RELIGIÃO, LAICIDADE E DEMOCRACIA: APONTAMENTOS SOBRE O BRASIL

José Ivo Follmann sj – 2016

Artigo publicado em Cadernos do CEAS, Salvador, n. 236, p. 170-184, 2016

RESUMO: Tomando como ponto de partida uma breve provocação dentro do conceito de secularização, o artigo revisita brevemente o conhecido debate estatístico sobre as religiões e religiosidades no Brasil e retoma uma reflexão sobre processos de identidade religiosos. O debate central desemboca na relação entre a esfera religiosa e a laicidade do Estado no Brasil, com uma nota de reflexão sobre religião e democracia e pontuando, em conclusão, a importância do ensino religioso e da educação para as relações religiosas na sociedade e o papel da academia nesta questão.

PALAVRAS CHAVES: Secularização. Laicidade. Religiões no Brasil. Ensino religioso. Religião e democracia.

ABSTRACT: Taking as starting point a brief defiance within the concept of secularization, the article revisits the known statistical debate about religions and beliefs in Brazil and resumes a reflection on religious identity processes. The central debate ends in the relationship between the religious sphere and the secular State in Brazil, with a note of reflection on religion and democracy and scoring, in conclusion, the importance of religious teaching and education for religious relations in society and the role of the Academy in this.

KEY WORDS: Secularization. Laicity. Religions in Brazil. Religious teaching. Religion and democracy.

Introdução

Muitas interrogações passam pela nossa mente e coração quando convidados para refletir e escrever sobre a questão da laicidade no Brasil. O impacto inicial mais importante está na própria percepção do Brasil como um “mundo das religiões e religiosidades”. Trata-se de um mundo complexo e com muitos atalhos e caminhos de interrogação. Dentro deles a laicidade do Estado[1], declarada há 125 anos, aparece como um ator, ao mesmo tempo, visível e dissimulado.

O presente artigo é uma composição despretensiosa de alguns excertos de reflexões e estudos meus recentes, tentando traçar atalhos e caminhos de abordagem suficientemente provocadores para avançarmos nas respostas sobre o papel das religiões e religiosidades no Brasil de hoje avançando no entendimento da esfera religiosa em sua complexidade e em sua relação com a laicidade do Estado, como caminhos para o Brasil.

O fenômeno complexo que envolve crenças religiosas, descrenças, religiões, religiosidades e espiritualidades, mais do que nunca, nos desafia. As estatísticas fornecidas e conhecidas, que aqui são lembradas, proporcionam uma aproximação útil, apesar das suas limitações amplamente conhecidas e que já se tornaram quase paradigmáticas.

O artigo parte de uma provocação a partir do conceito de secularização e, depois de passar por alguns lembretes conhecidos, em termos de debate estatístico, com a retomada de uma reflexão sobre processos de identidade religiosos e alguns ensaios para o debate atual da relação entre a esfera religiosa e a laicidade do Estado no Brasil, conclui com uma chamada sobre a urgência do ensino religioso e da educação para as relações religiosas na sociedade e uma revisão radical nas posturas da academia.

Interrogação inicial sobre religião e secularização…

Em sua obra de 1967, O Dossel Sagrado, Peter Berger faz dois movimentos importantes de reflexão. Num primeiro movimento reflexivo, ele nos conduz por questões que relacionam a religião com a construção e a manutenção do mundo, e, num segundo movimento reflexivo, traz aportes fundamentais para o entendimento do processo de secularização e as implicações do mesmo para a plausibilidade da religião. (Berger, 2004).

Este autor tornou-se referência obrigatória na sociologia contemporânea das religiões e na sociologia em geral. Ao explicitar a sua premissa de que a sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo, realça que a religião ocupa um lugar de destaque nesse empreendimento.  Cabe ressaltar a atenção dada por ele à função de legitimação da religião e aos processos de alienação e des-alienação, nos quais a religião também participa.

