EDUCAÇÃO CATÓLICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: UMA HISTÓRIA DE INTERROGAÇÕES PARA AS PRÁTICAS EM SALA DE AULA

(Artigo publicado em forma de capitulo no livro EDUCACIÓN CATÓLICA EN LATINOAMÉRICA: UN PROYECTO EN MARCHA, sob a coordenação de Patricia Imbarrack e Cristobal Madero sj, Universidad Católica de Chile, novembro de 2019, pp. 225-242 )

José Ivo Follmann sj (2019)

INTRODUÇÃO

Tomei como ponto de partida, na redação deste capítulo, uma vivência pessoal em sala de aula em uma instituição católica de elite, em nível de educação básica, no ano de 1970, quando por causa do uso de determinados materiais didáticos fui motivo de convocação de “reunião de pais e mestres”, gerando um diálogo ideológico de certa forma constrangedor.

Ancorada, em seu início, na narrativa pontual biográfica, a redação do capítulo transita por diversos caminhos e atalhos, atenta aos impactos sociais, culturais e educacionais, em contextos em permanente mudança e de fortes debates ideológicos, a partir, sobretudo, da década de 1960, cujos ecos nos acompanham até hoje. São pontuadas também três outras atenções especiais: A organização nacional da educação católica em um contexto de forte competividade de mercado; A educação católica em um contexto de diversificação religiosa acelerada conjugada com a afirmação sempre maior da laicidade na sociedade; E, por fim, um recente debate sobre as formas mais apropriadas de práticas de inclusão socioeducativa de entidades educacionais católicas e similares. O capítulo é concluído por “notas não conclusivas” sinalizando algumas provocações para avançar no processo de reflexão sobre as práticas de sala de aula na educação católica.

1. A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX: UM CONTEXTO DE GRANDES MUDANÇAS

Vou iniciar com o relato de um evento pessoal. Em 1970 eu lecionava em uma escola católica jesuíta, conhecida como sendo de elite, no sul do Brasil. A disciplina era “Cultura religiosa”. Fui orientado a utilizar, em sala de aula, um material didático muito em voga e bem adequado ao novo momento que a igreja católica vivia a partir do Concílio Vaticano II e do engajamento social cristão no contexto desafiador que o Brasil e toda América Latina estavam vivendo. As aulas tinham grande sucesso, contando com boa adesão e participação dos estudantes de sétima série do ensino fundamental. No entanto, um dia fui surpreendido com a convocação da direção do colégio para uma reunião com um grupo de pais. O assunto era: a orientação ideológica dos materiais usados em sala de aula.[1] Naquele material eram explicitados, de forma bastante equilibrada e dentro do alcance da faixa etária dos estudantes, aspectos da realidade social e cultural, que na opinião dos pais não estariam sendo adequados. Eu era um jovem principiante, no meio caminho de minha formação jesuítica, na época estudante de Ciências Sociais, na Universidade Federal local. Me vi no constrangimento de ter que explicar para alguns daqueles pais que a logomarca da Sono-Viso do Brasil,[2] que estilizava um S e um V não tinha nada a ver com Foice e Martelo e que a estrela de Belém (guia dos Reis Magos) que aparecia em uma imagem não tinha nada a ver com eventuais estrelas presentes em bandeiras de países comunistas. Me senti tremendamente provocado por aqueles constrangimentos totalmente inesperados. Foi, com certeza, um grande aprendizado.

Sem ficar preso ao anedótico desta narrativa, creio que ela é tremendamente simbólica, refletindo todo um contexto que se vivia, sobretudo, a partir da segunda metade do século XX, mais precisamente as reviravoltas políticas, culturais e sociais, a partir da década de 1960. Foi um contexto que deixou marcas profundas tanto para a sociedade como para a igreja católica e diversas outras igrejas cristãs e, consequentemente, para a educação católica e cristã.  Segundo Danilo R. Streck e Aldino L. Segala (2007: 165), “Uma nova forma de ser igreja implicava na crença de que uma outra sociedade era possível; a sociedade onde todas as pessoas pudessem ter pão suficiente e a sede de justiça pudesse estar saciada”.[3]

No mesmo artigo é feita menção especial ao papel importante exercido pelo Concílio Vaticano II e sua repercussão intensa na igreja católica na América Latina. Este último aspecto aparece como o ponto fulcral na grande virada acontecida, nesse contexto, em termos teológicos e pedagógicos, que é o foco do texto dos autores.

Paulo Freire proclamava que a educação promovida pelas igrejas devia ser concebida e realizada com raízes na história e cultura do povo. Segundo ele, “o papel educacional das igrejas não pode ser entendido como alheio às condições da realidade concreta na qual elas estão presentes”. (Freire, 1977, p.105, apud Streck e Segala, 2007, p.165)

Alguns documentos do episcopado, na época, foram de grande importância, destacando-se, sobretudo, os documentos da Conferência Episcopal Latinoamericana – CELAM, do encontro de Medellin, Colômbia, em 1968 e de Puebla, México, em 1979.[4]

Pontos de destaque, no texto de Streck e Segala (2007), são, também, as comunidades eclesiais de base – CEBs e a educação popular. Foi um período extremamente fértil, particularmente em termos de atividades relacionadas com a educação popular, fora do sistema formal de ensino, em grande parte lideradas pela igreja. A par disto, grandes debates eram vividos dentro do sistema formal, haja visto o grande evento em Buga, Colombia, 1967 um ano antes do conhecido conteúdo do encontro dos bispos em Medellín, 1968. A ideia de libertação e educação libertadora, proclamada e aprofundada em Buga, Colômbia, foi assumida no documento de Medellín, Colômbia. As principais características dessa educação foram retomadas, posteriormente, no documento de Puebla (1979), que as sintetiza em três pontos: – criar no ser humano espaço para a boa nova cristã; – impulsionar o exercício da função crítica inerente à educação verdadeira; – e promover o educando como sujeito do desenvolvimento próprio e dos outros. Em suma: – educação para humanizar; – educação para a justiça; – educação para o serviço.

A educação católica no Brasil tinha uma grande presença no Ensino Médio. Oscar Beozzo (1993: 69) relata que, no final da década de 1950, no Brasil, 80% dos estudantes deste nível eram de instituições católicas de educação. O acesso era mais favorecido às classes média e alta, devido às anuidades elevadas. Por um lado, grandes tensões ideológicas internas eram vividas gerando conflitos no âmbito da gestão e das práticas em sala de aula. Por outro lado, também estavam sendo travados debates sobre a democratização do ensino, apontando inclusive para a importância de se destinar recursos públicos para as iniciativas educacionais privadas.

O direcionamento, no entanto, foi bem outro. Houve um grande incremento na rede pública de educação e as escolas privadas foram gradualmente excluídas do acesso a subsídios públicos. Impossibilitadas de acolher estudantes da população mais pobre, a crise ideológica que já estava instalada, tendeu a crescer nas instituições católicas. A nova forma de ser escola, que vinha na carona da nova forma de ser igreja, parecia ter-se tornado um discurso longínquo, em um quadro onde a sobrevivência das escolas e de suas práticas em sala de aula necessitavam estar ajustadas ao horizonte de consumo das elites dominantes.

A crise ideológica nas escolas foi acompanhada por duas outras crises. Em primeiro lugar estava a própria crise na vida religiosa consagrada, com uma diminuição significativa do número de vocações para este estado de vida. Em segundo lugar, pesou também forte a política estatal de investir maiores recursos, por um lado, nas escolas públicas, e de facultar, por outro lado, a possibilidade do surgimento de um mercado voraz de empreendimentos privados de ensino, pautados no negócio e no lucro.

Estes últimos dois aspectos trouxeram em seu bojo um agravamento sem precedentes para as condições de sustentabilidade econômico-financeira das escolas católicas e outras escolas confessionais e comunitárias. Paradoxalmente estas instituições são as que mais estão focadas no serviço público à sociedade. Como agravante do paradoxo, talvez se possa dizer que o poder de intimidação das famílias pagantes, neste contexto, passa a ser ainda mais rigoroso com relação às práticas em sala de aula.

2. EDUCAÇÃO CATÓLICA NO BRASIL: ORGANIZAÇÃO NACIONAL E COMPETIVIDADE.

O século XXI iniciou com um cenário totalmente desfavorável à sustentabilidade econômico-financeira de instituições católicas de educação e outras iniciativas educativas similares. Segundo Manoel Alves (2006), este cenário tornou visível, também, as fragilidades de gestão interna da maioria dessas instituições. Para o autor, isto não era algo notável em tempos favoráveis e sem concorrências, mas mudanças radicais aconteceram e o contexto se tornou desfavorável, sobretudo, ao longo das últimas duas décadas do século XX.

No entender do mesmo autor, não faz mais sentido buscar explicações externas ou esperar a melhoria das condições externas. Em termos de ensino católico é necessário investir forte na liderança interna, pois “só se tem possibilidade de prosperar se o negócio educacional pelo qual ele responde, for eficazmente gerido”. (Alves, 2006: 130). Parece que as instituições de educação católica foram muito lentas em se adequar ao novo momento vivido pela humanidade que é a “sociedade do conhecimento”.

Para fazer face a estes grandes desafios a educação católica no Brasil deu passos importantes em termos de organização nacional. Finalmente de 2007 instaurou-se definitivamente o processo de instituição oficial da Associação Nacional da Educação Católica – ANEC, superando a situação de evidente desarticulação anterior.[5] Esta entidade de representação nacional única da educação católica no Brasil, caracteriza-se dentro de três eixos principais: – representação política e defesa dos interesses das associadas; – assessoria às associadas; – apoio na gestão das instituições.

Como representante única e legítima da educação católica no Brasil, a ANEC é referência no importante papel de prestação de serviços a centenas de associadas e milhares de unidades de ensino, assim como promotora de eventos educacionais para o aperfeiçoamento da educação e da gestão. Ao todo, são praticamente 400 Mantenedoras católicas associadas, cerca de 2 mil escolas, 90 instituições de Ensino Superior e 100 obras sociais. A ANEC está presente em todos os estados da Federação, representa 2,2 milhões de alunos e 100 mil professores e funcionários.[6]

A crise, que constituía a reviravolta teológica e pedagógica vivida pela igreja católica, somada à drástica redução do quadro de religiosos/as consagrados/as e à mudança radical no contexto de espaços para a educação católica e de outras confissões, não é tudo o que deve ser observado de fundamental. Sinalizou-se acima o desafio da articulação de forças em nível nacional para criação de amparo e sinergia comuns e, dentro da frenética corrida da inovação tecnológica e pedagógica nas salas de aula e nos espaços educativos como um todo, não sucumbir à perda dos valores centrais que movem a educação católica.

No entanto, é também necessário que nosso olhar se volva para as transformações radicais vividas dentro da própria esfera religiosa brasileira, a sua acelerada diversificação e a drástica diminuição relativa da presença católica. O Estado Brasileiro veio dando passos de amadurecimento em sua laicidade e a sua relação se dá com a esfera religiosa como um todo, mais do que com os interesses desta ou daquela religião. Neste sentido busco, na sequência, trazer alguns elementos para ajudar a avançar nesta discussão.

3. A DIVERSIFICAÇÃO DA ESFERA RELIGIOSA BRASILEIRA E A LAICIDADE DO ESTADO.

A esfera religiosa brasileira sofreu, ao longo das últimas décadas, um processo muito acelerado de inflexão nas forças: de um Brasil predominantemente católico está-se caminhando para um Brasil onde a força do segmento evangélico pentecostal e neopentecostal e a diversificação religiosa em geral, tendem a conquistar espaços sempre maiores.

Em termos de diversificação na esfera religiosa os dados oficiais consolidados em nível nacional são fornecidos pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, de 1940 a 2010. Neste período o quadro estatístico dá conta da queda numérica sensível daqueles que se declaram católicos e do aumento acelerado, daqueles que se declaram evangélicos, bem como aumento grande daqueles que se declaram “sem religião”, incluindo, neste último grupo, os descrentes ou ateus. Constata-se também a multiplicação do número de religiões que se somam no quadro das “outras religiões”, como podemos constatar no quadro a seguir:

Composição da população brasileira em percentuais segundo identificação religiosa nos dados dos censos demográficos oficiais de 1940 e 2010

Identificação religiosa1940 (%)2010 (%)
Católicos95,264,6
Evangélicos2,622,2
“Sem religião”0,28,0
Outras religiões2,05,2
Total100,0100,0
Fonte: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Censos de 1940 e 2010.

Tudo indica que em 2020 a população católica no Brasil estará abaixo de 50%.[7] No entanto, a explosão da diversidade religiosa, que assistimos no Brasil contemporâneo, por si só, não gera espírito pluralista ou de convívio democrático. Ao contrário, muitas vezes, também, são geradas radicalizações fundamentalistas. Tem-se, assim, um movimento duplo contraditório gerado pela diversificação: crescimento do espírito de convívio democrático pluralista, de um lado, e aumento de radicalizações fundamentalistas, de outro. Da mesma forma é perceptível um duplo movimento em nível de Estado: ao mesmo tempo em que são constatáveis movimentos de amadurecimento da laicidade no sentido de garantir o direito à diversidade e pluralidade de expressão religiosa de todos, existem, também, movimentos de busca de vantagens eleitorais contando com o apoio desta ou daquela confissão religiosa.

O conhecimento exerce papel importante no processo de identidade religiosa. O que falta muito na sociedade brasileira é conhecimento com relação ao mundo das religiões e das religiosidades. Hoje este “mundo” se diversificou muito no Brasil devido, também, a uma presença mais visível, mesmo que estatisticamente muito reduzidas, de vertentes islâmicas, judaicas, budistas e outras tradições religiosas históricas fortes e milenarmente consolidadas. Um componente fundamental nos processos de identidade religiosa é a relação sadia com o outro, com o diferente. Talvez se deva dizer que o diálogo inter-religioso é a tábua de salvação de uma educação religiosa geradora da vida social sadia.

É de consenso que cabe ao Estado laico criar as condições para que se eduquem as consciências religiosas em sua diversidade e seu reconhecimento mútuo. Acredito, também, como foi afirmado acima, que uma laicidade maduramente vivida e administrada pelo Estado é condição para que a esfera religiosa possa exercer o seu papel na construção da sociedade democrática.

