PASTORAL DA UNIVERSIDADE: UMA COMPREENSÃO SOCIOLÓGICA

José Ivo Follmann sj

(Sacerdote Jesuíta, Doutor em Sociologia pela Université Catholique de Louvain, Bélgica, Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas (Mestrado e Doutorado) da UNISINOS, Coordenador do Programa Gestando do Diálogo Inter-Religioso e o Ecumenismo – GDIREC, do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e Diretor do Centro de Ciências Humanas da UNISINOS. (UNISINOS, junho de 2003)


Foi-me solicitado fazer uma leitura sociológica dos Relatórios da Pastoral da Universidade apresentados pelas equipes das diversas Instituições de Ensino Superior da Região Sul. Agradeço o convite e peço desculpas se não consigo atender plenamente àquilo que os organizadores imaginavam, ao solicitar uma avaliação a partir de uma “compreensão sociológica”.

Antes de iniciar a minha “leitura” propriamente, tomo a liberdade de fazer três observações introdutórias:

  • A sensação que eu tenho, (e isto se repete todas as vezes que participo em reuniões ou encontros como este), é que o bom desses momentos é o grande enriquecimento mútuo que eles proporcionam. Independente das construções conjuntas e coletivas que intentamos ensaiar, a oportunidade de podermos nos escutar mutuamente já tem o seu valor em si.
  • Alguém falou, no início do encontro, da importância de se fazer permanentemente releituras hermenêuticas, no sentido de avançarmos na compreensão contextuada de nossa prática. Eu entendo que, aqui, estamos fazendo, efetivamente, uma releitura hermanêutica coletiva. Sinto-me muito bem com isso.
  • Não me senti muito à vontade, no entanto, ao receber o convite para prestar uma “assessoria sociológica” com a informação de que haveria, além desta, mais uma assessoria pedagógica, uma assessoria filosófica e uma assessoria teológica. O seccionamento do conhecimento que esse tipo de encaminhamento sugere, apesar de não ser a intenção da equipe organizadora, é algo muito complicado. Por isso entendi o convite como sendo o convite para uma reunião na qual haveria a presença de um sociólogo, de uma pedagoga, de um filósofo e de um teólogo que, juntos, prestariam uma assessoria… É isto? Aliás nem sei se ainda sou capaz de assessorias sociológicas… O certo é que, o que aqui estou colocando, não deve ser considerado como simplesmente sociológico, pois os meus questionamentos e as minhas percepções colocam-se, em muitos momentos, além ou aquém da sociologia, se este tipo de “localização” ainda faz sentido…

Dito isto, vou apresentar a minha “leitura” dividida em quatro grandes pontos ou quatro grandes aproximações:

  1. Em uma primeira aproximação ampla, a partir da observação dos relatórios das atividades pastorais das três Universidades aqui presentes, devo destacar os seguintes aspectos:
  • Busca de um envolvimento nos grandes debates da sociedade hoje;
  • Realização de reflexões envolvendo o debate fé e cultura;
  • Empenho por prestar serviços de assistência social e de acolhimento;
  • Visibilidade de serviços litúrgicos e sacramentais.

Considerando estes quatro aspectos, uns mais presentes numa realidade, outros mais presentes nas outras, podemos estabelecer interessantes perfis comparativos das três maneiras de fazer e pensar a Pastoral da Universidade, das Instituições aqui presentes. É um exercício que podemos fazer em conjunto.

  • Em segundo lugar, sinto-me convidado a fazer algumas aproximações de semelhança entre as atividades de pastoral nas três Instituições, que, na minha percepção, são semelhanças claramente evidentes:

2.1) As três Instituições mostram uma linha de atividade comum, que poderíamos denominar “encontros de espiritualidade”. Enquanto na UNISINOS se fala em Exercícios Espirituais de Santo Inácio, como “Retiros na Vida” e outros; na UCPel temos o assim chamado “Maná” e outras formas; na PUC-RS existem os retiros de pastoral e os retiros de aprofundamento.

2.2) A questão do diálogo inter-religioso e da abertura ao diverso está também muito presente nas três Instituições: enquanto na UNISINOS existe um programa bastante consolidado denominado “Programa Gestando o Diálogo Inter-Religioso e o Ecumenismo” (GDIREC); na PUC-RS existem diferentes iniciativas neste sentido, destacando-se o Projeto Alfa/Omega e o Projeto Meditação Oriental; também na UCPel essa preocupação não está ausente.

2.3) Chamou muito a nossa atenção o fato de as três Instituições se envolverem com projetos de gerar amplos debates sobre a teologia hoje ou a vida de fé hoje. Enquanto a UNISINOS está preparando um grande evento internacional, pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a realizar-se em maio de 2004, com o título: “Simpósio Internacional sobre Teologia e Universidade: Novos Desafios para o Século XXI”, a UCPel está com um evento previsto para setembro deste ano, com o título: “II Simpósio Transdisciplinar Ciência e Deus no Mundo Atual”. Isto tudo está em profunda consonância com as “semanas de reflexão” que a PUC-RS promove com os seus professores colocando na pauta a discussão sobre “fé e ciência”.

  • Um terceiro ponto, que eu gostaria de destacar aqui, diz respeito ao cerne do que está em questão neste Encontro… Trata-se da equação Universidade (substantivo) católica (adjetivo), que alguém mencionava bem no início deste nosso Encontro. É, sem dúvida, uma chave fundamental para uma boa compreensão da Pastoral da Universidade ou da idéia de uma Universidade em Pastoral. Às vezes parece que se recai no velho vício medieval de querer como que atrelar o ser universidade ao ser católico, ou seja, busca-se inverter a equação…

3.1) Temos que levar a sério o desafio de ser efetivamente Universidades e excelentemente Universidades, com tudo o que isto envolve em termos de seriedade acadêmica e de compromisso público. Por falar em compromisso público, é oportuno lembrar que, mesmo que as nossas Universidades sejam de iniciativa e gestão privada, elas atuam de fato num campo que é de serviço público. Nós temos que prestar contas à sociedade pela seriedade desta nossa participação no serviço público.

3.2) Temos que levar a sério o desafio de ser efetivamente Universidade católica, assumindo a confessionalidade como adjetivo e não como mero complemento anexo. Ou seja, a orientação cristã, que consubstancia essa confessionalidade, deve ser inerente ao “que fazer” universitário, ajudando a garantir a seriedade acadêmica e o compromisso público. Devemos constantemente buscar responder à questão: por que, para nós cristãos, faz sentido e é importante o empreendimento universitário, enquanto realização da seriedade acadêmica e prestação desse serviço público à sociedade.

  • E, assim, aprofundando esta linha de reflexão, chego ao meu quarto ponto, com um convite para olharmos para o objetivo que a Pastoral da Universidade no âmbito da ABESC se propõe: “Construção de um sujeito histórico comprometido político, cultural e profissionalmente com a mudança da realidade social, a partir de valores e princípios cristãos”. Quero sugerir o seguinte caminho de reflexão, inspirando-me em um texto do Planejamento Estratégico da Associação das Universidades Jesuítas da América Latina (2001-2005), com a formulação de três perguntas:

4.1) Em nosso “que fazer” universitário, a primeira pergunta sempre deve ser: Que sociedade queremos? Destacando-se que as Universidades existem, como eu disse acima, como um serviço público à sociedade. Não podemos perder isso de vista. Quem se envolve nesse serviço deve, em primeiro lugar, prestar contas à sociedade. Nunca no entanto devemos esquecer que o ideal de sociedade de uma Universidade católica e de orientação cristã, é baseado nos princípios da justiça evangélica.