Peter Berger escreveu esta obra em 1967 (Berger, 2004) e, na época, segundo o seu entendimento, o processo de secularização era visto como uma fragilização do religioso, decorrência da perda de força de referência das grandes instituições religiosas como garantidoras de uma visão ordenada dos mundos. O pluralismo religioso estaria debilitando a própria religião em sua plausibilidade. O sociólogo brasileiro que mais vigorosamente se alinhou com a tese de fragilização do religioso a partir da secularização, foi Antonio Flavio Pierucci (2004). Chegou a falar da desmoralização das religiões na medida em que estas vão sendo forçadas a se lançarem em um mercado sempre mais competitivo. (Pierucci e Prandi, 1996).

Estaria a religião fadada a um processo irrecuperável de desmoralização? Ou, pelo contrário, estaria acontecendo, um processo de remoralização do religioso via processos de identidade? Segundo Ricardo Mariano, o próprio Peter Berger, vários anos depois de ter lançado o seu clássico aqui referido, teria rejeitado sua perspectiva teórica pregressa, afirmando ser “falsa a suposição de que vivemos em um mundo secularizado” e que “toda a literatura escrita por historiadores e cientistas sociais, chamada vagamente de ‘teoria da secularização’, está essencialmente equivocada”. (Mariano, 2011, p.241)

De fato, o que se conhece por secularização não pode ser considerado um processo que leva ao fim da religião, mas sim o processo que institui um novo momento na esfera religiosa, onde a religião ganha novos modos de ser e agir, com novo dinamismo, formas novas e presença renovada. Às vezes se fala em renascer…  Enquanto as instituições religiosas se veem diminuídas em sua incidência social e pública, a religião parece restabelecer-se com vigor e vida renovada, no nível dos sujeitos individuais em seus processos religiosos de identidade.

Assim, a ação eficaz para a vida, garantidora de uma visão ordenada dos mundos, que era sempre ação precípua das instituições religiosas enquanto empreendimentos humanos através dos quais se estabelece um “cosmos sagrado” (Berger, 2004), tende a ser assumida e assimilada, de mais a mais, no plano do sujeito individual ou no plano pessoal, fazendo com que, em lugar de grandes “cosmos sagrados”, tenhamos uma constelação de “microcosmos sagrados”, refletindo “sínteses pessoais” vividas com profundidade e garantindo, por baixo da aparente fragmentação e caos, a visão ordenada dos mundos consistente e, mais do que nunca, dinâmica. Oneide Bobsin (2011), acresce um viés interessante de reflexão com a ideia de “humanismo de autotranscendência ”, que inclusive extrapola a própria esfera religiosa propriamente, manifestando-se também pela via de fórmulas sucedidas de autoajuda.

Revisitando as estatísticas religiosas

Enquanto reinava o predomínio inequívoco da dominação religiosa católica, como religião oficial do Brasil, havia pouca margem para a percepção da diversidade e de outras forças dentro da esfera religiosa neste país. Havia também pouca percepção da “violência simbólica” religiosa de parte de uma religião com relação às demais expressões religiosas. A partir do momento em que foram geradas condições históricas para uma maior abertura para a diversidade, além de serem proporcionadas condições de maior percepção da própria diversidade antes oculta e “clandestina”, passou-se também a perceber melhor e explicitar as violências simbólicas existentes. O próprio Estado Brasileiro que é um Estado Laico, desde a Proclamação da República em 1889,[2] como já foi referido, também foi lentamente amadurecendo em sua laicidade, passando paulatinamente, num sucedâneo de dissimulações e visibilidades, a assumir mais explicitamente, ao menos no discurso, uma posição de equidistância com relação às diversas formas de expressão religiosa.

Quanto à esfera religiosa, enquanto tal, os dados estatísticos do IBGE, apesar das muitas fragilidades de seus números, evidenciam que, ao longo das últimas décadas, existe um processo acelerado de inflexão nas forças religiosas: de um Brasil predominantemente católico está-se caminhando para um Brasil onde a força do segmento evangélico, especialmente pentecostal e neopentecostal, tende a conquistar espaços sempre maiores. Também ganha visibilidade o aumento significativo do número daqueles que se declaram “sem religião”.