Mencionei acima a instalação do Estado laico, dentro do mesmo processo proclamação da República. Já se passaram 125 anos desde a primeira Constituição Republicana, que foi em 1891, e a laicidade do Estado ainda está longe de uma consolidação amadurecida. A história do século XX e também da primeira década do século XXI está repleta de exemplos que trazem à luz do dia o “fantasma” do catolicismo como religião oficial. Isto foi, sobretudo, acentuado durante todo o longo período do governo Vargas, mas que de certa forma retornou durante o governo Lula.[8] No Brasil, este tempo histórico da laicidade do Estado presenciou dois fenômenos complementares:  A forte carga de preconceitos e perseguições (repressões) às religiões de matriz africana e outras, que, comumente, foram desclassificadas enquanto religião, não aceitáveis pela racionalidade cristã acidental (Monteiro, 2009); O crescente aumento das igrejas evangélicas pentecostais e, na sequência, as neopentecostais, ao longo da segunda metade do século XX, acompanhadas de um forte trabalho de lobby político e de oposição à influência católica.

A contaminação religiosa do Estado laico no Brasil não é muito diferente de outros países, porque, de fato, não se conhecem exemplos concretos de total isenção ou neutralidade do Estado frente às diferentes religiões. (Mariano, 2005). O que devemos ter muito claro é que tudo isto repercute, sobretudo, no sentido da educação católica, passando pelo desafio do “fazer educativo” como serviço público, da necessária participação na cultura do diálogo com as outras religiões e o esforço renovado pela construção de espaços próprios de cultivo dos processos de identidade católica ao mesmo tempo em que se deve contribuir para preservar o exercício da função laica do Estado.

4.  DIÁLOGOS RECENTES SOBRE PRÁTICAS DE INCLUSÃO SOCIO EDUCATIVA

            Historicamente a legislação brasileira facultava às instituições contempladas pela lei da filantropia, o destino, para práticas sociais, de 20% do volume total da receita correspondente a isenção de tributações oficiais. Muitas instituições praticavam bolsas de estudo destinadas à população economicamente vulnerável. Esta legislação sofreu permanentes inovações. A partir de 2012, no entanto, a legislação enrijeceu, obrigando as instituições educativas a realizarem uma bolsa de estudos para cada cinco alunos pagantes.[9] Afirmou-se claramente o controle do Ministério da Educação com relação a estas práticas.

            A novidade, apesar de conter um fator de limitação da autonomia das instituições, oportunizou que fosse gerado um ambiente de soluções suficientemente seguras, tanto para a sustentabilidade econômico-financeira, quanto para a ampliação da efetivação dos valores da educação católica e de outras entidades símiles. Como venho lidando com a discussão das entidades filantrópicas,[10] o novo ambiente criado muito me mobilizou e iniciei a esboçar uma pesquisa de opinião junto a responsáveis administrativos, pedagógicos e de assistência social em instituições católicas de educação. A questão da pesquisa: qual a eficácia educacional segundo os valores das instituições católicas de educação, da realização das bolsas exigidas por lei dentro das próprias instituições ou em instituições criadas, à parte, em contextos sociais mais vulneráveis.[11]

            É sabido que, com os novos movimentos da legislação, algumas instituições passaram a praticar modalidades diversas de realização das bolsas para poderem atender ao mesmo tempo às exigências legais sem perder o foco nos seus valores institucionais e, também, garantir a viabilidade econômico-financeira.

            A partir de uma simples pergunta sobre vantagens e limitações das diferentes modalidades, foram colhidas algumas contribuições importantes, que ajudam a avançar na reflexão:

            Existe uma forte convergência na afirmação de que “não é o administrativo que deve fundamentar as opções pedagógicas”, pois “números podem camuflar rostos”. Aliás há quem diz que a rigor “não há vantagens econômico-financeiras em nenhuma das duas opções”. Deve ser “opção pensada como política pedagógica”. Existe, no entanto, a percepção de que na prática, apesar de as instituições alegarem a fidelidade à missão como motivação central, muitas vezes pesam implicitamente outros argumentos, inclusive ligados a não causar prejuízo ao conforto das famílias pagantes, preservando suas presumidas expectativas.

            O modelo de praticar bolsas internas à própria instituição que atende público pagante, parece não ser rejeitado sempre que viável, até afirmado que seria o modelo “mais próximo do melhor”. Pois constitui-se, segundo opinião de alguns, em um dos elementos que contribui para que a qualidade da educação também seja equidade na educação. Isto estaria “agregando valor social e intelectual”, pois “aprendemos mais com o outro, estando juntos, do que oportunizando que apenas um contexto se desenvolva isoladamente”. Há quem lembra que devemos evitar estar contribuindo para o “confinamento das periferias” e promover a prática da troca, pois é muito importante para os que vem da periferia “se perceberem enquanto seres inteligentes e iguais a todos os demais”. Ademais, “a convivência do público pagante com o público bolsista gera um mútuo crescimento e mostra concretamente para a comunidade o trabalho social que a escola desenvolve”. Há quem contrapõe a “inclusão autêntica” à prática da “‘inclusão’ perversa”.

            Privar as instituições de público pagante da presença de bolsistas provindos de meios sociais mais vulneráveis, estaria ajudando a reforçar a já “carência e déficit de diversidade” que marca estas escolas em geral. Estas “correm o risco de serem instituições de alunos ‘perfeitos’, ou seja, brancos, (…) de uma mesma classe econômica”, quando os alunos ‘problema’ são “eliminados já no processo de seleção”. A “riqueza do convívio na diversidade” é “um importante elemento para a educação integral”.

A prática de destinar os recursos para instituições externas,[12] e não aplicar dentro da própria instituição, “a longo prazo, favorece a dimensão administrativa, mas pedagogicamente segrega a sociedade afirmando o que o sistema prega”. A reprodução de escolas especiais para a elite e escolas de formadoras de servidores dos que dominam. “Existem vantagens de grande impacto social, mas também aparecem perigos de segregar”. Há opiniões que se manifestam radicalmente contrárias a manter unidades totalmente gratuitas, “pois de fato a qualidade não é a mesma”. No entanto também apresentam uma importante convergência de opiniões favoráveis, sobretudo ressaltando o seu impacto social nas comunidades locais. “Possibilitar oportunidades a populações necessitadas”, “dar oportunidade a populações de áreas de carência sócio econômica”, “fortalecer a comunidade local” são expressões associadas à importância de uma “política pedagógica intensa”, (…) “inserida na comunidade com proposta sócio política e educativa para além dos seus muros, trabalhando as famílias mais de perto.

Alguns mencionam também o argumento financeiro, no sentido da oportunidade de fazer mais com menos, pois os custos para manter bolsista em instituições de maior porte são muito maiores do que os custos em uma escola de menor porte e torna-se possível beneficiar um público maior. Neste argumento subjaz também a ideia de que, para garantir a manutenção dos índices de avaliação da instituição, seria necessário um investimento muito grande nos alunos bolsistas, de difícil praticabilidade econômico-financeira.

A convergência que predomina nos gestores ouvidos é de que as duas opções são importantes. Se reconhece que a opção por fazer as bolsas na própria instituição de público pagante é a opção mais complexa. Seria fundamental mantê-la, sempre que viável, não excluindo, no entanto, a opção por efetivar bolsas em instituições nos meios populares mais vulneráveis. “Ambas as proposições de oferta de bolsas de estudo são legítimas e agregam para a construção de um país com mais justiça social, garantindo o acesso a uma educação de qualidade, que forme integralmente o sujeito”.

O ideal seria que a própria instituição de público pagante pudesse ter uma interação com uma comunidade carente na circunvizinhança. O distanciamento geográfico facilmente estará associado ao enfraquecimento dos “laços sociais e agravando o processo de elitização da instituição” de público pagante.

Todas estas questões estão em pauta num rico debate, que demanda aprofundamento. Envolve, sobretudo, a questão das práticas pedagógicas em sala de aula para grupos diversificados socio culturalmente ou não. Trata-se de um desafio tremendo para instituições que tem no centro de sua missão, a fraternidade, ou seja, a inclusão e a equidade.

NOTAS NÃO CONCLUSIVAS

O grande desafio das instituições católicas de educação e todas as demais que estejam alinhadas a propósitos similares, está em encontrar e preparar professores/as que tenham condições efetivas de dar conta da criação de um ambiente em sala de aula, suficientemente adequado às inovações tecnológicas reinantes e às exigências desafiadoras de lidar com a diversidade ou, ao menos, de provocar a radical rejeição à cultura elitista e excludente.

No que diz respeito à confessionalidade das instituições é necessário sublinhar o desafio do diálogo inter-religioso. É pauta importante, cultivada em muitas instituições. Este diálogo é uma grande escola de aprendizagem. Ele só se faz possível se aqueles que dialogam entre si sabem cultivar sinceramente os seus próprios processos de identidade religiosa cultivando também reconhecimento dos processos de identidade religiosa dos outros. Este apelo e desafio apresenta uma face dupla: 1) proporcionar condições efetivas para um real ambiente de educação para as relações inter-religiosas harmônicas e de reconhecimento mútuo; 2) proporcionar condições efetivas para um real ambiente que possibilite o crescimento no processo de identidade católica para todos os que buscam esta orientação.

A confessionalidade também deve ser vista em relação ao Estado laico. Um bom caminho é levar a sério a própria expressão “educação católica”: Educação é o substantivoe católica é o adjetivo. A educação não é um meio de proselitismo da religião, mas sim é um serviço público de preparação de profissionais e cidadãos para a sociedade. A educação é católica não por usar o nome católico como marca impressa na tradição, mas enquanto este serviço público é iluminado por princípios, valores e práticas cristãos professados pela igreja católica.

Por fim, mas não em último lugar, está o grande desafio da compatibilidade entre sustentabilidade econômico financeira e um efetivo trabalho de inclusão socioeducativa. Isto passa pela busca de sólida organização de apoio nacional, que proporcione sinergia comum na boa gestão e inovações tecnológicas, como também passa pelo aprendizado mútuo em conjunto a partir das melhores práticas em sala de aula, no âmbito tecnológico e dos avanços pedagógicos no lidar com a diversidade e com os impactos de uma cultura hegemônica perversamente excludente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Alves, M. Perspectivas para o Ensino Católico no Brasil. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, Brasil, Vol. 6, n.19, 2006.

Beozzo, J. O. A Igreja no Brasil. In J. O. Beozzo (Ed.), A Igreja Latino-americana às vésperas do Concílio: História do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo, Brasil: Paulinas, 1993.

CELAM. Os cristãos e a Universidade (Seminário de Peritos e Encontro Episcopal, Buga, 1967). Perópolis, Brasil: Vozes, 1968.

CELAM. Documento de Aparecida: Texto Conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo, Brasil: Paulus, 2007.

Fischmann, R. Acordo contra a Cidadania. 2009. Disponível em: ˂http://silncioerudoasatiraemdenisdiderot.blogspot.com.br/2009/06/enviado-por-roseli-fischmann.html˃. Acesso em 03/03/16.

Follmann, J.I. Brazil, Catholic religion and education: challenges and prospects. International Studies in Catholic Education. Routledge – Taylor &Francis Group, 9:1, 77-88, 2017. http://dx.doi.org/10.1080/19422539.2017.1286912

Mafra, M. C. Na Posse da Palavra: religião, conversão e liberdade pessoal em dois contextos nacionais. Lisboa, Portugal: Imprensa de Ciências Sociais, 2002.

Mariano, R. Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. São Paulo, Brasil: Edições Loyola (2ª ed.), 2005.

Streck, D. R.; Segala, A. L. A theological-pedagogical turning point in Latin America: a new way of being school in Brazil, in G.R.Grace and J.O’Keefe (Eds.), International Handbook of Catholic Education – Challenges for School Systems in the 21st Century. Vol.2, Dordrecht, The Netherlands: Springer, 2007.


NOTAS:

[1] Tratava-se de uma produção inovadora em termos de catequese. As chamadas FICHAS CATEQUÉTICAS organizadas sob a coordenação do especialista na área Ir. Antonio Cechin (da Congregação dos Irmãos Maristas). O próprio Ir. Antonio em uma de suas últimas entrevistas em vida, se refere a este material: “As fichas catequéticas foram o fato divisor de águas de minha vida que pode ser separada em duas partes inteiramente diferentes uma da outra. Autores que fomos do sonho maior de minha irmã Matilde e meu, concretizado nessas fichas desencadeadoras de uma Catequese Nova e Libertadora, o continente latino-americano se transformou em nosso calvário mais dolorido”. O Ir. Antonio relata a surpresa e o espanto pessoal que teria tido em 1969, ao ver o Coronel Jarbas Passarinho, Ministro da Educação, brandindo na televisão estas fichas catequéticas e vociferando tratar-se de material altamente subversivo destinado à lavagem cerebral dos pré-adolescentes para o comunismo. “… referia-se aos colégios católicos como os principais disseminadores dessas ideias…”. http://www.ihu.unisinos.br/?id=516685 (acesso: 08/07/2018).

[2] Entidade contratada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, para a primeira impressão daquele material.

[3] O esquema de base de presente texto reproduz a mesma lógica de outra publicação recente, com o título “Brazil, Catholic religion and education: challenges and prospects” (Follmann, 2017), na qual tive a oportunidade de sintetizar na primeira parte a contribuição do Streck e Segala (2007), aqui referida. Retomo aqui algumas passagens do artigo de 2017, com a novidade, por um lado, da reflexão sobre os impactos na e da sala de aula e, por outro lado, do acréscimo do recente debate sobre as formas mais apropriadas de práticas de inclusão socioeducativa.

[4] O documento que, hoje, melhor expressa toda a trajetória e avanços vividos em termos de igreja na América Latina nas últimas décadas e sua situação atual é o documento de Aparecida do Norte, Brasil, em 2007. Ver neste sentido Jaci de Fátima Candiotto. A Educação Cristã na atual Cultura a partir do Documento de Aparecida. XI Congresso Nacional de Educação – EDUCERE, 2013, PUC-PR.

[5] Em 30/10/2007, aconteceu incorporação da ABESC – Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas e da ANAMEC – Associação Nacional de Mantenedoras das Escolas Católicas, na AEC – Associação de Educação Católica, que passou a denominar-se Associação Nacional da Educação Católica do Brasil – ANEC, em funcionamento, com este nome, a partir de 2008. Deu-se a partir daquele ano um processo de ajustes desta, superando-se em definitivo a situação desarticulada de três instâncias, como vinha sendo anteriormente. O seu estatuto social data de 25 de setembro de 2012.

