PREFÁCIO AO LIVRO ‘PRODUÇÃO DA SOCIEDADE’ DE ALAIN TOURAINE

(Edição revista e corrigida, Paris: Éditions du Seuil, 1993 – 1ª edição 1973)
Prefácio da segunda edição revisada, escrito pelo próprio autor.
(Tradução: José Ivo Follmann, setembro de 2003)

TOURAINE, Alain. Production de la Société. Paris: Éditions du Seuil, 1993

Prefácio da Edição Revisada 1993 (tradução para o português, por José Ivo Follmann)

Faz mais de vinte anos que este livro foi escrito. Ao relê-lo para a necessária depuração de coisas superadas em preparação a esta nova edição, eu o reconheço ao mesmo tempo tão próximo e tão distante que, colocado em comparação com o Crítica de Modernidade que acabo de concluir, me ponho a buscar aquilo que faz a unidade de minha vida intelectual através de seu movimento e talvez de suas mudanças.

Produção da Sociedade foi iniciado em Montreal em 1966 e concluído no início de 1973, em Châtenay Malabry, perto de Paris. Nele também trabalhei em Santiago do Chile e em Los Angeles. Ele pertence ao final do período da industrialização e da modernização, mas também a uma época de grandes conturbações sociais e políticas, de algumas das quais participei pessoalmente, como o movimento de maio de 1968 na França e o fim da Unidade popular e da democracia no Chile. Ele foi concluído em plena ruptura com o otimismo da reconstrução pós-guerra, quando triunfava uma visão puramente crítica das sociedades industriais e em que, paralelamente, as formas extremas, excessivas, da teoria da dependência recusavam, na América Latina, todas as possibilidades de mobilização popular e de reforma política.

Este livro, como todos aqueles que definem uma visão geral da sociedade, deve ser compreendido como interpretação de uma sociedade real e suas mudanças e como um combate contra outras interpretações, bem como um esforço de construção teórica. O seu título indica bastante claramente a sua linha geral: a sociedade – e não somente a sociedade moderna –, ela mesma, se produz, a partir de modelos culturais – o modelo de conhecimento, modelo de acumulação e modelo ético – que são, eles mesmos, ligados a um estado da produção e mais precisamente a um nível de historicidade, isto é, de capacidade de produção da sociedade por ela mesma. Esta interdependência do estado da produção e do trabalho, de um lado, e dos modelos de representação do mundo e do sujeito, de outro lado, é a ideia sobre a qual repousa este livro. É neste sentido que ele pertence evidentemente ao que se pode chamar de pensamento moderno, no qual a condição histórica dos seres humanos é afirmada.

Sua concepção de modernidade não é nem materialista nem idealista pois, se ela associa os modelos culturais e as formas de organização social a um estado da produção, está mostrando também que a organização social é comandada pela representação que os seres humanos fazem de sua própria criatividade em cada nível de modernização econômica e técnica. Esta concepção não define a modernidade pela secularização, mas pela substituição de um sujeito divino, projetado de fora da experiência humana, por um sujeito humano. A sociedade moderna é, antes de tudo, aquela onde o sujeito humano não se define mais por uma elaboração racional em acordo com as leis do universo, mas pela sua própria liberdade e pela sua responsabilidade com relação a si mesmo.

Esta orientação geral torna-se mais clara ainda quando se compreende que este livro combatia em duas frentes, às quais se junta hoje uma terceira. Menos diretamente, mas também tão claramente como Sociologia da Ação, escrito dez anos mais cedo, Produção da Sociedade combate primeiro contra a sociologia funcionalista que se pode chamar também clássica e da qual, durante meus anos de formação, Talcott Parsons, cujos cursos eu havia seguido em Harvard, era o representante mais criativo e mais influente. Para esta sociologia clássica que extrai as suas origens da filosofia política, de Maquiavel a Rousseau, o critério do bem e do mal é a função positiva e negativa de um ator ou de uma situação para a integração da sociedade. Proposição que toma uma forma particular nas sociedades modernas: é boa a conduta que aumenta a racionalidade do funcionamento da sociedade, má ou patológica aquela que atrapalha a obra da racionalização sobre a qual repousa a sociedade moderna. Hoje eu compreendo melhor do que em 1968 o interesse desta sociologia da modernidade e da racionalização que protege eficazmente contra os riscos dramáticos do voluntarismo revolucionário que expandiu regimes totalitários sobre a maior parte da Europa: é mais fácil definir o bem pela razão que pelo espírito de um povo, de uma comunidade ou de uma Igreja; mas eu me mantenho tão em oposição como então à ideia de que valores gerais fazem originar, se diferenciando, normas sociais. Ao contrário, eu acredito que entre as orientações culturais e a organização social estão localizadas as relações de dominação que são inseparáveis da orientação da historicidade, de seus instrumentos e de seus resultados. O que opõe a minha demarche à da escola funcionalista é a afirmação de que a produção da sociedade por ela mesma se realiza através de um conflito central, de sorte que a modernidade está sempre dividida entre adversários dos quais um não é guiado somente pela razão nem o outro somente pela tradição ou pela paixão.

