O PAPEL DO INTELECTUAL NO MUNDO ATUAL

José Ivo Follmann – Aula Inaugural no Mestrado em Educação, 03 de março de 1997

O texto aqui publicado reproduz literalmente a palestra e todo o diáologo e troca de idéias que se seguiram na oportunidade. O conteúdo da palestra foi reproduzido em forma de artigo: O Papel do Intelectual no Mundo Atual. Revista Estudos Leopoldenses, Série Educação, V. 1, N. 1, 1997, p.9-26.

Palavras introdutórias

O tema que a Coordenação e o Colegiado deste Programa de Mestrado me propõe para a aula inaugural deste ano é sem dúvida um tema de grande responsabilidade, dado o grupo de intelectuais que aqui participa, e é também um tema terrivelmente desafiador, se considerarmos o “mundo atual” no qual vivemos. O peso da responsabilidade e a profundidade do desafio, por um lado, se desfazem um pouco quando sei que se trata de um tema no qual todos os participantes desta aula têm muito caminho andado e muitas sinalizações de caminhos a fazer e a andar, tendo consequentemente muito a contribuir, mas eu, por outro lado, estaria sendo irresponsável, como professor e, enquanto tal, intelectual, se o desafio de ajudar a recolher e a organizar estes caminhos andados (passado) e as sinalizações existentes (futuro), não fosse a minha preocupação principal também neste momento (presente).

Em outras palavras, para redizer e complementar estas frases introdutórias, eu não estaria sendo fiel ao tema proposto, se não prestasse atenção ao que está expresso no Ofício, que a Comissão Coordenadora do Mestrado me dirigiu, convidando-me para a presente participação. Diz o Ofício: “Na Reunião do Colegiado resolvemos propor como tema para este primeiro encontro do ano: O papel do intelectual no mundo atual. Acreditamos que, assim, estaremos fomentando a reflexão conjunta em torno de nossa tarefa como Mestrado.”  Sugere-se aqui uma pequena perversão do conceito de “aula inaugural”, com a qual eu concordo plenamente. Uma aula inaugural é, por definição, um discurso de sapiência (oração de sapiência) proferido pelo Reitor, Diretor ou algum Professor na abertura de um Curso. Diga-se: para criar um impacto bom e positivo no grupo… Não é nesta linha que estou pensando, nem a Coordenação e o Colegiado pensam. (Se estivessem com este pensamento certamente teriam procurado outra pessoa para falar…) Minha sugestão quer fazer diretamente juz ao que o Ofício invitatório indica. Assim, a partir de algumas poucas colocações iniciais que me proponho a fazer, de uma maneira suficientemente clara e sobretudo aberta e sem demasiados ordenamentos limitativos e inibitórios, sugiro que entabulemos, na sequência, uma reflexão conjunta sobre o tema. Aliás, não quero estar enganado quando penso que todos aqui estão de acordo que uma aula, mais do que discurso de sapiência, é sempre espaço para a reflexão conjunta, sob a animação de um professor. (Observe-se de passagem que a atividade do professor em sala de aula, neste sentido, é atividade intelectual por excelência: o professor no caso se empenha junto com os alunos em ordenar e reordenar saberes, tendo em vista o que cada integrante do grupo vivencia e presencia no seu cotidiano.)

A temática desta aula é, sem dúvida, de fundamental importância dentro do contexto de um Mestrado em Educação voltado para a Educação Básica. (Se lermos a nova LDB encontraremos muitas justificativas para esta afirmação). O esforço todo que se faz aqui neste Mestrado – se quiserem  corrigir-me ou complementar, por favor, façam-no, antes que eu diga inverdades! – está em fazer deste programa um meio de criação intelectual conjunta ou coletiva profundamente ligada ao processo social que vivemos e que é vivido pelas crianças, pelos jovens e pelos adultos que participam no processo de educação básica. Este Mestrado se pauta por uma determinada concepção de intelectual: não se busca a formação de meros reprodutores do saber bancado por professores bem formados – ou bem “deformados”, se quiserem; todo empenho se volta por oportunizar e fornecer apoios para o trabalho de produtores do saber. O trabalho que é assim oportunizado e apoiado é um trabalho não individual mas coletivo. Isto não é algo óbvio e que se encaminha facilmente mediante um roteiro de boas intenções. Trata-se de um desafio muito grande dentro do meio acadêmico em geral e do meio acadêmico de pós-graduação em particular. O respeito aos saberes dos alunos, o respeito aos saberes acumulados de todo grupo e dos outros em geral, nem sempre é suficientemente exercitado por quem não têve esta oportunidade em sua dura e árdua trajetória de estudos… (Ou então: por quem se vê, no cotidiano acadêmico, submetido a um insano clima de competição – alguns chamam de sadio clima de competição! -, de conquista e preservação de espaços.)

Obviamente não estou trazendo uma proposta “populista”, lembrando a concepção de “intelectual populista” conforme Horácio Gonzalez. Não quero ser “maldito” por tão pouco… Não tenho, no entanto, a menor dúvida de que o intelectual em geral – e o professor, em particular – não sobrevive bem sem algumas boas pitadas de “populismo” e de “provocação da maldição”.[1]

Para meu gosto pessoal, é preferível sem dúvida ser um intelectual maldito por excesso de “populismo” do que sofrer a maldição do intelectual prepotente e inadaptado, que confunde o “ser intelectual” com sofisticação do arquivo pessoal, com acumulação privada de conhecimentos ou com erudição nos saberes.

Do jeito como vão as coisas, ao nível da informatização, o ser intelectual exigiria hoje mais do que acumular e armazenar conhecimentos, saber acessar os mesmos. Na verdade, o ser intelectual tem muito pouco a ver com isto, ou seja: com acúmulo de conhecimentos de dados ou de técnicas de acessamento aos conhecimentos ou com erudição. O ser intelectual tem muito pouco a ver com capacidade e oportunidade de armazenagem.

Aliás não há intelectuais mais malditos numa Universidade do que aqueles que muito armazenaram e pouco são capazes de reconhecer o que está fora de seu armazém. (Nem sempre são tão malditos assim. Às vezes são bem e belamente idolatrados, não sem bafejos de ingenuidade e alienação. Isto faz parte da patologia acadêmica!…)  Hoje os computadores – em concorrência desleal, diga-se de passagem! – estão tomando o lugar destes “intelectuais”.

A rigor, mais uma vez estou introduzindo um pequeno viés de perversão conceitual uma vez que os dicionários da língua portuguêsa colocam o “ser intelectual” como sinônimo de ser portador de grande cultura, de ser dotado de inteligência e de ser prendado de dotes do espírito. Notem bem, eu não estou pregando a não importância de todas estas coisas. São importantes e fundamentais. O perigo está em confundir o ser intelectual com tudo isto, em reduzir o ser intelectual a estes aspectos que são puramente meios instrumentais.

Henry A. Giroux fala amplamente disto e cita palavras de Antonio Gramsci, fazendo uma crítica a esta maneira de ver o fruto da atividade intelectual, como “sinônimo de conhecimento enciclopédico, onde em consequência o homem é visto como um simples depósito no qual se colocam e conservam dados empíricos ou fatos brutos isolados, sendo arquivados posteriormente em seu cérebro como nas colunas de um dicionário de tal forma que, no tempo devido, (o homem) seja capaz de responder a diversos  estímulos do mundo externo. … (Isto) só serve – continua Antonio Gramsci – para criar inadaptados, pessoas que se consideram superiores ao restante da humanidade por ter acumulado na sua memória uma certa quantidade de fatos e datas, que eles exibem, a tempo e fóra do tempo, até o ponto de levantar quase uma barreira entre eles mesmos e os demais”.[2]