[6] http://www.curtanaeducacao.org.br/realizacao/anec/  (Acesso 09/07/2018).

[7] Pesquisa do Instituto Data-Folha de julho de 2018, São Paulo, Brasil mostra 51% católicos e 33% evangélicos. Além da explosão visível do número de evangélicos, outros aspectos devem ser considerados, pois subsistem controvérsias em relação às metodologias de pesquisa, podendo a diversidade ser ainda maior devido à multiplicação de “dupla identidade religiosa”, misturando segmentos de matriz africana e das práticas espíritas com a “fachada” externa católica.

[8] O que sempre mais pesou para estas “recaídas” são os espaços consideráveis nas áreas da saúde, educação, lazer e cultura” (Mariano, 2001, p. 146) que a igreja católica continuava e continua ocupando. Um evento recentíssimo foi particularmente perturbador na evolução harmônica das relações do Estado laico com a esfera religiosa no Brasil. Trata-se do Acordo entre o Estado Brasileiro e a Santa Sé assinado em 2008.  Foi um acordo bilateral solenemente assinado em 13 de novembro de 2008 entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao estatuto jurídico da igreja católica no Brasil, onde os signatários foram o Presidente Luiz Ignácio Lula da Silva e o Papa Bento XVI. Trata-se de um Acordo muito polêmico e gerou grandes perturbações no avanço de uma compreensão harmônica da função do Estado laico. Em resposta a este Acordo foi gestada a Lei Geral das Religiões apresentada em 2009, por um Deputado Federal, Pastor da Igreja Universal do Reino de Deus (Igreja Neopentecostal). O teor principal desta Lei é tornar o conteúdo do Acordo em questão, extensivo às outras denominações religiosas. Segundo a pesquisadora Fischmann (2009) trata-se de uma “tentativa de corrigir um erro incorrigível”.

[9] Lei Federal nº 12.101/2009, a Certificação de Entidade Beneficente de Assistência Social – CEBAS, e com a emissão da Portaria Normativa nº 15, publicada no dia 14 de agosto. Legisla sobre as condições requeridas para a Certificação em pauta. Evidentemente a determinação de uma bolsa para cada cinco alunos pagantes não é tout-court, pois a lei faculta que se calculem dentro do montante também bolsas parciais e apoios materiais aos bolsistas. Isto vige para a Educação Básica, mas também se aplica à Educação Superior dentro do mesmo esquema já cultivado pelo PROUNI – Universidade para Todos, desde 2005.

[10] Hoje vigora a certificação CEBAS.

[11] A pesquisa foi recentemente iniciada e está em sua fase exploratória para a construção de um projeto interdisciplinar sobre a eficácia educacional segundo os valores das instituições católicas de educação, das modalidades em pauta.

[12] Há casos em que isto é uma prática institucional histórica da congregação.

REFLEXÃO INACIANA (PERTENCEMOS A UMA ORDEM RELIGIOSA MUITO INOVADORA)

Registro simples de reflexão feita no dia 29/07/2020; oitavo dia da novena de Santo Inácio, Comunidade Jesuita de Brasília, J. Ivo Follmann sj

Quatro princípios definidores:

DISCERNIMENTO – a Companhia nasceu a partir de um processo de Discernimento em Comum de um grupo de jovens idealistas liderados por Inácio de Loyola. (O discernimento apostólico é a chave da constante inovação).

DISPONIBILIDADE – um dos princípios orientadores definidores do trabalho apostólico da Companhia de Jesus é a permanente disponibilidade dos seus integrantes para assumir novos trabalhos onde quer que sejam chamados. Disponíveis para estar a serviço da missão, seja onde for…

DISCIPLINA – não é, no entanto, qualquer disciplina. A disciplina inaciana não é disciplina de mosteiro, mas é uma disciplina estratégica, focada na missão. Inácio de Loyola tinha uma cabeça tremendamente estratégica. (Não somos monges com regras disciplinares na vida cotidiana do “mosteiro”, mas devemos ser disciplinados em vista da missão. Cada jesuíta, ou cada grupo de jesuítas, organiza e disciplina a sua vida para a missão.)

DIVERSIDADE (lembrado a partir da narrativa histórica do Ir. Eudson, na fala que me precedeu) – tornou-se característica forte na Companhia, também, a grande diversidade de seus trabalhos e frentes de ação apostólica e engajamento de seus membros.

Três linhas definidoras de sua característica inovadora:

  1. CONVERSÃO – ruptura com o passado; não se deixar amarrado às lógicas e seguranças do passado (o exemplo pessoal do processo de conversão do Inácio de Loyola á a melhor expressão disto);
  2. BUSCA DA EXCELÊNCIA INOVADORA – isto sobretudo é marcante no campo das ciências, da pesquisa, da reflexão. Poderíamos identificar muitos nomes em diferentes áreas e frentes. Quero mencionar exemplos que sempre devem ser lembrados: Teillhard de Chardin (paleontologia; sua visão global do universo); Karl Rahner (teologia); Henrique de Lima Vaz (filosofia)…
  3. DIÁLOGO E CONSTRUÇÃO DE PONTES – ESTAR NAS FRONTEIRAS (sobretudo desde a CG 34… Em texto preparatório da CG 35, uma passagem dizia que todo jesuíta deveria conhecer a fundo uma religião, além da sua e que deveria estar envolvido/engajado, de forma militante, na defesa dos valores de alguma cultura que não é a sua.

IDENTIDADE E MISSÃO NA EDUCAÇÃO SUPERIOR JESUÍTA NA AMÉRICA LATINA: TRINTA ANOS DE AUSJAL, CRESCENDO EM SINERGIA E COMPROMISSO.

(Texto escrito para a Revista CARTA AUSJAL em 2015)

Pe José Ivo Follmann sj (02/03/2015)

INTRODUÇÃO: ALGUNS DESTAQUES GERAIS

A Associação das Universidades Confiadas à Companhia de Jesus na América Latina – AUSJAL, completa neste ano de 2015, o seu 30º aniversário. É uma história que pode ser resumida como sinergia ou esforço conjunto das Universidades e Instituições de Educação Superior Jesuítas, na realização de sua IDENTIDADE e MISSÃO comuns, dentro do contexto diversificado e desafiador latino-americano. Quero, mesmo que em uma perspectiva pessoal bastante limitada, prestar a minha homenagem a esta história e celebrar a grande alegria de poder fazer parte dela.

Os meus contatos mais sistemáticos com AUSJAL iniciaram em 1995 e, de forma crescente, desde aquele ano, a sua proposta foi tomando conta do meu horizonte de engajamento acadêmico. O primeiro texto que conheci foi “Desafios da América Latina: Resposta Educativa da AUSJAL”.[1] Percebi que o texto havia sido o resultado de um longo processo de reflexão, que acompanhara praticamente os primeiros 10 anos de existência desta rede, processo no qual a própria AUSJAL fizera o seu auto-reconhecimento e sua auto-compreensão, enquanto rede de educação superior jesuíta no e para o contexto latino-americano. O texto contribuiu no meu próprio processo de repensar e me reposicionar com relação ao meu engajamento acadêmico, pois, apesar de estar atuando neste meio desde 1973, eu ainda não estava totalmente convencido da total pertinência disso na minha opção jesuíta.

A história da AUSJAL iniciou em 1985, em decorrência de um importante apelo do então Superior Geral Pe Peter Hans Kolvenbach sj, no final de uma reunião internacional de universidades em Roma. Foi um impulso dado, a partir de Roma, para que se criasse isto que é efetivamente a primeira rede universitária na América Latina com uma IDENTIDADE e MISSÃO compartilhadas. A rede se constituiu e, agora, em 2015, celebra os seus trinta anos, depois de uma longa e desafiadora história de sinergia ou compartilhamento de estratégias comuns voltadas para a transformação educativa e social da região ou o compromisso com o desenvolvimento social sustentável.

Na minha leitura pessoal, é importante que situemos o processo de criação e primeiros passos da AUSJAL no horizonte de dois eventos paradigmáticos, aparentemente distantes entre si no tempo, mas tremendamente próximos em significado para as Universidades Jesuítas, no contexto latino-americano.

O primeiro evento é o posicionamento assumido pela Companhia de Jesus, na Congregação Geral[2] de 1974 (CG 32), na explicitação de sua Missão enquanto “serviço da fé e promoção da justiça”, ou mais precisamente: “serviço da fé do qual a promoção da justiça se constitui como exigência absoluta” (CG 32, d.4, n.2).

O Pe Pedro Arrupe sj, então Superior Geral, na presidência da sessão que aprovou o referido decreto (d.4), assim se expressou:

Estamos bem conscientes do que acabamos de votar e aprovar? A partir de agora, a prioridade das prioridades de nossa missão é o serviço da fé e a promoção da justiça. Por causa dessa decisão vamos ter novos mártires na Companhia de Jesus.[3] 

O segundo evento foi o 16 de novembro de 1989, quando na Universidade Centro-Americana de El Salvador, os padres Ignacio Ellacuría, Ignacio Martin-Baró, Segundo Montes, Juan Ramón Moreno, Amando López e Joaquín López foram assassinados por seu compromisso com a paz durante a guerra que assolava El Salvador. Junto com eles foram também assassinadas, a senhora Elba Ramos, que trabalhava na residência e sua filha Celina Ramos.

O Pe Ignacio Ellacuría sj, que era o Reitor da Universidade, um filósofo de grande envergadura e pensador brilhante, enxergava a Universidade em sua dimensão de compromisso social, com consistente radicalidade:

A universidade deve encarnar-se entre os pobres para ser ciência daqueles que não têm ciência, a voz ilustrada dos que não têm voz, o apoio intelectual dos que em sua própria realidade têm a verdade e a razão, mas não contam com as razões acadêmicas que justifiquem e legitimem sua verdade e sua razão.[4]

Este jesuíta dizia que um posicionamento assim exigia vigilância permanente, capacidade intelectual com muita criatividade e indeclinável fervor pela justiça social, com coragem para superar ataques, incompreensões e perseguições.[5]

Ao descrever brevemente o 16 de novembro de 1989 e referir o nome das pessoas assassinadas, naquele ato bárbaro inesquecível, na UCA de El Salvador, o recente documento “La Promoción de la Iustitia en las Universidades de la Compañía”, do Secretariado para a Justiça Social e Ecologia, do Governo Central da Companhia de Jesus, conclui com o seguinte comentário: “As universidades da Companhia os têm como seus próprios mártires, devido ao seu compromisso em prol da “justiça que brota da fé”.[6]

Um processo rico de reflexões sobre o significado e a amplitude desta “justiça” permeou a Companhia de Jesus nas últimas 4 décadas. A história vivida por AUSJAL em seu processo de constituição e consolidação deu-se, em grande parte, no horizonte desse contexto de amadurecimento conceitual. Em suas últimas Congregações Gerais – CG, a partir da CG 32/1974, como já foi mencionado, destacando, na sequência, a CG 34/1995 e a CG 35/2008, a Companhia de Jesus incorporou na explicitação de sua MISSÃO, a complexidade de nossa época.

A partir dessas Congregações a sua formulação pode ser sintetizada nos seguintes termos: A MISSÃO da Companhia de Jesus tem o seu foco central no “serviço da fé do qual a promoção da justiça se constitui como exigência absoluta” (CG 32, d.4, n.2), consubstanciando-se, de modo especial, no “diálogo cultural” e no “diálogo inter-religioso” (CG 34, d.2, n.14-21), na “reconciliação com Deus”, “com os outros” em sociedade e “com a criação” (o meio ambiente)(CG 35, d.3, n. 19-36) e na atenção às “novas fronteiras” para as quais a realidade complexa de nossos dias desafia permanentemente(CG 35, d.1, n.15; CG 35, d.2, n.20-24).[7]

A importância das Universidades e da Educação Superior Jesuíta foi pauta de muitas reflexões e documentos na Companhia de Jesus, neste período. O Superior Geral da Companhia, que mais se destacou nisto, por suas reflexões escritas e faladas sobre a importância desta frente de engajamento apostólico jesuíta, foi, sem dúvida, o Pe Peter Hans Kolvenbach sj. Segundo este Superior Geral:

Todo centro universitário jesuíta de ensino superior é chamado a viver dentro de uma realidade social (…) e a viver para tal realidade social, a iluminá-la com a inteligência universitária, a empregar todo o peso da universidade para transformá-la. Assim, pois, as universidades da Companhia têm razões mais fortes e distintas das outras instituições acadêmicas ou de pesquisa para dirigir-se ao mundo atual, tão acomodado na injustiça, e para ajudá-lo e refazê-lo à luz do Evangelho.[8]

Muitas outras reflexões poderiam ser lembradas, tanto de parte do Governo Geral da Companhia de Jesus, quanto de jesuítas engajados diretamente na vida acadêmica. Pessoalmente quero fazer uma referência a um nome, que marcou profundamente o meu horizonte com relação ao papel das Universidades na América Latina. Trata-se do Pe Xabier Gorostiaga sj.

Com a morte repentina e imprevista do Reitor da Universidade Centro Americana – UCA de Nicaragua, Pe Cesar Jerez, sj, o Pe Gorostiaga sj teve que assumir  o Reitorado desta instituição. O fez contra a sua vontade, como registrou mais tarde em depoimento pessoal, pois não acreditava na possibilidade de transformar este meio em espaço efetivo de promoção da justiça. No entanto, o caminho andado no dia a dia da vida universitária e o papel de Secretário Executivo da AUSJAL, que também desempenhou, transformou-o em aguerrido combatente pela missão transformadora da Universidade no contexto latino-americano, como revela o seu próprio relato escrito. Afirmou um compromisso pessoal por “re-fundar” a Universidade, pelo desenvolvimento humano sustentável e pela democratização do conhecimento como um dos principais eixos de superação da pobreza e de afirmação da cidadania.[9]

O Pe Xabier Gorostiaga sj, como economista acreditava num novo formato da sociedade mundial. É o que denominava de globalização solidária, capaz de exaltar e compreender o pluralismo cultural e étnico e a defesa do meio ambiente.[10]

Sempre foi otimista e mesmo depois das desilusões sofridas com o Governo Sandinista de que participara, mostrava-se esperançoso e a sua crença se resumia em três palavras: humildade, humanismo e humor. Mesmo no meio das maiores crises enfrentadas, manteve sempre viva a consciência do valor da educação e, acentuava que “nisso a universidade tem um papel fundamental.”[11]

Como o leitor percebe, a minha visita às origens da AUSJAL ou, mais propriamente, a minha visita aos meus primeiros contatos com esta rede, foi rápida e parcial. Não poderia ser diferente. Quero, no entanto, encerrar esta “visita” convidando para um olhar renovado sobre os termos da MISSÃO que AUSJAL definiu e assumiu para si:

Fortalecer a articulação em rede de seus associados com a finalidade de estimular a formação integral dos estudantes, a formação contínua dos acadêmicos e colaboradores, na inspiração cristã e identidade inaciana, a investigação que incida em políticas públicas, nos temas que lhe são próprios como universidades jesuítas, e a colaboração com outras redes ou setores da Companhia de Jesus. Tudo isso como realização do trabalho das universidades a serviço da fé, a promoção da justiça e o cuidado do meio-ambiente.[12]

Deixei propositalmente para o final desta introdução, a formulação da MISSÃO da rede AUSJAL. Na visita rápida e parcial realizada, que foi uma caminhada com passo apressado pelos meandros da história originária desta rede, alguns pontos de atenção importantes puderam ser registrados. É uma história rica e complexa e os registros poderiam ser infinitos, mas o que melhor os sintetiza é, sem dúvida, o registro dos termos da MISSÃO.

