja católica ao longo da Idade Média era mais aparelho do que campo; quando temos campo a vigilância de que está no poder deve ser maior, para evitar ruídos…)

              O fato do campo estar estruturado dentro de uma lógica própria das relações entre os produtores e os consumidores não quer dizer que estes campos sejam impermeáveis e isolados dentro do espaço social. Bem pelo contrário, é através dos campos de atividade que a sociedade e as relações de classe se produzem e se reproduzem.  O conceito de campo de atividade fornece uma contribuição fundamental para compreender certos aspectos específicos das práticas das classes sociais. Ao nível dos “consumidores” dentro do campo religioso, por exemplo, segundo argumentação de M. Weber, é bem provável que as disposições e interesses religiosos das classes privilegiadas se dêem em termos de “demandas de legitimação” da ordem estabelecida, enquanto no meio das classes desfavorecidas isto ocorra mais provavelmente em termos de “demandas de compensação“.  (Busca de milagres, presenciar milagres, fantasia da melhoria de vida… Ou, vida eterna feliz e recompensada…)

              Continuando no mesmo exemplo do campo religioso, é na busca por garantir o monopólio da gestão dos bens de salvação que o corpo do poder eclesiástico sente-se empurrado, por um lado, a uma constante transação com os leigos e suas demandas religiosas, e, por outro, a uma constante vigilância para eliminar e neutralizar a concorrência de outras forças, como, por exemplo, a força profética. Esta última torna-se, sobretudo, perigosa quando através dos apelos e denúncias éticas ela ameaça transformar as “demandas de compensação” em apelo para o engajamento na construção de uma “nova sociedade” e uma “nova maneira de a Igreja ser”.  (A teologia da libertação, …)

4) Lógica da dinâmica e identidade pessoais

              Nosso estudo da sociedade pode tomar como ponto de partida e sublinhar em primeiro plano o indivíduo-sujeito com sua dinâmica e identidade pessoais

              Para muitos sociólogos, o debate sobre a inter-relação entre indivíduo e sociedade encontra-se ainda muito disperso, porque o sujeito, cujo estatuto sociológico está em questão, carece de uma elaboração teórica apropriada dentro da sociologia. É neste rumo que a proposição teórica que orientou uma pesquisa sobre os jovens, realizada sob a coordenação de G.Bajoit (1993)[3]  foi a da “teoria da construção do sujeito pela gestão relacional de si próprio”.

              Segundo G.Bajoit “os indivíduos selecionam (adotam ou rejeitam) os sentidos culturais (as idéias, as representações, as normas, as opiniões, os valores, os princípios) em função das necessidades da gestão de si mesmo, portanto em função da lógica do sujeito que lhe é própria no momento dado.”(1993) A idéia central da teoria proposta é a definição do sujeito como capacidade de gestão de si mesmo. Esta capacidade “permite ao indivíduo de decidir por ele mesmo, de escolher sua vida, de manter-se dono de seu destino, entre os outros, graças a eles e apesar deles.“(1993). Três recursos psíquicos essenciais são identificados nesta gestão de si mesmo: uma capacidade de reflexão (de acomodação e de distanciamento) graças à qual as tensões existenciais do indivíduo são tratadas; uma capacidade de projeção (de concretização e de escolha identitária) graças à qual ele gera a identidade e seus projetos; e uma capacidade de ação (de identificação e de diferenciação sociais), graças à qual ele elabora suas estratégias face aos outros (indivíduos ou grupo). O ser sujeito reside nesta capacidade de gestão de si mesmo. Numa palavra, o sujeito é a expressão, em cada indivíduo, da execução desta capacidade ou destas capacidades. A “dinâmica afetiva” e a dimensão da “paixão”, etc. são também aspectos fundamentais para a compreensão das ações coletivas e da sociedade. Além de G. Bajoit, tanto J. Remy, [4] quanto A. Melucci apresentam importantes contribuições neste sentido.