Ao reler estas palavras de Antonio Gramsci, não posso deixar hoje de relembrar um fato que aconteceu comigo há alguns dias atrás… No final da tarde, na hora do meu chimarrão à sombra em frente à casa, estava conversando com um conhecido meu, seu Lorineo, morador do Bairro, que, de passagem, aproveitou para puxar uma prosa. Falando do clima, das dificuldades para conseguir trabalho, da vida dos outros, lá pelas tantas eu disse: “Pois é, na segunda-feira próxima eu vou ter que falar uma palestra na UNISINOS sobre “o papel do intelectual no mundo atual”… Lorineo, o que tu dirias se eu te perguntasse, para que servem os intelectuais hoje?”… Ele ficou quieto, terminou o chimarrão pensativo como quem está buscando uma resposta à altura, passou a cuia, enxugou o suor, depois disse (meio desajeitado, meio incomodado com a pergunta inoportuna, imprópria e talvez arrogante): “Olha! A palestra é na UNISINOS? Se eles não sabem, eu vou saber? Vou te dizer uma coisa! Se eu soubesse a metade sobre este assunto, eu até te daria algumas idéias para discutir…” “Como assim?” perguntei. “Ah! é assunto muito complicado! Isto aí é só pra…”, disse ele. Já que eu tinha entrado na conversa, continuei: “Pois, para mim, todos são intelectuais. Não sei porque tu dizes que este assunto está tão longe e está tão fóra do alcance! Por acaso as pessoas não pensam, não se planejam, não se organizam, avaliam a sua vida e a dos outros? Para fazer isto, usa-se a inteligência. Quem usa sua intelegência para organizar sua vida e às vezes também a dos outros é um intelectual. A nossa maneira de viver e pensar é a nossa cultura, o intelectual é quem organiza a cultura. Sempre estamos organizando nossa cultura…” Eu já estava começando a me incomodar por estar misturando a linguagem que preparava mentalmente para a fala de hoje e a linguagem daquele chimarrão com o Lorineo, quando ele quebrou mais uma vez o silêncio e disse com um sorriso denunciador: “É, mas tem muita gente por aí que organiza é a sua “curtura”. De cultura não tem nada! Quando se precisa deles para pensar um pouco no bem dos outros, sempre dizem que não sabem, que isto é para os outros, mais preparados. E quando os outros fazem, tascam o pau em cima!” Eu ri. Fui guardar a cuia e disse: “É verdade! Pois sabes, eu acho que vou falar isto que tu acabas de dizer, nessa palestra!” Ele riu, achando que eu estava de gozação. Depois fiquei refletindo e tive a impressão de não ter entendido todo o alcance daquilo que Lorineo dissera… O fato é que nós dois estávamos brincando com a palavra cultura: enquanto ele se referia à “curtura” dos não cultos, na minha cabeça passavam terríveis maus pensamentos a respeito da “curtura” dos cultos.)

A concepção enciclopédica e de intelectual erudito está de mais a mais condenada a não ter público. Se fôsse uma concepção relevante figuraria talvez na galeria de quadros de intelectuais de Horácio Gonzalez; ele teria incluído, entre seus tipos, o “intelectual enciclopédico” ou “intelectual erudito”. Estes “intelectuais” estão sendo superados pelos cérebros eletrônicos, assim como as máquinas de escrever e as impressoras tomaram o lugar dos amanuenses em outros tempos…

As minhas colocações, repito, apesar de toda ênfase com que as palavras vêm carregadas, não querem investir contra a existência dos grandes sintetizadores do conhecimento humano, dos grandes organizadores da cultura ou dos “grandes intelectuais”. A importância e a necessidade destes intelectuais é indiscutível. Ao longo da história do pensamento e das idéias em nosso século, uma contribuição importante, neste sentido, foi a de Karl Manheim com a sua concepção de “intelectualidade desvinculada”, a “intelligentsia” (“Freischwebende Intelligenz”).[3] Seria uma intelectualidade que consegue pairar acima das influências ideológicas existentes e contribuir para as grandes sínteses válidas para todos os grupos.

Não devo estar muito enganado se disser que estamos próximos aqui da concepção de “grande intelectual” de que fala Antonio Gramsci, tanto na sua forma de “intelectual cosmopolita” quanto na sua forma de “intelectual nacional-popular”. Numa tentativa de sintetizar de uma forma bem suscinta parte da contribuição deste autor, pode-se dizer que o “cosmopolita” é o organizador da cultura humana, – se é possível falar assim! – e o “nacional-popular” é o organizador da cultura de uma nação, de um povo.

Peço desculpas pelo “trançado improvisado” que coloca lado a lado, dois autores, que a rigor são muito diferentes. Faz parte do que estou tentando dizer…

O ser intelectual, no nível aqui expresso, implica no cultivo de espírito livre, não diretamente vinculado a organizações e interesses ideológicos, políticos e econômicos muito determinados. Faz parte da liberdade do ser intelectual, estar aberto ao outro. Karl Manheim fala da importância de se forjar isto com o máximo de frequência possível mediante a aproximação de diferentes pontos de vista. (Devo confessar que sempre tive muitas simpatias por esta contribuição mannheimiana. Apesar dos preconceitos existentes na época, lidei muito com este autor nos meus tempos de estudos de graduação em Ciências Sociais!) A abertura para diversos pontos de vista é fundamental para que seja preservada esta liberdade frente às parcialidades demasiadamente reduzidas, fechadas e ofuscadas. Ser intelectual é ser interdisciplinar.[4]

Aliás o que se denominou nas últimas décadas de “crise de paradigmas” não passa de um colocar definitivamente em xeque as “perspectivas unívocas”, as “explicações fechadas” e as “teorias prontas e incontestáveis”. É sem dúvida um novo tempo de avanço intelectual.

Peço que me permitam um pequeno depoimento pessoal, que servirá inclusive para ajudar a ordenar a reflexão que estou apresentando aqui. Tive pessoalmente a rica oportunidade de ser orientado na elaboração da tese de doutorado, por Jean Remy um sociólogo que se destaca por cultivar a importância de trabalhar simultaneamente diferentes pontos de vista teóricos sem deturpar o que há de genuinamente específico e novo dentro de cada uma das contribuições. Habituei-me a abordar a realidade social, ao mesmo tempo, a partir de uma perspectiva que destaca a “lógica dos movimentos sociais”, de uma perspectiva que destaca a “lógica dos campos de atividade” e de uma perspectiva que destaca a “lógica do sujeito e da dinâmica pessoal”.[5]

Em Busca de um Esquema Analítico

O ser intelectual hoje tem muito a ver com movimentar-se com liberdade no meio da complexidade do mundo atual. Ajudar a humanidade a dar conta da complexidade. Ajudar a humanidade a organizar-se de tal forma que as pessoas não acabem esfaceladas e estraçalhadas. É neste sentido que temos grandes e provocadoras contribuições de Edgar Morin.[6]

Os três recortes teóricos trabalhados em conjunto não pretendem evidentemente dar conta da complexidade da realidade social, mas para mim esta maneira de trabalhar está sendo muito proveitosa para garantir uma certa distância frente a posturas dogmaticamente fechadas. Ao mesmo tempo que ajudam nos estudos sociológicos, são também referências importantes nas atividades de intervenção no processo comunitário e social e contribuem especialmente na própria construção e reconstrução constante da identidade de quem reflete e atua.

Apresentarei aqui os mesmos três recortes, para, num esboço ainda em fase bem tateante, mostrar como esta maneira de trabalhar teoricamente pode ser útil na organização de nossa reflexão sobre os intelectuais e seu papel no mundo atual.

Neste sentido, quero sugerir em seguida algumas notas, mais ou menos arranjadas dentro de cada um dos recortes. As idéias sugeridas não são acabadas e devem ser retomadas, ampliadas e corrigidas, em nossa reflexão conjunta a seguir e sobretudo nos muitos encontros que vocês terão em seus seminários e trabalhos de pesquisa durante o tempo de Mestrado.

1 –

Primeiramente, podemos alinhar algumas idéias sobre o papel dos intelectuais, tendo presente, como referência principal, a existência do conflito central dentro da sociedade, estando em questão a apropriação e gestão de sua historicidade. Trata-se da perspectiva teórica que estuda a sociedade através do estudo dos movimentos sociais que a constituem, ou seja: a categoria movimentos sociais está posta em primeiro plano no trabalho de interpretação. Temos presente particularmente a perspectiva que Alain TOURAINE seleciona em seus estudos da sociedade.  Tem-se aí o papel dos intelectuais sendo organicamente alinhado em função do conflito central referente à auto-produção da sociedade, marcado pela “lógica dos movimentos sociais”.[7]

Pensando a sociedade em seu processo de produção de si mesma, nós podemos apontar basicamente para três grandes motores ou geradores deste processo: o confronto sócio-econômico (de classes) através da luta sindical, o confronto político (de conquista de poder) através da luta partidária, o confronto sócio-cultural (espaço da sociedade civil) através dos mais diferentes movimentos e organizações sociais e culturais. No centro de tudo, estão os intelectuais como os organizadores e dinamizadores deste processo, em suma como os organizadores e dinamizadores da própria sociedade. Entra aí o conceito de “intelectuais orgânicos” de Antonio Gramsci.

Uma das maiores contribuições no debate sobre o intelectual está, sem dúvida, em Antonio Gramsci. Já referimos anteriormente a sua concepção de “grande intelectual” (cosmopolita e nacional-popular). O que mais repercutiu, no entanto, é a sua concepção de “intelectuais orgânicos”, como já foi mencionado também, tanto de um lado os organizadores da ideologia da classe dominante, quanto por outro lado os organizadores da contra-ideologia e dos interesses das classes populares.Isto tanto no nível das classes, como dos agrupamentos políticos e das organizações da sociedade civil em geral.

