A Terra de Santa Cruz, 500 anos depois…*

– Palavras de apresentação do Caderno –


* O artigo é uma recomposição de aspectos presentes de forma dispersa em quatro artigos anteriores “O Mundo das Religiões na Terra de Santa Cruz” (Jornal Adunisinos, n.19, agosto, 2000),  “Igreja e Missão na Cidade” (Rev. Renovação, 1997),  “O Mundo das Religiões e da Religiosidade; novos desafios para o diálogo inter-religioso” (Re. Notícias Jesuítas, 2000), “O Mundo das Religiões no Município de Cachoeirinha” (Cadernos de CEDOPE, n. 14, 2000).

José Ivo Follmann

(Doutor em Sociologia, Padre Jesuíta, Diretor do Centro de Ciências Humanas)

O Texto:

Tendo sido solicitado pelo Jornal da Associação dos Docentes da UNISINOS, para fazer uma breve reflexão sobre os “500 anos de Brasil, sob o ponto de vista da evolução do fenômeno religioso”, eu escrevi o seguinte:

“No dia 1º de maio de 1500 ergueu-se na praia de Porto Seguro, Bahia, uma grande cruz de madeira e nossa terra foi denominada de “Terra de Santa Cruz”. A colonização portuguesa do Brasil deu-se sob o signo da “cristandade”, isto é, “unidade dos povos e países cristãos em torno de interesses religiosos e políticos comuns, sob a hegemonia da Igreja católica”. (DEL PRIORE, 1994, p. 7)

O Brasil normalmente foi e é conhecido como um “grande país católico” ou o “grande país católico”. Esta característica, que trazemos de nossa história, tem a ver diretamente com o empreendimento colonizador português, parte de uma fantástica política civilizatória onde interesses econômicos, políticos e religiosos caminhavam juntos. “Acreditava-se estar promovendo o verdadeiro bem das regiões colonizadas. O catolicismo era uma espécie de motivação presente na ação do Estado português. Colonizar e evangelizar eram encarados conjuntamente”. (MACEDO, 1989, p. 30)

Mas este “grande país católico” não é de fato tão católico assim. Ele é mesmo um “grande cadinho religioso” quando não uma “grande bricolagem” … Por um lado, isto tem muito a ver com o próprio processo de colonização ou de evangelização católica sob o signo da colonização. Este processo deu-se em grande medida sob o signo da dominação, gerando um forte caldo represado de cultura de resistência. Por outro lado, tem a ver também com o fato de que mais do que nos outros campos, no campo religioso, o ser humano manifesta-se como agente ativo na construção da realidade simbólica, a partir de sua experiência pessoal e social. Assim, as diferentes situações vividas geram constantemente formas novas de apropriação das crenças e práticas religiosas na busca de respostas às necessidades espirituais e materiais.

Os 500 anos de Brasil, desde o início da colonização portuguesa, foram 500 anos processados sob o signo paradoxal da destruição e da construção religiosa. A dominação colonial dentro do projeto de “cristandade” desrespeitou, às vezes, até ao aniquilamento total, outras culturas e tradições religiosas. O nosso colega professor Attico Chassot desafia-nos, constantemente, a tentarmos lembrar (inutilmente!) o nome de algum de nossos antepassados “brasileiros” de antes da chegada dos portugueses… Nós, hoje, 500 anos depois, nos perguntamos sobre o que sabemos das religiões dos povos que aqui viveram e que, aos frangalhos, sobrevivem… Muito pouco! Esta é a nossa resposta. Além de nossas frases prontas, aprendidas nas escolas e revestidas de preconceitos de superioridade colonial, muito pouco sabemos. Grandes esforços são feitos hoje para reconstruir algo a partir dos fragmentos que ficaram.

Semelhantemente ao que se deu com os povos indígenas, as religiões cultivadas pelos milhões de negros, trazidos escravos da África, foram cruelmente anuladas, tendo que sobreviver na clandestinidade. Hoje exultamos: “Bendita clandestinidade!”

A história, aliás, é pródiga em ensinar-nos que o ser humano não se deixa aprisionar, nem mesmo pelas civilizações mais poderosas. Neste nosso Brasil, 500 anos depois do início da colonização portuguesa, crenças antigas e tradicionais dos povos indígenas reencontram a sua legitimidade e, mais do que nunca, as religiões de raízes africanas passam a ter visibilidade na sociedade.