Estes são dados muito conhecidos e retomá-los aqui pode parecer redundante, mas a nossa memória precisa desses apoios, na reflexão… O quadro estatístico dá conta da queda numérica sensível daqueles que se declaram católicos (de 95,2% da população em 1940, para 64,6% em 2010) e do aumento acelerado, daqueles que se declaram evangélicos (de 2,6% da população em 1940, para 22,2% em 2010), bem como aumento grande daqueles que se declaram “sem religião” (de 0,2% da população em 1940, para 8% em 2010), incluindo, neste último grupo, os descrentes ou ateus (que, provavelmente, não passam de 1% da população). Constata-se também a multiplicação do número de religiões que se somam no quadro das “outras religiões” (2% da população em 1940, para 5,2% em 2010).

Composição da população brasileira em percentuais segundo identificação religiosa nos dados dos censos demográficos oficiais de 1940 e 2010

Identificação religiosa1940 (%)2010 (%)
Católicos95,264,6
Evangélicos2,622,2
“Sem religião”0,28,0
Outras religiões2,05,2
Total100,0100,0
Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1940 e 2010.

Este quadro, no entanto, não diz tudo. Ou melhor, ele provavelmente não consegue explicitar aspectos importantes que se mantém não explicitados ou intencionalmente “submersos”[3]. Alguns comentários e publicações sobre estatísticas religiosas brasileiras mostram, por exemplo, uma grande interrogação frente ao paradoxo do pequeno percentual registrado quando se trata de seguidores das religiões da matriz africana (0,3% da população em 2010). Geraram-se, neste sentido, polêmicas frente à limitação lamentável do IBGE por ainda não ter encontrado mecanismos apropriados para colher dados mais condizentes. Qualquer levantamento superficial que se faça, nas regiões metropolitanas do Brasil, leva, por exemplo, à constatação de números elevados em termos de espaços físicos dedicados a religiões de matriz africana, como “casas”, “terreiros”, “templos” ou “centros”, com uma multiplicidade ímpar de denominações, tanto pelo viés das “afro brasilidades” umbandistas, quanto pelo viés de “africanidades” mais cultivadas em suas tradições de origem, muitas vezes também se expressando em suas formas cruzadas.

A mesma “surpresa” ou “interrogação” que nos causam os percentuais baixos das religiões de matriz africana e de umbanda, também pode ser manifesta com relação ao espiritismo. O Brasil é, provavelmente, uma das culturas onde o espiritismo, nas diferentes versões, encontrou maior guarida. O indício mais evidente que faz reforçar esta hipótese é a intensidade com que concepções religiosas espíritas são veiculadas por certos meios de comunicação, sobretudo, através de novelas de grande penetração popular. Este aspecto da realidade religiosa, em grande parte, continua, também, ausente nas estatísticas religiosas.

Existe um consenso criado de que é urgente e fundamental que o IBGE crie mecanismos adequados para dar conta, de forma mais consistente, das diferentes práticas religiosas, ou seja, da real diversidade religiosa, e, sobretudo, do fenômeno tão próprio dos processos de identidade vividos no Brasil e que envolvem dupla ou múltipla adesão religiosa.

Independente das limitações apontadas, o mapa religioso que foi apontado pelo IBGE 2010, é tremendamente significativo e sinalizador da diversidade, que, em grande parte, ainda está pouco explicitada ou “submersa”. O que o IBGE mostra é “a ponta de um iceberg”, que emerge. A ponta de um grande “iceberg da esfera religiosa” do Brasil que sinaliza para uma diversidade crescente. O mapa religioso brasileiro sinalizado pelo IBGE 2010, além de apontar para esta multiplicação de novas formas de expressão do religioso, não consegue mostrar uma riqueza muito grande que subjaz e que as estatísticas ainda não estão conseguindo fazer emergir.