Em cada organização, agrupamento, partido, classe etc existem aqueles que têm a função de intelectual e que exercem o papel de intelectual.[8] O intelectual, neste sentido “orgânico”, não é mais um puro (desinteressado) pesquisador da verdade. Ele se afigura como agente de interesses sociais definidos. Segundo Antonio Gramsci, o intelectual assim assume o papel de “dirigente orgânico” dedicando-se “ativamente à vida prática como construtor, organizador e persuasor permanente”.[9] Aliás, segundo o autor, todos os que exercem funções organizativas na sociedade estão desempenhando o papel de intelectual.

(Cabe aqui um pequeno comentário, entre parêntesis: Existe uma diferença radical entre a maneira como Vladimir I. Lênin percebe o intelectual e seu papel e a maneira como Antonio Gramsci o percebe. V.I.Lênin tem no todo uma concepção muito mais iluminista de intelectual do que A.Gramsci, o qual, ainda que estando próximo do mesmo na sua concepção de “grandes intelectuais”, ao trabalhar a concepção de “intelectual orgânico” em contraposição a “intelectual tradicional” está introduzindo um diferenciador grande em relação a V.I.Lênin. Para A.Gramsci a rigor a condição de intelectual é definida pelo seu caráter de ser um organizador, um conectivo, assegurador da dominação e da hegemonia entre as classes. Em V.I.Lênin é diferente: o intelectual segundo ele é definido assim pela dimensão analítica superior de que é portador e pela coerência das teorias às quais chegou por meio de estudo.[10])

– 2 –

Este parêntesis comparativo entre V.I.Lênin e A.Gramsci nos introduz em nosso segundo recorte… Se olharmos o papel dos intelectuais sob o ponto de vista dos campos de atividade, outros aspectos estarão realçados em primeiro plano, pois dentro deste ponto de vista teórico temos como referência principal o espaço social onde se realizam a reprodução e a produção da sociedade “distribuídas” pelas diferentes atividades, tendo cada uma sua lógica social própria.

Quando falávamos anteriormente dos três motores impulsionadores dos movimentos sociais, ou seja, os três grandes níveis de confronto dentro da sociedade, já estávamos de certa forma introduzindo a temática dos campos de atividade. Não podemos complexificar muito a nossa análise. No caso concreto de nossa reflexão aqui, certamente interessa mais diretamente que nos voltemos para o campo educacional, pensando sobretudo determinado tipo de intelectual que são os intelectuais presentes no sistema educacional.[11]

Os campos de atividade se constituem na medida em que a sociedade se percebe necessitada de organizar-se em função da produção, do cultivo, da distribuição, da normatização, do consumo de bens com especificidade própria. Em cada campo sempre há os grupos (ou um grupo) que chegam a ser reconhecidos e legitimados como os produtores dos bens e de sua normatização.[12] Estes grupos são sempre vistos como “mais fortes” dentro do campo – e isto assume as mais diversas nuances! – enquanto que os demais permanecem numa situação de ter que conquistar espaço para também terem vez. Estes últimos indivíduos ou grupos sempre deverão ser muito melhores que os primeiros para terem alguma chance… Isto na saúde (medicina), na economia, na religião, na política, na jurisprudência, no esporte, na educação. Quem são os principais “jogadores” neste embate? São os intelectuais, ou melhor: os “intelectuais orgânicos” e os “intelectuais tradicionais”. A referência aqui ao intelectual tradicional faz muito sentido, pois neste embate de campos de atividades, joga forte a própria força da instituição enquanto tal. O intelectual tradicional, no sentido gramsciano do termo, ajuda a conservar e a reproduzir as instituições.

No campo educacional, por exemplo: que tipo de intelectuais encontramos? Quais são os intelectuais, no campo educacional? Poderíamos fazer uma grande lista, que vai desde legisladores do ensino até chefes de serviços de apoio didático para as salas de aulas numa escola. Os professores são os intelectuais que mais diretamente nos interessam aqui. O professor pode ser um simples intelectual executor das suas tarefas – isto é: daquilo que ele entende como suas tarefas! – e garantidor do bom funcionamento de sua escola e, neste sentido, um bom intelectual tradicional e talvez também orgânico dos interesses dominantes. Normalmente estes professores, que são muito úteis para a escola, se olharmos de uma certa perspectiva, não são vistos como intelectuais e nem se percebem como tal. Aliás é bastante comum que professores esqueçam que são intelectuais ou, então, que simplesmente não se assumam como intelectuais!…

Segundo Henry A. Giroux, os professores além de serem intelectuais devem primar por ser “intelectuais transformadores”, e isto em vários níveis de envolvimento: – fazendo do ensino uma prática emancipadora; – contribuindo na criação das escolas como espaços públicos democráticos; – ajudando a recuperar uma comunidade de valores progressistas compartilhados; – fomentando um discurso público comum ligado nos imperativos democráticos da igualdade e da justiça social.[13]

Aliás, deixem que eu introduza aqui uma outra questão, que tem a ver com o que eu estava dizendo acima sobre os grupos ou individuos “mais fortes” etc. dentro dos campos de atividade… Trata-se de algo que pode ser considerado de muita pertinência na reflexão sobre o papel dos intelectuais em geral e o papel dos intelectuais no campo educacional. Trata-se da questão poder, dos grupos de poder. O poder da nomeação. O poder da autorização… O poder do carimbo: “Estou de acordo!”… Vejo-me diariamente na situação ridícula de escrever “estou de acordo!”, quando as coisas estão decididas e bem decididas e não há nada a pôr nem a tirar. Mas o carimbo legitima. O poder da nomeação aliás é algo fantástico para o ser humano. Poder dizer: “Isto é assim! Isto está correto! Isto está errado!” e os outros acreditarem, é muito sedutor… Afinal temos dentro de nós uma vocação criadora e este tipo de coisas pode, erradamente ou não, estar preenchendo este anseio…

“Todo agente social aspira, na medida de seus meios, a este poder de nomear e de constituir o mundo nomeando-o: mexericos, calúnias, maledicências, insultos, elogios, acusações, críticas, polêmicas, louvações são apenas a moeda cotidiana dos atos solenes e coletivos de nomeação, celebrações ou condenações de que se incumbem as autoridades universalmente reconhecidas.”[14]

Dentro de uma outra perspectiva, ou complementando estas colocações, a “nomeação” é importante para a sobrevivência de uma organização ou de um grupo. Existe aliás algo de mágico nisto tudo… Os grupos, as organizações necessitam de pessoas para as quais possam passar plena procuração em determinados momentos. Estas pessoas passam a ser o substituto, porta-voz, com poder pleno de falar em nome do grupo.[15] Quando temos algum tema polêmico, por acaso não tendemos em geral a convidar alguém de confiança (afinado conosco) e que seja, de preferência, autoridade reconhecida (nomeada!), para falar sobre o tema? Ele estará levantando, de certa forma, em nome do grupo, as questões que os integrantes do grupo gostariam de colocar…

– 3 –

Finalmente, o intelectual é visto, em primeiro lugar, como um sujeito. Ele pensa, sente, planeja, ama, odeia, avalia, calcula tem coragem e tem medo. A lógica do sujeito e a dinâmica pessoal devem ser levadas em conta como aspectos fundamentais em nossas reflexões sobre o papel dos intelectuais.[16]

Tudo o que falei acima sobre os intelectuais e o conflito central na produção da sociedade de si mesma e sobre os intelectuais e as lógicas dos campos de atividade, faz parte do cotidiano, mas nele estão implicadas mais coisas. Estão implicados todos os atributos dos sujeitos individuais que acabo de enumerar. São estes atributos que trazem à tona diretamente a questão do cotidiano.

Falar em papel do intelectual no mundo atual sem passar por esta questão do cotidiano seria uma abordagem demasiadamente truncada. Ou o intelectual se faz em interação com a complexidade do seu próprio cotidiano e do cotidiano de seu grupo e de sua organização, ou é um intelectual pela metade… Agnes Heller nos ajuda a refletir nesta linha: “A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico. Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humano-genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao contrário, não há nenhum homem, por mais ‘insubstancial’ que seja, que viva tão-somente na cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente”.[17]

Este fazer-se em interação na complexidade do cotidiano ajuda o desabrochar do ser intelectual, dando-lhe mil oportunidades diárias para colocar entre parêntesis os próprios dogmas e preconceitos. O ser intelectual se faz na medida em que houver esta coragem. A alma do ser intelectual é o amor da verdade acima de tudo. Quem busca a verdade nunca tem medo das outras posições, das outras perspectivas, da multiplicidade do diferente. Ele de preferência busca as outras perspectivas e o diferente, para sentir-se confrontado, para complementar seu ponto de vista, para corrigir seu ponto de vista. A busca sincera do avanço da “verdade científica” não é normalmente um caminho tranquilo e atapetado de rosas… Se há rosas, elas não existem, certamente, sem espinhos!…