Produção da Sociedade combate essa sociologia funcionalista cuja influência estivera diretamente ligada na Europa ao sucesso dos “trinta gloriosos” e ao triunfo da paz americana; mas ela se opõe também a um pensamento que iria conquistar uma verdadeira hegemonia depois de 1968, sobretudo na França e na América latina, e que constitui o oposto, mas também o complemento ao pensamento funcionalista. Para este pensamento, herdeiro de Nietzsche através de obras tão diversas como Althusser, Poulantzas e Foucault, seu desenvolvimento e influência maiores, a vida social não é senão o discurso da dominação, e o grande movimento de subjetivação, que define nossa modernidade individualista, não é senão a ilusão que disfarça a penetração do poder nos espíritos e nos corpos. Poder-se-ia falar aqui do funcionalismo crítico, já que é a lógica do sistema social que comanda e não a dos atores engajados nos valores culturais ao mesmo tempo que nas relações sociais conflitivas. Esta sociologia puramente crítica tinha uma fraca capacidade descritiva, para além dos estudos clássicos sobre a desigualdade social que não tinha tido necessidade deste quadro ideológico para se desenvolver, e de fato ela destruiu as pesquisas sociológicas mais do que as reorientou. Mas ela tinha fortes razões ideológicas para se expandir. A primeira, a mais positiva, era a de rejeitar o humanismo revolucionário que tinha alimentado os totalitarismos, desde o Arbeit macht frei – o trabalho liberta – inscrito pelos Nazistas na fachada do campo de Auschwitz até o pequeno livro vermelho de Mao, passando pelas declarações de Stalin sobre “o homem, o capital mais precioso”. A caça ao sujeito que devia tomar as formas mais arbitrárias durante os anos setenta e ter as consequências mais dramáticas nutrindo na América latina as guerrilhas fadadas ao fracasso, tinha no início uma função ideológica anti estalinista particularmente saudável num país como a França onde tantos intelectuais, mesmo depois de 1953, 1956 e 1968, permaneciam na dependência da ideologia comunista. A segunda, mais inquietante, correspondia a uma dissociação acelerada entre os intelectuais e o conjunto da sociedade. Enquanto a Europa, a partir dos anos sessenta, estava penetrada pela sociedade de consumo, criada bem mais cedo nos Estados Unidos, e que o liberalismo substituía o voluntarismo, os intelectuais, perdendo o seu papel crítico e reformador, se refugiavam numa contracultura definida pela ruptura – e não pelo conflito – com as orientações dominantes da sociedade. Tendência que estava já visível na escola de Frankfurt, mais animada pela nostalgia da razão objetiva e do Ser que pela análise do afundamento da Alemanha dentro do nazismo, mais antimoderno que capaz de separar a modernidade de suas perversões. O que reduziu durante um tempo a sociologia a um discurso somente crítico, a uma filosofia social de mais a mais afastada das mudanças observáveis e que parou de interessar, quando começou o grande movimento, real este, de destruição e de decomposição do sistema soviético. Contra esta filosofia social dominada pela nostalgia do passado, eu teria desejado que as práticas sociais impusessem na França e nos países vizinhos uma resposta para a qual o meu pensamento teria dado uma interpretação teórica. Esta é a razão para a qual eu me interessei de perto pelo movimento estudantil, americano e sobretudo francês, que devia conduzir o levante de maio 68 e em seguida ao que eu chamei de novos movimentos sociais, os movimentos de mulheres, as lutas regionais ou antinucleares, ao mesmo tempo em que eu reexaminava o movimento operário que eu havia já analisado em A Consciência Operária (1966). Um pouco mais tarde, talvez porque eu havia feito meus inícios de sociólogo na Hungria, que eu havia seguido com paixão a revolução húngara e o outubro polonês de 1956, depois a primavera de Praga em 1968, eu consagrei um estudo aprofundado ao Solidariedade cuja ação preparava e anunciava a queda do sistema soviético na Europa. Durante dez anos, com a ajuda de François Dubet, Michel Wieviorka e, no começo, Zsuzsa Hegedus, eu me consagrei a elaborar e a aplicar um novo método de pesquisa, a intervenção sociológica, para estudar estes movimentos sociais e históricos. Mas no início dos anos oitenta, eu devo reconhecer, não era nem a minha posição nem a dos meus adversários estruturo-marxistas que correspondia melhor ao espírito da época. Por tudo triunfou o liberalismo e o pensamento crítico se radicalizou ou se marginalizou num pós-modernismo que tinha as mesmas qualidades que a teoria crítica das gerações precedentes e um distanciamento ainda maior dos problemas sociais concretos.