              Dentro desta perspectiva que realça a dinâmica e identidade das pessoas, uma das contribuições, sem dúvida, mais conhecidas, hoje, é a de A. Melucci, segundo o qual, entre outras coisas, as pessoas “sempre se adaptam e dão um sentido próprio às condições que determinam suas vidas” (1994: 153). Elas criam “formas próprias de interação no interior das condições estruturais” em que estão inseridas (ver 1994: 153). Assim ao comentar, por exemplo, a noção de sistema, A. Melucci assim se expressa: “existem formas de construir uma realidade coletiva que são aparentemente estáveis, às quais as pessoas podem se referir mas que, por trás desta aparente estabilidade, existe um esforço contínuo de interação e de negociação que é visto enquanto um sistema”. (1994: 158).

5) Observação, à guisa de conclusão…

BIBLIOGRAFIA:

BAJOIT, Guy e FRANSSEN, A. Les Jeunes dans la Compétition et la Mutation Culturelle. Pairs: PUF, 1995.

BAJOIT, Guy. Pour une Sociologie Relationnelle. Paris: PUF, 1992

BOURDIEU, Pierre. “Genèse et Structure du Champ Religieux”, Revue Française de Sociologie, N. XII, 1971, pp.295-334

_______.  Questions de Sociologie. Paris: Minuit, 1980.

_______. Economia das Trocas Simbólicas. Rio de Janeiro: Perspectivas, 1974.

FOLLMANN, J. Ivo. Religion, Politique et Identité. (Tese de doutorado) UCL, Louvain la Neuve, Bélgica, 1993

_______. “O lugar sociológico do sujeito individual”, Revista Estudos Leopoldenses, São Leopoldo – RS, v. 35, n. 155, p.39-58, 1999.

_______. “Identidade como conceito sociológico”, Revista Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo – RS, v. 37, p. 43-66, 2001.

FOLLMANN, J. Ivo, SEGALA, Aldino, SPOHR, Inácio, REDIN, Clarindo, “Comunidades Eclesiais de Base – CEBs no Estado do Rio grande do Sul”, Cadernos Cedope, Série Religiões e Sociedade, São Leopoldo – RS, n. 8, p. 3-50, 1996.

MELUCCI, Alberto. A Invenção do Presente. Movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis: Vozes, 2001.

_______. “A Experiência Individual na Sociedade Planetária”, Revista Lua Nova, N. 38, 1996, pp.199-221.

_______. “Movimentos Sociais, Renovação Cultural e o Papel do Conhecimento” (entrevista de   Alberto Melucci a Leonardo Avritzer e Timo Lyyra), Revista Novos Estudos Cebrap, N. 40, 1994, pp.152-166.

REMY, Jean, L. VOYE e E. SERVAIS. Produire et Reproduire: Une Sociologie de la Vie Quotidienne. (2 vols.) Bruxelles: De Boeck Université, 1991 (1ª ed. 1980)

TOURAINE, Allain. Production de la Société. Paris: Du Seuil, 1993 (1ª ed. 1973)

_______. La Voix et le Regard. Paris: Le Seuil, 1978.

_______. Le Retour de l´Acteur: Essai de Sociologie. (Col. Mouvements), Paris: Fayard, 1984.

______. “Crise ou Mutation”, in N. BIRNBAUM. Au-delà de la Crise. Paris: Du Seuil, 1976.


[1] O mesmo esquema teórico foi adotado em pesquisa sobre: “Religiões e Políticas Sociais: um estudo das práticas de assistência social das religiões no Vale do Rio dos Sinos, 1993-1999” e também está sendo trabalhado na pesquisa atualmente em andamento: “As Contribuições das Grandes Religiões Mundiais para uma Ética e Políticas Sociais na Sociedade Contemporânea”.

[2] Santo Agostinho: “Ame e faça o que quiser!”

[3] O relatório desta pesquisa foi publicado em forma de livro pela PUF em 1995. As citações apresentadas neste texto são extraídas da versão original de 1993.

[4] São fundamentais as recentes discussões sobre a noção de “transação social” desenvolvidas no meio sociológico europeu por J. Remy e diversos outros.