Aliás, toda esta questão do envolvimento pessoal, do sofrimento, da necessidade da humildade e da não subserviência para que haja objetividade, traz à baila também uma importante questão ética. O ser humano é um ser complexamente atravessado por forças diferentes e muitas vezes contraditórias. Max Weber, refletindo sobre a vocação do cientista e do político, aponta para duas direções éticas diferenciadas, aparentemente contraditórias na administração desta complexidade que é o ser humano em seu convívio cotidiano interpessoal e profissional com os demais. Trata-se do lado mais de responsabilidade funcional do indivíduo e do lado mais das suas convicões e valores pessoais. Segundo este grande clássico da sociologia alemã, as duas direções éticas são irredutíveis uma à outra. Esta irredutibilidade entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção, no entanto, não quer sinalizar que se possa simplesmente dizer que a ética da convicção é o mesmo que ausência de responsabilidade e que a ética de responsabilidade é o mesmo que ausência de convicção. Pelo contrário, elas na sua complementação mútua vem a constituir o que Max Weber denomina de “homem autêntico”. “A ética da convicção e a ética da responsabilidade não são contraditórias, mas elas se complementam uma à outra e constituem juntas o homem autêntico”.[18] “Segundo Jean Remy, o indivíduo na concepção sociológica weberiana é um indivíduo puxado ou assediado tanto pela intensa racionalidade expressa na ética da responsabilidade, quanto por uma certa dose de irracionalidade expressa na ética da convicção”.[19]

Esta reflexão faz-nos retornar à questão das lógicas dos campos de atividade. Experimento isto muito na minha vida pessoal como engajado diretamente no trabalho pastoral da Igreja, por um lado, e como profissional sociólogo, por outro lado. Aprendi muito do orientador de minha tese de doutorado neste sentido. Ele não se cansava em insistir nos cursos e palestras sobre a importância de cuidar para não confundir ou misturar caóticamente o plano do conhecimento técnico-científico e o plano da fé, mas viver os dois planos de forma autêntica. “Nenhuma religião, dizia ele, subsistiria se os intelectuais que estão à sua frente reduzissem todas as suas decisões a apoios fornecidos pelo conhecimento técnico-científico. Como também nenhum empreendimento técnico-administrativo ou de estratégia política subsistiria se seus intelectuais se deixassem arrastar pelas crenças e convicções religiosas suas ou de outros!”

Desafios a partir do mundo atual

Peço mais uma vez desculpas se as minhas colocações estão um pouco desalinhadas e às vezes carecendo de uma construção mais acurada, isto é devido ao contexto em que o presente texto foi elaborado. Trata-se de uma construção (se quiserem: bricolagem) feita aos pedaços e fragmentos, no meio de infindos espasmos burocráticos dentro da atual função que ocupo na Universidade. Aliás, devo confessar que estou descobrindo, talvez a duras penas, que os ofícios ou cargos administrativos são um lugar específico e tremendamente desafiador para o ser intelectual.

Não quero deixar passar este momento de fala sobre o papel do intelectual num ambiente tão privilegiado como é este do Mestrado em Educação, sem sinalizar dois pontos de suma importância e urgência. Não estou com isto interferindo em nada no planejamento e na responsabilidade da Coordenação e do Colegiado deste Programa, que evidentemente está muito além do que aqui consigo apontar na minha pobre contribuição. Peço licença para lançar, com toda simplicidade, duas pequenas referências a mais para nossa reflexão neste momento.

Em primeiro lugar, creio ser um desafio importante para o nosso ser intelectual, aprofundar a discussão das linhas de pesquisa. E eu destacaria um aspecto de fundamental importância no fazer ciência, que está relacionado com linha de pesquisa: trata-se do trabalho intelectual coletivo, da produção coletiva do saber. É necessário um constante esforço por romper nossos pequenos isolacionismos e nossas construções muito em cima dos interesses pessoais de cada pesquisador. Levar a sério a discussão de linhas de pesquisa, no meu entender, implica em primeiro lugar nisto, neste fazer coletivo. Aliás, talvez seja oportuna a lembrança aqui do depoimento de um grande intelectual, que foi Georg Lukacs. Dizia ele: “Sinto-me na obrigação de destacar que minhas obras não são de modo algum o resultado do feliz êxito de um único indivíduo. Ao contrário, se meus escritos forem estudados à luz de suas origens e de seus efeitos imediatos, tornar-se-á cada vez mais claro que minha atividade teórica jamais foi a atividade de um pensador ‘isolado’, mas sempre foi – e o é cada vez mais – algo dirigido para o estabelecimento de uma linha de pensamento, de uma escola…”[20]

Nós precisamos ser coletivos em nosso fazer ciência, em nosso ser intelectual. É necessário romper o fácil isolacionismo. Precisamos construir escola! Linhas de pesquisa levadas a sério são um caminho para tal.

Um segundo desafio fundamental que não quero deixar de mencionar, apesar de estar com isso obviamente “chovendo no molhado” aqui neste egrégio ambiente, é a importância de, como Mestrado em Educação, aprofundarmos o estudo da nova LDB (Lei e Diretrizes de Base) e darmos assim a nossa contribuição para a comunidade acadêmica da Universidade e para os demais intelectuais do meio educacional na leitura da nova LDB do sistema educacional brasileiro.

O título que foi sugerido para esta aula envolve, além do “papel do intelectuais”, a preocupação com o “mundo atual”, ou seja: qual o papel dos intelectuais no mundo atual? Não posso, por isso, deixar de apontar alguns elementos de reflexão especificamente sobre como vejo o “mundo atual”, antes de abrirmos para nossa reflexão conjunta.

Em primeiro lugar, gostaria de observar que o intelectual é um organizador do “atual” vinculando-o ao “não-mais-atual” e ao “ainda-não-atual”. Em outras palavras, um organizador do presente levando em conta o passado (acumulação teórica e experiência histórica) e voltado para o futuro (visão de futuro).

O que caracteriza o “mundo atual”?  Digo algumas coisas. Trata-se de algumas indicações para a reflexão conjunta que seguirá. Para não me estender demasiadamente e talvez ir diretamente a alguns pontos que interessam mais imediatamente, vou ater-me a aspectos culturais da sociedade brasileira no mundo atual…

A sociedade brasileira vive hoje uma crise cultural muito grande. Em recente documento da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)[21], são apontadas algumas marcas que caracterizam a sociedade brasileira no momento histórico que vivemos. Seus autores colocam estas características como heranças dos desdobramentos da modernidade em nossa sociedade. Segundo o documento, deve-se destacar, a expansão do pluralismo cultural, a inversão paradoxal no avanço tecnológico e a crescente explicitação da falência das promessas da mesma modernidade.

O clássico rompimento entre a cultura e o sistema econômico e político que a modernidade trouxe, abre os caminhos para a diversificação cultural, com maior ou menor intensidade conforme as condições existentes. No Brasil, como em outros países semelhantes, historicamente constituído da convergência forçada de etnias, culturas e religiões diversas, as condições são muito favoráveis para a manifestação de um mosaico cultural extremamente variado.

Se isto, por um lado, é facilmente constatável, também não há como duvidar, por outro lado, que as gritantes contradições dos avanços tecnológicos, colocando lado a lado o incremento de indubitáveis vantagens para a humanidade e o aumento das desigualdades sociais e das discriminações, têm no Brasil de hoje um de seus palcos mais ostensivos.

A par de tudo isto, cresceu nos últimos anos no Brasil, como no Ocidente em geral, a consciência dos limites dos avanços da humanidade, que se elabora na constatação diária da falência das promessas de acesso universal ao bem-estar.

Estes três elementos, que sintetizamos a partir do Documento referido, constituem o substrato básico da crise cultural que se manifesta no Brasil de hoje.  Esta se manifesta sobretudo como crise generalizada de valores e de sentido da vida acompanhada por uma aguda crise de lideranças. Isto vem reforçado se levarmos, por exemplo, em conta as três perspectivas teóricas apontadas anteriormente. Podemos apontar como desafios para os intelectuais, no momento em que vivemos, os seguintes três pontos característicos: 1) dentro da “lógica dos movimentos sociais”, a falta de alternativa global, a queda do “muro de Berlim” continuando a ter seus efeitos; 2) dentro da “lógica dos campos de atividade” a presença de um esfacelamento e fragmentação, com uma infinda multiplicação de campos; 3) dentro da “lógica dos sujeitos” a crescente manifestação da trivialidade e da superficalidade corroem violentamente a dinâmica pessoal dos indivíduos.

Por dentro da crise, assim descrita e analisada, manifestam-se alguns fenômenos de extrema relevância que devem ser registrados aqui. Aqui vou orientar minha colocação apoiando-me mais diretamente em alguns fenômenos específicos, os quais em grande parte são decorrência de tudo isto.[22] Em seguida, levantarei algumas interrogações numa linha de análise e de reflexão sobre o papel dos intelectuais no mundo atual.