4.2) Uma segunda pergunta naturalmente se seguirá: Que sujeitos formar para essa sociedade que queremos? Destacando-se que, hoje, mais do que nunca, os estudantes necessitam que sejam cultivados, neles, valores que os chamem a serem sujeitos capazes de assumir responsavelmente a construção da sociedade. Eles necessitam, para tal, vivenciar, em nosso meio, uma efetiva formação integral.

4.3) E a terceira pergunta, consequentemente, nos fará voltar o nosso olhar para as Universidades enquanto tal: Que Universidade para formar esses sujeitos? Destacando-se a necessária atenção a três aspectos: a clara explicitação de nossa identidade cristã; a permanente avaliação e atenção à qualidade acadêmica de nossas Universidades; a um redobrado empenho por uma ação sempre mais partilhada, em rede, das Universidades católicas e de orientação cristã.

Seguindo essas perguntas e procurando respondê-las nesta ordem, teremos certamente um bom caminho para darmos conta da pergunta central, que move este encontro: A Pastoral em nossas Universidades está adequadamente estruturada e orientada de forma coerente em suas ações?

Em síntese, devemos desdobrar esta pergunta central, em três grandes perguntas: a) a nossa orientação cristã exige que tipo de sociedade, ou seja: como é uma sociedade, que queremos, coerente com os princípios cristãos? b) que sujeitos nós devemos formar em nossas Universidades, que tenham condições de protagonizar este tipo de sociedade? c) como devem ser e agir as nossas Universidades para que efetivamente proporcionem a formação deste tipo de sujeitos?

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Esses são os quatro pontos que eu tinha a sugerir, neste início de conversa para a nossa “assessoria sociológica”… Sintetizando: primeiro apontei alguns aspectos a destacar para estabelecer um perfil comparativo entre as três Instituições; em seguida identifiquei três importantes convergências por mim percebidas; em terceiro lugar retomei a equação Universidade (substantivo) e católica (adjetivo); e, por último, recordei o objetivo da Pastoral da Universidade no âmbito da ABESC, para sugerir um caminho de reflexão.

Antes de concluir queria, no entanto, ainda sublinhar algo que entendo de fundamental importância, apoiando-me na fala da Professora Flávia, que me precedeu: Se levarmos a sério a constatação de que a maior parte de nossa aprendizagem não se dá pelo sentido da audição, mas por outros sentidos, é, sem dúvida, urgente que os ambientes de nossas Universidades e as suas estruturas, sejam efetivamente coerentes com aquilo que é pregado. Ou seja, os ambientes e as estruturas fazem parte da Pastoral da Universidade ou da, assim chamada, “Universidade em Pastoral”.

A IMPORTÂNCIA DO DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO E O FUTURO DO MUNDO DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES

Pe. José Ivo Follmann sj, 15/09/2002

Palestra proferida em Encontro dos Ex-colegas do Colégio Santo Inácio, Salvador do Sul.

“Alarga o espaço da tua tenda, estende as cortinas das tuas moradas (…), alonga as cordas, reforça as estacas” (Isaías, 54,2).

O Diálogo inter-religioso é, sem dúvida, um dos temas mais instigantes e que porta uma profunda incidência no presente e no futuro da humanidade. Já passou o tempo em que falar de religiões e de religiosidades era considerado coisa do passado ou coisa de gerações vencidas e de contextos sócio-culturais anacrônicos. O mundo continua habitado pelo religioso. Mudou a “forma de habitar”, e o “habitante” assumiu novas formas, mas ele continua presente e muito visivelmente presente.

Não é a minha intenção fazer aqui uma leitura histórica das mudanças no “mundo das religiões e das religiosidades” ao longo dos tempos, mas é importante que a nossa reflexão tenha presente em seu horizonte, por um lado, a distinção entre os “tempos pré-modernos”, os “tempos modernos” e os “tempos pós-modernos” no que diz respeito ao “mundo das religiões e das religiosidades” e, por outro lado, a mistura e simultaneidade desses três “tempos”, constatável em grande parte das manifestações desse “mundo das religiões e das religiosidades” em nossos dias.

A abordagem que eu me proponho a fazer é sociológica (talvez de uma Sociologia mais militante do que acadêmica), procurando apontar algumas notas sugestivas para um roteiro de reflexão, cuja complementação e efetivação compete, a rigor, a cada um dos leitores e das leitoras, dentro da medida de seus conhecimentos pessoais, de suas percepções e, também, de sua vivência religiosa.

Enquanto contribuição para o nosso encontro de ex-alunos do Colégio Santo Inácio, Kappesberg, o texto se justifica, não só pela atualidade do assunto, mas, sobretudo, porque a Missão da Companhia de Jesus, hoje, tem no diálogo inter-religioso um de seus pilares centrais e traz uma muito significativa contribuição para uma nova compreensão deste diálogo ao situá-lo de forma integrada com o serviço da fé, a promoção da justiça e o diálogo entre as culturas.

Colocado este horizonte de leitura, vamos ao nosso tema: “a importância do diálogo inter-religioso e o futuro do mundo das religiões e das religiosidades”.

Os grandes desafios vividos pela humanidade em sua paradoxal “homogeneização e diversificação”, neste início de um novo século e de um novo milênio, lançam interrogações específicas para a compreensão do “mundo das religiões e das religiosidades”. A contribuição da Sociologia (ao lado de outras Ciências Humanas) faz-se importante na medida em que ajuda a contextualizar esse fenômeno, fornecendo, também, chaves para a sua interpretação e para a ação concreta visando o presente e o futuro.

Nunca se falou tanto em diálogo inter-religioso e nunca a humanidade foi tão interrogada sobre as guerras religiosas. Nunca também o “mundo das religiões e das religiosidades” mostrou tanta complexidade. Nunca as suas semelhanças e as suas diferenças foram tão conhecidas.

O enorme debate gerado a partir do atentado ao World Trade Center (WTC), nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, aguçou radicalmente esta temática. A religião e os fundamentalismos religiosos tornaram-se matéria de divulgação diária em grande parte dos meios de comunicação. Muitos espaços, normalmente fechados para a divulgação de assuntos ligados à religião, abriram-se para esse debate, oportunizando, inclusive, preciosas e importantes reflexões de estudiosos das religiões, bem como, manifestações muitas vezes esclarecedoras de renomados líderes religiosos. Isto foi perceptível, inclusive, ainda neste ano, no entorno da memória do primeiro aniversário daquele impactante acontecimento.

O presente texto é construído de uma maneira muito simples, em três momentos, tendo presente três grandes centralidades de referência, com as quais procuro trabalhar em minhas abordagens sociológicas, que podem ser expressas aqui, da seguinte forma: 1) “as religiões e as religiosidades em sua significação social”, 2) “o campo religioso propriamente dito” e 3) “as implicações da dinâmica pessoal dos sujeitos religiosos”.

1) Voltando o nosso olhar para “as religiões e as religiosidades em sua significação social” colocamos a questão da mútua repercussão no processo social como um todo e a existência ou não de diálogo inter-religioso. As religiões e as religiosidades são vistas em sua participação na construção do todo, ou seja, a atenção do estudioso ou do observador volta-se para o grande processo social, que pode ser definido como a produção da sociedade por ela mesma, e as religiões e as religiosidades, como participantes ativas (produtoras) e passivas (produzidas) dentro deste processo. Pelo lado da participação ativa, pode-se dizer, por exemplo, que o diálogo inter-religioso é, sobretudo, escola de cidadania e que os integrismos e fundamentalismos são fonte de destruição social e de guerra. Como também, por outro lado, o contexto social, cultural e político repercute, em geral, diretamente nos modos de ser do “mundo das religiões e das religiosidades”. Hoje, segundo alguns analistas, existe um processo de “DES-moralização” das religiões, na medida em que entram no mesmo jogo de mercado imposto pelo contexto. Somente a existência de uma boa cultura de diálogo inter-religioso poderá “RE-moralizar” as religiões, ajudando-as a preservarem as suas missões fundamentais. A “promoção da justiça” nas sociedades, certamente, estará facilitada na medida da existência deste verdadeiro diálogo.