Também, obviamente, o Protestantismo Histórico conseguiu organizar-se com uma presença mais pública ao longo do século XX. A explosão da diversidade pode ser vista como reação contra os constrangimentos uniformes anteriores, na história brasileira, de quase quatro séculos de religião católica como religião oficial. Em algumas situações, esta explosão da diversidade assume contornos de pluralismo religioso, ou seja, de convívio e reconhecimento democrático entre as diferentes expressões religiosas.

Focando os processos religiosos de identidade…

Saindo da análise dos dados estatísticos, o processo histórico brasileiro com relação à sua esfera religiosa é, sobretudo, um processo de múltiplas relações inter-religiosas e inter-étnicas. Falar das estatísticas religiosas, sua evolução e suas limitações não é algo fortuito, nem casual… Como foi dito, o quadro estatístico religioso é uma ponta visível de um enorme ‘iceberg’ constitutivo da complexidade dos processos de identidade (Follmann, 2001; 2012) que acontecem na sociedade, mediados pela dimensão religiosa. Muitos aspectos e eventos poderiam ser arrolados para mostrar a complexidade desta dimensão nem sempre suficientemente percebida.

Quando na minha pesquisa de doutorado trabalhei o conceito de identidade, inspirei-me com a ideia de “encruzilhada” ou de “cruzamento complexo” de vias (sem semáforo), ou, ainda, de “lugar de encontro” e de “cruzamento” de diferentes projetos. Em uma palavra: o conceito nasceu da ideia da interação, ou seja, a identidade é uma constante “costura” que se faz no seio da interação. “Costuras” fazem-se sempre necessárias. (Follmann, 2001; 2012).

Segundo Gilberto Velho (1987, p. 26ss), os projetos estão sempre ligados a contextos específicos. Um projeto não é jamais um fenômeno puramente subjetivo e também não totalmente objetivável. Ele sempre é elaborado em um campo de “possibilidades” e de “conveniências”. Levando essa ideia ao extremo, o projeto, dentro da experiência de fragmentação, que é a experiência diária dos indivíduos em sociedade especificamente em contextos como o que vivemos, não é nada mais que a tentativa permanente de dar sentido e coerência à sua existência em interação com a complexidade que os envolve e atravessa.

A grande fragilização e ameaça constante de fragmentação vivida pelos indivíduos em sociedade e, sobretudo, o vazio e a angústia em contextos onde as referências institucionais perderam força, fazem com que os mesmos busquem alguma referência que, ao mesmo tempo, seja suficientemente segura, com respaldo de conhecimento socialmente aceito, por um lado, mas suficientemente independente, por outro, para que a autonomia pessoal seja preservada. Certamente o papel da educação para as relações religiosas e do ensino religioso é fundamental. Em uma sociedade na qual a dimensão religiosa exerce um substrato cultural predominante e historicamente consolidado, é fácil de entender que as sínteses religiosas pessoais possam tornar-se as principais formas de se potencializar isto.

Em suma, quero dizer que, ao voltarmos a nossa atenção ao estudo do “mundo das religiões e religiosidades” focando a complexidade dos processos religiosos de identidade, percebemos a importância da interlocução do próprio conhecimento religioso na produção do conhecimento acadêmico sobre o “mundo das religiões e religiosidades” sendo inequivocamente inerente e necessária ao processo, ao menos quando se trata de compreender processos religiosos de identidade; em suma, a realidade social religiosa por dentro.

Na teoria da secularização, à qual fizemos menção no início deste texto, alimentava-se uma espécie de aposta com relação à iminência da extinção da dimensão religiosa, enquanto portadora de significação considerável nas sociedades humanas. A teoria, no entanto, sofreu fortes revisões, sobretudo, no sentido de dizer que o que realmente está em jogo – e é fato – é a gradual perda da força das instituições religiosas. Isto significa perda ou esvaziamento dos sentimentos religiosos, mas, pelo contrário, pode proporcionar maior busca de cultivo pessoal da dimensão religiosa. O fenômeno que se observa é um movimento simultâneo, por um lado, de perda da força institucional das grandes instituições tradicionais e, por outro lado, um novo ganho e maior vivacidade nas múltiplas formas de vivências religiosas cultivadas pelos sujeitos contemporâneos. Estas vivências religiosas são na maioria dos casos “arranjos pessoais”, muitas vezes carentes ou sequiosos de melhores conhecimentos.