Estes caminhos (rodeios) históricos me levaram a um retorno sobre mim mesmo, tornado mais doloroso pela doença e depois a morte de minha mulher que me havia feito viver em sua abertura aos outros e por sua arte de viver. Eu me perguntava mais diretamente que antes como separar todas as visões redutoras da sociedade: como se proteger de um lado do culto da sociedade e da vontade geral, que tinham também tantas vezes, de Rousseau ao leninismo, preparado os Terrores, exercidos em nome da razão e até da liberdade, e como separar, de outro lado, a imagem de uma sociedade inteiramente manipulada, super vigiada, máquina de reproduzir desigualdades e poderes, imagem tão estranha atribuída a uma sociedade, contudo em incessante transformação. Herbert Marcuse e Michel Foucault pensaram que dentro da sociedade moderna o poder cessa de estar no cume da organização social para se expandir por tudo, de sorte que as categorias das práticas do dia a dia dentro de uma sociedade são portadoras de repressão omnipresente, impõem a integração e a conformidade, organizam uma mobilização geral tanto mais eficaz quanto mais conseguir seduzir os homens em vez de somente lhes impor disciplina. Esta ideia é inaceitável: eu recuso a ideia que as categorias do poder se confundam inteiramente com aquelas da prática, que não exista mais questões em torno das quais adversários sociais disputam. Contrariamente eu afirmo com todo empenho em Produção da Sociedade, que existem em cada sociedade questões culturais comuns que formam um sistema de ação histórica, das quais se disputam o controle social pelas classes sociais definidas por seu papel de dominação ou de subordinação. Michel Foucault, me parece, esteve dividido, durante a última parte de sua vida, entre duas posições: às vezes ele tendia a ver em toda a organização social um sistema de super vigilância e de punição, o que o conduzia a não acreditar mais na existência de atores da mudança social e a se juntar a Marcuse que não acreditava na revolta dos excluídos;  mas por vezes, ao contrário, porque havia sido nutrido na tradição europeia de conflitos históricos, ele percebia a resistência e a revolta dos oprimidos e acreditava então na existência de possíveis atores. Quanto a mim que tinha descoberto a realidade social depois da Libertação, quando o movimento operário e os movimentos de libertação nacional agitavam as sociedades industriais e derrubavam os antigos impérios coloniais, eu não tinha nenhuma razão para renunciar à ideia de um conflito central, ideia essa que eu havia recebido da tradição social e intelectual do século XIX. O que me inquietava era sobretudo que este conflito podia conduzir à sua própria repressão, que a classe operária tinha sido demasiadas vezes representada e substituída por seus intelectuais orgânicos que, em nome do povo, da sociedade e da razão, impunham o seu poder não só às minorias dominantes, mas também à própria maioria. Me ficou sempre mais claro que o único fundamento sólido, inexpugnável, do conflito social e assim dos movimentos sociais de oposição era a defesa do indivíduo. Eu carregava com decisão esta ideia comigo, pois eu tinha sido formado em meus estudos por um pensamento liberal hostil ao poder e respeitador da liberdade de consciência acima de tudo. A Declaração dos direitos do homem e do cidadão estava há muito tempo afixada em meu gabinete de trabalho. Mas há uma outra tradição, que exerceu grande impacto em mim, a do cristianismo em que fui educado em que aprendi, de maneira definitiva, a jamais confundir o espiritual com o temporal. Sensibilizou-me sobretudo a ação da Vicaria da Solidariedade, os padres das periferias do Chile e inspiração cristã do Solidariedade, como os testemunhos, religiosos ou não, dos dissidentes russos, pelo muito de sacrifício e de revolta aceitos em nome da liberdade da pessoa humana e que estão no oposto do fundamentalismo religioso que defende o apoderamento total de uma Igreja e de um poder político sobre o indivíduo. Enfim e sobretudo, durante a sua longa doença, eu compreendi que Adriana, distinguida por nenhum título ou obra, era o mais humano dos seres humanos que eu havia encontrado, porque ela tratava os outros e a ela mesma como pessoa, ou como prefiro dizer hoje: como sujeito. Eu jamais cedi ao moralismo atrás do qual se esconde o conformismo social; ao contrário, eu aprendi a reconhecer nos movimentos sociais a defesa do direito de cada um, indivíduo ou grupo social, a escolher e a construir a sua existência, ao mesmo tempo a defender, se quiser, a herança cultural – língua, crenças, mas também criações es esperanças – daqueles dos quais ele se sente descendente. Até que eu identifico por completo o tema do sujeito e do movimento social, porque, desde os movimentos de cidadania e o movimento operário até os movimentos de libertação nacional e o movimento de mulheres, é bem o direito de ser sujeito, de não estar submisso a regras impostas ou a uma consciência alienada, que todos defendem.