Concluída a caminhada introdutória, quero, agora, trazer alguns apontamentos sintéticos sobre aspectos da AUSJAL que me envolveram pessoalmente, de modo especial, e que se transformaram dentro de mim em motivos importantes para acreditar nesta rede de redes como um espaço fecundo de manifestação da IDENTIDADE e MISSÃO da Companhia de Jesus no contexto latino-americano, hoje.

1)FORMAÇÃO HUMANÍSTICA DE ORIENTAÇÃO CRISTÃ

O documento “Desafios da América Latina: Resposta Educativa da AUSJAL” (1995) foi efetivamente a primeira grande plataforma oficial desta rede. A primeira grande lição que aprendi e que calou fundo em meu engajamento acadêmico foi a proposta de que todas as Universidades Jesuítas da rede se empenhariam em proporcionar a seus estudantes três grandes eixos comuns de conhecimento humanístico:  1) Formação sobre América Latina; 2) Formação Antropológica; 3) Formação Ética.[13]

Lembro como, naquele momento, há vinte anos, protagonizamos diálogos vigorosos internos à nossa instituição, gerados ao longo do processo de implantação dessa proposta. Os movimentos favoráveis e desfavoráveis que se fizeram sentir e as reflexões fecundas, ajudando a melhorar a percepção interna da própria IDENTIDADE e MISSÃO de uma Instituição de Educação Superior Jesuíta, foram marcantes e salutares.

Hoje, percebo, com alegria, o quanto essa proposta, gestada por AUSJAL, em 1995, e tendo dado os seus primeiros passos efetivos em nossa instituição em 1997, conseguiu a sua consolidação dentro da cultura da Universidade. A proposta se diversificou, dando conta, ao mesmo tempo, do direcionamento inicial, ou seja, os três eixos, das diferentes culturas acadêmicas, com adequações junto às diferentes áreas. Conseguiu, também, atender a exigências da legislação educacional do País, como, por exemplo, as temáticas “Educação das Relações Étnico-Raciais” e “Educação Ambiental”, previstas na legislação para o ensino formal em todos os níveis. Além de algumas disciplinas específicas conforme os Cursos (Carreras), essas temáticas são abordadas, de forma transversal, nos três grandes eixos da formação humanística. Certamente as demais instituições da rede viveram processos semelhantes e podem celebrar os seus resultados.

O objetivo central da proposta de formação humanística era e é ajudar os estudantes a abrirem os horizontes de seus entendimentos especializados e disciplinares para uma compreensão mais ampla de comprometimento com o ser humano, enquanto tal, as exigências éticas envolvidas nisso e a importância de nossa inserção latino-americana no grande movimento da história que vivemos.

O desafio que se impõe hoje à universidade é a formação integral daqueles que buscam na Academia a sua capacitação para o exercício profissional. É um desafio porque, a par das rápidas mudanças que vivemos e da esclerose relativamente fácil de profissões constituídas, a humanidade está, mais do que nunca, à beira da falência humana, decretada por uma ilustração técnico-científica muitas vezes amparada em fundamentos de consistência duvidosa e, até mesmo, defasada no tempo.

Um contexto assim exige a presença de profissionais inovadores e humanamente integrados, capazes de enxergar e criar além dos limites dos pequenos mundos de suas especialidades.

2) AS TRÊS QUESTÕES ORIENTADORAS DO PRIMEIRO PLANO ESTRATÉGICO

Entre os legados deixados pelo Pe Xabier Gorostiaga sj está, sem dúvida, a marca dele  no texto do Plano Estratégico da AUSJAL para os anos 2001 a 2005.[14] Naquele texto estão formuladas três perguntas, como grandes balizamentos para a gestão das universidades:

Em nosso “que fazer” universitário, a primeira pergunta sempre deve ser: Que sociedade queremos? Destacando-se que as universidades existem como um serviço público à sociedade. Não podemos perder isso de vista. Quem se envolve nesse serviço deve, em primeiro lugar, prestar contas à sociedade.

Uma segunda pergunta naturalmente se seguirá: Que sujeitos formar para essa sociedade que queremos? Que educação necessitamos? Destacando-se que, hoje, mais do que nunca, os estudantes necessitam que sejam cultivados, neles, valores que os chamem a serem sujeitos capazes de assumir responsavelmente a construção da sociedade. Eles necessitam, para tal, vivenciar, em nosso meio, uma efetiva formação integral.

E a terceira pergunta consequentemente fará voltar o nosso olhar para as universidades enquanto tal: Que universidade para formar esses sujeitos? Que universidade para ser coerente com a educação proposta e a sociedade buscada? Certamente é necessária uma profunda ressignificação da relação entre universidade e sociedade.

Estas perguntas bem respondidas deveriam ser o conteúdo central do projeto político pedagógico de toda instituição de educação superior. Dentro da MISSÃO da Companhia de Jesus “a sociedade que queremos”, sempre, levará a marca da promoção da justiça socioambiental, ou seja, estará orientada para a construção de sociedade sustentável. Os sujeitos que são formados nas instituições jesuítas deverão ter facilitadas oportunidades e condições para desenvolverem, dentro de si, além das qualidades de excelência acadêmica, valores e atitudes de promoção da justiça socioambiental, nas relações interpessoais (de rejeição dos preconceitos e discriminações), nas relações sociais (de combate às desigualdades sociais) e nas relações com o meio ambiente (de cuidado com os bens da criação).

Isso também redobra em nós a obrigação de ajudar a fazer de nossas instiuições, verdadeiras universidades, no sentido mais radical de fazer delas espaços onde as diversas ciências e saberes interajam com maior fecundidade e vigor, de uma forma aberta ao que é novo ou ao que, muitas vezes, está posto à margem, constituindo-se em espaços de criação interdisciplinar e transdisciplinar e ambientes propícios para a geração e o desenvolvimento de homens e mulheres profissionais competentes, conscientes e decididamente comprometidos com a construção de uma sociedade orientada para o resgate da dimensão humana da existência e da sustentabilidade.

3) RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA – RSU E O COMPROMISSO AMBIENTAL

A minha participação maior na AUSJAL vem sendo através da rede de Responsabilidade Social Universitária – RSU. O conceito formulado pela AUSJAL está inspirado em Vallayes (2006), nos seguintes termos:

A habilidade e efetividade da universidade em responder às necessidades de transformação da sociedade em que está imersa, mediante o exercício de suas funções substantivas: ensino, pesquisa, extensão e gestão interna. Estas funções devem estar animadas pela busca da promoção da justiça, da solidariedade e da equidade social, mediante a construção de respostas exitosas para atender aos desafios implicados em promover o desenvolvimento humano sustentável.[15]

Neste conceito são pautadas cinco dimensões da vida acadêmica. Trata-se de cinco dimensões da universidade que, a rigor, nos proporcionam ângulos suficientes para visualizar a totalidade da vida de uma Universidade. Aprendi, no convívio dentro dos fóruns estabelecidos para implantar e aperfeiçoar o sistema de avaliação da vida acadêmica sob o ponto de vista da RSU, a importância de se estar atento a estas cinco dimensões e o quanto isto faz parte do modo de proceder em uma instituição jesuíta.

Estou sempre mais convencido, que devemos estar atentos, de forma integrada, a essas cinco dimensões: a educativa (a vida acadêmica em seu processo de ensino-aprendizagem), a epistemológica e cognoscitiva (a vida acadêmica em seu processo de produção de conhecimento), a organizacional (a vida acadêmica em sua gestão organizacional e administrativa interna), a social (a vida acadêmica em sua relação com a sociedade), e a ambiental (a vida acadêmica em sua relação com o meio ambiente). A avaliação da vida acadêmica só será efetiva e completa quando conseguirmos dar conta destas cinco dimensões de forma integrada, no próprio processo avaliativo. O impacto ou a presença da academia se dará através destas cinco dimensões. O que a AUSJAL faz para avaliar a Responsabilidade Social Universitária pode ser um modelo inspirador para uma avaliação mais ampla de todo o ‘que fazer’ universitário e de avaliação da excelência acadêmica.

Quero mencionar, no final deste item, duas inserções minhas específicas em grupos e redes da AUSJAL, que ajudaram a ampliar a minha percepção da importância e alcance da RSU.

Em primeiro lugar, acompanhei de perto o Projeto da Pobreza e participei em diversas oportunidades do seu processo de amadurecimento, tanto enquanto proposta de ensino, quanto na proposta da pesquisa. O projeto explicita o compromisso das nossas Universidades em dar a sua contribuição no combate às causas da pobreza no contexto latino-americano, ou seja, em incidir diretamente com sua expertise na promoção da justiça social. A vida acadêmica em sua relação com a sociedade fiel à MISSÃO da Companhia de Jesus, só pode ter isto como pauta primeira. Aprendi que este compromisso pode ser atendido de muitas formas por uma universidade.

Em segundo lugar, os meus contatos e participações recentes junto ao Grupo do Meio Ambiente e Sustentabilidade, também conhecido como Rede de Homólogos Ambientais. Neste fórum avancei na percepção da importância de uma compreensão integrada entre a justiça social e a justiça ambiental. Se, por um lado, as agressões ao meio ambiente físico muitas vezes são um subproduto das desigualdades sociais, por outro lado, é constatação que quem mais é prejudicado pelo meio ambiente físico degradado são aqueles setores da sociedade que mais sofrem devido à desigualdade. Para sermos Universidades Socialmente Responsáveis, dentro da concepção que nos define, precisamos ser agentes de justiça socioambiental e, na esteira disso, promotores da construção de sociedades sustentáveis.

4) INTERDISCIPLINARIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE

Sou muito grato à AUSJAL por me ter proporcionado a participação em todos esses fóruns. Foi nesses espaços que cresceu também a minha convicção sobre a importância radical da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade.

Não é de forma gratuita que o glossário que acompanha do documento de “Políticas e Sistema de Auto-avaliação e Gestão da Responsabilidade Social Universitária na AUSJAL”, conclui com dois conceitos chaves: o de interdisciplinaridade e o de transdisciplinaridade.

Não é necessário transcrever aqui os conceitos ali apresentados, mas vou permitir-me pontuar algumas considerações em relação aos três aspectos até aqui postos e a importância da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade com relação a isto.

Em primeiro lugar, a formação integral, visada diretamente pela proposta de formação humanística, supõe a integração dos saberes e supõe, portanto, também o não-fechamento e a abertura dos saberes, no sentido de se alimentarem mutuamente e, sobretudo, de se deixarem transcender (ultrapassar) na permanente busca do melhor bem para o ser humano e o seu contexto. Isto faz parte do cerne da IDENTIDADE jesuíta. A interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade nasceram com essa vocação, ou seja: por meio delas se busca a integração das disciplinas e de outros saberes de fora das disciplinas, dentro do mesmo sentido aqui exposto, proporcionando formação integral.

Quando a AUSJAL apontou para a importância da presença das três áreas temáticas de formação humanística, acima referidas, em todos os currículos, deu um passo instigante não só em provocar uma real cultura de interdisciplinaridade, mas de promover a cultura transdisciplinar trazendo interrogantes externos para dentro das gramáticas demasiadamente cartesianas dos currículos. A proposta da AUSJAL apontou três interrogantes de importância fundamental: as interrogações antropológicas, as interrogações éticas e as interrogações históricas de cidadãos do mundo situados responsavelmente no continente latino-americano.

Em segundo lugar, na complexidade dos contextos latino-americanos em que as Universidades Jesuítas estão inseridas, as respostas às perguntas “que sociedade nós queremos?” “que tipo de profissionais e cidadãos?” e “que tipo de educação e de universidade nós precisamos, para tal?” só poderão ser colhidas num amplo processo de atenção interdisciplinar e transdisciplinar.

Em terceiro lugar, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade são chaves fundamentais para o sucesso da Responsabilidade Social Universitária – RSU em todas as suas dimensões. Tanto na vida acadêmica em seu processo de ensino-aprendizagem, em seu processo de produção de conhecimento e em sua gestão organizacional e administrativa interna, como a vida acadêmica em sua relação com a sociedade e com o meio ambiente, são fóruns e espaços de incidência onde a cultura interdisciplinar e a cultura transdisciplinar são condições determinantes e definidoras de qualidade e sucesso.

PARA CONCLUIR: PERSPECTIVAS DE FUTURO

A pergunta é: “como vejo AUSJAL como rede de redes das Instituições de Educação Superior Jesuíta em América Latina para os próximos anos”?

Vejo com muita esperança e entusiasmo!… Mas, antes de tentar esboçar uma resposta minha a esta pergunta, quero mais uma vez sublinhar o que já mencionei no início: este artigo foi construído a partir daquelas pontas de AUSJAL nas quais eu pessoalmente estive e estou envolvido. É uma leitura – descrição e reflexão – parcial e muito pessoal. Não foram mencionadas diversas redes e atividades de AUSJAL, tão e mais importantes que as aqui referidas. Procurei honestamente manter-me na maneira estrita como me foi proporcionado perceber, conhecer e envolver-me na proposta de AUSJAL. Neste sentido o texto pode, também, ser lido como a minha manifestação de gratidão, enquanto jesuíta engajado na Universidade e na Promoção da Justiça Socioambiental.