1) É apontado em primeiro lugar o individualismo, em sua forma narcisista mais extrema, onde o indivíduo, na total perda de valores alheios a seus interesses pessoais, se concentra cada vez mais sobre si, descomprometendo-se com o comunitário e com iniciativas que apelem à solidariedade. Isto provoca a crescente perda do sentimento de responsabilidade coletiva e comunitária, onde a atitude do “levar vantagens em tudo” (lei do Gerson) transforma-se no caminho do isolamento das pessoas no seu individualismo narcisista obstruindo todo acesso ao espírito de solidariedade.

2) O imediatismo está diretamente associado a este individualismo, com a preocupação de viver-se intensamente o momento presente, como o difundido nos MCS, menos voltado ao planejamento do amanhã e à cultura da poupança. Tem-se dificuldade em optar por sacrificar o usufruto de um bem agora, em benefício de um bem maior no futuro. Também os valores acumulados do passado, as contribuições teóricas do passado tendem a cair no descaso. Diante de certas instâncias, deve-se cuidar para não colocar na bibliografia obras de autores clássicos com data de publicação muito recuada, pois corre-se o risco de ser propagador de bibliografia desatualizada…

3) Em terceiro lugar, aparece com muito vigor um certo consumismo desenfreado. Enquanto R. Descartes iniciava seu filosofar com o “penso, logo existo”, hoje insinua-se uma nova forma de pensar, agir e afirmar a existência, calcada no consumismo insaciável, onde, mais do que antes, a pessoa é socialmente reconhecida pelo padrão de consumo que consegue ostentar. (Os Shopping Centers podem ser vistos como a materialização de símbolos da cultura reinante).

4) Um quarto fenômeno é definido pelo rápido avanço da informatização e dos meios de comunicação, que aproxima cada vez mais as pessoas, as instituições e as culturas, através das redes eletrônicas e outros sofisticados mecanismos…  Ao lado das múltiplas vantagens deste avanço para a humanidade, deve-se ter presente que nele está também implicado o risco da  exasperação do “efêmero” e do “provisório” prejudicando engajamentos e posicionamentos mais refletidos e amadurecidos. A “aproximação”, da qual se fala, não passa, muitas vezes, de um novo artifício de dominação…

5) Envolvido em tudo isto está o conhecido “pluralismo ético absoluto” colocando, na prática, em xeque a necessidade de “fundamento ético comum”, prolifera de forma vertiginosa. (Nós cristãos prefessamos um “fundamento ético comum” baseado em Jesus Cristo, que veio “para que todos tenham vida e a tenham plenamente!”). Questões eminentemente éticas tendem a ser medidas e apreciadas, neste contexto, ao sabor da “opinião pública”, colocando-se a opinião da maioria como o critério de valor fundamental. (o programa televisivo “Você Decide!” pode ser apontado como o exemplo mais banal disto.) Sabe-se o quanto de falacioso existe nisto, pois a “opinião da maioria” muitas vezes não passa da afirmação da vontade dos que têm maior poder de influência.

6) Ainda quanto à ética, a crescente indiferença frente à pobreza e à exclusão social é um dos indicativos mais patentes da crise da mesma. Basta ver a insensibilidade dos poderes públicos, hoje, frente à necessidade de combater as causas da pobreza e da exclusão social. Basta ver, também, a banalidade ou a insensibilidade com que se encara a “convivência” ou a “necessidade” de substituir o homem pela máquina, pelo computador e pelo robô, para manter a competitividade no mercado. Se isto por um lado é verdade, é também amplamente constatado, por outro lado, que a humanidade em geral e a sociedade brasileira em particular, através de diferentes pronunciamentos e iniciativas de pessoas, grupos e organizações preocupados com a ética pública, já demonstrou com vigor a consciência da grave crise ética que nos assola.

7) Destaca-se, sem dúvida, no meio de todos estes fenômenos, o ressurgimento de manifestações religiosas acompanhado do surgimento de uma nova onda de misticismo, que se afirma de diferentes formas, onde, em meio à anomia social reinante, as “forças do além” são buscadas como ancoradouro para a busca de respostas frente às grandes perplexidades e às crises de identidade hoje imperantes. Nesta mesma direção, apesar de operar com referenciais diferentes, constata-se também o surgimento de vários tipos de fundamentalismo religioso, que se manifestam nas diversas tradições e sistemas religiosos mais consolidados.

8) Por fim, estes últimos fenômenos apontam sobretudo para a busca de novas fórmulas místicas, novos caminhos para sair da rota da trivialidade. O quadro religioso se encontra muito diversificado. São múltiplos os caminhos que são diariamente ofertados para um público pouco ou nada preparado para um bom discernimento. Se isto é verdade, é também importante que, no contexto de superficialidade e de trivialidade em que vivemos, se sublinhe a grande riqueza em termos de despertamento para o que há de mais profundamente humano manifestado por estas buscas religiosas multiformes.

Poderíamos apontar uma série de fenômenos a mais, sinalizando características da cultura de nossa sociedade no momento histórico que vivemos. Os aqui listados são no entanto suficientemente reveladores dos desafios propostos para os intelectuais neste momento. Cada um dos fenômenos apontados traz em si desafios específicos. Há criações geniais no meio de tudo isto, colocando radicalmente em xeque velhas fórmulas dentro das quais estamos acostumados a agir e reagir. Há efeitos perversos colocando em risco a própria dignidade do ser humano…

Quando apontei acima para a importância de darmos atenção ao cultivo de linhas de pesquisa e ao aprofundamento da nova LDB, eu o fiz tendo presente tudo isto.

Vou parar por aqui. Não pretendo ter dado uma resposta completa e sistemática à pergunta sobre o “papel dos intelectuais no mundo atual”. O que fiz foi elencar alguns pensamentos como quem está iniciando uma reflexão, que ainda deve tomar corpo… A palavra agora é de vocês. Mais do que disposto a responder perguntas, estou agora ansioso por ouvir complementações, questionamentos, reflexões e indicações de referências.

Troca de idéias

Ático: “Vou dirigir minha questão talvez mais para o padre do que para o sociólogo. Falaste das novas formas de religião e de misticismo e existe uma farta literatura sobre isto… Como trabalhar esta nova questão das novas formas de misticismo e de fundamentalismo, principalmente no meio acadêmico?”

osé Ivo: “Bem, em outros tempos, quando o catolicismo era onipresente no meio intelectual, a Academia convivia com isto… Para falar a verdade eu não tenho uma resposta para a questão que você formula. Se alguém quiser responder, por favor… Trata-se sem dúvida de um desafio muito grande. Um desafio sobretudo para a própria Academia. Eu diria: Em primeiro lugar, é necessário saber levar a sério… A Academia tem muita dificuldade em levar a sério este tipo de coisas. A nossa Academia (brasileira), sobretudo. Aliás temos em geral muita dificuldade em levar a sério aquilo que não se enquadra dentro de nossos parâmetros, do nosso esquema. Em segundo lugar, o levar a sério implica também em saber entabular diálogos e fazer da Academia um espaço de discussão e estudo desta realidade, chamando os agentes destes meios para dentro do espaço acadêmico. Tive neste sentido uma experiência rica na Europa, onde o fenômeno do Islamismo, que por sinal muito assusta a sociedade européia, com freqüência fazia-se tema de discussão acadêmica em Debates, Seminários, Ciclos de Palestras e Cursos, nos quais se via a participação de intelectuais estudiosos deste fenômeno e também militantes ou intelectuais do próprio movimento religioso em questão. Nosso meio acadêmico é um pouco lento nestas coisas… Para responder em poucas palavras à questão – e aí incluo o fenômeno religioso em geral em suas múltiplas formas de expressão hoje -, devo dizer que não se trata de algo que possa ser ignorado! Assim como a Igreja Católica não podia ser ignorada, sobretudo na Idade Média, onde (exagerando um pouco) nada se pensava sem que passasse pelo crivo intelectual desta Igreja…”

Egídio: “Dentro desta questão que o Prof. Ático levanta, eu acho que nós intelectuais deveríamos nos questionar mais profundamente sobre as causas de todos estes fenômenos, sobre o que está causando os fundamentalismos de que fala o professor. Isto não vem por acaso. Inclusive nós temos talvez parte na causação deste fenômeno. Não estamos conseguindo responder àquilo que o povo, as camadas mais necessitadas esperam de nós intelectuais. Não encontrando respostas, apela-se com facilidade ao extraordinário. Nós estamos em geral muito apegados e limitados a certas práticas sem termos condição de perceber o que o povo tem a dizer. O povo também tem algo a dizer, aliás tem muito a dizer… O que este povo espera de nós? Será que nós intelectuais estamos sendo realmente capazes de perceber o que povo espera? Será que somos capazes de interpretar as aspirações do povo? E eu vou mais longe: será que nós professores somos capazes de interpretar as aspirações de nossos alunos? Será que escutamos suficientemente os anseios e as aspirações deles? Evidentemente o diálogo é aí o único caminho. Permitir que o outro pense não é perigoso. Perigoso é não deixar pensar. Perigoso é impor nossa opinião sem saber escutar. Certamente os alunos têm algo a nos dizer sobre a nossa atuação. Todos nós somos intelectuais: alunos e professores. É de se perguntar se o nosso diálogo realmente penetra o nível dos valores que cultivamos e dos valores que necessariamente precisamos criar para podermos atender àquilo que se espera de nós na Educação Básica. Muitas coisas daquilo que nós aprendemos são, sem dúvida, muito boas. São realmente básicas, no sentido de uma base para a ação, mas isto não é ainda a encarnação dentro da realidade. Eu gostaria que a gente pensasse muito nisso. Qual é afinal o nosso compromisso para com a Educação Básica? O que realmente estamos fazendo nestes termos? Estou atualmente levando uma pesquisa no sentido de verificar a adequação entre aquilo que se ensina aos nossos alunos e aquilo que eles precisam para serem professores. É uma pesquisa que está em andamento. Espero que traga dados interessantes para depois trocar mais idéias em cima disto.”