2) O nosso segundo olhar volta-se para “o campo religioso propriamente dito”. Talvez aí estejamos frente a um dos aspectos mais sérios a ser considerado. Estou falando diretamente dos conflitos internos ao próprio campo religioso. Trata-se do nível institucional e inter-institucional. O campo religioso é considerado como um dos campos mais contaminados pela disputa institucional, mesmo que isto seja muitas vezes bastante invisível. Isto torna-se facilmente compreensível, quando levamos em consideração que se trata de confronto de “convicções”. Segundo Paul RICOEUR (1995, p. 183) “não admitimos facilmente que aqueles que não pensam como nós tenham o mesmo direito, que temos, de professar suas convicções porque, pensamos, isso seria dar um direito igual à verdade e ao erro”. Muralhas institucionais são criadas para proteger a “verdade” do “erro”. Enquanto essas muralhas não forem transformadas em paredes com muitas janelas e portas, as religiões estarão longe de se ajudarem mutuamente a encontrar as suas identidades e as suas fecundas e fecundantes diferenças. O campo religioso permanecerá, hoje e no futuro, um campo de grande significação social e cultural, na medida em que não precisarmos identificar em primeiro plano a sua marca conflitual característica, mas a sua busca de diálogo. O campo religioso poderá ser testemunho de diálogo cultural e, por que não, testemunho de democracia.

3) O terceiro olhar que quero apontar (para nossa reflexão) refere-se à própria vivência pessoal da fé, enquanto tal. Estamos aqui referindo-nos ao nível mais profundo, que é o nível da própria prática religiosa, da vivência de fé. Em alguns contextos é bastante visível, hoje, a existência de instituições religiosas ou religiões preocupadas quase que exclusivamente com a vinculação e fidelização das pessoas às suas propostas institucionais. O empenho por ajudar as pessoas a despertarem efetivamente para uma fé sólida e comprometida fica, nestes casos, em segundo plano, quando não totalmente ausente. Ou então, se olharmos pelo lado dos próprios sujeitos individuais, é comum constatarmos a existência de práticas religiosas repetitivas e vazias, contribuindo unicamente para a sobrevivência institucional, quando não voltadas basicamente para a satisfação social ou atendimento a carências psicológicas imediatas. Esta constatação não pode ocultar, no entanto, a existência (crescente!, segundo alguns) de práticas de uma fé constantemente alimentada e cultivada dentro das perspectivas de adesão e convicção pessoais. Seria importante podermos testar a hipótese de que, hoje, nas religiões instituídas, em geral, a prática de adesão pessoal passa a ganhar terreno sobre a prática de rotina ou de conveniência social e institucional. De todas as formas, uma coisa é certa: é na busca do cultivo autêntico da fé, independente da orientação ou vínculo religioso, que encontramos os melhores elementos para uma maior substanciação e fundamentação do sujeito cultural e cidadão que somos.

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Como podem perceber, coloquei três grandes frentes de desafios para a nossa reflexão sobre o diálogo inter-religioso. São desafios que aparecem, de uma forma ou outra, nas mais diferentes abordagens sobre a temática: 1) A responsabilidade cidadã dos que vivem uma religiosidade ou integram uma religião, no sentido de serem efetivamente forças de agregação social e não de desagregação social, sendo protagonistas de promoção da justiça e de uma cultura de paz e diálogo e não de uma cultura de guerra e discórdia. 2) A responsabilidade institucional das religiões pelo cultivo de uma cultura de diálogo profundo entre elas para somarem forças e não desperdiçarem as suas forças em divisões e mútuos combates ou medos sem sentido. 3) E, sobretudo, nos dias de hoje, a responsabilidade dos que desenvolvem uma religiosidade ou dos integrantes das religiões, de cultivarem profundamente os seus valores e a sua fé dentro de um mundo e de uma humanidade tremendamente esvaziada de sentidos.

Por falar em cultivar os valores e a fé, deve-se lembrar aqui que muitas vezes se pensa que o diálogo inter-religioso ou o ecumenismo não passam de mecanismos para unificar artificialmente e matar a diversidade. Isto certamente seria um grande risco, caso não houvesse um autêntico processo de diálogo, mediado por um perfeito casamento entre humildade, convicção religiosa e abertura à verdade. O diálogo só existe quando se fala de igual para igual. É importante que se perca os medos e que aconteça a aproximação. Só assim, no conjunto, se terá mais força. É importante que a identidade de cada um seja preservada e reforçada, mas é também importante que haja uma grande aproximação uns dos outros, pois assim haverá mais oportunidades de se desfazerem os medos mútuos e uma maior percepção de que o outro não é tão perigoso como sempre o imaginamos. Isto também ajudará a que se percebam os diferentes “tempos” do “mundo das religiões e das religiosidades”, os quais se misturam, às vezes, num mesmo indivíduo ou grupo, onde traços de “pré-modernidade”, de “modernidade” e de “pós-modernidade” sobrepõem-se. Esses diferentes “tempos” devem ser reconhecidos e respeitados.

O “mundo das religiões e das religiosidades”, na sua rica diversidade, faz sentido no presente e no futuro, na medida em que, além de sua inequívoca vocação de proporcionar as religações com o Transcendente, o ser e o agir da humanidade puderem encontrar nele, e em seu multicolorido harmonioso, fonte de paz e de inspiração para o diálogo e para a justiça.

A Terra de Santa Cruz, 500 anos depois…*

– Palavras de apresentação do Caderno –


* O artigo é uma recomposição de aspectos presentes de forma dispersa em quatro artigos anteriores “O Mundo das Religiões na Terra de Santa Cruz” (Jornal Adunisinos, n.19, agosto, 2000),  “Igreja e Missão na Cidade” (Rev. Renovação, 1997),  “O Mundo das Religiões e da Religiosidade; novos desafios para o diálogo inter-religioso” (Re. Notícias Jesuítas, 2000), “O Mundo das Religiões no Município de Cachoeirinha” (Cadernos de CEDOPE, n. 14, 2000).

José Ivo Follmann

(Doutor em Sociologia, Padre Jesuíta, Diretor do Centro de Ciências Humanas)

O Texto:

Tendo sido solicitado pelo Jornal da Associação dos Docentes da UNISINOS, para fazer uma breve reflexão sobre os “500 anos de Brasil, sob o ponto de vista da evolução do fenômeno religioso”, eu escrevi o seguinte:

“No dia 1º de maio de 1500 ergueu-se na praia de Porto Seguro, Bahia, uma grande cruz de madeira e nossa terra foi denominada de “Terra de Santa Cruz”. A colonização portuguesa do Brasil deu-se sob o signo da “cristandade”, isto é, “unidade dos povos e países cristãos em torno de interesses religiosos e políticos comuns, sob a hegemonia da Igreja católica”. (DEL PRIORE, 1994, p. 7)

O Brasil normalmente foi e é conhecido como um “grande país católico” ou o “grande país católico”. Esta característica, que trazemos de nossa história, tem a ver diretamente com o empreendimento colonizador português, parte de uma fantástica política civilizatória onde interesses econômicos, políticos e religiosos caminhavam juntos. “Acreditava-se estar promovendo o verdadeiro bem das regiões colonizadas. O catolicismo era uma espécie de motivação presente na ação do Estado português. Colonizar e evangelizar eram encarados conjuntamente”. (MACEDO, 1989, p. 30)

Mas este “grande país católico” não é de fato tão católico assim. Ele é mesmo um “grande cadinho religioso” quando não uma “grande bricolagem” … Por um lado, isto tem muito a ver com o próprio processo de colonização ou de evangelização católica sob o signo da colonização. Este processo deu-se em grande medida sob o signo da dominação, gerando um forte caldo represado de cultura de resistência. Por outro lado, tem a ver também com o fato de que mais do que nos outros campos, no campo religioso, o ser humano manifesta-se como agente ativo na construção da realidade simbólica, a partir de sua experiência pessoal e social. Assim, as diferentes situações vividas geram constantemente formas novas de apropriação das crenças e práticas religiosas na busca de respostas às necessidades espirituais e materiais.