Colocando-me agora em uma perspectiva de futuro, como me foi solicitado, quero concluir este texto, apoiado nas rápidas notas acima apresentadas, com duas considerações finais.

Nós temos um “DNA” acadêmico comum. Podemos resumi-lo como excelência acadêmica com compromisso socioambiental. As nossas instituições devem buscar a excelência e gerar um impacto coletivo pela excelência interconectada e mutuamente cultivada na rede AUSJAL. A qualidade das nossas atividades e ambientes de pesquisa e formação profissional se caracterize por possibilitar, por um lado, excelência e espírito inovador na qualificação profissional e na produção de conhecimento e, por outro lado, cultivo sério de valores e atitudes de compromisso socioambiental, ajudando a formar agentes de construção de sociedades sustentáveis. Isto se dará tanto pelo testemunho institucional, como pelo modo de proceder em todo processo educativo.

O presidente da AUSJAL, Pe Fernando Fernandez Font sj, falando de e para a Universidade Ibero Americana de Puebla demonstrou o seu máximo orgulho de que “ninguém e nada conseguiu nos dobrar em nossos princípios” e a sua alegria e esperança em poder participar de um dos maiores benefícios de um ser humano, o de ajudar a “reconstruir o futuro a partir da educação da juventude” e formar “profissionais com qualidade socialmente pertinente”, os “melhores para o mundo”, a partir da “perspectiva dos pobres”, “do sul para o sul”.[16]  Para ele quem se forma em nossas instituições deverá distinguir-se pelo compromisso responsável pelo outro e pelo futuro da vida  de nosso planeta. É o discurso que afirma que as nossas instituições buscam a excelência na qualidade e ao mesmo tempo o compromisso social e ambiental. É o “DNA” das Instituições de Educação Superior Jesuíta. Não é um discurso solitário. Essas palavras fazem ecoar o discurso de todos os reitores das instituições da AUSJAL e, sobretudo, o discurso do Governo Central da Companhia de Jesus. Um longo caminho já está feito na transformação deste discurso em prática, mas, com certeza, temos ainda muito a caminhar…

Nós temos uma CHAVE de trabalho partilhada muito interessante. As reflexões a partir das avaliações relativas às cinco dimensões consideradas pela Responsabilidade Social Universitária – RSU apontam, particularmente, para uma CHAVE, que ajuda a pensarmos o futuro de AUSJAL. A sinalização central é que o nosso esforço se volte para a produção de conhecimentos e a formação de profissionais comprometidos com a construção de sociedades sustentáveis. Isto deverá ser perceptível em todas as dimensões de nossa vida acadêmica: nos processos de ensino-aprendizagem enquanto tal, nos processos de produção de conhecimento, na gestão organizacional e administrativa interna, nas escolhas feitas com relação aos engajamentos sociais concretos e na maneira como cuidamos do meio ambiente.

As nossas instituições devem sentir-se permanentemente desafiadas a envolver-se nas novas “fronteiras” da humanidade e, sobretudo, a identificá-las, inserindo-as em seu próprio cotidiano. Sabemos que as nossas práticas formativas e de produção de conhecimento só serão efetivas para a construção de sociedades sustentáveis se, por um lado, o nosso modo de proceder institucional for coerente com isto, sabendo administrar sabiamente a sua sustentabilidade econômico financeira como parceira deste processo de construção, e, por outro lado, se estivermos atentos àquelas “fronteiras” que são os pontos mais vitais no processo de justiça socioambiental, ou seja: – o reconhecimento radical dos seres humanos em sua dignidade, independente de raça, religião, cultura ou prestígio social; – o esforço sincero e permanente por encontrar formas de superação das desigualdades e de erradicação das exclusões, da miséria e da pobreza; – o compromisso diuturno no cuidado com o meio ambiente e os bens da criação.

O cultivo de partilha e intercâmbio permanente entre as nossas instituições das boas práticas em todos estes âmbitos, poderá ser um excelente caminho de futuro da AUSJAL, fazendo dela uma rede potencializadora de agentes de construção de sociedades sustentáveis.


[1] AUSJAL. Desafíos de América Latina y Propuesta Educativa de AUSJAL. Colombia: AUSJAL, 1995.

[2] Congregação Geral é órgão máximo legislativo desta Ordem Religiosa, chamada Companhia de Jesus.

[3] Pe Pedro Arrupe na Congregação Geral 32, cfr http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Arrupe (27/02.2015)

[4] Ver in La Promoción de la Iustitia en las Universidades de la Compañía. PROMOTIO IUSTITIAE. Roma: Curia General de la Compañía de Jesús, Secretariado para la Justícia Social y la Ecología, N. 116, 2014/3, p.29 (epígrafe)

[5] Ver in La Promoción de la… p.52

[6] La Promoción de la… p. 7

[7] Reproduz formulação de consenso em texto do Fórum de Reitores das Instituições de Educação Superior dos Jesuítas do Brasil. FORIES. A Promoção da Justiça Socioambiental nas Instituições de Educação Superior Jesuíta. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2015, p.8

[8] Discurso na Universidade de Santa Clara, Califórnia, 2000.

[9] Xabier GOROSTIAGA SJ O legado da experiência. América Central, 1970-2000. Práxis, mediações e opções cristãs. http://servicioskoinonia.org/relat/335p.htm (27/02/2015)

[10] Arquivo J.U. OnLine, 20/7/2001 http://www.unisinos.br/

[11] Ibidem

[12] http://www.ausjal.org/tl_files/ausjal/images/contenido/Documentos/Publicaciones/ Documentos (27/02/2015)

[13] AUSJAL. Desafíos…, 1995, p.50

[14] AUSJAL. Plano Estratégico 2001-2005. Caracas, 2001.

[15] AUSJAL. Políticas y Sistema de Autoevaluación y Gestión de la Responsabilidad Social Universitaria en AUSJAL. Córdoba: EDUCC – Editorial de la Universidad Católica de Córdoba, 2014., p.15

[16] https://www.youtube.com/watch?v=xJUDyxMCFLw (Publicado 28/08/2013). Reitor Pe Fernando Fernández Font sj, palavras proferidas em 24 de agosto 2013, por ocasião da celebração do 30 anos da Universidad Ibero Americana de Puebla.

UNIVERSIDADE E POBREZA: O QUE A UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS PENSA E TENTA FAZER? (2002)

(Reflexão escrita em 2002, quando o autor exercia a função de Diretor do Centro de Ciências Humanas da UNISINOS)

Pe. José Ivo Follmann SJ (15-8-2002)

É crescente a consciência de que as exigências do momento histórico do qual fazemos parte são radicais. Em função da pergunta formulada no título, três dessas exigências são particularmente candentes para a academia, enquanto tal, e para as pessoas humanas que a constituem: a) somos exigidos a ajudar a encontrar caminhos para a humanidade reaver a dignidade humana; b) somos exigidos a ajudar a humanidade a construir alternativas de justiça social; c) somos exigidos a recriar um mundo sem exclusões e sem violências.

A UNISINOS, ao mesmo tempo em que vem se empenhando, ao longo de toda a sua trajetória, por encontrar as melhores formas de realizar a sua vocação de Universidade que busca a excelência acadêmica, ela vem também aperfeiçoando o seu empenho por traduzir, para dentro deste “ser academia bem-sucedida”, a realização de uma Universidade na qual se vive a Missão da Companhia de Jesus. Esta Missão é apresentada, conforme seus documentos mais recentes, como o serviço da fé cristã, a promoção da justiça e o diálogo cultural e inter-religioso. Trata-se de três componentes profundamente imbricados e formando um todo fecundo e fecundante, refletido no serviço de Deus, porque serviço da Humanidade, e no serviço da Humanidade, porque serviço de Deus.

Mais do que nunca no momento histórico em que vivemos, o compromisso radical com a Humanidade, assumido por quem se coloca ao serviço da fé cristã, implica, por um lado, em um posicionamento concreto a favor de sociedades justas e em defesa de todos os que sofrem injustiças e, por outro lado, em uma postura de abertura, respeito e diálogo em todos os níveis.

Ninguém duvida que a Universidade, em geral, é um espaço privilegiado. Basta que olhemos a sociedade como um todo, para chegarmos a esta incontestável conclusão. A Universidade é um dos lugares onde os excluídos da sociedade menos se permitem sonhar em poder um dia lá chegar. Esta é, sem dúvida, uma das questões que mais diretamente inquieta aos que fazem seu dia-a-dia na Universidade.

A UNISINOS tem por Missão promover a formação integral da pessoa humana e sua capacitação ao exercício profissional, incentivando o aprendizado contínuo e a atuação solidária, para o desenvolvimento da sociedade.

A formação profissional e pessoal, que se dá através das atividades de pesquisa, de ensino e de extensão – seja por meio de participação em projetos de pesquisa, em espaços formativos e eventos culturais e científicos, seja por meio de engajamentos técnicos, sociais, comunitários, celebrativos e esportivos – dá-se num ambiente de incentivo e estímulo para o “sempre aprender” (que nunca está pronto), para o “espírito de solidariedade” (que não se fecha aos excluídos) e para a busca cidadã das melhores soluções em vista do desenvolvimento da sociedade. A UNISINOS fez uma recente opção estratégica, concentrando o seu foco principal de compromisso na participação criativa e impulsionadora do Desenvolvimento Regional, propondo-se, neste sentido, também, a ajudar na congregação das principais forças da Região.

Ao tentarmos responder à questão sobre “o que a UNISINOS faz com relação à pobreza”, deveríamos, sem dúvida, levar em conta todo o complexo da Universidade, com as suas contradições, acertos, erros e constantes buscas por melhor acertar para ser coerente com a sua vocação. Vamos, no entanto, ater-nos a três aspectos: 1) alguns dados sobre atividades de extensão, diretamente orientadas para uma ação comunitária e de desenvolvimento social; 2) uma nota sobre a proposta de “formação humanística de orientação cristã”; e 3) um nota sobre a criação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

1) As Ações de Extensão desenvolvidas pela Universidade são variadas e podem ser agrupadas, a partir de suas características, em diversas modalidades. Neste texto, concentramos nossa atenção nas que estão agrupadas sob o título de “Ações – Ações Comunitárias e de Desenvolvimento Social”.

No nível dessas “Ações”, a UNISINOS registrou os seguintes números no decorrer do ano de 2001: a) 47 programas, projetos e serviços (envolvendo Ações Comunitárias e de Desenvolvimento Social); b) 252 professores e 927 Acadêmicos envolvidos nessas Ações; c) 176 produções científicas relacionadas com essas Ações; d) 172 eventos promovidos a partir dessas Ações ou integrados com as mesmas; e) a realização de 83.284 atendimentos diretos e de 26.163 atendimentos indiretos.

A título de exemplo, podem ser mencionados os seguintes programas, projetos ou serviços: a) o SAPECCA (Serviço de Atenção, Pesquisas e Estudos com Crianças e Adolescentes): funciona desde 1995, e seu compromisso fundamental é “colaborar na elaboração de Políticas Sociais da área da infância e adolescência que levem em consideração a complexidade dos aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais”. Trata-se de um trabalho direto com crianças e adolescentes da periferia pobre de São Leopoldo, visando “proporcionar e contribuir para a construção do exercício da cidadania.”; b) o PEDRA (Programa de Estudos sobre Desenvolvimento e Autonomia no Vale dos Sinos): existe desde 2000 e está voltado para “estudos, seminários e cursos de formação sobre modelos de desenvolvimento, visando à ampliação do conhecimento e o fortalecimento da autonomia do campo popular no Vale do Rio dos Sinos”, e seu escopo é o desenvolvimento da autonomia e solidariedade; c) o Programa de Ação Social na Zona Sul de São Leopoldo (área vizinha do Campus da Universidade): tem como objetivo “proporcionar um processo de educação que permita dar aos envolvidos (no programa) os meios para gerar uma ação transformadora das atuais condições da sociedade, propiciando uma experiência de participação cidadã, tanto por parte da comunidade local, quanto da comunidade acadêmica”; d) Apoio às Cooperativas: é um trabalho que vem sendo realizado desde 1975, proporcionando assessorias técnicas, jurídicas e de formação cooperativa propriamente, bem como ajudando na gestação de iniciativas cooperativas para grupos que buscam alternativas de trabalho e renda;          e) “União Faz a Vida”: é uma proposta, desenvolvida pela Universidade desde 1995, de educação cooperativa para as escolas do ensino fundamental do Estado do Rio Grande do Sul e visa “difundir o espírito do cooperativismo nas Escolas do Ensino Fundamental, através de propostas teórico-metodológicas viáveis, num enfoque holístico, dinâmico e integrativo”. A proposta inclui Educação Ambiental através de formas associativas e solidárias; f) Supletivo de Trabalhadores: iniciado em 1995, é um programa de educação básica de jovens e adultos, visando criar condições para a realização dos estudos da escola fundamental e o desenvolvimento integral do(a) trabalhador(a) que estuda, no ambiente de sua própria empresa de trabalho; g) o PEI (Programa Escolinhas Integradas): em vigor desde 1996, visa “oportunizar às crianças e adolescentes frequentarem um espaço educativo não-escolar que contribua para a construção do projeto de vida e do exercício da cidadania de cada uma delas, com base nos princípios do esporte educacional.”; h) o PRUMO (Programa de Unidades Móveis de Saúde Coletiva): desenvolve, desde 1993, um trabalho de atendimento integral das comunidades, através de atividades educativas numa visão interdisciplinar, estimulando o crescimento comunitário participativo, tendo o homem como agente de sua mudança.

Em geral, estas e outras atividades, entre as quais se destaca ainda a participação do Projeto “Universidade Solidária”, oportunizam importante espaço para os acadêmicos avançarem na sua formação pessoal e profissional, de uma forma mais próxima e solidária com a realidade enfrentada pelas camadas mais empobrecidas da sociedade.

2) A decisão por introduzir um conjunto de disciplinas de “formação humanística de orientação cristã” em todos os Currículos de Graduação e a sua implementação deu-se no ano de 1997.

Trata-se de um conjunto de disciplinas e atividades, somando um total de 300 horas-aula (cinco disciplinas de 60 horas-aula), que, de forma integrada com as demais disciplinas e atividades dos Currículos, objetivam proporcionar aos acadêmicos uma formação geral centrada em três eixos disciplinares: Formação Antropológica, Formação Ética e Formação Latino-americana. Trata-se de uma proposta de formação baseada e orientada de forma coerente com os princípios cristãos.