Religião e democracia

A explosão da diversidade religiosa, que assistimos no Brasil contemporâneo, por si só, não gera espírito pluralista ou espírito de convívio democrático. Ao contrário, muitas vezes, pode descambar em radicalizações fundamentalistas. Tem-se um movimento duplo contraditório gerado pela diversificação: crescimento do espírito de convívio democrático pluralista, de um lado, e aumento de radicalizações fundamentalistas, de outro. Assim como, também, é perceptível um duplo movimento em nível de Estado: ao mesmo tempo em que são constatáveis movimentos sérios de amadurecimento da laicidade no sentido de garantir o direito à diversidade e pluralidade de expressão religiosa de todos, existem, também, os movimentos de busca de vantagens eleitorais contando com o apoio desta ou daquela confissão religiosa.

Um componente fundamental nos processos de identidade religiosa é a relação sadia com o outro, com o diferente. Pode-se dizer que o diálogo inter-religioso é a nossa tábua de salvação. A humanidade estará dando a volta por cima quando aprender a dialogar nessa esfera (religiosa) onde historicamente se geraram, também, os maiores fanatismos e intolerâncias. A história está repleta de eventos de guerra e de mortes em nome de adesões ou não a determinada religião. Muitos também imolaram e imolam as suas vidas em nome de uma fé. Se quisermos trabalhar efetivamente pela paz, devemos empenhar-nos pelo cultivo do diálogo inter-religioso. Assim como já foi dito que o desenvolvimento é o novo nome da paz (Papa Paulo VI, 1967), assim também se pode dizer que o diálogo inter-religioso é o novo nome da paz. (Küng, 1996; Teixeira, 1997). Diálogo só acontece quando existe um verdadeiro reconhecimento do outro, do diferente. Diálogo só se faz possível se aqueles que dialogam entre si sabem cultivar sinceramente os seus próprios processos de identidade religiosa e se cultivarem ao mesmo tempo um grande reconhecimento dos processos de identidade religiosa dos outros.

O papel da esfera religiosa, e sua interlocução no âmbito da educação, é um papel chave nas sociedades de hoje e isto se dá tanto no plano dos processos de identidade das pessoas e dos processos de conhecimento, como no plano dos processos de convívio cidadão. Cabe ao Estado laico criar as condições para isto.

A laicidade do Estado é fundamental neste sentido, ou seja, uma laicidade maduramente vivida e administrada pelo Estado é condição para que a esfera religiosa possa exercer o seu papel na construção da sociedade democrática. Um ensino religioso e uma “educação para as relações religiosas” são um bom caminho para ajudar a sociedade a amadurecer, desde as gerações mais jovens, para uma cultura do pluralismo religioso e da laicidade, condições fundamentais da democracia.

A reflexão sobre religião e democracia no Brasil não pode deixar de mencionar dois eventos de suprema importância: A Liga Eleitoral Católica – LEC, que funcionou durante as décadas de 1930 a 1950 e a Frente Parlamentar Evangélica – FPE que vem funcionando com crescente vigor nas últimas três décadas. Trata-se de força ou articulações suprapartidárias pela defesa dos interesses e valores de determinados segmentos religiosos.

No caso da LEC o foco principal estava voltado contra o absenteísmo dos católicos na política e contra os fisiologismos políticos, por um combate mais eficaz aos interesses comunistas, protestantes, espíritas e maçons, com campanha permanente pela defesa da família, da educação católica, dos bons costumes e de combate à liberalidade da moda.

No caso da FPE, estão expressos os interesses de segmentos evangélicos, tendo com supremacia parlamentares do segmento pentecostal e neopentecostal. Alterando a marca estritamente católica, para os interesses evangélicos e de combate ao catolicismo, grande parte das pautas desta Frente tem semelhança em seu teor básico com as pautas da então LEC.