Hoje ainda se ouve de vez em quando alguém dizer que a religião oficial do Brasil é a católica… Isto, obviamente, não é verdade! O Brasil deixou de ser um país oficialmente católico em 1889, com a separação entre Estado e Igreja. Foi uma das muitas coisas boas da República! A partir desse ato de separação entre o Estado e a Igreja, abriu-se o espaço para a liberdade de expressão religiosa. As Igrejas Evangélicas, já presentes em grande parte acompanhando levas de imigrantes, ou então por iniciativas missionárias heróicas, passaram a ter a sua presença legitimada, apesar dos grandes esforços que a Igreja Católica fazia para estabelecer limites legais a isto. O meio evangélico hoje, 500 anos depois da declaração do Brasil como país católico, apresenta em geral um grande dinamismo, destacando-se em especial a sua vertente pentecostal. Esta vertente demonstra uma crescente expansão, sobretudo, através da versão neo-pentecostal. Ao lado do forte esquema de pertença e de fidelidade doutrinal, bem disciplinado, nas Igrejas pentecostais mais antigas, como as Igrejas Assembléia de Deus, a Congregação Cristã do Brasil e outras, pode-se observar de mais a mais o fenômeno da oferta e procura da “cura divina” e atenção às necessidades imediatas mais diversas, que se acentua particularmente através de Igrejas mais recentes, como a Igreja Universal do Reino de Deus e outras, que passaram a ser conhecidas como neo-pentecostalismo.

A expansão religiosa não foi só por fora da Igreja Católica. Ela aconteceu, também, de forma crescente e intensa por fora dos horizontes do cristianismo como um todo. É neste sentido, por exemplo, fortemente característico do Brasil o meio “mediúnico” ou “de possessão”, composto pelo Espiritismo Kardecista e, de modo especial, pelas religiões de raízes africanas, sobretudo o Candomblé sob todas as suas formas e expressões. Neste meio destaca-se, ainda, a Umbanda, uma religião tipicamente brasileira. Trata-se de uma religião criada durante os anos 1920 e está fortemente marcada por tradições africanas, pela tradição “mediúnica” do Espiritismo Kardecista (de Allan Kardec) e pela tradição católica. Encontram-se nela, também, influências religiosas indígenas entre outras.” (Jornal Adunisinos, agosto, 2000, p.4)

Perpassando estes três grandes agrupamentos (católicos, evangélicos e “mediúnicos”) a marca do “minima catolica” (como diz Helcion Ribeiro) continua dando o tom na complexa realidade religiosa brasileira. Muitas vezes em aulas de “sociologia das religiões” fiz o exercício com o grupo de alunos, buscando construir com eles (e a partir do imaginário e da percepção deles), as diferentes formas de “viver religião” no Brasil de hoje, classificando em agrupamentos. É bem sugestivo o quadro que resulta de diferentes sínteses sucessivas feitas a partir deste repetido exercício:

FORMAS DE “VIVER RELIGIÃO” HOJE, NO BRASIL (em ordem de importância numérica; um esboço)
Católicos só “de nome” sem prática religiosa pública;Católicos cumpridores de algumas exigências religiosas públicas mínimas;Católicos cumpridores regulares das exigências formais do catolicismo;Seguidores de práticas mediúnicas, sejam afro-brasileiras ou kardecistas (confessando-se também católicos ou não);Pertencentes a Igrejas ou movimentos pentecostais ou neo-pentecostais;Ligados a movimentos organizados catolicos (RCC, ECC, etc);Pertencentes a Igrejas protestantes históricas;Católicos engajados em pastorais sociais e/ou integrantes de CEBs;Pertencentes a inúmeros outros agrupamentos e organizações com ligaçao ou não a sistemas religiosos mais amplos;Cultivadores de vivência religiosa pessoal/privada;Ateus ou não-crentes declarados.
Fonte: Exercício de grupos de alunos em sala de aula (Aulas de “Sociologia das Religiões”), publicado em “Igreja e Missão na Cidade”, Rev. Renovação, 1997)

Muito para além desta classificação, fruto do imaginário e da percepção de observadores jovens, o cadastro dos locais de culto religioso e templos que estamos realizando na Região Metropolitana de Porto Alegre e do qual o presente Caderno visa dar conta dos dados do Município de Esteio, nos alerta, no entanto para um outro fenômeno, que é o grande percentual de pessoas que de fato não freqüentam regularmente qualquer religião. Trata-se de um pouco menos de 70% da população.