3) Em 2001, foi constituído o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que é um novo espaço na Universidade para fomentar, desenvolver e articular projetos e programas que envolvam pesquisas, estudos, reflexões, análises e serviços, com a ousadia da criatividade, num contexto de desafios radicais.

O IHU desenvolve as suas atividades em três grandes Áreas integradas entre si. A Área de Ética, Cultura e Cidadania está baseada na idéia de “uma ética para os novos tempos, necessária e possível, que possa introduzir o dever onde tudo é poder”. Objetiva atenção e perspicácia “para apreender a necessidade de elaborar uma antropologia capaz de superar o antropo e o androcentrismo, compreendendo a pessoa humana como inter e retrorelacionada e responsável pelas gerações que estão por vir”. A Área de Economia Solidária, Trabalho e Cooperativismo visa “proporcionar novos paradigmas produtivos, capazes de gerar solidariedade entre os seres humanos e destes com a natureza, o cosmos e o universo, para que, desta forma, o mundo seja um lugar em que todas as pessoas humanas, da nossa e das futuras gerações, possam viver bem e com segurança”. A Área de Religiões, Teologia e Pastoral coloca-se na linha daqueles que afirmam que “a busca de um projeto ético mundial, planetário, capaz de forjar um novo contrato social universal, pode ser impulsionado e dinamizado pelas grandes religiões, nas quais se inclui, evidentemente, o cristianismo com a sua teologia e a sua espiritualidade”.

:::::::

Se estes são alguns aspectos importantes que devem ser lembrados para responder à questão formulada no título, deve-se destacar também que é crescente, no âmbito da Universidade, o comprometimento por ajudar a articular redes universitárias nacionais e internacionais, que objetivem a colocar o imenso potencial destas instituições a serviço da busca de alternativas globais viáveis para a Humanidade.

IGREJA, IDEOLOGIA E CLASSES SOCIAIS

Dissertação de Mestrado realizada em 1982-1984 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUS-SP. Publicada pela Editora Vozes em 1985. (O livro cuja edição está esgotada, encontra-se à venda em “Estante Virtual”. Caso haja interesse em adquirir, é só clicar na imagem da capa abaixo para abrir site da ESTANTE VIRTUAL.

SUMÁRIO:

INTRODUÇÃO

PARTE I: IGREJA, IDEOLOGIA E CLASSES SOCIAIS – ASPECTOS TEÓRICOS ESSENCIAIS

1 – Classes Sociais e Luta de Classes

2 – Ideologia e Religião

3 – Religião e Luta de Classes

4 – Igreja e Luta de Classes

PARTE II: IGREJA, IDEOLOGIA E CLASSES SOCIAIS NO BRASIL – ASPECTOS DA HISTÓRIA E DA STRUTURA SOCIAIL

5 – Classes Sociais e Ideologia no Brasil

6 – Igreja, Ideologia e Classes Sociais no Brasil

PARTE III: POSICIONAMENTOS IDEOLOGICOS INTERNOS À IGREJA MANIFESTOS NO DEBATE DA QUESTÃO “COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE E LUTA DE CLASSES”

7 – Por que “Comunidades Eclesiais de Base e Luta de Classes”?

8 -Posicionamentos Ideológicos Manifestos em Textos da “Direita” e da “Esquerda” Católicas

9 – Posicionamentos Ideológicos Manifestos em Textos de Componentes da Hierarquia e “Representantes das Bases”

10 – Posicionamentos Ideológicos Manifestos em Textos de Canções e de Roteiros de Reuniões

CONCLUSÕES, HIPÓTESES EPERSPECTIVAS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANEXOS

RELIGIÃO, LAICIDADE E DEMOCRACIA: APONTAMENTOS SOBRE O BRASIL

José Ivo Follmann sj – 2016

Artigo publicado em Cadernos do CEAS, Salvador, n. 236, p. 170-184, 2016

RESUMO: Tomando como ponto de partida uma breve provocação dentro do conceito de secularização, o artigo revisita brevemente o conhecido debate estatístico sobre as religiões e religiosidades no Brasil e retoma uma reflexão sobre processos de identidade religiosos. O debate central desemboca na relação entre a esfera religiosa e a laicidade do Estado no Brasil, com uma nota de reflexão sobre religião e democracia e pontuando, em conclusão, a importância do ensino religioso e da educação para as relações religiosas na sociedade e o papel da academia nesta questão.

PALAVRAS CHAVES: Secularização. Laicidade. Religiões no Brasil. Ensino religioso. Religião e democracia.

ABSTRACT: Taking as starting point a brief defiance within the concept of secularization, the article revisits the known statistical debate about religions and beliefs in Brazil and resumes a reflection on religious identity processes. The central debate ends in the relationship between the religious sphere and the secular State in Brazil, with a note of reflection on religion and democracy and scoring, in conclusion, the importance of religious teaching and education for religious relations in society and the role of the Academy in this.

KEY WORDS: Secularization. Laicity. Religions in Brazil. Religious teaching. Religion and democracy.

Introdução

Muitas interrogações passam pela nossa mente e coração quando convidados para refletir e escrever sobre a questão da laicidade no Brasil. O impacto inicial mais importante está na própria percepção do Brasil como um “mundo das religiões e religiosidades”. Trata-se de um mundo complexo e com muitos atalhos e caminhos de interrogação. Dentro deles a laicidade do Estado[1], declarada há 125 anos, aparece como um ator, ao mesmo tempo, visível e dissimulado.

O presente artigo é uma composição despretensiosa de alguns excertos de reflexões e estudos meus recentes, tentando traçar atalhos e caminhos de abordagem suficientemente provocadores para avançarmos nas respostas sobre o papel das religiões e religiosidades no Brasil de hoje avançando no entendimento da esfera religiosa em sua complexidade e em sua relação com a laicidade do Estado, como caminhos para o Brasil.

O fenômeno complexo que envolve crenças religiosas, descrenças, religiões, religiosidades e espiritualidades, mais do que nunca, nos desafia. As estatísticas fornecidas e conhecidas, que aqui são lembradas, proporcionam uma aproximação útil, apesar das suas limitações amplamente conhecidas e que já se tornaram quase paradigmáticas.

O artigo parte de uma provocação a partir do conceito de secularização e, depois de passar por alguns lembretes conhecidos, em termos de debate estatístico, com a retomada de uma reflexão sobre processos de identidade religiosos e alguns ensaios para o debate atual da relação entre a esfera religiosa e a laicidade do Estado no Brasil, conclui com uma chamada sobre a urgência do ensino religioso e da educação para as relações religiosas na sociedade e uma revisão radical nas posturas da academia.

Interrogação inicial sobre religião e secularização…

Em sua obra de 1967, O Dossel Sagrado, Peter Berger faz dois movimentos importantes de reflexão. Num primeiro movimento reflexivo, ele nos conduz por questões que relacionam a religião com a construção e a manutenção do mundo, e, num segundo movimento reflexivo, traz aportes fundamentais para o entendimento do processo de secularização e as implicações do mesmo para a plausibilidade da religião. (Berger, 2004).

Este autor tornou-se referência obrigatória na sociologia contemporânea das religiões e na sociologia em geral. Ao explicitar a sua premissa de que a sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo, realça que a religião ocupa um lugar de destaque nesse empreendimento.  Cabe ressaltar a atenção dada por ele à função de legitimação da religião e aos processos de alienação e des-alienação, nos quais a religião também participa.

Peter Berger escreveu esta obra em 1967 (Berger, 2004) e, na época, segundo o seu entendimento, o processo de secularização era visto como uma fragilização do religioso, decorrência da perda de força de referência das grandes instituições religiosas como garantidoras de uma visão ordenada dos mundos. O pluralismo religioso estaria debilitando a própria religião em sua plausibilidade. O sociólogo brasileiro que mais vigorosamente se alinhou com a tese de fragilização do religioso a partir da secularização, foi Antonio Flavio Pierucci (2004). Chegou a falar da desmoralização das religiões na medida em que estas vão sendo forçadas a se lançarem em um mercado sempre mais competitivo. (Pierucci e Prandi, 1996).

Estaria a religião fadada a um processo irrecuperável de desmoralização? Ou, pelo contrário, estaria acontecendo, um processo de remoralização do religioso via processos de identidade? Segundo Ricardo Mariano, o próprio Peter Berger, vários anos depois de ter lançado o seu clássico aqui referido, teria rejeitado sua perspectiva teórica pregressa, afirmando ser “falsa a suposição de que vivemos em um mundo secularizado” e que “toda a literatura escrita por historiadores e cientistas sociais, chamada vagamente de ‘teoria da secularização’, está essencialmente equivocada”. (Mariano, 2011, p.241)

De fato, o que se conhece por secularização não pode ser considerado um processo que leva ao fim da religião, mas sim o processo que institui um novo momento na esfera religiosa, onde a religião ganha novos modos de ser e agir, com novo dinamismo, formas novas e presença renovada. Às vezes se fala em renascer…  Enquanto as instituições religiosas se veem diminuídas em sua incidência social e pública, a religião parece restabelecer-se com vigor e vida renovada, no nível dos sujeitos individuais em seus processos religiosos de identidade.

Assim, a ação eficaz para a vida, garantidora de uma visão ordenada dos mundos, que era sempre ação precípua das instituições religiosas enquanto empreendimentos humanos através dos quais se estabelece um “cosmos sagrado” (Berger, 2004), tende a ser assumida e assimilada, de mais a mais, no plano do sujeito individual ou no plano pessoal, fazendo com que, em lugar de grandes “cosmos sagrados”, tenhamos uma constelação de “microcosmos sagrados”, refletindo “sínteses pessoais” vividas com profundidade e garantindo, por baixo da aparente fragmentação e caos, a visão ordenada dos mundos consistente e, mais do que nunca, dinâmica. Oneide Bobsin (2011), acresce um viés interessante de reflexão com a ideia de “humanismo de autotranscendência ”, que inclusive extrapola a própria esfera religiosa propriamente, manifestando-se também pela via de fórmulas sucedidas de autoajuda.

Revisitando as estatísticas religiosas

Enquanto reinava o predomínio inequívoco da dominação religiosa católica, como religião oficial do Brasil, havia pouca margem para a percepção da diversidade e de outras forças dentro da esfera religiosa neste país. Havia também pouca percepção da “violência simbólica” religiosa de parte de uma religião com relação às demais expressões religiosas. A partir do momento em que foram geradas condições históricas para uma maior abertura para a diversidade, além de serem proporcionadas condições de maior percepção da própria diversidade antes oculta e “clandestina”, passou-se também a perceber melhor e explicitar as violências simbólicas existentes. O próprio Estado Brasileiro que é um Estado Laico, desde a Proclamação da República em 1889,[2] como já foi referido, também foi lentamente amadurecendo em sua laicidade, passando paulatinamente, num sucedâneo de dissimulações e visibilidades, a assumir mais explicitamente, ao menos no discurso, uma posição de equidistância com relação às diversas formas de expressão religiosa.

Quanto à esfera religiosa, enquanto tal, os dados estatísticos do IBGE, apesar das muitas fragilidades de seus números, evidenciam que, ao longo das últimas décadas, existe um processo acelerado de inflexão nas forças religiosas: de um Brasil predominantemente católico está-se caminhando para um Brasil onde a força do segmento evangélico, especialmente pentecostal e neopentecostal, tende a conquistar espaços sempre maiores. Também ganha visibilidade o aumento significativo do número daqueles que se declaram “sem religião”.

Estes são dados muito conhecidos e retomá-los aqui pode parecer redundante, mas a nossa memória precisa desses apoios, na reflexão… O quadro estatístico dá conta da queda numérica sensível daqueles que se declaram católicos (de 95,2% da população em 1940, para 64,6% em 2010) e do aumento acelerado, daqueles que se declaram evangélicos (de 2,6% da população em 1940, para 22,2% em 2010), bem como aumento grande daqueles que se declaram “sem religião” (de 0,2% da população em 1940, para 8% em 2010), incluindo, neste último grupo, os descrentes ou ateus (que, provavelmente, não passam de 1% da população). Constata-se também a multiplicação do número de religiões que se somam no quadro das “outras religiões” (2% da população em 1940, para 5,2% em 2010).

Composição da população brasileira em percentuais segundo identificação religiosa nos dados dos censos demográficos oficiais de 1940 e 2010

Identificação religiosa1940 (%)2010 (%)
Católicos95,264,6
Evangélicos2,622,2
“Sem religião”0,28,0
Outras religiões2,05,2
Total100,0100,0
Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1940 e 2010.

Este quadro, no entanto, não diz tudo. Ou melhor, ele provavelmente não consegue explicitar aspectos importantes que se mantém não explicitados ou intencionalmente “submersos”[3]. Alguns comentários e publicações sobre estatísticas religiosas brasileiras mostram, por exemplo, uma grande interrogação frente ao paradoxo do pequeno percentual registrado quando se trata de seguidores das religiões da matriz africana (0,3% da população em 2010). Geraram-se, neste sentido, polêmicas frente à limitação lamentável do IBGE por ainda não ter encontrado mecanismos apropriados para colher dados mais condizentes. Qualquer levantamento superficial que se faça, nas regiões metropolitanas do Brasil, leva, por exemplo, à constatação de números elevados em termos de espaços físicos dedicados a religiões de matriz africana, como “casas”, “terreiros”, “templos” ou “centros”, com uma multiplicidade ímpar de denominações, tanto pelo viés das “afro brasilidades” umbandistas, quanto pelo viés de “africanidades” mais cultivadas em suas tradições de origem, muitas vezes também se expressando em suas formas cruzadas.

A mesma “surpresa” ou “interrogação” que nos causam os percentuais baixos das religiões de matriz africana e de umbanda, também pode ser manifesta com relação ao espiritismo. O Brasil é, provavelmente, uma das culturas onde o espiritismo, nas diferentes versões, encontrou maior guarida. O indício mais evidente que faz reforçar esta hipótese é a intensidade com que concepções religiosas espíritas são veiculadas por certos meios de comunicação, sobretudo, através de novelas de grande penetração popular. Este aspecto da realidade religiosa, em grande parte, continua, também, ausente nas estatísticas religiosas.

Existe um consenso criado de que é urgente e fundamental que o IBGE crie mecanismos adequados para dar conta, de forma mais consistente, das diferentes práticas religiosas, ou seja, da real diversidade religiosa, e, sobretudo, do fenômeno tão próprio dos processos de identidade vividos no Brasil e que envolvem dupla ou múltipla adesão religiosa.