Este registro, mesmo que superficial, é importante pois sinaliza para um dos aspectos mais fortes na relação das religiões com a construção da condução política do País. Mesmo que não se conheçam partidos fortes de marca exclusiva de determinada religião, estas duas articulações suprapartidárias são paradigmáticas e refletem importantes forças institucionais da esfera religiosa com braços de força ostensiva para dentro da esfera política.

Tais forças institucionais suprapartidárias, no entanto, podem às vezes ocultar certas promiscuidades de interesses (partido invisível), quando não claro ocultamento (fachada falsa) de propósitos perversos, totalmente contrários aos valores ostentados publicamente. A verdadeira cultura democrática tem mais chance de acontecer na medida em que existe um profundo cultivo em nível pessoal do processo religioso de identidade, movendo-se reforçado por seus valores pessoais, dentro da arena política pública, dentro das regras públicas explícitas do jogo político.

Laicidade do Estado Brasileiro e esfera religiosa

É de consenso que cabe ao Estado laico criar as condições para que se eduquem as consciências religiosas em sua diversidade e seu reconhecimento mútuo. Acredito, também, que uma laicidade maduramente vivida e administrada pelo Estado é condição para que a esfera religiosa possa exercer o seu papel na construção da sociedade democrática. A laicidade do Estado, com o seu caráter distinto e separado das religiões, além de poder garantir que cada cidadão possa escolher livremente a sua religião, tem condições para oferecer a possibilidade de convivência da diversidade e da pluralidade no espaço público. (Mafra, 2002). Muitas vezes já se ouviu dizer que a “liberdade religiosa é a mais importante das liberdades”, como está expresso em uma frase do próprio Rui Barbosa1(1877, p.419), mas isto só tem condições de funcionar na medida em que na própria esfera religiosa houver um efetivo reconhecimento da diversidade e da pluralidade.

Mencionei a instalação do Estado Laico, dentro do mesmo processo de início do Estado Republicano Brasileiro. Já se passaram 125 anos desde a primeira Constituição Republicana, que foi em 1891, e a laicidade do Estado Brasileiro ainda está longe de uma consolidação amadurecida. A história do século XX está repleta de exemplos que trazem à luz do dia o “fantasma” do Catolicismo como religião oficial. Isto foi, sobretudo, acentuado durante todo o longo período do governo Vargas.[4] Este tempo histórico da laicidade do Estado Brasileiro presenciou, também, por um lado, sob a influência de setores da religião católica, uma forte carga de preconceitos e perseguições (repressões) às religiões de matriz africana e outras, que, comumente, eram desclassificadas enquanto religião, não aceitáveis pela racionalidade cristã ocidental (Monteiro, 2009); e, por outro lado, sobretudo, na segunda metade do século XX, foi crescente o aumento das Igrejas Evangélicas Pentecostais e, na sequência, as Neopentecostais, acompanhadas de um forte trabalho de lobby político e de oposição à influência católica e combate aberto às religiões de matriz africana. No Brasil não é muito diferente de outros países, porque, de fato, não se conhecem exemplos concretos de total isenção ou neutralidade do Estado frente às diferentes religiões (Mariano, 2005).

Um evento recente foi particularmente perturbador na evolução harmônica das relações do Estado Laico com a esfera religiosa no Brasil. Trata-se do Acordo entre o Estado Brasileiro e a Santa Sé assinado em 2008.  Foi um acordo bilateral solenemente assinado em 13 de novembro de 2008 entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, onde os signatários foram o Presidente Luiz Ignácio Lula da Silva e o Papa Bento XVI. Uma grande polêmica foi gerada com relação a este Acordo do Estado Brasileiro com uma determinada confissão religiosa. Apesar das justificativas apresentadas pelos representantes da hierarquia católica, dizendo que não se tratava de busca de privilégios institucionais e que este direito poderia ser estendido a todas as outras confissões (Rocha, 2009), o fato foi visto como um retrocesso grave, sobretudo, porque nenhuma outra confissão religiosa dispunha dos mesmos instrumentos jurídicos para um acordo internacional semelhante. Só a Igreja Católica tem um “Estado do Vaticano”. Viu-se no Acordo um grande número de entraves para a laicidade, a democracia, o pluralismo religioso. O princípio da laicidade passou a ser defendido por instituições que nem sequer concordam com a laicidade do Estado. Ou seja, religiões que em sua prática, em geral, mais se empenham por transformar o Estado Brasileiro em um Estado Evangélico, acabam defendendo a laicidade, para assegurar direitos nos quais se sentem lesadas.