Os 500 anos de Brasil, desde o início da colonização portuguesa, foram 500 anos processados sob o signo paradoxal da destruição e da construção religiosa. A dominação colonial dentro do projeto de “cristandade” desrespeitou, às vezes, até ao aniquilamento total, outras culturas e tradições religiosas. O nosso colega professor Attico Chassot desafia-nos, constantemente, a tentarmos lembrar (inutilmente!) o nome de algum de nossos antepassados “brasileiros” de antes da chegada dos portugueses… Nós, hoje, 500 anos depois, nos perguntamos sobre o que sabemos das religiões dos povos que aqui viveram e que, aos frangalhos, sobrevivem… Muito pouco! Esta é a nossa resposta. Além de nossas frases prontas, aprendidas nas escolas e revestidas de preconceitos de superioridade colonial, muito pouco sabemos. Grandes esforços são feitos hoje para reconstruir algo a partir dos fragmentos que ficaram.

Semelhantemente ao que se deu com os povos indígenas, as religiões cultivadas pelos milhões de negros, trazidos escravos da África, foram cruelmente anuladas, tendo que sobreviver na clandestinidade. Hoje exultamos: “Bendita clandestinidade!”

A história, aliás, é pródiga em ensinar-nos que o ser humano não se deixa aprisionar, nem mesmo pelas civilizações mais poderosas. Neste nosso Brasil, 500 anos depois do início da colonização portuguesa, crenças antigas e tradicionais dos povos indígenas reencontram a sua legitimidade e, mais do que nunca, as religiões de raízes africanas passam a ter visibilidade na sociedade.

Hoje ainda se ouve de vez em quando alguém dizer que a religião oficial do Brasil é a católica… Isto, obviamente, não é verdade! O Brasil deixou de ser um país oficialmente católico em 1889, com a separação entre Estado e Igreja. Foi uma das muitas coisas boas da República! A partir desse ato de separação entre o Estado e a Igreja, abriu-se o espaço para a liberdade de expressão religiosa. As Igrejas Evangélicas, já presentes em grande parte acompanhando levas de imigrantes, ou então por iniciativas missionárias heróicas, passaram a ter a sua presença legitimada, apesar dos grandes esforços que a Igreja Católica fazia para estabelecer limites legais a isto. O meio evangélico hoje, 500 anos depois da declaração do Brasil como país católico, apresenta em geral um grande dinamismo, destacando-se em especial a sua vertente pentecostal. Esta vertente demonstra uma crescente expansão, sobretudo, através da versão neo-pentecostal. Ao lado do forte esquema de pertença e de fidelidade doutrinal, bem disciplinado, nas Igrejas pentecostais mais antigas, como as Igrejas Assembléia de Deus, a Congregação Cristã do Brasil e outras, pode-se observar de mais a mais o fenômeno da oferta e procura da “cura divina” e atenção às necessidades imediatas mais diversas, que se acentua particularmente através de Igrejas mais recentes, como a Igreja Universal do Reino de Deus e outras, que passaram a ser conhecidas como neo-pentecostalismo.

A expansão religiosa não foi só por fora da Igreja Católica. Ela aconteceu, também, de forma crescente e intensa por fora dos horizontes do cristianismo como um todo. É neste sentido, por exemplo, fortemente característico do Brasil o meio “mediúnico” ou “de possessão”, composto pelo Espiritismo Kardecista e, de modo especial, pelas religiões de raízes africanas, sobretudo o Candomblé sob todas as suas formas e expressões. Neste meio destaca-se, ainda, a Umbanda, uma religião tipicamente brasileira. Trata-se de uma religião criada durante os anos 1920 e está fortemente marcada por tradições africanas, pela tradição “mediúnica” do Espiritismo Kardecista (de Allan Kardec) e pela tradição católica. Encontram-se nela, também, influências religiosas indígenas entre outras.” (Jornal Adunisinos, agosto, 2000, p.4)

Perpassando estes três grandes agrupamentos (católicos, evangélicos e “mediúnicos”) a marca do “minima catolica” (como diz Helcion Ribeiro) continua dando o tom na complexa realidade religiosa brasileira. Muitas vezes em aulas de “sociologia das religiões” fiz o exercício com o grupo de alunos, buscando construir com eles (e a partir do imaginário e da percepção deles), as diferentes formas de “viver religião” no Brasil de hoje, classificando em agrupamentos. É bem sugestivo o quadro que resulta de diferentes sínteses sucessivas feitas a partir deste repetido exercício:

FORMAS DE “VIVER RELIGIÃO” HOJE, NO BRASIL (em ordem de importância numérica; um esboço)
Católicos só “de nome” sem prática religiosa pública;Católicos cumpridores de algumas exigências religiosas públicas mínimas;Católicos cumpridores regulares das exigências formais do catolicismo;Seguidores de práticas mediúnicas, sejam afro-brasileiras ou kardecistas (confessando-se também católicos ou não);Pertencentes a Igrejas ou movimentos pentecostais ou neo-pentecostais;Ligados a movimentos organizados catolicos (RCC, ECC, etc);Pertencentes a Igrejas protestantes históricas;Católicos engajados em pastorais sociais e/ou integrantes de CEBs;Pertencentes a inúmeros outros agrupamentos e organizações com ligaçao ou não a sistemas religiosos mais amplos;Cultivadores de vivência religiosa pessoal/privada;Ateus ou não-crentes declarados.
Fonte: Exercício de grupos de alunos em sala de aula (Aulas de “Sociologia das Religiões”), publicado em “Igreja e Missão na Cidade”, Rev. Renovação, 1997)

Muito para além desta classificação, fruto do imaginário e da percepção de observadores jovens, o cadastro dos locais de culto religioso e templos que estamos realizando na Região Metropolitana de Porto Alegre e do qual o presente Caderno visa dar conta dos dados do Município de Esteio, nos alerta, no entanto para um outro fenômeno, que é o grande percentual de pessoas que de fato não freqüentam regularmente qualquer religião. Trata-se de um pouco menos de 70% da população.

Infelizmente, não temos dados sobre o comportamento religioso ou não destas pessoas em sua vivência no dia a dia. Sabemos que, por herança histórica, a maioria desses têm uma ligação mais ou menos tênue com a Igreja Católica Apostólica Romana.

Seriam esses quase 70% representados totalmente por “não-religiosos” ou “pouco-religiosos”? Certamente não. Muitos indícios nos levam a supor que um grande número daqueles que, mesmo sem estarem em celebrações, sessões, missas ou cultos religiosos coletivos com freqüência semanal, desenvolvem, com maior ou menor intensidade, práticas religiosas diversas ligadas ao imaginário católico herdado e outras práticas em sua maioria de caráter mágico, místico ou esotérico.

Isto coloca um desafio novo muito grande para o que nós denominamos de “diálogo inter-religioso”. Talvez seja mais desafiador do que com práticas com identidade definida. Hoje quando falamos em diálogo inter-religioso esta realidade certamente deve estar presente.