Este é o caminho que eu percorri. Afastei-me de Produção da Sociedade, ou fui deixado próximo deste livro? A primeira alternativa aparece de cara; no entanto, eu escolhi a segunda alternativa, não sem reconhecer as mudanças advindas em vinte anos dentro de meu pensamento e de minha sensibilidade, melhor que modificação de meu olhar, o deslocamento do mesmo.

Posso eu hoje em dia dar tanta importância que ontem à construção dos conjuntos societais definidos em termos históricos, desses “sistemas de ação histórica” que correspondem aos modos de produção dos marxistas, tendo sido construído de maneira bem diferente? Cremos nós ainda hoje em dia na sucessão desses tipos societais ou das etapas históricas?  Nós rejeitamos em todo caso a ideia de uma evolução linear, de um progresso contínuo elevando a humanidade, para mais conhecimento, mais recursos técnicos, na direção de maior abundância e mais liberdade. Como se uma sociedade não estivesse definida senão pela sua capacidade de destruir a tradição e de se transformar. Nós conhecemos demasiados recuos ou voltas para trás, recaídas na barbárie, de orgulhos totalitários, de crises econômicas duráveis e fracassos do desenvolvimento econômico para aceitar ainda essa escatologia otimista do progresso. Existem, no entanto, duas maneiras de combater esta filosofia da história. A primeira, a que eu adoto em Produção da Sociedade e à qual permaneci fiel, consiste – sem rejeitar a ideia de progresso que defini como empreendimento crescente da sociedade sobre ela mesma, como a sua historicidade cada vez maior – em colocar o acento na estrutura de cada conjunto societal e, portanto, sobre os problemas específicos de cada um deles, o que substitui o evolucionismo pela análise comparativa dos tipos societais. A segunda é mais radical; ela substitui a ideia de progresso pela ideia de mudança, eliminando todo finalismo da evolução, salvo para reconhecer a complexidade crescente dos sistemas sociais e dos mercados. Muitos adotam hoje essa imagem neoliberal da mudança e, em lugar de compreender as condutas por sua pertença a um tipo de sociedade, têm a tendência de analisá-las como a busca racional de lucro (interesse) ou, mais frequentemente, como a gestão de recursos e de limites organizacionais ou, ainda, como parte de uma política, isto é: de um monitoramento das mudanças sociais. Contra este neoliberalismo hoje dominante, eu sustento particularmente que entramos – que já estamos bastante dentro – numa sociedade pós-industrial que eu chamo programada, definida antes de mais nada pelo lugar central que nelas ocupam as indústrias culturais – educação, saúde, informação -, e que é tão superficial não enxergar a sociedade de consumo dentro da vida social presente, como o seria não ver o reino da mercadoria nos tempos da revolução industrial.