É neste embate que foi gestada a Lei Geral das Religiões apresentada em 2009, por um Deputado Federal, Pastor da Igreja Universal do Reino de Deus (Igreja Neopentecostal). O teor principal desta Lei é tornar o conteúdo do Acordo em questão, extensivo às outras denominações religiosas. A busca ou defesa da laicidade está associada ao ataque à hegemonia católica e se persegue uma pauta de privilégios e de garantia de mais espaço no âmbito estatal. Segundo a pesquisadora Fischmann (2009) trata-se de uma “tentativa de corrigir um erro incorrigível” e acrescentar mais um erro, aniquilando de fato o campo público com a presença da disputa de grupos de interesses religiosos.

Mesmo que a polêmica faça sentido, existe um avanço importante na proposta da Lei Geral das Religiões, uma vez que supera o cacoete anterior de a Igreja Católica, usar e continuar usando a prerrogativa de seu domínio histórico e de sua força numérica para regulamentar em seu favor determinações genéricas na relação entre o Estado Laico e a esfera religiosa. Os mais prejudicados, em geral, sempre foram aqueles agrupamentos religiosos mais minoritários ou histórica e culturalmente colocados à margem.  Segundo Negrão (2008), este contexto de debates vem apontando uma nova perspectiva muito desafiadora para a compreensão do quadro global das relações entre Estado, sociedade e religião no Brasil.

Considerações finais

Concluindo este breve caminhar através de alguns apontamentos bastante conhecidos, mas carregando em si a pergunta sobre o papel da esfera religiosa em nossa sociedade e o desafio da complexidade sempre mais explícita do “mundo das religiões e religiosidades” em nossa sociedade, permanecem dois convites: Um primeiro diz respeito à não resolvida questão do ensino religioso ou da educação para as relações religiosas; um segundo diz respeito à nossa postura na academia, como cidadãos e cidadãs.

A pluralidade humana, que se expressa nas mais diferentes esferas do convívio social, se expressa, também, de maneira forte, na esfera religiosa. O ensino religioso e a respectiva educação para as relações religiosas nas escolas poderá ser, sem dúvida, um importante espaço para a cultivo da abertura para o viver plural e para evitar o crescimento de fanatismos. Este último, em geral originado de desinformação e cultivo estreito sem abertura de horizontes. O convívio com a pluralidade traz dentro dele três grandes espaços de fecundidade e de desafios: – O espaço do cultivo dos processos pessoais de identidade; – O desafio de um conhecimento mais consistente, valorizando as diversas formas de saber e rompendo velhos paradigmas, para além das disciplinas acadêmicas; – O desafio da cultura do diálogo e do reconhecimento do outro, do diferente.

Vivemos tempos muito favoráveis para o cultivo, daquilo que chamo de “processos de identidade”. No caso, estamos falando de “processos religiosos de identidade” ou “processos de identidade religiosa”. Fico impressionado, no meu dia a dia de professor, com o fato de, no meio universitário, não existir mais aquele temor que existia, por exemplo, no meu tempo de estudante, quando falar de religião era tabu e soava totalmente ridículo falar de suas próprias convicções e opções religiosas. Isto está radicalmente mudado. Os sujeitos assumem muito mais a sua relação com o transcendente ou, também, a sua postura de negação com relação às crenças religiosas, quando é o caso. Existe evidentemente, em tudo isto, o risco da rigidez nos posicionamentos e muita facilidade em resvalar para posições fundamentalistas e intransigentes.