Para além do cultivo das identidades, é urgente que toda esta energia boa vivenciada nas diferentes formas de “viver religioso” sob a marca da “Terra da Santa Cruz”, que se encontra muitas vezes dispersa, seja mais e mais canalizada num grande projeto, já não mais sob o signo de uma “cristandade” dominadora e excludente, mas sob o signo da dignidade humana por uma sociedade sem exclusões.

Bibliografia:

ANTONIAZZI, A. Bigarrure Religieuse du Brésil. Rév. ÉTUDES, t. 374,  n. 2, 1991.

DEL PRIORE, M. Religião e religiosidade no Brasil colonial. São Paulo : Ática, 1994.

FOLLMANN, J. I. e outros. O mundo das religiões no município de Cachoeirinha, Cadernos CEDOPE, Série Religiões e Sociedade, n. 14, 1999

MACEDO, C. M. Imagem do eterno: religiões no Brasil. São Paulo : Ática, 1989.

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Ao longo do processo de mapeamento e do cadastro, com o contato com diferentes opiniões de lideranças religiosas e estudiosos, por um lado, e por motivos de ordem prática imediata, por outro lado, já foi estabelecida nova “composição” ou categorização, que está sendo utilizada no atual momento de organização de nosso banco de dados e da análise destes dados. As letras em destaque no quadro abaixo são  identificações de referência a serem usadas nos textos, para facilitar a leitura e compreensão dos dados.

QUADRO GERAL DE CATEGORIZAÇÃO DAS RELIGIÕES

   H = igrejas evangélicas históricas

   P = igrejas e grupos evangélicos pentecostais e

         neo-pentecostais;

 C = catolicismo, igreja católica apostólica romana

   A = religiões afro-brasileiras e umbanda;

   K = espiritismo kardecista

   D = diversas, outras.

Na medida em que tivermos reações e questionamentos de pessoas e grupos interessados, as nossas delimitações se tornarão certamente sempre mais adequadas à realidade e sempre mais práticas, assim se espera.

Em nossos textos no presente Caderno, fazendo sempre que necessário referência à respectiva letra de identificação, seguiremos normalmente os seguintes “agrupamentos” ou “conjuntos” de religiões.

QUADRO SINTÉTICO DE CATEGORIZAÇÃO DAS RELIGIÕES

Evangélicos; Igrejas evangélicas históricas; pentecostais e neo-pentecostaisCatolicismo; Igreja católica apostólica romana“Mediúnicas” ou “de possessão”; Religiões afro-brasileiras; Umbanda e Espiritismo kardecistaDiversas outras religiões e agrupamentos religiosos
 (H); (P)(C)(A); (K)(D)

Observação:

Os comentários a partir das entrevistas complementares apresentados abaixo são comentários em vista à construção de hipóteses e em nenhum momento têm a pretensão tirar alguma conclusão ou generalização a respeito de alguma das religiões em questão. A amostra dos entrevistados não é cientificamente representativa, mas por se tratarem de pessoas diretamente envolvidas com o cotidiano de sua religião, a consideramos suficiente para as finalidades deste trabalho.

O “Mundo das Religiões” nesta Terra de Santa Cruz

(Um olhar sobre o desenvolvimento do campo religioso no Brasil, 500 anos depois do início da colonização portuguesa)

Palestra proferida em Evento Sociopastoral de Lageado, no ano 2000.

J. Ivo Follmann

(Doutor em Sociologia, Padre Jesuíta,

Diretor do Centro de Ciências Humanas)

No dia 1º de maio de 1500 ergueu-se na praia de Porto Seguro, Bahia, uma grande cruz de madeira e esta terra foi chamada de “Terra de Santa Cruz”. A colonização portuguesa de nosso país deu-se sob o signo da “cristandade”, isto é: “unidade dos povos e países cristãos em torno de interesses religiosos e políticos comuns, sob a hegemonia da Igreja católica”. (DEL PRIORE, 1994: 7)

O Brasil normalmente foi e é conhecido como o “grande país católico”. Este predomínio católico historicamente presente no Brasil tem a ver diretamente com o empreendimento colonizador português. Tratava-se de uma fantástica política civilizatória onde interesses econômicos, políticos e religiosos caminhavam juntos. “Acreditava-se estar promovendo o verdadeiro bem das regiões colonizadas. O catolicismo era uma espécie de motivação presente na ação do Estado português. Colonizar e evangelizar eram encarados conjuntamente”. (MACEDO, 1989: 30)

Mas este “grande país católico” não é de fato tão católico assim. Ele é mesmo um “país de grandes contrastes”… Contrastes em todos os sentidos, contrastes grandes também no plano religioso. Isto certamente tem muito a ver com o próprio processo de colonização, ou de evangelização católica, sob o signo da colonização. Trata-se de um processo que se deu em  grande medida sob o signo da dominação, gerando um forte caldo represado de cultura de resistência. Tem, no entanto, também a ver com o fato de que mais do que nos outros campos, no campo religioso o ser humano se manifesta como agente ativo na construção da realidade simbólica, a partir de sua experiência social vivida. Assim as diferentes situações sociais vividas geram constantemente formas novas de apropriação das crenças e práticas religiosas na busca de resposta às necessidades espirituais e materiais.

Os 500 anos de Brasil, desde o início da colonização portuguesa, foram 500 anos de destruição e de construção religiosa. A dominação colonial sob o signo da cristandade desrespeitou, às vezes até o aniquilamento total, outras culturas e tradições religiosas. Nosso colega, o Prof. Attico Chassot constantemente nos desafia a dizermos o nome de algum de nossos antepassados “brasileiros” de antes da chegada dos portugueses… Nós nos perguntamos: o que sabemos das religiões dos povos que viveram e que aos frangalhos sobrevivem? Muito pouco! Esta é a nossa resposta. Além de nossas frases prontas aprendidas nas escolas e revestidas de preconceitos de superioridade colonial, muito pouco sabemos. Grandes esforços são feitos hoje para reconstruir algo a paritr dos fragmentos que ficaram.

Semelhantemente ao que se deu com os povos indígenas, as religiões cultivadas pelos milhões de negros trazidos escravos da África foram cruelmente anuladas, tendo que sobreviver na clandestinidade. Bendita clandestinidade!

A história, aliás, é pródiga em nos ensinar que o ser humano não se deixa aprisionar, nem mesmo pelas civilizações mais poderosas. Neste nosso Brasil, 500 anos depois do início da colonização portuguesa, crenças antigas e tradicionais de nossos povos indígenas reencontram a sua legitimidade e mais do que nunca as religiões de raízes africanas passam a ter visibilidade na sociedade.

Hoje ainda se ouve de vez em quando alguém dizer que a religião oficial do Brasil é a católica… Isto não é verdade. O Brasil deixou de ser um país oficialmente católico em 1889, com a separação entre Estado e Igreja. Foi uma das coisas boas da República. A partir deste ato de separação entre o Estado e a Igreja, abriu-se o espaço para a liberdade de expressão religiosa. As Igrejas evangélicas passaram a ter a sua presença legitimada, apesar dos grandes esforços que a Igreja católica fez no início da República por estabelecer limites legais a isto. O meio evangélico hoje, 500 anos depois da declaração do Brasil como país católico, apresenta em geral um grande dinamismo, destacando-se sobretudo em sua vertente pentecostal. Esta vertente demonstra uma crescente expansão, sobretudo através da versão neo-pentecostal. Ao lado de um forte esquema de pertença e de fidelidade doutrinal, bem disciplinado, nas Igrejas pentecostais mais antigas, como as Igrejas Assembléia de Deus, a Congregação Cristã do Brasil e outras, pode-se observar um fenômeno de oferta e procura da “cura divina” e atenção às necessidades imediatas mais diversas, que se acentua cada vez mais, particularmente através de Igrejas mais recentes, como a Igreja Universal do Reino de Deus e outras, que passaram a ser conhecidas como neo-pentecostalismo.