Infelizmente, não temos dados sobre o comportamento religioso ou não destas pessoas em sua vivência no dia a dia. Sabemos que, por herança histórica, a maioria desses têm uma ligação mais ou menos tênue com a Igreja Católica Apostólica Romana.

Seriam esses quase 70% representados totalmente por “não-religiosos” ou “pouco-religiosos”? Certamente não. Muitos indícios nos levam a supor que um grande número daqueles que, mesmo sem estarem em celebrações, sessões, missas ou cultos religiosos coletivos com freqüência semanal, desenvolvem, com maior ou menor intensidade, práticas religiosas diversas ligadas ao imaginário católico herdado e outras práticas em sua maioria de caráter mágico, místico ou esotérico.

Isto coloca um desafio novo muito grande para o que nós denominamos de “diálogo inter-religioso”. Talvez seja mais desafiador do que com práticas com identidade definida. Hoje quando falamos em diálogo inter-religioso esta realidade certamente deve estar presente.

Para além do cultivo das identidades, é urgente que toda esta energia boa vivenciada nas diferentes formas de “viver religioso” sob a marca da “Terra da Santa Cruz”, que se encontra muitas vezes dispersa, seja mais e mais canalizada num grande projeto, já não mais sob o signo de uma “cristandade” dominadora e excludente, mas sob o signo da dignidade humana por uma sociedade sem exclusões.

Bibliografia:

ANTONIAZZI, A. Bigarrure Religieuse du Brésil. Rév. ÉTUDES, t. 374,  n. 2, 1991.

DEL PRIORE, M. Religião e religiosidade no Brasil colonial. São Paulo : Ática, 1994.

FOLLMANN, J. I. e outros. O mundo das religiões no município de Cachoeirinha, Cadernos CEDOPE, Série Religiões e Sociedade, n. 14, 1999

MACEDO, C. M. Imagem do eterno: religiões no Brasil. São Paulo : Ática, 1989.

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Ao longo do processo de mapeamento e do cadastro, com o contato com diferentes opiniões de lideranças religiosas e estudiosos, por um lado, e por motivos de ordem prática imediata, por outro lado, já foi estabelecida nova “composição” ou categorização, que está sendo utilizada no atual momento de organização de nosso banco de dados e da análise destes dados. As letras em destaque no quadro abaixo são  identificações de referência a serem usadas nos textos, para facilitar a leitura e compreensão dos dados.

QUADRO GERAL DE CATEGORIZAÇÃO DAS RELIGIÕES

   H = igrejas evangélicas históricas

   P = igrejas e grupos evangélicos pentecostais e

         neo-pentecostais;

 C = catolicismo, igreja católica apostólica romana

   A = religiões afro-brasileiras e umbanda;

   K = espiritismo kardecista

   D = diversas, outras.

Na medida em que tivermos reações e questionamentos de pessoas e grupos interessados, as nossas delimitações se tornarão certamente sempre mais adequadas à realidade e sempre mais práticas, assim se espera.

Em nossos textos no presente Caderno, fazendo sempre que necessário referência à respectiva letra de identificação, seguiremos normalmente os seguintes “agrupamentos” ou “conjuntos” de religiões.

QUADRO SINTÉTICO DE CATEGORIZAÇÃO DAS RELIGIÕES

Evangélicos; Igrejas evangélicas históricas; pentecostais e neo-pentecostaisCatolicismo; Igreja católica apostólica romana“Mediúnicas” ou “de possessão”; Religiões afro-brasileiras; Umbanda e Espiritismo kardecistaDiversas outras religiões e agrupamentos religiosos
 (H); (P)(C)(A); (K)(D)

Observação:

Os comentários a partir das entrevistas complementares apresentados abaixo são comentários em vista à construção de hipóteses e em nenhum momento têm a pretensão tirar alguma conclusão ou generalização a respeito de alguma das religiões em questão. A amostra dos entrevistados não é cientificamente representativa, mas por se tratarem de pessoas diretamente envolvidas com o cotidiano de sua religião, a consideramos suficiente para as finalidades deste trabalho.

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