Sempre costumo afirmar que o diálogo inter-religioso é a nossa tábua de salvação. A humanidade estará efetivamente dando a volta por cima quando aprender a dialogar nesta esfera onde, historicamente, se geraram os maiores fanatismos e intolerâncias.

A iniciativa de introduzir o “ensino religioso” nas escolas públicas estatais é uma iniciativa importante, mas infelizmente existe muita imaturidade política em nível governamental em diversos Estados e, sobretudo, um terrível despreparo das escolas e das professoras e professores. Sem um forte investimento no sentido de fazer do “ensino religioso” um efetivo espaço de educação para o pluralismo, estaremos perdendo uma chance ímpar na história deste país. Acredito num ensino religioso que seja uma efetiva “educação para as relações entre as diferentes crenças (descrenças) e práticas religiosas”. Nada melhor do que “sentar” ao redor da mesma mesa os diferentes conhecimentos (e crenças) no domínio religioso, seja pelo ângulo das diferentes ciências da religião, seja pelo ângulo de leituras teológicas e vivências espirituais. O papel da esfera religiosa é um papel chave nas sociedades de hoje, e isto se dá tanto no plano dos processos de identidade das pessoas, quanto no plano dos processos de conhecimento e dos processos de convívio cidadão.

O conhecimento exerce papel importante no processo de identidade religiosa. O que falta muito, em nossa sociedade, é conhecimento com relação ao mundo das religiões e das religiosidades. Infelizmente a história de nossa academia (das Universidades) está carregada por um positivismo obtuso que, de certa forma, entendeu que só o fato de falar da temática religiosa já manchava a pureza da ciência, sendo um assunto reservado às mentes menos esclarecidas. Este tipo de postura reflete uma espécie de “laicidade obscurantista”. Felizmente, existe atualmente um despertamento para o que se poderia denominar de “laicidade lúcida”, quando nossas academias começam a superar este tremendo preconceito, que muito mais do que preconceito é um prejuízo intelectual inominável do qual continuamos sendo vítimas.

Quero, neste sentido, manifestar o meu apreço ao antropólogo Otávio Guilherme Velho, o qual em uma entrevista para a Revista IHU On Line (apud Teixeira e Menezes, 2005) usou a palavra “humildade”. A partir da percepção deste antropólogo é fundamental que as ciências sociais e os estudos da sociedade no Brasil, mais do que nunca, se desfaçam de certos ranços que ainda dominam a academia brasileira, para assumir com humildade um olhar mais atento para a dimensão religiosa da sociedade, condição fundamental para uma compreensão em profundidade desta mesma sociedade.

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VELHO, G. (1987). Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar (1ª Ed. 1981).


Notas:

[1] Para distinguir laicidade de secularização utiliza-se, este artigo, importante relatório governamental canadense sintetizado em obra coordenada por Therrien, S. and others (2005).

[2] Através do Decreto nº 119-A de 07 de janeiro de 1890 redigido por Rui Barbosa o sistema de relação entre Religião e Estado foi transformado radicalmente. O Brasil deixou de ser um Estado confessional para ser um Estado laico, antes mesmo da primeira Constituição da República, redigida em 1891.

[3] Inspiro-me em Marcio Goldmann (2015) na utilização do termo “submersão”. Este autor se refere à prática de “submergir” como mecanismo de sobrevivência cultural para depois reemergir, em seus estudos de contra-mestiçagem e contra-sincretismo. O autor trata da relação “afroindígena”, mas podemos fazer ilações para as relações “afrocatólica” (ou “afroeuropéia”) e “espíritocatólica”, etc… O texto inspirador é a sua conferência no concurso para Professor Titular do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ.  http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p641 

[4] Muitos argumentos foram usados para justificar essas “recaídas”. Um deles é uma espécie de substrato cultural indicando a catolicidade como o “mais correto” para o Brasil, dado a sua história; outro também sempre foi o argumento estatístico. O que, no entanto, sempre mais pesou são os “espaços consideráveis nas áreas da saúde, educação, lazer e cultura” (Mariano, 2001, p. 146) que a Igreja Católica continuava e continua ocupando.

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