Independente das limitações apontadas, o mapa religioso que foi apontado pelo IBGE 2010, é tremendamente significativo e sinalizador da diversidade, que, em grande parte, ainda está pouco explicitada ou “submersa”. O que o IBGE mostra é “a ponta de um iceberg”, que emerge. A ponta de um grande “iceberg da esfera religiosa” do Brasil que sinaliza para uma diversidade crescente. O mapa religioso brasileiro sinalizado pelo IBGE 2010, além de apontar para esta multiplicação de novas formas de expressão do religioso, não consegue mostrar uma riqueza muito grande que subjaz e que as estatísticas ainda não estão conseguindo fazer emergir.

Também, obviamente, o Protestantismo Histórico conseguiu organizar-se com uma presença mais pública ao longo do século XX. A explosão da diversidade pode ser vista como reação contra os constrangimentos uniformes anteriores, na história brasileira, de quase quatro séculos de religião católica como religião oficial. Em algumas situações, esta explosão da diversidade assume contornos de pluralismo religioso, ou seja, de convívio e reconhecimento democrático entre as diferentes expressões religiosas.

Focando os processos religiosos de identidade…

Saindo da análise dos dados estatísticos, o processo histórico brasileiro com relação à sua esfera religiosa é, sobretudo, um processo de múltiplas relações inter-religiosas e inter-étnicas. Falar das estatísticas religiosas, sua evolução e suas limitações não é algo fortuito, nem casual… Como foi dito, o quadro estatístico religioso é uma ponta visível de um enorme ‘iceberg’ constitutivo da complexidade dos processos de identidade (Follmann, 2001; 2012) que acontecem na sociedade, mediados pela dimensão religiosa. Muitos aspectos e eventos poderiam ser arrolados para mostrar a complexidade desta dimensão nem sempre suficientemente percebida.

Quando na minha pesquisa de doutorado trabalhei o conceito de identidade, inspirei-me com a ideia de “encruzilhada” ou de “cruzamento complexo” de vias (sem semáforo), ou, ainda, de “lugar de encontro” e de “cruzamento” de diferentes projetos. Em uma palavra: o conceito nasceu da ideia da interação, ou seja, a identidade é uma constante “costura” que se faz no seio da interação. “Costuras” fazem-se sempre necessárias. (Follmann, 2001; 2012).

Segundo Gilberto Velho (1987, p. 26ss), os projetos estão sempre ligados a contextos específicos. Um projeto não é jamais um fenômeno puramente subjetivo e também não totalmente objetivável. Ele sempre é elaborado em um campo de “possibilidades” e de “conveniências”. Levando essa ideia ao extremo, o projeto, dentro da experiência de fragmentação, que é a experiência diária dos indivíduos em sociedade especificamente em contextos como o que vivemos, não é nada mais que a tentativa permanente de dar sentido e coerência à sua existência em interação com a complexidade que os envolve e atravessa.

A grande fragilização e ameaça constante de fragmentação vivida pelos indivíduos em sociedade e, sobretudo, o vazio e a angústia em contextos onde as referências institucionais perderam força, fazem com que os mesmos busquem alguma referência que, ao mesmo tempo, seja suficientemente segura, com respaldo de conhecimento socialmente aceito, por um lado, mas suficientemente independente, por outro, para que a autonomia pessoal seja preservada. Certamente o papel da educação para as relações religiosas e do ensino religioso é fundamental. Em uma sociedade na qual a dimensão religiosa exerce um substrato cultural predominante e historicamente consolidado, é fácil de entender que as sínteses religiosas pessoais possam tornar-se as principais formas de se potencializar isto.

Em suma, quero dizer que, ao voltarmos a nossa atenção ao estudo do “mundo das religiões e religiosidades” focando a complexidade dos processos religiosos de identidade, percebemos a importância da interlocução do próprio conhecimento religioso na produção do conhecimento acadêmico sobre o “mundo das religiões e religiosidades” sendo inequivocamente inerente e necessária ao processo, ao menos quando se trata de compreender processos religiosos de identidade; em suma, a realidade social religiosa por dentro.

Na teoria da secularização, à qual fizemos menção no início deste texto, alimentava-se uma espécie de aposta com relação à iminência da extinção da dimensão religiosa, enquanto portadora de significação considerável nas sociedades humanas. A teoria, no entanto, sofreu fortes revisões, sobretudo, no sentido de dizer que o que realmente está em jogo – e é fato – é a gradual perda da força das instituições religiosas. Isto significa perda ou esvaziamento dos sentimentos religiosos, mas, pelo contrário, pode proporcionar maior busca de cultivo pessoal da dimensão religiosa. O fenômeno que se observa é um movimento simultâneo, por um lado, de perda da força institucional das grandes instituições tradicionais e, por outro lado, um novo ganho e maior vivacidade nas múltiplas formas de vivências religiosas cultivadas pelos sujeitos contemporâneos. Estas vivências religiosas são na maioria dos casos “arranjos pessoais”, muitas vezes carentes ou sequiosos de melhores conhecimentos.

Religião e democracia

A explosão da diversidade religiosa, que assistimos no Brasil contemporâneo, por si só, não gera espírito pluralista ou espírito de convívio democrático. Ao contrário, muitas vezes, pode descambar em radicalizações fundamentalistas. Tem-se um movimento duplo contraditório gerado pela diversificação: crescimento do espírito de convívio democrático pluralista, de um lado, e aumento de radicalizações fundamentalistas, de outro. Assim como, também, é perceptível um duplo movimento em nível de Estado: ao mesmo tempo em que são constatáveis movimentos sérios de amadurecimento da laicidade no sentido de garantir o direito à diversidade e pluralidade de expressão religiosa de todos, existem, também, os movimentos de busca de vantagens eleitorais contando com o apoio desta ou daquela confissão religiosa.

Um componente fundamental nos processos de identidade religiosa é a relação sadia com o outro, com o diferente. Pode-se dizer que o diálogo inter-religioso é a nossa tábua de salvação. A humanidade estará dando a volta por cima quando aprender a dialogar nessa esfera (religiosa) onde historicamente se geraram, também, os maiores fanatismos e intolerâncias. A história está repleta de eventos de guerra e de mortes em nome de adesões ou não a determinada religião. Muitos também imolaram e imolam as suas vidas em nome de uma fé. Se quisermos trabalhar efetivamente pela paz, devemos empenhar-nos pelo cultivo do diálogo inter-religioso. Assim como já foi dito que o desenvolvimento é o novo nome da paz (Papa Paulo VI, 1967), assim também se pode dizer que o diálogo inter-religioso é o novo nome da paz. (Küng, 1996; Teixeira, 1997). Diálogo só acontece quando existe um verdadeiro reconhecimento do outro, do diferente. Diálogo só se faz possível se aqueles que dialogam entre si sabem cultivar sinceramente os seus próprios processos de identidade religiosa e se cultivarem ao mesmo tempo um grande reconhecimento dos processos de identidade religiosa dos outros.

O papel da esfera religiosa, e sua interlocução no âmbito da educação, é um papel chave nas sociedades de hoje e isto se dá tanto no plano dos processos de identidade das pessoas e dos processos de conhecimento, como no plano dos processos de convívio cidadão. Cabe ao Estado laico criar as condições para isto.

A laicidade do Estado é fundamental neste sentido, ou seja, uma laicidade maduramente vivida e administrada pelo Estado é condição para que a esfera religiosa possa exercer o seu papel na construção da sociedade democrática. Um ensino religioso e uma “educação para as relações religiosas” são um bom caminho para ajudar a sociedade a amadurecer, desde as gerações mais jovens, para uma cultura do pluralismo religioso e da laicidade, condições fundamentais da democracia.

A reflexão sobre religião e democracia no Brasil não pode deixar de mencionar dois eventos de suprema importância: A Liga Eleitoral Católica – LEC, que funcionou durante as décadas de 1930 a 1950 e a Frente Parlamentar Evangélica – FPE que vem funcionando com crescente vigor nas últimas três décadas. Trata-se de força ou articulações suprapartidárias pela defesa dos interesses e valores de determinados segmentos religiosos.

No caso da LEC o foco principal estava voltado contra o absenteísmo dos católicos na política e contra os fisiologismos políticos, por um combate mais eficaz aos interesses comunistas, protestantes, espíritas e maçons, com campanha permanente pela defesa da família, da educação católica, dos bons costumes e de combate à liberalidade da moda.

No caso da FPE, estão expressos os interesses de segmentos evangélicos, tendo com supremacia parlamentares do segmento pentecostal e neopentecostal. Alterando a marca estritamente católica, para os interesses evangélicos e de combate ao catolicismo, grande parte das pautas desta Frente tem semelhança em seu teor básico com as pautas da então LEC.

Este registro, mesmo que superficial, é importante pois sinaliza para um dos aspectos mais fortes na relação das religiões com a construção da condução política do País. Mesmo que não se conheçam partidos fortes de marca exclusiva de determinada religião, estas duas articulações suprapartidárias são paradigmáticas e refletem importantes forças institucionais da esfera religiosa com braços de força ostensiva para dentro da esfera política.

Tais forças institucionais suprapartidárias, no entanto, podem às vezes ocultar certas promiscuidades de interesses (partido invisível), quando não claro ocultamento (fachada falsa) de propósitos perversos, totalmente contrários aos valores ostentados publicamente. A verdadeira cultura democrática tem mais chance de acontecer na medida em que existe um profundo cultivo em nível pessoal do processo religioso de identidade, movendo-se reforçado por seus valores pessoais, dentro da arena política pública, dentro das regras públicas explícitas do jogo político.

Laicidade do Estado Brasileiro e esfera religiosa

É de consenso que cabe ao Estado laico criar as condições para que se eduquem as consciências religiosas em sua diversidade e seu reconhecimento mútuo. Acredito, também, que uma laicidade maduramente vivida e administrada pelo Estado é condição para que a esfera religiosa possa exercer o seu papel na construção da sociedade democrática. A laicidade do Estado, com o seu caráter distinto e separado das religiões, além de poder garantir que cada cidadão possa escolher livremente a sua religião, tem condições para oferecer a possibilidade de convivência da diversidade e da pluralidade no espaço público. (Mafra, 2002). Muitas vezes já se ouviu dizer que a “liberdade religiosa é a mais importante das liberdades”, como está expresso em uma frase do próprio Rui Barbosa1(1877, p.419), mas isto só tem condições de funcionar na medida em que na própria esfera religiosa houver um efetivo reconhecimento da diversidade e da pluralidade.

Mencionei a instalação do Estado Laico, dentro do mesmo processo de início do Estado Republicano Brasileiro. Já se passaram 125 anos desde a primeira Constituição Republicana, que foi em 1891, e a laicidade do Estado Brasileiro ainda está longe de uma consolidação amadurecida. A história do século XX está repleta de exemplos que trazem à luz do dia o “fantasma” do Catolicismo como religião oficial. Isto foi, sobretudo, acentuado durante todo o longo período do governo Vargas.[4] Este tempo histórico da laicidade do Estado Brasileiro presenciou, também, por um lado, sob a influência de setores da religião católica, uma forte carga de preconceitos e perseguições (repressões) às religiões de matriz africana e outras, que, comumente, eram desclassificadas enquanto religião, não aceitáveis pela racionalidade cristã ocidental (Monteiro, 2009); e, por outro lado, sobretudo, na segunda metade do século XX, foi crescente o aumento das Igrejas Evangélicas Pentecostais e, na sequência, as Neopentecostais, acompanhadas de um forte trabalho de lobby político e de oposição à influência católica e combate aberto às religiões de matriz africana. No Brasil não é muito diferente de outros países, porque, de fato, não se conhecem exemplos concretos de total isenção ou neutralidade do Estado frente às diferentes religiões (Mariano, 2005).

Um evento recente foi particularmente perturbador na evolução harmônica das relações do Estado Laico com a esfera religiosa no Brasil. Trata-se do Acordo entre o Estado Brasileiro e a Santa Sé assinado em 2008.  Foi um acordo bilateral solenemente assinado em 13 de novembro de 2008 entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, onde os signatários foram o Presidente Luiz Ignácio Lula da Silva e o Papa Bento XVI. Uma grande polêmica foi gerada com relação a este Acordo do Estado Brasileiro com uma determinada confissão religiosa. Apesar das justificativas apresentadas pelos representantes da hierarquia católica, dizendo que não se tratava de busca de privilégios institucionais e que este direito poderia ser estendido a todas as outras confissões (Rocha, 2009), o fato foi visto como um retrocesso grave, sobretudo, porque nenhuma outra confissão religiosa dispunha dos mesmos instrumentos jurídicos para um acordo internacional semelhante. Só a Igreja Católica tem um “Estado do Vaticano”. Viu-se no Acordo um grande número de entraves para a laicidade, a democracia, o pluralismo religioso. O princípio da laicidade passou a ser defendido por instituições que nem sequer concordam com a laicidade do Estado. Ou seja, religiões que em sua prática, em geral, mais se empenham por transformar o Estado Brasileiro em um Estado Evangélico, acabam defendendo a laicidade, para assegurar direitos nos quais se sentem lesadas.

É neste embate que foi gestada a Lei Geral das Religiões apresentada em 2009, por um Deputado Federal, Pastor da Igreja Universal do Reino de Deus (Igreja Neopentecostal). O teor principal desta Lei é tornar o conteúdo do Acordo em questão, extensivo às outras denominações religiosas. A busca ou defesa da laicidade está associada ao ataque à hegemonia católica e se persegue uma pauta de privilégios e de garantia de mais espaço no âmbito estatal. Segundo a pesquisadora Fischmann (2009) trata-se de uma “tentativa de corrigir um erro incorrigível” e acrescentar mais um erro, aniquilando de fato o campo público com a presença da disputa de grupos de interesses religiosos.

Mesmo que a polêmica faça sentido, existe um avanço importante na proposta da Lei Geral das Religiões, uma vez que supera o cacoete anterior de a Igreja Católica, usar e continuar usando a prerrogativa de seu domínio histórico e de sua força numérica para regulamentar em seu favor determinações genéricas na relação entre o Estado Laico e a esfera religiosa. Os mais prejudicados, em geral, sempre foram aqueles agrupamentos religiosos mais minoritários ou histórica e culturalmente colocados à margem.  Segundo Negrão (2008), este contexto de debates vem apontando uma nova perspectiva muito desafiadora para a compreensão do quadro global das relações entre Estado, sociedade e religião no Brasil.

