MEMÓRIA E RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA: ALGUMAS INTERROGAÇÕES SOCIOLÓGICAS

Texto inédito redigido em 11 de novembro de 2012

Quando falamos em memória é importante que falemos em primeiro lugar de suas condições de possibilidade. Sabemos que não existe história sem memória e podemos, assim, afirmar que a própria história deve ocupar-se das condições de possibilidade da memória. Ao me deparar com a questão da “memória através das religiões de matriz africana”, formulei para mim a pergunta sobre suas condições de possibilidade. Dei-me conta da necessidade de retomar o próprio processo histórico e identificar neste processo mecanismos e estratégias, ideologias e políticas que geraram condições perversas para que as memórias dos afrodescendentes subsistissem e se transmitissem com facilidade. Senti-me impelido a pensar em formular “algumas interrogações sociológicas” neste sentido.

Michael Pollak em artigo escrito em 1992, com o título “Memória e Identidade Social”, ao mesmo tempo em que afirma que as oposições binárias entre memórias dominantes (oficiais) e memórias dominadas (não oficiais) devem ser consideradas algo superado, afirma, também, que devemos estar sempre atentos ao processo de “negociação”. (Pollak, 1992, p.5). O mesmo autor em artigo anterior já deixava clara a sua posição ao afirmar que “um passado que permanece mudo é muitas vezes menos o produto do esquecimento do que de um trabalho de gestão da memória, segundo as possibilidades da comunicação”. (Pollak, 1989, p.14)

As historiografias oficiais são sempre construídas com certa linearidade e ordenamento. (Benjamin, 1992, p.28). Esta linearidade e este ordenamento estão, também, bem expressos no que Pollak (1989, p.9-10) denomina de “enquadramentos da memória”.

Aos enquadramentos da memória, subjazem, no entanto, também importantes estratégias e políticas condutoras da história e definidoras da cultura e estrutura sociais. É este quadro que fez com que, ao ser interrogado sobre a questão “memória e religiões de matriz africana”, aflorassem à minha mente diversas questões, aqui denominadas de “algumas interrogações sociológicas”. Ao entrarmos no mundo da MEMÓRIA através das religiões de matriz africana, é fundamental que explicitemos os principais aspectos envolvidos no monstruoso volume de abafamentos e dominações que pesa sobre esta realidade.

Acostumei-me a agrupar essas interrogações em três níveis, reproduzindo aqui um exercício de reflexão que realizei em coautoria com Adevanir Aparecida Pinheiro, coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – NEABI da nossa Universidade[1]:

O primeiro nível é o de algumas estratégias de esquecimento, que devem ser consideradas vigorosas e bem sucedidas. Trata-se de mecanismos de esquecimento aos quais os negros trazidos para o Brasil foram submetidos. Sem entrar em detalhamentos, uma vez que se trata de matéria de amplo conhecimento comum, vou referir os três mecanismos, por assim dizer, paradigmáticos: 1) O significado da “árvore do esquecimento”, o símbolo central que aponta para a intencionalidade dominante do esquecimento.[2] 2) A imposição de uma nova religião, o catolicismo como a religião oficial reinante. 3) A desestruturação violenta dos laços familiares, misturando clãs e etnias, procurando provocar um total desenraizamento de vínculos culturais e políticos de origem.

O segundo nível está diretamente relacionado com o uso de teorias racistas, com a precípua função de legitimar os empreendimentos de escravização dos negros africanos. Isto deve ser visto como agravante que justificou e acompanhou as estratégias aqui  mencionadas e outras. Para além da busca de legitimar a escravização, essas teorias foram mais longe, patrocinando intelectualmente políticas de branqueamento nacional. Os escritos de José Arthur Conde de Gobineau (década de 60 e 70 do século XIX) foram particularmente marcantes neste sentido. Segundo o mesmo, as raças inferiores (africanas) mesclando-se com outras raças superiores (européias) estariam levando o Brasil a uma degenerescência, sem futuro. Parafraseando o seu pensamento, pode-se dizer que, segundo ele, a vinda de maior número de brancos para o Brasil era uma urgente necessidade e fazia-se também urgente preservar os brancos da contaminação do sangue negro…[3]

O terceiro nível dá conta das políticas de branqueamento da sociedade brasileira, como políticas afirmativas em favor dos imigrantes brancos eurodescendentes, em flagrante descaso com relação aos negros. Essas políticas marcaram o período de processo de abolição da escravatura e o período pós-abolição, evidenciando um processo de “purificação racial” e de “desafricanização” do Brasil.

É com estes três níveis de referência e de agravamento do volume de abafamentos e dominações que pesa sobre a realidade dos afrodescendentes e da memória através das religiões de matriz africana, que eu lanço as minhas “interrogações sociológicas”: 1) Quais as condições de possibilidade de desvendar as densas camadas de abafamento e esquecimento provocado e estrategicamente programado? Qual o papel e incidência das diferentes formas de resistência e sobrevivência conhecidas, apesar – e à revelia – de toda a estratégia do esquecimento e abafamento? Qual o papel da academia com vistas a ajudar a escrever uma história através da qual se desvelem as dívidas culturais e sociais e se faça justiça aos prejudicados e, de certa forma, moralmente destruídos?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. 1992. O narrador. Reflexões sobre a obra de Nikolai Lesskov. In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. [Trad. Maria Amélia Cruz] Lisboa: Relógio D’Água, 235 p.

PINHEIRO, Adevanir Aparecida; FOLLMANN, José Ivo. 2012.Trabalho de Extensão Universitária com Afrodescendentes: refazendo laços e desatando nós. Cadernos de Extensão. Ed.Unisinos, p. …

POLLAK, Michael, 1989. Memória, Esquecimento, Silêncio.Rev. Estudos Históricos, 2 (3): 3-15

POLLAK, Michael,1992. Memória e Identidade Social. Rev. Estudos Históricos, 5 (10): 200-212


[1] Ver artigo publicado recentemente em CADERNOS DE EXTENSÃO, Unisinos, 2012. (Pinheiro e Follmann, 2012, p….a …)

[2] Durante grande parte do período de tráfico dos africanos escravos para o continente americano, e especificamente para o Brasil, eles eram submetidos a um ritual antes de serem embarcados. Era um ritual para esquecerem o seu passado… Eram obrigados a dar voltas em redor de uma árvore, a chamada “árvore do esquecimento”. Ao serem capturados e importados do continente africano para outros países e para o Brasil, eles eram obrigados a fazerem o ritual de esquecimento, ou seja, os homens tinham que dar nove voltas em torno da árvore do esquecimento e as mulheres davam sete voltas. Esta “árvore do esquecimento” continua, depois, se repetindo sob as mais diferentes formas ao longo do processo de escravidão e pós-escravidão…

[3] Ver José Arthur Conde de Gobineau. L’Emigration au Brésil, 1874, in Georges Raeders, 1988. 

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