Voz: “Você na sua colocação enfatizou muito a produção coletiva no meio intelectual. Como é que você vê a contribuição individual nesta produção?”

José Ivo: Eu diria que não existe coletivo sem a participação dos indivíduos. Não existe uma identidade coletiva sem que haja identidades individuais a constituindo. A identidade coletiva é uma constante construção feita mediante a participação de individualidades. Um projeto coletivo não subsiste se ele não se coaduna, de alguma forma, com os projetos individuais daqueles que o assumem e fazem parte deste projeto. No trabalho intelectual acontece o mesmo. Quando falo coletivo eu entendo algo assumido em conjunto. Creio que não se deve chamar de trabalho intelectual coletivo aquele que gira todo em torno de um iluminado (ou um guru) sendo os demais seus servidores. O que define o trabalho intelectual coletivo é a participação de todos os indivíduos que estão engajados no projeto, fazendo incidir nele os seus saberes, suas preocupações, seus interesses, sua experiência acumulada… Para que aconteça efetivamente um trabalho intelectual coletivo, deve-se passar por um longo processo inicial de reconhecimento mútuo do próprio grupo.”

Emi: “Em relação ao tema central de sua palestra, eu me coloco a questão se não se deveria pensar que o papel do intelectual no mundo atual é o de tornar acessível a metodologia. O que aliás mais apreciei na sua palestra foi o tornar visível a maneira como construiu esta contribuição aqui. Acredito que o não tornar acessível este caminho talvez seja o maior ponto de distanciamento entre os que conseguem desenvolver as condições de exercício da sua intelectualidade e as pessoas que não têm acesso a este exercício. O senhor, em sua palestra, tornou manifesta e explícita a maneira como construiu a própria ideação a respeito do tema, partilhando conosco os detalhes dos momentos desta construção, onde e como foram buscadas as referências, a referência que fugiu, a contribuição expontânea de pessoas concretas. Para mim, este foi o ponto mais interessante nesta sua exposição. O senhor repartiu com todo este grupo de pessoas a forma peculiar de exercitar o seu ser intelectual. Talvez esteja faltando aos intelectuais em geral esta consciência do privilégio que tiveram e se esquecem de tornar acessível, como o senhor fez, a maneira como constróem as suas contribuições.”

Egídio: “Só talvez para acrescentar mais algo nisto que a Profa. Emi está colocando… O intelectual de fato não vive só de resultados. Seu ser intelectual é um constante processo, no qual há sucessos e fracassos. É muito importante que o caminho percorrido fique explícito. O resultado final pode dar uma idéia muito deformada do vivido anteriormente. Por exemplo, Einstein foi reprovado em Matemática na escola. É importante que sempre voltemos a retomar o nosso caminho. O porquê das pequenas e grandes mudanças de rumo na escolha de nossas temáticas. Se temos viva consciência de nosso caminho feito, seremos também muito mais capazes de ajudar a orientar outros que estão iniciando. Não podemos esquecer que somos seres históricos e que temos todo um caminho percorrido onde se deram fracassos e vitórias. Até é importante que tenha havido fracassos em nossa trajetória. Isto nos torna mais capazes de compreender os demais.”

Clair: “Ouvindo o José Ivo falar, devo dizer que fiquei muito sensibilizada por uma série de coisas. Realmente quando se coloca a questão do papel dos intelectuais no mundo atual, muitas coisas aparecem… Muitas coisas foram passando por mim neste momento. Esta ligação entre o pensar e o sentir que parece estar muito presente nas colocações do José Ivo é para mim algo fundamental. Eu estava lembrando agora de um depoimento da filha do Che-Guevara, numa entrevista, chamando a atenção para um outro lado do ser intelectual que diz respeito a outro tipo de conhecimento, o conhecimento que dói. O ser intelectual está muitas vezes atravessado por coisas que doem, que mexem com o sentimento. Neste depoimento, ela referia uma carta que tinha recebido de seu pai na qual este lhe dizia, que ´enquanto um ser humano sentisse uma dor, nós deveríamos sentir como se esta dor fosse nossa´. Ela via nesta frase o grande legado que o pai dela lhe deixara, ele que tinha dado toda a sua vida e foi morto pelo ideal que defendia. Se contrapormos este depoimento da filha do Che a uma reflexão recente de Margaret Tatcher que diz que não existe sociedade, que só existem indivíduos, que se somam e competem, eu fico me perguntando sobre a posição que devemos assumir para, neste momento tão conturbado do saber intelectual, não abrir mão deste lado tão importante que é a sensibilidade, o sentimento do intelectual…”

José Ivo: “No meio intelectual nós presenciamos muitas situações de descolamento. Muitos intelectuais se auto-alimentam na percepção de si mesmos como se fossem os iluminados que conseguiram chegar a um patamar em que os demais não chegaram e não mostram muito interesse em dar o mapa do tesouro. Acabam pairando acima da realidade, esquecendo-se da própria realidade. Então as observações tanto da Profa. Emi, do Pe. Egídio, como esta sua agora, apontam todas numa mesma direção. Apontam para a necessidade de se pensar o ser intelectual vinculado, conectado com a realidade da qual ele faz parte, na qual ele vive, com o sofrimento, com os sentimentos e com o que de fato acontece no cotidiano das pessoas. Ele só vai poder ser isto, fazer isto na medida em que ele souber trazer para dentro de seu trabalho intelectual o seu ser, os seus sentimentos, a sua paixão, em suma, o seu cotidiano cheio de contradições. E, evidentemente, a história do seu caminho intelectual faz parte disto. Assim como a filha do Che, uma intelectual sendo entrevistada, traz para dentro de sua reflexão todo este seu grande sentimento, ligado ao grande legado do seu pai.”

Ednaldo: “Uma questão muito interessante, que eu gostaria de retomar aqui, é aquela quando você fala que o intelectual deve saber movimentar-se com liberdade dentro da complexidade do mundo atual. Uma pequena dúvida, e isto é um aspecto que também foi apontado, diz respeito a como trabalhar esta liberdade, tendo presente o clima de permanente disputa na afirmação da própria intelectualidade. O intelectual de hoje pode não ser o intelectual de amanhã, tendo em vista os limites de sua liberdade. Toda vez que é cerceada a capacidade de se movimentar está sendo, de certa forma, cerceado o ser intelectual. Para fazer frente a estes cerceamentos e garantir a liberdade, tendo presente os limites que de fato estão sempre aí, o que você colocaria como motor possível, o confronto, o consenso, a solidariedade? Como você vê estes princípios, que são aparentemente contraditórios? Como você trabalha esta questão?”

José Ivo: “Você fala em motor. Eu diria que o grande motor é a humildade. É reconhecer as próprias limitações, ser capaz disto… Também saber perceber as limitações do outro. Não se ajoelhar tão facilmente diante do outro, adorando-o como um deus. O exercício da humildade, que é sobretudo um exercício de justa relação, é fundamental para preservar a liberdade dentro de toda a complexidade que vivemos. Isto aliás tem uma aplicação para dentro do próprio entendimento do fazer ciência, sobretudo em se tratando de ciências humanas. Quando os alunos de sociologia em aula levantam a questão da objetividade científica, costumo colocar a humildade do cientista, em certo sentido como “sinônimo” de objetividade. A humildade é, no limite, a capacidade de reconhecer até onde vão realmente as nossas certezas e deixar também explícito para nós mesmos e para nossos interlocutores qual é nossa opção ideológica. E volto a dizer, isto também implica em não nos ajoelharmos tão facilmente diante das certezas dos outros. Esta é uma postura básica para a liberdade. Não sei se não descaracterizei demasiadamente a sua questão, que me parece ser bem mais ampla.”