É verdade que em 1973 a minha análise da sociedade pós-industrial se mantinha demasiado prudente, como ela fora nos meus livros precedentes: O Movimento de Maio ou o Comunismo Utópico (1968) e A Sociedade Pós-Industrial (1969). Sob as influências de sociólogos e economistas das grandes organizações e em particular de J. K. Galbraith, eu a definia então sobretudo pelo poder tecnocrático das grandes empresas privadas ou públicas e dos Estados considerados como organizações; é a imposição de um poder em nome da técnica que me impressionava sobretudo. É porque eu dei tanta importância à revolta dos estudantes contra o sistema universitário, o que correspondia também à preparação do movimento de maio em Nanterre no Departamento de Sociologia cuja direção eu assumia, o qual conhecera uma primeira greve no outono de 1967 e onde Daniel Cohn-Bendit defendia, com um talento e uma generosidade remarcáveis, ideias antiautoritárias, dirigidas tanto contra o sistema comunista como contra as instituições francesas. De fato, essa crítica anti tecnocrática, real e ativa, foi um momento de transição. Da mesma maneira que alguns anos mais tarde, o movimento antinuclear, ele também de orientação anti tecnocrática em sua componente mais avançada, como o demonstramos com F. Dubet, M. Wieviorka et Z. Hegedus em A Profecia Antinuclear em 1980, se decompôs rapidamente – não somente na França – para fazer surgir a ecologia política onde a crítica cultural anti industrialista avança sobre a crítica social.

É somente nos anos oitenta, quando o modelo de sociedade de consumo se impôs praticamente sem resistência à maior parte do mundo, que eu compreendi o lugar central que ali ocupava o temor justificado frente a um poder exercido sobre a produção e a difusão dos bens culturais, mais ainda que sobre a dos bens materiais. Hoje em dia, os problemas que levantam as maiores paixões são claramente aqueles que estão ligados ao poder da medicina, à destruição do meio-ambiente, à submissão dos programas de televisão a critérios comerciais, à ruptura entre escola ou universidade e a criação cultural ou a formação de projetos pessoais. A cultura tornou-se uma questão política: os defensores da sociedade de consumo como os seus contestatários falam uns e outros em nome do individualismo, mas os primeiros definem o indivíduo como um consumidor, os segundos como um sujeito construindo e defendendo a sua própria capacidade de ser um ator livre e responsável.