A expansão religiosa não foi só por fora da Igreja católica. Ela se deu de forma intensa e crescente por fora dos horizontes do cristianismo como um todo. É, neste sentido, por exemplo, fortemente característico do Brasil o meio “mediúnico” ou “de possessão”, composto pelo Espiritismo kardecista e, de modo especial, pelas religiões de raízes africanas, sobretudo o Candomblé sob todas as suas formas e expressões. As estatísticas dos recenseamentos indicam um número relativamente limitado de adeptos, pois trata-se de formas complementares ou substitutivas ao que é proposto na religião católica. Neste meio pode-se destacar a Umbanda, como sendo uma religião tipicamente brasileira. Trata-se de uma religião criada durante os anos 1920 e ela está fortemente marcada por tradições africanas, pela tradição “mediúnica” do espiritismo kardecista (de Allan Kardec) e pela tradição católica. Encontram-se nela, também, influências religiosas indígenas e outras. Ela se define pelo exercício da caridade e volta-se muito para a questão da cura: uma cura ao mesmo tempo psíquica, social e cósmica. “A Umbanda é, para seus adeptos, muito mais satisfatória que a medicina, que só se ocupa do corpo, e aquelas religiões, que se ocupam só da alma”, como me disse uma Mãe de Santo. Em recente pesquisa que realizamos no município de Cachoeirinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre, desenha-se de forma exemplar um quadro religioso que talvez possa ser generalizável para muitas situações. Trata-se de um município urbano onde sempre predominou a Igreja católica, enquanto tradição religiosa. O município tem um total de 120.000 habitantes, sendo que destes, 37.000 freqüentam algum culto, sessão, missa ou celebração religiosa semanalmente. Isto representa um pouco mais de 32% da população. No entanto, se observarmos o número total de pessoas que freqüentam, isto é as 37.000), veremos que se destacam os adeptos das Igrejas pentecostais e neo-pentecostais. Dos freqüentadores religiosos semanais, 48% são do meio pentecostal ou neo-pentecostal. O meio católico soma 31%. Na seqüência temos o conjunto das Igrejas Evangélicas históricas  com 10%, as Religiões de raízes africanas e as de Umbanda com 4,3 %, em seu conjunto, as Espíritas kardecistas com 3,4% e outras diversas com 1,9 %. (Note bem: estes percentuais são calculados em referência ao total dos 37.000 freqüentadores semanais de cultos, sessões, missa ou celebrações religiosas.)

COMENTÁRIOS PARA O DEBATE SOBRE O TEXTO:

“A MORTE MÁGICA DA ÉTICA PROTESTANTE”

Parrticipação em painel de debate sobre “a morte mágica da ética protestante”, compondo mesa de debate com Prof. Dr. Oneide Bobsin, na Escola Superior de Teologia – EST, São Leopoldo, em setembro de 2000.

J. Ivo Follmann

(06 de setembro de 2000)

Não sou especialista em pentecostalismo, muito menos em neopentecostalismo e em Igreja Universal do Reino de Deus, mas a sociologia das religiões, que é meu campo de ocupação principal há muitos anos ajuda-me a entender que o tema aqui abordado pelo Prof. Oneide Bobsin é um dos temas mais relevantes e problemáticos que hoje se impõe para os cientistas das religiões no Brasil.

Entendo que o meu papel aqui é o de levantar questões que possam jogar algumas perguntas a mais em nosso debate, além das perguntas que o próprio conferencista em sua exposição já soube provocar.

Vou ater-me, assim, a dois comentários que poderão despertar (eu o espero) algumas interrogações a mais:

  • Num primeiro comentário, terei como referência três olhares teóricos como usualmente venho trabalhando nas minhas pesquisas: a partir da produção da historicidade, a partir dos campos de atividades e a partir do sujeito;
  • Num segundo comentário, farei um pequeno contraponto de complementação a partir de alguns dados da pesquisa sobre locais de culto religioso e templos na Região Metropolitana de Porto Alegre.
  1. Comentário um:
  1. (Perspectiva da produção da historicidade) Concordo plenamente com o Prof. Bobsin quando diz que a miséria, o abandono, a doença, o desespero, o desemprego, a violência e a corrupção em todos os níveis desenham-nos um quadro propício e um terreno fértil para os exorcismos e as promessas de prosperidade. Se tomarmos esta realidade religiosa dentro da perspectiva de produção da historicidade, isto é, se tivermos como referência principal em nossa análise a existência do conflito central dentro da sociedade, estando em questão a apropriação e gestão de sua historicidade (utilizo aqui a concepção de historicidade de Alain Touraine), devemos perguntar-nos a serviço de que atores, a serviço de quem ou de que forças na sociedade estão efetivamente esses exorcismos e essas promessas de prosperidade? Qual é a função da “nomeação diabólica” da realidade, para utilizar a expressão sugerida pelo conferencista? Trata-se de uma desqualificação alienadora. É o radical oposto da “nomeação simbólica” onde a mediação religiosa, muitas vezes (por exemplo, nas CEBs), tende a revestir miséria, abandono, doença etc. de força libertadora. Estamos, portanto, claramente frente ao embate entre a função alienadora da religião e a sua função desalienadora ou libertadora. (Uso o conceito de alienação trabalhado por Peter Berger.)

No caso do avanço pentecostal e, sobretudo, neopentecostal (e do movimento carismático em suas diferentes expressões), dá-se em geral uma afirmação da função alienadora. Trata-se de uma hipótese de fácil comprovação. O viés principal é o socorro imediato (no caso neopentecostal, sobretudo) frente às precariedades do cotidiano. O exemplo mais flagrante é a saúde. Enquanto o povo busca os “milagres de Deus”, a história vai sendo construída contra este mesmo povo por aqueles que se apropriaram da historicidade e se consideram seus gestores exclusivos.

  1. (Perspectiva dos campos de atividade) Em segundo lugar, quero mencionar o que o palestrante denomina, já no início da exposição, de “fronteiras dissolventes” ou “fronteiras porosas”. De fato, essa porosidade ou diluição de fronteiras sempre foi mais forte no meio popular. Aqui eu gostaria de olhar esta mesma realidade religiosa comentada pelo palestrante desde uma outra perspectiva sociológica muito conhecida, que é a dos campos de atividade. A construção, que Pierre Bourdieu faz do campo religioso, é contribuição  importante e constitui-se em instrumento apto para a compreensão dos mecanismos internos às atividades religiosas. Segundo ele, a constituição de um campo religioso leva normalmente a uma “monopolização da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas religiosos”. Aqueles que dominam um campo ou subcampo têm os meios de o fazer funcionar em seu próprio proveito, isto é, em proveito de seus interesses. A indefinição de fronteiras coloca em risco esse domínio, mas é também uma forma de resistência da parte dos dominados. Quem exerce o domínio sabe em geral lidar com isso a seu favor, isto é, para garantir a força das fronteiras. Quem tem interesse pela definição de fronteiras são os que dominam no campo ou subcampo, ou seja, os seus “donos”. Eu me pergunto se os “donos” do subcampo pentecostal (ou melhor: neopentecostal) se esta não é a principal função da ritualização extremada do exorcismo, transformando a porosidade de fronteira em violento processo de culpabilização e de dependência psicológica. Eu até diria que, em outros tempos, e por muito tempo, foi nisto que residiu em parte o sucesso de público da Igreja Católica Apostólica Romana.

Talvez caiba acrescentar aqui uma observação a mais: O campo religioso no Brasil foi sempre, caracteristicamente e, talvez se possa dizer, demasiadamente, de domínio absoluto católico. A atual fragmentação do campo religioso, o surgimento de diferentes subcampos, alguns com extremo vigor, tem também, sem dúvida, um efeito salutar na Igreja Católica e outras Igrejas Cristãs Históricas, no sentido de gerar uma desacomodação em muitos aspectos e uma certa redinamização.