Ednaldo: “Está muito difundido na Universidade a afirmação de que se consegue a liberdade através do conhecimento. Quase no final de sua fala você apontava para uma das falências da modernidade que tem exatamente a ver com o conhecimento estimulado neste contexto. Como falar que a liberdade se dá através do conhecimento, se este último é um benefício social muito pouco disponível?”

José Ivo: “Depende do que entendemos por conhecimento, não é? O conhecimento liberta, sim! Nós vemos isto escrito todo dia por aí, em outdoors, em camisetas, em folhetos… Aqui no Campus especialmente! Todo dia nos deparamos com esta frase, como é que é ainda? “Só o conhecimento garante a sua liberdade!” É! Este é o motor de sua questão? De qual conhecimento estamos falando? Será que estamos nos restringindo ao conhecimento que é veiculado e adquirido na Academia? Espera-se que este conhecimento também liberte! Que a pessoa se liberta na medida em que conhece ninguém pode duvidar… Ela se torna mais livre na medida em que ela se conhece melhor, na medida em que conhece os outros e conhece o chão onde pisa. Nesta medida, ela se faz evidentemente mais livre do que numa situação de não conhecimento. Não devemos reduzir conhecimento àquilo que é adquirido na escola, na Universidade. Trata-se de algo muito mais amplo.”

Laércio: “O conhecimento é um ato de reconhecimento. Contém o desejo que se tem de reconhecer que aquilo que buscamos cabe dentro de determinada positividade. É reconhecimento em relação aos outros significando a dinâmica de uma troca mais profunda. Muito para além de elaboração de conceitos e sistemas conceituais, o conhecimento é sempre um processo de busca. Isto acontece em todas as áreas. Este caminho, este processo, esta busca é muito parecido nas diferentes áreas. Isto não é privilégio de uma área determinada. Trata-se de um processo de relação, atravessado de sentimentos às vezes com contradições. Como toda relação… É importante que esta troca (o conhecimento) seja um ato de amor. O ato de conhecer se faz pleno se ele é um ato de amor. Amar aquilo que a gente faz. O ato de conhecer é dignificado na medida em que ele se reveste desta busca amorosa, que liberta. Quem ama dá esta liberdade a si mesmo. Isto faz romper os mundos estanques e as clausuras disciplinares. Precisamos redescobrir esta relação conosco mesmos e a capacidade de nos sabermos expor frente aos outros. No campo pedagógico isto é fundamental. Não são espaços estanques: adultos, crianças, pensadores, não pensadores… Precisamos movimentar-nos mais livremente nestes espaços. E aí talvez o primeiro passo seja menos ensinar a aprender do que aprender a ensinar.”

José Ivo: “Eu estava ansioso por ouvir um filósofo…”

Gelsa: “Eu gostaria de escutar um pouco mais sobre esta questão da humildade intelectual. Concordo contigo no que falaste. Creio que é uma das coisas mais importantes que devemos exercitar enquanto intelectuais. Esta humildade de reconhecer as limitações (nossas) de cada um de nós e de todos os outros. Como vês a possibilidade do exercício desta humildade na perspectiva da concepção gramsciana de intelectual orgânico…?”

José Ivo: “Acho que Gramsci quando trabalha a questão do intelectual orgânico, está preocupado em pensar o intelectual na sua função na sociedade, para que existe o intelectual e qual a sua importância na sociedade? Para ele o intelectual é realmente importante na medida em que é também dirigente, na medida em que dá sua contribuição como líder na história. Enquanto sujeito da história. Quem entra na história para fazer história, não pode entrar fazendo-se dono da história, porque a história é feita por todos os que nela participam. Quem entra na história para fazer história deve respeitar esta história. O intelectual é orgânico na medida em que é capaz de ouvir quais são efetivamente os interesses do grupo que ele está ajudando a se pensar e a se organizar. Já falei que humildade é reconhecer-se a si mesmo em suas limitações, reconhecendo a sua capacidade própria de dar contribuições, reconhecer o outro em suas limitações e também em suas condições de contribuir. Na prática, no meio intelectual, isto é um desafio tremendo. Eu estou sempre mais escandalizado por aquilo que percebo na Academia. Para mim não tem sentido que o meio Acadêmico, definido como espaço de busca participada e conjunta do conhecimento, vire um meio que abriga querelas de poder em relação ao conhecimento… Tem sentido isto? No entanto a Academia está repleta disto!… Bom, já fiz minha confissão! Vamos ver se outra pessoa quer falar…

Liceu: “Eu venho de uma área diferente – sou da Comunicação! – e uma das questões que eu vivo me colocando é o fato de que há muitos intelectuais que ficam gravitando em certo sentido demasiadamente ao ´redor do próprio umbigo´. Assim eu fico todo cheio de dedos ao entrar neste debate sobre o intelectual. Tenho certo receio que quando a gente começa a refletir e buscar afirmar novas linhas de pesquisa, corre-se o risco de cair no ostracismo. Vejo gente muita boa deixando de investir na busca de coisas novas, deixando de criar coisas que seriam importantes para a sociedade, talvez, mas isto poderia custar-lhes caro dentro do mundo acadêmico. Então há um certo receio. Além disto, o individualismo neste meio e os mundos muito separados são uma limitação muito grande. A interdisciplinaridade é certamente uma saída para romper isto. Eu percebo por exemplo ótimas críticas sobre atividades do meio da Comunicação, em trabalhos na Área de Educação. Os intelectuais da Educação contribuem mais na crítica da Comunicação do que os próprios intelectuais da Comunicação. Como dar força ao trabalho interdisciplinar no meio acadêmico?”

José Ivo: “Creio que é nisto que reside exatamente uma das funções da existência de linhas de pesquisa. A linha de pesquisa, pode-se dizer, força os grupos na Academia a saírem de si e forçar a própria Academia a sair de si. Ela não deveria também estar desvinculada de um verdadeiro serviço à coletividade. As linhas de pesquisa deveriam, no meu entender, nascer sempre de um debate mais amplo, na própria sociedade. Elas não deveriam resultar simplesmente de uma decisão interna de um grupo dentro da Academia, que como por decreto, a partir de suas preferências diz: ´nossas linhas de pesquisa são estas!…´ A pergunta sempre deve ser: “o que se espera, na sociedade, deste programa ou deste grupo da Academia?”

Rute: “Trata-se de uma questão fundamental e muito desafiadora. Não se pode esquecer que na própria definição de linha de pesquisa ainda continuam pairando dúvidas. Há muitas divergências neste campo.”

Emi: “Concordo com o Prof. José Ivo na importância em se investir realmente na discussão e no afinamento das linhas de pesquisa e um dos pressupostos básicos que fundamenta uma linha de pesquisa é exatamente a importância e a urgência para a própria sociedade. Creio que podemos ser otimistas com relação ao grupo que aqui se encontra, que aliás está sendo sempre mais numeroso. Temos certamente boas chances de romper sempre mais a assim chamada ´solidão da Academia´. Num grupo como este, voltado para a Educação Básica, aumenta por si só – por sua própria definição! – a responsabilidade coletiva por não deixar prosperar linhas de pesquisa que conduzam a um distanciamento das necessidades prementes da sociedade neste campo da educação.”

Rute: “O nosso programa de Mestrado define-se por uma redefinição permanente de sua própria proposta. Quer ser um programa constantemente atento. É o que está definido já em nossa proposta inicial. Isto reflete uma preocupação justamente alinhada com o que está aqui sendo colocado…”

Ednaldo: “Você insistiu em duas frentes imediatas importantes para a ação. Por um lado, você aponta para a importância da produção coletiva, colocando o cultivo das linhas de pesquisa como meio para isto. Você até fala na importância de constituir-se escola, enquanto trabalho intelectual coletivo. Por outro lado,  você aponta para a importância de se dar uma atenção especial à nova LDB, quando se sabe que esta LDB, que aí está, é exatamente fruto de um atropelo da produção coletiva. Foi negado todo um processo de elaboração coletiva, para se optar pela produção individual de um iluminado. Como você explica esta contradição aparente nas suas duas propostas?”

José Ivo: “Eu estou falando da LDB que está aí. Não vejo uma contradição tão grande entre as duas propostas que faço…”

Ednaldo: “Minha questão se dirige mais no sentido de perguntar sobre a legitimidade de uma lei destas, quando se sabe que os trabalhadores da educação tinham todo uma proposta trabalhada com muito empenho e participação. Esta proposta foi de fato desconsiderada e substituída simplesmente pela de um iluminado… Qual a legitimidade desta lei, tendo em vista que os trabalhadores da educação não se sentem sujeitos da produção desta lei. Não estou nem dizendo que a lei que está aí não seja boa, que não tenha boas contribuições. Que elas existem não tem dúvida. Existe, no entanto, uma questão anterior, que é a questão da legitimidade. Como trabalhar esta questão agora? Há um resultado de produção coletiva, que foi desconsiderado, mas se acredita e insiste em que a produção intelectual deve ser coletiva inclusive em cima desta LDB…”

José Ivo: “Está sendo previsto pelo Centro de Ciências Humanas, por sugestão da própria Pró-Reitora de Ensino e Pesquisa, um seminário interno sobre a nova LDB já em meados do mês de abril. Já temos um Grupo de Trabalho constituído para a sua preparação. Creio que será um fórum importante para aprofundarmos estas questões, não tanto para discutir um processo que foi frustrado, mas para trabalharmos em cima do texto da lei que aí está e darmos a nossa contribuição em seu processo de implantação.”