Esta formulação dos problemas da sociedade programada não é ela tão lenta e difícil com o foi, há um século e meio atrás, a descoberta dos da sociedade industrial? É esta analogia que me fez definir o movimento de maio como um comunismo utópico, mas ela é ainda mais útil hoje em dia, quando os novos movimentos sociais, intermediários entre a sociedade industrial e a sociedade programada, desapareceram e quando se formam os novos movimentos de opinião – que adquiram no caso da ecologia uma expressão política – os quais deslocaram o debate político do campo da propriedade e da organização do trabalho para o das indústrias culturais. Nos dois casos, industrial e pós-industrial, o que ficou por muito tempo oculto é a relação de dominação que se pode chamar de relação de classes. Em revanche, o que deve ser de toda forma eliminado – mas que nunca esteve presente no meu pensamento – é a ideia que certas forças sociais são portadoras do sentido da história, devendo então assumi-lo objetivamente. É por isso que eu cessei progressivamente de falar de classes sociais e substituí esse conceito pelo de movimento social, definido como a ação conflitual de um ator dirigente ou popular pelo controle social dos modelos e dos recursos de uma sociedade, isto é, de sua historicidade. No momento em que as classes sociais se definiam por uma herança cultural mais do que por um papel na produção, quando elas estavam separadas por barreiras difíceis ou impossíveis de passar, era normal que os contestatários chamassem à ação, à produção, contra a reprodução dos privilégios. Mas quando a produção, o consumo e as comunicações de massa quebram as velhas hierarquias sociais, quando o dinheiro se torna a medida de quase tudo, o que não elimina os mecanismos de dominação, mas somente os transforma, a contestação chama não mais à economia, mas à personalidade e à cultura, o que restitui vida a pertenças e particularismos que há pouco tempo pareciam não oporem ao progresso outra coisa que a resistência passiva das tradições. É porque o materialismo das antigas reivindicações pré-industriais e mesmo industriais é substituído pelo apelo à identidade, à liberdade e à comunidade também. É porque a ideia de classe social se dissolve, enquanto inversamente é reforçada a de movimento social. Certamente, classes e movimentos devem ficar associados pois um movimento social não é qualquer tipo de ação coletiva, não se reduz em particular a uma crise do sistema de tratamento dos conflitos. Ele coloca em jogo as relações de dominação e, portanto, as orientações culturais das sociedades. Mas é necessário opor movimento social e luta de classes, expressão que não incorporei em meu vocabulário porque ela reenvia a uma necessidade histórica, a leis do desenvolvimento da sociedade, cuja existência eu não reconheço. Produção da Sociedade se situa ainda dentro de uma concepção histórica herdada do século XIX, mas coloca em ação as ideias de historicidade, de modelo ético, isto é: de representação do sujeito, e de movimento social que não cessaram de receber reforços em meus livros posteriores. Na realidade, desde Sociologia da Ação e A Consciência Operária até os dias de hoje, eu não parei de dar um lugar central ao movimento social concebido como um ator histórico, isto é, como defensor do sujeito pessoal e coletivo contra os sistemas de dominação e de gestão. Desde meus primeiros estudos mostrei que o sindicalismo, longe de ter nascido da revolta do proletariado explorado, tinha se tornado um movimento social quando ele defendera a autonomia dos trabalhadores sobretudo qualificados, face à organização do trabalho, e eu falei, para defini-la, de consciência operária antes que luta de classes. O que me afasta de meu livro de 1973, é que ele identificou de forma demasiadamente completa o sujeito com a sua obra criadora e consequentemente à sua produção. Eu creio certamente ainda que essa ligação do sujeito à criação das obras é indispensável e que, se a gente o rejeita, toca-se rapidamente na exaltação de um povo e de uma comunidade e no culto do poder totalitário que ela traz nela mesma. Mas o declínio da sociedade industrial nos tornou também mais sensíveis à alienação do sujeito humano na burocracia, no poder dos Estados e das empresas, no discurso sobre a integração social e na própria exaltação da modernidade. Encontro-me hoje tão sensível ao “desengajamento” do sujeito como aos seus engajamentos, tanto à defesa da liberdade pessoal quanto à responsabilidade social. Sinto, no entanto, ainda mais uma vez, com mais força a permanência de meus temas fundamentais do que as modificações advindas em sua formulação, sem evidentemente subestimar as transformações que se fizeram necessárias pelo prodigioso revertério de situações, de ideias e de sensibilidades que vivemos nos últimos vinte anos. Nós saímos da sociedade industrial durante esse período confuso, mas decisivo que foi aberto em 1969 e que foi concluído em 1989, ano que permanecerá marcado como ano do fim das revoluções e das sociedades nascidas de sua crença na razão histórica. Eu acompanhei de perto esta grande passagem da sociedade industrial, capitalista ou socialista, para um outro tipo de sociedade, como no início do século XIX, nós tínhamos entrado num tipo de sociedade em ruptura com o (tipo) que nos havia dominado desde a Renascença até às revoluções inglesa, americana e francesa. No momento em que eu escrevia Produção da Sociedade, eu tive que opor-me ao materialismo histórico e ao seu determinismo econômico. Hoje em dia, eu recuso com todas as forças o neoliberalismo e a dissolução de todas as estruturas dentro da mudança. Contra o primeiro adversário eu insistia no ator social e na defesa de sua liberdade; contra o segundo eu lembro a existência de relações sociais de dominação inseparáveis dos conjuntos societais, das quais eles constituem uma das estruturas principais. Mas, esses dois combates foram e são travados em nome da mesma concepção de relações do indivíduo e da sociedade. Produção da Sociedade pertence à sociedade industrial de cuja criação acelerada após a Libertação eu gostei, mas, em seu quadro cultural e social, esse livro já buscava compreender as relações entre a produção da sociedade e a libertação do sujeito,  rejeitando ao mesmo tempo a ideia de um sujeito puramente interior, que não poderia se libertar senão como artista que rejeita os limites e as tentações da sociedade burguesa, e  a ideia oposta de um sujeito puramente histórico, identificado com seus trabalhos.