  1. (Perspectiva do sujeito) Uma outra questão a ser posta é: Não estaria o neopentecostalismo, através de seu aguerrido combate, mediante a ritualização do exorcismo etc, fortalecendo a umbanda, pelo efeito inverso? O “tornar-se igual ao inimigo para combatê-lo” pode certamente levar ao efeito imediato esperado, mas também pode levar, a longo prazo, a uma espécie de desmoralização daquele que ataca e a um fortalecimento e ressignificação das representações e práticas daqueles que são combatidos. Para isto, trago presente a profunda capacidade de resistência silenciosa acumulada na alma brasileira ao longo de séculos. Aqui eu gostaria de entrar com um terceiro olhar sociológico, a partir da perspectiva do sujeito. Segundo Guy Bajoit “os indivíduos selecionam (adotam ou rejeitam) os sentidos culturais (as idéias, as representações, as normas, as opiniões, os valores, os princípios) em função das necessidades da gestão de si mesmos.”  Olhando sob este ponto de vista, alcançamos mais facilmente o que está mais profundamente entranhado nos sujeitos que constituem a sociedade: a sua cultura. Falamos, portanto, da “gestão de si mesmo” de um povo marcado indelevelmente por aquilo que é o povo brasileiro em sua grande maioria: carne da carne de pretos e índios supliciados e mão possessa, que os supliciou, como diz o texto que o conferencista recolheu de Darci Ribeiro. A sociedade brasileira é constituída da gente sofrida que somos e da gente insensível e brutal, que também somos, como diz o mesmo autor. Sofridos e insensíveis, eu diria que sim, mas profundamente orgulhosos de nossa alegre inventividade e profundamente ciosos de nossos santos e nossos deuses.  Eu me arriscaria a dizer: A alma brasileira não é uma alma sujeitável a racionalidades instituídas, nem mesmo se são racionalidades religiosas, quando impostas de cima para baixo… Uma alma, eu diria, curtida num longo processo contraditório de dominação, cujo sujeito tem uma profunda sede de afirmação.

Neste contexto, “gestão de si mesmo” não lembra tanto uma busca libertária pós-moderna, mas tem muito mais a ver com a revanche de uma alma secularmente machucada e tripudiada por todo tipo de poder, entre eles o religioso. Pergunto até quando vai durar a intermediação neopentecostal desta revanche. Talvez o Prof. Bobsin tenha razão ao arriscar o palpite de que a Umbanda tenderá a sair por cima…

A alma brasileira é religiosa e muito religiosa. O sujeito brasileiro é portador de uma religiosidade acumulada ao longo de séculos. É um sujeito mais pronto para sintonizar com propostas revestidas de apelos sagrados, do que com propostas revestidas da racionalidade moderna secularizada.

  • Comentário dois:
  • (Alguns dados de pesquisa em realização) Além deste arrolamento de hipóteses e provocações bastante soltas, quero fazer ainda um pequeno comentário considerando dados recentes de uma pesquisa, ou seja, um cadastro de locais de culto religioso e templos, que estamos realizando na Região Metropolitana de Porto Alegre nos últimos anos. Creio que alguns dados colhidos nesta pesquisa podem ajudar-nos neste momento de reflexão…
  • (Novos locais de culto e templos nas últimas duas décadas) Se olharmos especificamente para dois municípios da nossa vizinhança, cujas totalizações já existem em nosso banco de dados (Cachoeirinha e Esteio), notaremos um fortíssimo incremento no número de locais de culto religioso e templos, tanto no meio pentecostal e neopentecostal quanto no meio das religiões afro e de umbanda, durante as últimas duas décadas, sobretudo durante a última década, conforme o quadro 1 abaixo:

 

Quadro 1

RELIGIÕES E INCREMENTO DE LOCAIS DE CULTO E TEMPLOS NO PERÍODO DE 1980-1999, EM CACHOEIRINHA E ESTEIO (RMPA, RS)

(Observação: o total de locais de culto e templos, em dezembro de 1999, em Cachoeirinha era de 165 e em Esteio era de 118)

RELIGIÕESCACHOEIRINHAESTEIOTOTAL
1980-891990-991980-891990-99
Pentecostais e Neopentecostal13451032100
Evangélicas Históricas352010
Católica729422
Afro e Umbanda73271561
Kardecista13105
Diversas11013
TOTAL32882952201
Fonte: CEDOPE & GDIREC, Unisinos, dezembro de 1999

 Vemos por este quadro que em Cachoeirinha, do total de 32 novos locais inaugurados na década de oitenta, 7 são de religiões afro ou umbanda e 13 de pentecostais ou neopentecostais (note-se que neste período também são inaugurados no mesmo município 7 templos católicos). No mesmo município, na década de noventa, do total de 88 novos locais, 32 são de religiões afro ou umbanda e 45 de pentecostais ou neopentecostais (neste período são inaugurados 2 templos católicos novos).

Se olharmos para o município de Esteio, temos que do total  de 29 novos locais de culto religioso e templos inaugurados na década de oitenta, 7 são de religiões afro ou umbanda, 10 são pentecostais ou neopentecostais (e 9 são católicos). No mesmo município de Esteio, na década de noventa, foram inaugurados 52 locais de culto religioso e templos, dos quais 15 são de religiões afro ou umbanda e  32 de pentecostais ou neopentecostais (e 4  são católicos).

  • (Número de freqüentadores por semana…) Um dado muito interessante que temos a partir do cadastro é o que diz respeito ao número de freqüentadores por semana em cada local de culto religioso ou templo (talvez se trate dos fiéis mais identificados com a rotina de sua instituição religiosa e que se consideram mais profundamente vinculados e membros efetivos). Vejamos no quadro 2 abaixo:

Quadro 2

RELIGIÕES E FREQÜÊNCIA SEMANAL EM LOCAIS DE CULTO E TEMPLOS, MUNICÍPIOS DE CACHOEIRINHA E ESTEIO (RMPA, RS)

RELIGIÕESCACHOEIRINHAESTEIO
Pentecostais e Neopentecostais48,4%44,1%
Evangélicas Históricas10,2%6,9%
Católica31,9%31,4%
Afro e Umbanda4,2%10,7%
Espiritismo Kardecista3,4%4,3%
Diversas1,9%2,6%
FREQ. SEMANAL (TOTAL)36.162                  (30,1%)29.764               (37,2%)
POPUL.MUNICIP. (TOTAL)(120.000)(80.000)
Fonte: CEDOPE & GDIREC, UNISINOS, dezembro de 1999

O município de Cachoeirinha conta hoje com  uma população de 120.000 habitantes. Deste total, o número dos que freqüentam algum local de culto ou templo por semana é de 36.162 (ou seja: 30,1% da população).  Se tomarmos estes 36.162 freqüentadores semanais, 48,4% deles são pentecostais ou neopentecostais.  

Quanto ao município de Esteio, a sua população hoje é de 80.000 habitantes. Deste total, 29.764 freqüentam algum local de culto religioso ou templo por semana (ou seja: 37,2% da população).  Se tomarmos este total de freqüentadores semanais, 44,1% são pentecostais ou neopentecostais.