Emi: “Este será certamente um espaço mais adequado para discutirmos o texto da LDB e as importantes contribuições que ela nos traz. Independente da maneira como se deu seu processo, a LDB tem uma grande qualidade, que é a de não forçar a comunidade acadêmica a nada. Ela oportuniza a discussão e a construção continuada. Toda lei e sobretudo esta, na forma como está expressa, exige uma hermenêutica da própria comunidade que vai executá-la. Entendo que, entre todos os méritos que a nova LDB possa ter, deve-se destacar este de ser um espaço extremamente aberto. Embora possa haver discordâncias em relação à maneira como foi selecionado o texto que acabou sendo o aprovado, deve-se reconhecer como principal ponto positivo exatamente a qualidade do texto aprovado enquanto um texto que não obstrui e não impede a continuação da construção coletiva. É o que devemos fazer. Vamos ter através deste seminário a oportunidade de construir a maneira como a UNISINOS se posiciona dentro desta nova ordem.”

Rute: “Não tendo mais pessoas inscritas para fazer uso da palavra, quero agradecer ao Prof. José Ivo pelas instigantes interrogações que ele conseguiu fazer desencadear em cada um de nós. Que isto seja o início de uma reflexão que se transforme também constantemente em ação. Que nosso trabalho intelectual não seja simplesmente um ato solitário, mas sim solidário. Esta foi uma das mensagens. Que nosso trabalho intelectual não seja trabalho simplesmente submisso a atos de fé dirigidos por dogmas que impomos e que nos deixamos impor. Esta, parece-me, foi uma outra mensagem importante. Que o trabalho intelectual seja sempre um trabalho onde o exercício da liberdade e da responsabilidade tenha espaço pleno e nunca seja abortado de saída.”

As referências bibliográficas usadas podem se encontradas no artigo publicado


NOTAS:

[1] Horácio GONZALEZ, em seu livrinho O que são intelectuais (São Paulo: Ed.Brasiliense, 1984) nos convida a um passeio no meio intelectual e faz descortinar uma ampla galeria de intelectuais, passando por sete quadros característicos e diferenciados: começa pelo quadro do “intelectual maldito”, para, em seguida, mostrar o quadro do “intelectual precursor”, em terceiro lugar fala do “intelectual revolucionário”, depois fala do “intelectual populista”, para, por fim, fazer uma abordagem clara e bem sintetizada sobre o “intelectual cosmopolita”, o “intelectual orgânico” e o “intelectual do círculo do poder”. São os sete tipos de intelectual que este autor nos apresenta, nesta sua rica contribuição  para a coleção Primeiros Passos. Não pretendo dar conta, em minha exposição, de todos estes tipos.

[2] Henry A. GIROUX. Los Professores como Intelectuales: Hacia una Pedagogía Crítica del Aprendizaje. Barcelona – Buenos Aires – México: Ed.Paidós/MEC, 1990, p.255-256

[3] Karl MANNHEIM. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed.Zahar, 1976.

[4] Observação: “ser interdisciplinar”, estar aberto à outra perspectiva, não significa permanecer equidistante, como em cima do muro. Aliás, diga-se de passagem, por mais elevada que seja a torre de um intelectual, ela sempre será uma torre inclinada – para usar a imagem empregada por alguém – e poder-se-ia acrescentar “ela sempre projetará a sua sombra protetora para um lado”. Karl MANNHEIM fala da “ideologia” e da “utopia”. A contribuição de Antonio GRAMSCI com o conceito de “intelectuais orgânicos” é, no meu entender, mais útil.

[5] Ver José Ivo FOLLMANN. Religion, Politique et Identité. DISSERTATION DOCTORALE. Bélgique, Louvain-La-Neuve, Université Catholique de Louvain, 1993.

[6] Ver em C. ATIAS e J.L.LE MOIGNE. Échange avec Edgar Morin: Science et Conscience de la Complexité. Aix-en-Provence: Libr.de l´Université, 1984.

[7] Alain TOURAINE. Le Retour de l´Acteur: Essai de Sociologie. Paris: Ed.Fayard, 1984. Alain TOURAINE.La Parole et le Sang: Politique et Société en Amérique Latine. Paris: Ed.Odile Jacob, 1988.

[8] Os intelectuais, a rigor, não formam uma classe, grupo ou organização independente, mas cada classe, grupo ou organização tem os seus intelectuais. (Ver “Cartas do Cárcere” de Antonio GRAMSCI, em Christiane BUCI-GLUCKSMANN. Gramsci e o Estado: Por uma Teoria Materialista da Filosofia. Rio de Janeiro: Ed.Paz e Terra, 1980, p.71)

[9] Antonio GRAMSCI fala do partido político, mas isto é estensível às demais organizações. Ver em Tom BOTTOMORE. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Ed.Zahar, 1988, p.167.

[10] Ver Horácio GONZALEZ. O que são Intelectuais. São Paulo: Ed.Brasiliense, 1984, p.96.

[11] Pierre BOURDIEU. “Genèse et Structure du Champ Religieux”, Revue Française de Sociologie, n.XII, 1971. Pierre BOURDIEU. Questions de Sociologie. Paris: Édition de Minuit, 1980.

[12] “Cada grupo social, nascendo sobre o terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo e organicamente, um ou mais grupos de intelectuais que dão homogeneidade e consciência da própria função, não só no campo econômico, mas também no campo social e político”. (Antonio GRAMSCI. Obras Escolhidas. Vol.II. Lisboa: Ed.Estampa, 1974, p.190).

[13]  … “Ao contrário dos intelectuais hegemônicos ou acomodatícios, cujo trabalho se desenvolve sob a ordem de quem detém o poder e cujas intuições críticas se mantém a serviço do status quo, os intelectuais transformadores assumem a sério a primazia da ética e da política em seu compromisso crítico com os estudantes, as autoridades e a comunidade correspondente. Estes últimos trabalham incansavelmente, dedicados a fazer avançar a democracia e a realizar a qualidade da vida humana.” (Henry GIROUX, op.cit., p.20) O grande desafio que sempre fica: “Como podem os educadores elaborar um projeto pedagógico que legitime uma forma crítica de praxis intelectual?” (Henry GIROUX, op.cit., p.14; ver também Henry GIROUX, op.cit. p.175 ss.)

[14] Pierre BOURDIEU. A Economia das Trocas Linguísticas. São Paulo: EDUSP, 1996, p.81-82.

[15] Ver Pierre BOURDIEU, idem, p.83.

[16] Ver Guy BAJOIT. Pour une Sociologie Relationnelle. Paris: PUF, 1992. Guy BAJOIT. Les Jeunes dans la Compétition et la Mutation Culturelle. Louvain-La-Neuve: Recherche UCL/FOPES, 1993. Ver também Jean REMY, L. VOYE et E. SERVAIS. Produire et Reproduire: Une Sociologie de la Vie Cotidienne (2 vol.). Bruxelles: De Boeck Université, 1991. Jean REMY, “Religion, Rationalité et Mobilisation Affective”, Rev. Social Compass, n.2-3, 1984.

[17] Agnes HELLER. O Cotidiano e a História. São Paulo: Ed.Paz e Terra, 1970, p.17.

[18] Max WEBER. Le Savant et le Politique. Paris: Plon, 1959, p.199.

[19] Ver José Ivo FOLLMANN. Religion, Politique et Identité, cit. p. 233-234 (referindo Jean REMY. “L’affectif et l’irrationnel: question au rationalisme. Durkheim et Weber: deux réponses différentes”, TEXTO DE COLÓQUIO, s/d., p.7.)

[20] Georg LUKACS, in Agnes HELLER.O Cotidiano e a História. (Pref.), São Paulo: Ed.Paz e Terra, 1970, p.X

[21] CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, 1995-1998. Documentos da CNBB, 54,  1996, n.139 ss.

[22] Os aspectos aqui apresentados reproduzem texto recente de elaboração coletiva, no qual trabalhei junto com José Odelso SCHNEIDER (autor principal da primeira redação) e outros. (Ver “Marco Situacional” do Planejamento Apostólico da Província Brasil Meridional da Companhia de Jesus, 1997)