Hoje, ao republicar este livro, eu quero marcar antes de tudo a minha adesão à ideia da historicidade e minha oposição às ideologias que reduzem a vida social a um mercado. Já está mais do que em tempo que redefinamos os enjeux (questões: o que está em jogo) e os atores sociais de nossa sociedade; é urgente que interpretemos a sociedade de consumo não como um bazar, mas como um campo de novas relações de dominação e novas contestações. Eu só me inquieto (me interrogo) pela nossa capacidade de criar as ideias, os movimentos sociais e as formas de intervenção política que devem preencher o que era o conjunto múltiplo que constituiu a esquerda durante a sociedade industrial, o movimento operário e as ideias socialistas, hoje ultrapassados por outros modelos culturais e outros problemas sociais.

O que mais ameaça a humanidade (o mundo) hoje é a dissociação completa entre o mundo objetivo do lucro (do interesse) ou do mercado e o mundo subjetivo das crenças e das comunidades. Eu abordei muito mais diretamente esses problemas na terceira parte de Crítica da Modernidade, mas o Produção da Sociedade, dentro de seu rigor, e mesmo de sua rigidez, é uma chamada vigorosa e necessária a um dever maior da sociologia: compreender os conjuntos históricos, que não são somente situações, que são dramas vividos inventados e interpretados por atores. Tenho receio que nossas velhas terras, sobrecarregadas de história achem demasiado pesado para elas a tarefa de inventar o seu futuro e que elas se contentem em consumir a sociedade na falta de poder produzi-la, substituindo a oposição dos dominantes e dos dominados pela (oposição) da classe média e dos marginais, que suscita uma indignação moral, mas não leva a nenhuma ação de transformação social. Nós sofremos muito por causa das ideologias conquistadoras; não sofremos hoje o mesmo tanto por causa da boa consciência moralizadora e humanitária e de sua generosidade que não mexe em nenhum privilégio e assegura um sono sem pesadelos? Produção da Sociedade foi escrito nas suas partes essenciais logo depois da primeira grande derrocada da sociedade industrial no maio de 68. Um pouco depois, a economia em atraso, nesse caso, em relação às ideias, o fim do sistema monetário internacional, as crises do petrolíferas, o declínio das indústrias tradicionais e o ascenso de novas potências industriais constituíram a Europa e os Estados Unidos – afundados, depois na França, no Vietnam – num período vivido como crise. É então que se acelerou a decomposição do pensamento social, que se passou, em alguns anos, do radicalismo ideológico a um pós-modernismo em ruptura com a história. Breve interregno, rapidamente substituído pelo rápido empurrão de todos os países ocidentais na direção do liberalismo econômico, a limitação do Estado-providência, o recuo ou desaparecimento do movimento operário, até o desabamento do sistema soviético, simbolizado pela queda do muro de Berlim em 1989, marca a vitória aparentemente absoluta do modelo liberal que identifica a democracia a um mercado político aberto e de fato um atributo da livre economia. Não houve ainda tempo, depois deste período de liquidação dos projetos voluntaristas da industrialização, de a sociedade pós-industrial ou programada tomar pé no continente e de nos darmos conta de que a nossa história desde vinte anos foi a de deriva misturada com descobertas, tão incerta quanto a navegação de Cristóvão Colombo, há quinhentos anos, mas que nos fez atravessar o oceano que separa o velho mundo, o da sociedade industrial, do novo mundo, o da sociedade programada. Produção da Sociedade é um farol sobre a costa do continente industrial do qual nos afastamos; vinte anos depois, venho de erguer um outro farol sobre a costa do continente pós-industrial, mas, quando olho na direção do velho farol, reconheço nele a mesma mensagem que no novo. Necessitamos hoje em dia, tanto de imaginar um futuro, quanto de nos lembrar de um passado, para escapar das ilusões e dos delírios de um presente sem rumos e sem sustentos. Produção da Sociedade não só nos informa sobre o que foi a sociedade industrial; ele nos lembra também o que é um pensamento da história e, portanto, o que é um ator histórico, livre e responsável de sua vida pessoal e da vida coletiva.