Considerações finais

Concluindo este breve caminhar através de alguns apontamentos bastante conhecidos, mas carregando em si a pergunta sobre o papel da esfera religiosa em nossa sociedade e o desafio da complexidade sempre mais explícita do “mundo das religiões e religiosidades” em nossa sociedade, permanecem dois convites: Um primeiro diz respeito à não resolvida questão do ensino religioso ou da educação para as relações religiosas; um segundo diz respeito à nossa postura na academia, como cidadãos e cidadãs.

A pluralidade humana, que se expressa nas mais diferentes esferas do convívio social, se expressa, também, de maneira forte, na esfera religiosa. O ensino religioso e a respectiva educação para as relações religiosas nas escolas poderá ser, sem dúvida, um importante espaço para a cultivo da abertura para o viver plural e para evitar o crescimento de fanatismos. Este último, em geral originado de desinformação e cultivo estreito sem abertura de horizontes. O convívio com a pluralidade traz dentro dele três grandes espaços de fecundidade e de desafios: – O espaço do cultivo dos processos pessoais de identidade; – O desafio de um conhecimento mais consistente, valorizando as diversas formas de saber e rompendo velhos paradigmas, para além das disciplinas acadêmicas; – O desafio da cultura do diálogo e do reconhecimento do outro, do diferente.

Vivemos tempos muito favoráveis para o cultivo, daquilo que chamo de “processos de identidade”. No caso, estamos falando de “processos religiosos de identidade” ou “processos de identidade religiosa”. Fico impressionado, no meu dia a dia de professor, com o fato de, no meio universitário, não existir mais aquele temor que existia, por exemplo, no meu tempo de estudante, quando falar de religião era tabu e soava totalmente ridículo falar de suas próprias convicções e opções religiosas. Isto está radicalmente mudado. Os sujeitos assumem muito mais a sua relação com o transcendente ou, também, a sua postura de negação com relação às crenças religiosas, quando é o caso. Existe evidentemente, em tudo isto, o risco da rigidez nos posicionamentos e muita facilidade em resvalar para posições fundamentalistas e intransigentes.

Sempre costumo afirmar que o diálogo inter-religioso é a nossa tábua de salvação. A humanidade estará efetivamente dando a volta por cima quando aprender a dialogar nesta esfera onde, historicamente, se geraram os maiores fanatismos e intolerâncias.

A iniciativa de introduzir o “ensino religioso” nas escolas públicas estatais é uma iniciativa importante, mas infelizmente existe muita imaturidade política em nível governamental em diversos Estados e, sobretudo, um terrível despreparo das escolas e das professoras e professores. Sem um forte investimento no sentido de fazer do “ensino religioso” um efetivo espaço de educação para o pluralismo, estaremos perdendo uma chance ímpar na história deste país. Acredito num ensino religioso que seja uma efetiva “educação para as relações entre as diferentes crenças (descrenças) e práticas religiosas”. Nada melhor do que “sentar” ao redor da mesma mesa os diferentes conhecimentos (e crenças) no domínio religioso, seja pelo ângulo das diferentes ciências da religião, seja pelo ângulo de leituras teológicas e vivências espirituais. O papel da esfera religiosa é um papel chave nas sociedades de hoje, e isto se dá tanto no plano dos processos de identidade das pessoas, quanto no plano dos processos de conhecimento e dos processos de convívio cidadão.

O conhecimento exerce papel importante no processo de identidade religiosa. O que falta muito, em nossa sociedade, é conhecimento com relação ao mundo das religiões e das religiosidades. Infelizmente a história de nossa academia (das Universidades) está carregada por um positivismo obtuso que, de certa forma, entendeu que só o fato de falar da temática religiosa já manchava a pureza da ciência, sendo um assunto reservado às mentes menos esclarecidas. Este tipo de postura reflete uma espécie de “laicidade obscurantista”. Felizmente, existe atualmente um despertamento para o que se poderia denominar de “laicidade lúcida”, quando nossas academias começam a superar este tremendo preconceito, que muito mais do que preconceito é um prejuízo intelectual inominável do qual continuamos sendo vítimas.

Quero, neste sentido, manifestar o meu apreço ao antropólogo Otávio Guilherme Velho, o qual em uma entrevista para a Revista IHU On Line (apud Teixeira e Menezes, 2005) usou a palavra “humildade”. A partir da percepção deste antropólogo é fundamental que as ciências sociais e os estudos da sociedade no Brasil, mais do que nunca, se desfaçam de certos ranços que ainda dominam a academia brasileira, para assumir com humildade um olhar mais atento para a dimensão religiosa da sociedade, condição fundamental para uma compreensão em profundidade desta mesma sociedade.

Referências Bibliográficas

BARBOSA, R. (1877). Obras Completas, Vol. 4. Tomo 1, O Papa e o Concílio. Rio de Janeiro, Brazil: Fundação Casa de Rui Barbosa.

BERGER, P.L. (2004). O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. 5. ed. São Paulo: Paulinas.

BOBSIN, O. (2011). Experiências Religiosas Contemporâneas e Individualização. Rev. Estudos Teológicos. vol.51, n.2, 2011, p.304-318

FISCHMANN, R. (2009). Acordo contra a Cidadania. Disponível em: ˂http://silncioerudoasatiraemdenisdiderot.blogspot.com.br/2009/06/enviado-por-roseli-fischmann.html˃. Accessed on 03/03/16.

FOLLMANN, J.I. (2014). Produção do conhecimento e processos religiosos de identidade: apontamentos transdisciplinares para refletir sobre a Academia e o Ensino Religioso. Rev. Numen, Juiz de Fora, Brazil, Vol. 17, n. 1.

FOLLMANN, J.I. (2012). Processos de Identidade versus processos de alienação: algumas interrogações. Rev. Identidade! São Leopoldo: EST., 17, n.1, janeiro-março, 2012, pp.83-89

FOLLMANN, J.I. (2001). Identidade como conceito sociológico. Rev. Ciências Sociais Unisinos. Vol. 37, N. 158, pp.44-65.

GOLDMANN, M. (2015). “Quinhentos anos de contato”: por uma teoria etnográfica da (contra)mestiçagem. http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p641

KÜNG, H. (1996). Projecto para uma ética mundial. Lisboa, Portugal: Piaget.

IBGE. Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.

MAFRA, M. C. (2002) Na Posse da Palavra: religião, conversão e liberdade pessoal em dois contextos nacionais. Lisboa, Portugal: Imprensa de Ciências Sociais.

MARIANO, R. (2011). Laicidade à Brasileira: Católicos, pentecostais e laicos em disputa na esfera pública. Rev. Civitas. Porto Alegre, v.11, n.2, maio-agosto, 2011, p.238-258

MARIANO, R. (2005). Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. São Paulo, Brazil: Edições Loyola (2ª ed.).

MONTEIRO, P. (2009) Secularização e espaço público: a reinvenção do pluralismo religioso no Brasil. Etnográfica: São Paulo. Maio de 2009, 13 (1) p. 7-16.

NEGRÃO, L. N. (2008). Pluralismo e multiplicidades religiosas no Brasil contemporâneo. Rev. Sociedade e Estado, Brasília, Brazil, v. 23, n. 2, p. 261-279.

PIERUCCI, A. F. (2004). Secularização e declínio do catolicismo. In: SOUZA, B. M.; Martino, L. M. S. (Orgs.). Sociologia da religião e mudança social.São Paulo: Paulus.

PIERUCCI, A.F; Prandi, R. (1996). A realidade social das religiões no Brasil. São Paulo: Hucitec.

PAULO VI (1967). Carta Encíclica Populorum Progressio. Cidade do Vaticano, Italy: Santa Sé.

ROCHA, G. L. (2009). CNBB espera aprovação de acordo. Disponível em: ˂http://www.dci.com.br/politica/cnbb-espera-aprovacao-de-acordo-entre-brasil-e-vaticano-id198258.html˃ Accessed on: 03/03/16.

TEIXEIRA, F. (Org) (1997). O diálogo inter-religioso como afirmação da vida. São Paulo, Brazil: Paulinas.

TEIXEIRA, F; Menezes, R. (orgs.). (2005). Religiões no Brasil. IHU On Line. (Número especial sobre as Religiões no Brasil) Ano 4, n.169, 19 de dezembro de 2005.

THERRIEN, S. and others (2005). Laicity and Religious Diversity; The Quebec’s Approach. (Report to the Minister of Citizen Relations and Immigration). Montréal, Québec: Conseil des relations interculturelles.

VELHO, G. (1987). Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar (1ª Ed. 1981).


Notas:

[1] Para distinguir laicidade de secularização utiliza-se, este artigo, importante relatório governamental canadense sintetizado em obra coordenada por Therrien, S. and others (2005).

[2] Através do Decreto nº 119-A de 07 de janeiro de 1890 redigido por Rui Barbosa o sistema de relação entre Religião e Estado foi transformado radicalmente. O Brasil deixou de ser um Estado confessional para ser um Estado laico, antes mesmo da primeira Constituição da República, redigida em 1891.

[3] Inspiro-me em Marcio Goldmann (2015) na utilização do termo “submersão”. Este autor se refere à prática de “submergir” como mecanismo de sobrevivência cultural para depois reemergir, em seus estudos de contra-mestiçagem e contra-sincretismo. O autor trata da relação “afroindígena”, mas podemos fazer ilações para as relações “afrocatólica” (ou “afroeuropéia”) e “espíritocatólica”, etc… O texto inspirador é a sua conferência no concurso para Professor Titular do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ.  http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p641 

[4] Muitos argumentos foram usados para justificar essas “recaídas”. Um deles é uma espécie de substrato cultural indicando a catolicidade como o “mais correto” para o Brasil, dado a sua história; outro também sempre foi o argumento estatístico. O que, no entanto, sempre mais pesou são os “espaços consideráveis nas áreas da saúde, educação, lazer e cultura” (Mariano, 2001, p. 146) que a Igreja Católica continuava e continua ocupando.

EU CREIO NO TEU AMOR. (ORAÇÃO ESCRITA EM 1980)

Pe José Ivo Follmann sj (30/09/1980)

ORAÇÃO POR MIM ESCRITA AO LONGO DE MINHA EXPERIÊNCIA PESSOAL REALIZADA NA ÚLTIMA ETAPA DE FORMAÇÃO JESUÍTA – CHAMADA “TERCEIRA PROVAÇÃO”, PRIMEIRO EM ITAICI, SP, CONCLUINDO DEPOIS NO INTERIOR DO ESTADO DE CEARÁ, NA DIOCESE DE CRATEÚS.

***********

De dentro do coração da humanidade, eu ouço o palpitar da vida;

Vida que treme e teme, cansada, parada;

Vida que busca e luta, irrequieta, esperançosa;

Vida que se derrama vitoriosa;

Vida que é eterna, que nos foi doada!

Eu creio na vida, Senhor!

Sim, eu creio, Senhor, porque creio no teu Amor;

Princípio e fonte de toda a vida;

Amor radicalmente pessoal, para com cada homem e mulher, jovem e criança.

Eu creio neste teu amor, porque:

  • O teu Filho o manifestou de forma plena em sua Encarnação, fazendo-se vida dentro de nossa história de pecado até à ignomínia da Cruz;
  • O teu Espírito impele a muitos homens e mulheres, muitas vezes num total anonimato, a derramarem as suas vidas, em comunhão com teu Filho, no serviço aos irmãos;
  • Em toda parte, o anúncio da verdadeira vida e a denúncia de tudo o que destrói a vida, irrompe de dentro dos mais sofridos, humilhados, discriminados e injustiçados da sociedade;
  • De outra forma, eu não compreenderia a minha história onde o teu Rosto e a tua Voz sempre me acolhem em eterna e carinhosa Misericórdia, quando a noite da negação da vida e do amor, nas infidelidades e covardias, cega, oprime e desconcerta.

Por isso eu me prostro em humilde adoração diante deste Mistério Divino e Humano e, digo, do meio de tudo o que me envolve: Faça-se em mim segundo o teu Amor!

Quero colocar tudo o que sou a serviço dos homens e mulheres, jovens e crianças da minha frágil história, dentro da Igreja, na Companhia de Jesus. Ilumina o meu caminho, na fidelidade radical ao teu Amor!

Que o teu Espírito me faça compreender sempre melhor a radicalidade do caminho da Cruz, iniciado por teu Filho no abrigo de ovelhas em Belém e na oficina em Nazaré.

  • Que de ninguém eu desrespeite a dignidade e a todos ajude a despertar para a liberdade;
  • Que de ninguém eu me julgue superior e a todos trate de forma igual;
  • Que de nada eu me escravize e saiba utilizar tudo na medida certa.

Aceita-me como companheiro do teu Filho. Que do lado d’Ele eu aprenda sempre mais a dar a vida:

  • Ao amar e saber ser amado;
  • Ao acolher e saber ser acolhido;
  • Ao criticar e saber ser criticado;
  • Ao ajudar e saber pedir ajuda;
  • Ao perdoar e saber pedir perdão.

Livra-me de todas as formas de autossuficiência e de riqueza; que todos os passos da minha vida estejam marcados pelo serviço e pela partilha com os irmãos; que uma sadia austeridade marque a minha constante solidariedade com os empobrecidos e humilhados desta terra.

Dá-me, Senhor, o dom da salvação! Que eu sempre viva unido a ti, Pai, assim como teu Filho, em Espírito e Verdade. Que a fidelidade radical do teu Filho fecunde de vida e libertação minhas pobres palavras, gestos e todo meu ser.

Que a minha história nunca se desgarre da história dos meus irmãos, mas, sob a luz do teu Espírito, seja um esforço permanente de ajudar a compreender e a viver tudo num mesmo movimento global e regenerador.

Que tudo em mim se oriente no sentido de incentivar todos os trabalhos e iniciativas, que, em suas mais diferentes expressões religiosas, culturais e sociais, se preocupam pela dignidade e liberdade das pessoas.

Que a causa do teu Filho, seja o meu viver! Assim seja!

Bem sabes, Senhor, que este é um caminho difícil para mim, infiel e covarde criatura; por isso, só uma coisa eu te peço: dá-me o teu Amor e a tua Graça, para que eu nunca me esqueça do exemplo de fidelidade das pessoas que me inspiram e animam de modo especial, e, também, nunca mais tenha a coragem de desviar os olhos ou me esconder dos mais empobrecidos e humilhados.