  • (Algumas questões…) Infelizmente não temos ainda o dado para uma comparação histórica. Certamente dentro de dez anos poderemos fazer isto e poderemos, inclusive, verificar algumas das hipóteses que aqui estão sendo discutidas. Continuarão os pentecostais e neopentecostais crescendo no mesmo ritmo? Haverá uma retomada católica e das evangélicas históricas pelo viés dos movimentos carismáticos em contextos sócio-econômicos de periferia? Haverá um crescimento mais acelerado em nível das religiões de raízes africanas e de umbanda? Ou estes subcampos dentro do campo religioso tenderão sempre a diluir as suas fronteiras, levando a afirmar uma religiosidade administrada em nível pessoal sem interferências institucionais muito claras, sobretudo, marcas institucionais forjadas na dominação…

MEMÓRIA E RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA: ALGUMAS INTERROGAÇÕES SOCIOLÓGICAS

Texto inédito redigido em 11 de novembro de 2012

Quando falamos em memória é importante que falemos em primeiro lugar de suas condições de possibilidade. Sabemos que não existe história sem memória e podemos, assim, afirmar que a própria história deve ocupar-se das condições de possibilidade da memória. Ao me deparar com a questão da “memória através das religiões de matriz africana”, formulei para mim a pergunta sobre suas condições de possibilidade. Dei-me conta da necessidade de retomar o próprio processo histórico e identificar neste processo mecanismos e estratégias, ideologias e políticas que geraram condições perversas para que as memórias dos afrodescendentes subsistissem e se transmitissem com facilidade. Senti-me impelido a pensar em formular “algumas interrogações sociológicas” neste sentido.

Michael Pollak em artigo escrito em 1992, com o título “Memória e Identidade Social”, ao mesmo tempo em que afirma que as oposições binárias entre memórias dominantes (oficiais) e memórias dominadas (não oficiais) devem ser consideradas algo superado, afirma, também, que devemos estar sempre atentos ao processo de “negociação”. (Pollak, 1992, p.5). O mesmo autor em artigo anterior já deixava clara a sua posição ao afirmar que “um passado que permanece mudo é muitas vezes menos o produto do esquecimento do que de um trabalho de gestão da memória, segundo as possibilidades da comunicação”. (Pollak, 1989, p.14)

As historiografias oficiais são sempre construídas com certa linearidade e ordenamento. (Benjamin, 1992, p.28). Esta linearidade e este ordenamento estão, também, bem expressos no que Pollak (1989, p.9-10) denomina de “enquadramentos da memória”.

Aos enquadramentos da memória, subjazem, no entanto, também importantes estratégias e políticas condutoras da história e definidoras da cultura e estrutura sociais. É este quadro que fez com que, ao ser interrogado sobre a questão “memória e religiões de matriz africana”, aflorassem à minha mente diversas questões, aqui denominadas de “algumas interrogações sociológicas”. Ao entrarmos no mundo da MEMÓRIA através das religiões de matriz africana, é fundamental que explicitemos os principais aspectos envolvidos no monstruoso volume de abafamentos e dominações que pesa sobre esta realidade.

Acostumei-me a agrupar essas interrogações em três níveis, reproduzindo aqui um exercício de reflexão que realizei em coautoria com Adevanir Aparecida Pinheiro, coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – NEABI da nossa Universidade[1]:

O primeiro nível é o de algumas estratégias de esquecimento, que devem ser consideradas vigorosas e bem sucedidas. Trata-se de mecanismos de esquecimento aos quais os negros trazidos para o Brasil foram submetidos. Sem entrar em detalhamentos, uma vez que se trata de matéria de amplo conhecimento comum, vou referir os três mecanismos, por assim dizer, paradigmáticos: 1) O significado da “árvore do esquecimento”, o símbolo central que aponta para a intencionalidade dominante do esquecimento.[2] 2) A imposição de uma nova religião, o catolicismo como a religião oficial reinante. 3) A desestruturação violenta dos laços familiares, misturando clãs e etnias, procurando provocar um total desenraizamento de vínculos culturais e políticos de origem.

O segundo nível está diretamente relacionado com o uso de teorias racistas, com a precípua função de legitimar os empreendimentos de escravização dos negros africanos. Isto deve ser visto como agravante que justificou e acompanhou as estratégias aqui  mencionadas e outras. Para além da busca de legitimar a escravização, essas teorias foram mais longe, patrocinando intelectualmente políticas de branqueamento nacional. Os escritos de José Arthur Conde de Gobineau (década de 60 e 70 do século XIX) foram particularmente marcantes neste sentido. Segundo o mesmo, as raças inferiores (africanas) mesclando-se com outras raças superiores (européias) estariam levando o Brasil a uma degenerescência, sem futuro. Parafraseando o seu pensamento, pode-se dizer que, segundo ele, a vinda de maior número de brancos para o Brasil era uma urgente necessidade e fazia-se também urgente preservar os brancos da contaminação do sangue negro…[3]

O terceiro nível dá conta das políticas de branqueamento da sociedade brasileira, como políticas afirmativas em favor dos imigrantes brancos eurodescendentes, em flagrante descaso com relação aos negros. Essas políticas marcaram o período de processo de abolição da escravatura e o período pós-abolição, evidenciando um processo de “purificação racial” e de “desafricanização” do Brasil.

É com estes três níveis de referência e de agravamento do volume de abafamentos e dominações que pesa sobre a realidade dos afrodescendentes e da memória através das religiões de matriz africana, que eu lanço as minhas “interrogações sociológicas”: 1) Quais as condições de possibilidade de desvendar as densas camadas de abafamento e esquecimento provocado e estrategicamente programado? Qual o papel e incidência das diferentes formas de resistência e sobrevivência conhecidas, apesar – e à revelia – de toda a estratégia do esquecimento e abafamento? Qual o papel da academia com vistas a ajudar a escrever uma história através da qual se desvelem as dívidas culturais e sociais e se faça justiça aos prejudicados e, de certa forma, moralmente destruídos?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. 1992. O narrador. Reflexões sobre a obra de Nikolai Lesskov. In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. [Trad. Maria Amélia Cruz] Lisboa: Relógio D’Água, 235 p.

PINHEIRO, Adevanir Aparecida; FOLLMANN, José Ivo. 2012.Trabalho de Extensão Universitária com Afrodescendentes: refazendo laços e desatando nós. Cadernos de Extensão. Ed.Unisinos, p. …

POLLAK, Michael, 1989. Memória, Esquecimento, Silêncio.Rev. Estudos Históricos, 2 (3): 3-15

POLLAK, Michael,1992. Memória e Identidade Social. Rev. Estudos Históricos, 5 (10): 200-212


[1] Ver artigo publicado recentemente em CADERNOS DE EXTENSÃO, Unisinos, 2012. (Pinheiro e Follmann, 2012, p….a …)

[2] Durante grande parte do período de tráfico dos africanos escravos para o continente americano, e especificamente para o Brasil, eles eram submetidos a um ritual antes de serem embarcados. Era um ritual para esquecerem o seu passado… Eram obrigados a dar voltas em redor de uma árvore, a chamada “árvore do esquecimento”. Ao serem capturados e importados do continente africano para outros países e para o Brasil, eles eram obrigados a fazerem o ritual de esquecimento, ou seja, os homens tinham que dar nove voltas em torno da árvore do esquecimento e as mulheres davam sete voltas. Esta “árvore do esquecimento” continua, depois, se repetindo sob as mais diferentes formas ao longo do processo de escravidão e pós-escravidão…

[3] Ver José Arthur Conde de Gobineau. L’Emigration au Brésil, 1874, in Georges Raeders, 1988. 

RELIGION, POLITIQUE ET IDENTITÉ

Tese de Doutorado em Sociologia realizada e aprovada na Université Catholique de Louvain la Neuve, Bélgica, em 1993. Disponibilizada regularmente no acervo de teses, Biblioteca da Universidade. Diversos artigos foram publicados com recortes desta tese, mantida no original francês. Agora, também, disponível para acesso fácil e gratuito como e-book e PDF pela Editora Casa Leiria, 2024.