O “Mundo das Religiões” nesta Terra de Santa Cruz

(Um olhar sobre o desenvolvimento do campo religioso no Brasil, 500 anos depois do início da colonização portuguesa)

Palestra proferida em Evento Sociopastoral de Lageado, no ano 2000.

J. Ivo Follmann

(Doutor em Sociologia, Padre Jesuíta,

Diretor do Centro de Ciências Humanas)

No dia 1º de maio de 1500 ergueu-se na praia de Porto Seguro, Bahia, uma grande cruz de madeira e esta terra foi chamada de “Terra de Santa Cruz”. A colonização portuguesa de nosso país deu-se sob o signo da “cristandade”, isto é: “unidade dos povos e países cristãos em torno de interesses religiosos e políticos comuns, sob a hegemonia da Igreja católica”. (DEL PRIORE, 1994: 7)

O Brasil normalmente foi e é conhecido como o “grande país católico”. Este predomínio católico historicamente presente no Brasil tem a ver diretamente com o empreendimento colonizador português. Tratava-se de uma fantástica política civilizatória onde interesses econômicos, políticos e religiosos caminhavam juntos. “Acreditava-se estar promovendo o verdadeiro bem das regiões colonizadas. O catolicismo era uma espécie de motivação presente na ação do Estado português. Colonizar e evangelizar eram encarados conjuntamente”. (MACEDO, 1989: 30)

Mas este “grande país católico” não é de fato tão católico assim. Ele é mesmo um “país de grandes contrastes”… Contrastes em todos os sentidos, contrastes grandes também no plano religioso. Isto certamente tem muito a ver com o próprio processo de colonização, ou de evangelização católica, sob o signo da colonização. Trata-se de um processo que se deu em  grande medida sob o signo da dominação, gerando um forte caldo represado de cultura de resistência. Tem, no entanto, também a ver com o fato de que mais do que nos outros campos, no campo religioso o ser humano se manifesta como agente ativo na construção da realidade simbólica, a partir de sua experiência social vivida. Assim as diferentes situações sociais vividas geram constantemente formas novas de apropriação das crenças e práticas religiosas na busca de resposta às necessidades espirituais e materiais.

Os 500 anos de Brasil, desde o início da colonização portuguesa, foram 500 anos de destruição e de construção religiosa. A dominação colonial sob o signo da cristandade desrespeitou, às vezes até o aniquilamento total, outras culturas e tradições religiosas. Nosso colega, o Prof. Attico Chassot constantemente nos desafia a dizermos o nome de algum de nossos antepassados “brasileiros” de antes da chegada dos portugueses… Nós nos perguntamos: o que sabemos das religiões dos povos que viveram e que aos frangalhos sobrevivem? Muito pouco! Esta é a nossa resposta. Além de nossas frases prontas aprendidas nas escolas e revestidas de preconceitos de superioridade colonial, muito pouco sabemos. Grandes esforços são feitos hoje para reconstruir algo a paritr dos fragmentos que ficaram.

Semelhantemente ao que se deu com os povos indígenas, as religiões cultivadas pelos milhões de negros trazidos escravos da África foram cruelmente anuladas, tendo que sobreviver na clandestinidade. Bendita clandestinidade!

A história, aliás, é pródiga em nos ensinar que o ser humano não se deixa aprisionar, nem mesmo pelas civilizações mais poderosas. Neste nosso Brasil, 500 anos depois do início da colonização portuguesa, crenças antigas e tradicionais de nossos povos indígenas reencontram a sua legitimidade e mais do que nunca as religiões de raízes africanas passam a ter visibilidade na sociedade.

Hoje ainda se ouve de vez em quando alguém dizer que a religião oficial do Brasil é a católica… Isto não é verdade. O Brasil deixou de ser um país oficialmente católico em 1889, com a separação entre Estado e Igreja. Foi uma das coisas boas da República. A partir deste ato de separação entre o Estado e a Igreja, abriu-se o espaço para a liberdade de expressão religiosa. As Igrejas evangélicas passaram a ter a sua presença legitimada, apesar dos grandes esforços que a Igreja católica fez no início da República por estabelecer limites legais a isto. O meio evangélico hoje, 500 anos depois da declaração do Brasil como país católico, apresenta em geral um grande dinamismo, destacando-se sobretudo em sua vertente pentecostal. Esta vertente demonstra uma crescente expansão, sobretudo através da versão neo-pentecostal. Ao lado de um forte esquema de pertença e de fidelidade doutrinal, bem disciplinado, nas Igrejas pentecostais mais antigas, como as Igrejas Assembléia de Deus, a Congregação Cristã do Brasil e outras, pode-se observar um fenômeno de oferta e procura da “cura divina” e atenção às necessidades imediatas mais diversas, que se acentua cada vez mais, particularmente através de Igrejas mais recentes, como a Igreja Universal do Reino de Deus e outras, que passaram a ser conhecidas como neo-pentecostalismo.

A expansão religiosa não foi só por fora da Igreja católica. Ela se deu de forma intensa e crescente por fora dos horizontes do cristianismo como um todo. É, neste sentido, por exemplo, fortemente característico do Brasil o meio “mediúnico” ou “de possessão”, composto pelo Espiritismo kardecista e, de modo especial, pelas religiões de raízes africanas, sobretudo o Candomblé sob todas as suas formas e expressões. As estatísticas dos recenseamentos indicam um número relativamente limitado de adeptos, pois trata-se de formas complementares ou substitutivas ao que é proposto na religião católica. Neste meio pode-se destacar a Umbanda, como sendo uma religião tipicamente brasileira. Trata-se de uma religião criada durante os anos 1920 e ela está fortemente marcada por tradições africanas, pela tradição “mediúnica” do espiritismo kardecista (de Allan Kardec) e pela tradição católica. Encontram-se nela, também, influências religiosas indígenas e outras. Ela se define pelo exercício da caridade e volta-se muito para a questão da cura: uma cura ao mesmo tempo psíquica, social e cósmica. “A Umbanda é, para seus adeptos, muito mais satisfatória que a medicina, que só se ocupa do corpo, e aquelas religiões, que se ocupam só da alma”, como me disse uma Mãe de Santo. Em recente pesquisa que realizamos no município de Cachoeirinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre, desenha-se de forma exemplar um quadro religioso que talvez possa ser generalizável para muitas situações. Trata-se de um município urbano onde sempre predominou a Igreja católica, enquanto tradição religiosa. O município tem um total de 120.000 habitantes, sendo que destes, 37.000 freqüentam algum culto, sessão, missa ou celebração religiosa semanalmente. Isto representa um pouco mais de 32% da população. No entanto, se observarmos o número total de pessoas que freqüentam, isto é as 37.000), veremos que se destacam os adeptos das Igrejas pentecostais e neo-pentecostais. Dos freqüentadores religiosos semanais, 48% são do meio pentecostal ou neo-pentecostal. O meio católico soma 31%. Na seqüência temos o conjunto das Igrejas Evangélicas históricas  com 10%, as Religiões de raízes africanas e as de Umbanda com 4,3 %, em seu conjunto, as Espíritas kardecistas com 3,4% e outras diversas com 1,9 %. (Note bem: estes percentuais são calculados em referência ao total dos 37.000 freqüentadores semanais de cultos, sessões, missa ou celebrações religiosas.)

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