Mas é verdade que nós não podemos abordar o novo continente com um espírito de conquista. Há muito tempo não acreditamos mais que a força de nossas técnicas crie abundância, liberdade e justiça. Nosso temor está na destruição que toda a produção traz consigo. Às vezes até pensamos que é preciso chegar de novo ao equilíbrio depois de alguns séculos de progresso. Ilusão perigosa e egoísta, porque essa parada no crescimento não serviria senão aos ricos e não deteria os desgastes do progresso. Mas nós aprendemos a não mais confiar cegamente no desenvolvimento das “forças produtivas”, a compreender as tensões e às vezes as contradições entre a organização social racionalizada e a liberdade ou a criatividade individuais e coletivas. É esta inquietude, são estes atormentamentos que faltam no Produção da Sociedade, que está ainda demasiadamente carregado pela confiança no trabalho, na produção, na modernização acelerada da época industrial.

Eu não quis modificar esse livro escrito no final da primeira metade de minha vida intelectual; contentei-me em torná-lo mais leve, suprimindo as análises que não se tinham revelado fecundas, ou que eu mesmo não tinha tido ocasião de desenvolver. Mas se eu tivesse querido modificar este livro, eu o teria tornado sobretudo mais inquieto, não no sentido cético, não no sentido pós-moderno ou pós-histórico, mas mais sensível às imensas zonas de sombra de dentro das quais se volve o olhar hodierno atraído pelas luzes do consumo. O leitor, no entanto, se ele for atento, encontrará mais sombra e mais protesto em Produção da Sociedade que não o deixem prever algumas fórmulas que parecem emprestadas ao otimismo evolucionista do século XIX. Eu recordo: esse livro nasceu do movimento de maio de 1968 mais do que da grande modernização dos anos cinquenta e sessenta. Mas o essencial a meu ver hoje é o de ver constituir-se, para lá da crise do otimismo ocidental, como para além do esgotamento de um pensamento puramente crítico, e contra as ilusões da sociedade de consumo, novos enjeux (questões: o que está em jogo) e novos atores sociais. Quando eu falei da sociedade pós-industrial desde o final dos anos sessenta, em termos bem diferentes dos de Daniel Bell, muitos consideraram que se tratava de sociologia-ficção. Hoje, nós estamos dentro da sociedade programada e consequentemente nós temos urgentíssima necessidade de categorias que permitam a análise desse novo tipo societal. A sociologia perde a sua razão de ser se ela cessa de compreender a história. Ela foi sempre, desde a sua pré-história, desde Tocqueville e Marx e mais ainda seus grandes fundadores, Durkheim e Weber, uma reflexão, ao mesmo tempo inquieta e confiante, sobre a modernidade. Eu compreendo que em plena crise da historicidade ela se tenha totalmente voltada sobre o estudo de um ator desorientado, privado de sentido, dentro de uma situação onde desaparecia toda a correspondência entre o ator  e o sistema, e dimensiono perfeitamente a importância da obra de Ervin Goffmann, mas considero como mais importante ainda reencontrar o sentido de uma experiência histórica que se transformou tão rapidamente que os antigos instrumentos de descrição e análise parecem ter perdido  toda utilidade. O que impõe restabelecer a comparação com a consciência histórica passada, não para fazê-la reviver, mas para tomá-la como modelo de análise ao mesmo tempo que para libertar-se dela historicamente. Se eu republico, hoje Produção da Sociedade, é para chamar para a reconstrução de uma sociologia do ator histórico sobre o novo continente onde atracamos (abordamos) e onde nós devemos o mais depressa possível aprender a nos orientar, a organizar nossa vida coletiva e a limitar o mais possível as desigualdades e as injustiças que acompanham as grandes descobertas.