COMENTÁRIOS PARA O DEBATE SOBRE O TEXTO:

“A MORTE MÁGICA DA ÉTICA PROTESTANTE”

Parrticipação em painel de debate sobre “a morte mágica da ética protestante”, compondo mesa de debate com Prof. Dr. Oneide Bobsin, na Escola Superior de Teologia – EST, São Leopoldo, em setembro de 2000.

J. Ivo Follmann

(06 de setembro de 2000)

Não sou especialista em pentecostalismo, muito menos em neopentecostalismo e em Igreja Universal do Reino de Deus, mas a sociologia das religiões, que é meu campo de ocupação principal há muitos anos ajuda-me a entender que o tema aqui abordado pelo Prof. Oneide Bobsin é um dos temas mais relevantes e problemáticos que hoje se impõe para os cientistas das religiões no Brasil.

Entendo que o meu papel aqui é o de levantar questões que possam jogar algumas perguntas a mais em nosso debate, além das perguntas que o próprio conferencista em sua exposição já soube provocar.

Vou ater-me, assim, a dois comentários que poderão despertar (eu o espero) algumas interrogações a mais:

  • Num primeiro comentário, terei como referência três olhares teóricos como usualmente venho trabalhando nas minhas pesquisas: a partir da produção da historicidade, a partir dos campos de atividades e a partir do sujeito;
  • Num segundo comentário, farei um pequeno contraponto de complementação a partir de alguns dados da pesquisa sobre locais de culto religioso e templos na Região Metropolitana de Porto Alegre.
  1. Comentário um:
  1. (Perspectiva da produção da historicidade) Concordo plenamente com o Prof. Bobsin quando diz que a miséria, o abandono, a doença, o desespero, o desemprego, a violência e a corrupção em todos os níveis desenham-nos um quadro propício e um terreno fértil para os exorcismos e as promessas de prosperidade. Se tomarmos esta realidade religiosa dentro da perspectiva de produção da historicidade, isto é, se tivermos como referência principal em nossa análise a existência do conflito central dentro da sociedade, estando em questão a apropriação e gestão de sua historicidade (utilizo aqui a concepção de historicidade de Alain Touraine), devemos perguntar-nos a serviço de que atores, a serviço de quem ou de que forças na sociedade estão efetivamente esses exorcismos e essas promessas de prosperidade? Qual é a função da “nomeação diabólica” da realidade, para utilizar a expressão sugerida pelo conferencista? Trata-se de uma desqualificação alienadora. É o radical oposto da “nomeação simbólica” onde a mediação religiosa, muitas vezes (por exemplo, nas CEBs), tende a revestir miséria, abandono, doença etc. de força libertadora. Estamos, portanto, claramente frente ao embate entre a função alienadora da religião e a sua função desalienadora ou libertadora. (Uso o conceito de alienação trabalhado por Peter Berger.)

No caso do avanço pentecostal e, sobretudo, neopentecostal (e do movimento carismático em suas diferentes expressões), dá-se em geral uma afirmação da função alienadora. Trata-se de uma hipótese de fácil comprovação. O viés principal é o socorro imediato (no caso neopentecostal, sobretudo) frente às precariedades do cotidiano. O exemplo mais flagrante é a saúde. Enquanto o povo busca os “milagres de Deus”, a história vai sendo construída contra este mesmo povo por aqueles que se apropriaram da historicidade e se consideram seus gestores exclusivos.

  1. (Perspectiva dos campos de atividade) Em segundo lugar, quero mencionar o que o palestrante denomina, já no início da exposição, de “fronteiras dissolventes” ou “fronteiras porosas”. De fato, essa porosidade ou diluição de fronteiras sempre foi mais forte no meio popular. Aqui eu gostaria de olhar esta mesma realidade religiosa comentada pelo palestrante desde uma outra perspectiva sociológica muito conhecida, que é a dos campos de atividade. A construção, que Pierre Bourdieu faz do campo religioso, é contribuição  importante e constitui-se em instrumento apto para a compreensão dos mecanismos internos às atividades religiosas. Segundo ele, a constituição de um campo religioso leva normalmente a uma “monopolização da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas religiosos”. Aqueles que dominam um campo ou subcampo têm os meios de o fazer funcionar em seu próprio proveito, isto é, em proveito de seus interesses. A indefinição de fronteiras coloca em risco esse domínio, mas é também uma forma de resistência da parte dos dominados. Quem exerce o domínio sabe em geral lidar com isso a seu favor, isto é, para garantir a força das fronteiras. Quem tem interesse pela definição de fronteiras são os que dominam no campo ou subcampo, ou seja, os seus “donos”. Eu me pergunto se os “donos” do subcampo pentecostal (ou melhor: neopentecostal) se esta não é a principal função da ritualização extremada do exorcismo, transformando a porosidade de fronteira em violento processo de culpabilização e de dependência psicológica. Eu até diria que, em outros tempos, e por muito tempo, foi nisto que residiu em parte o sucesso de público da Igreja Católica Apostólica Romana.

Talvez caiba acrescentar aqui uma observação a mais: O campo religioso no Brasil foi sempre, caracteristicamente e, talvez se possa dizer, demasiadamente, de domínio absoluto católico. A atual fragmentação do campo religioso, o surgimento de diferentes subcampos, alguns com extremo vigor, tem também, sem dúvida, um efeito salutar na Igreja Católica e outras Igrejas Cristãs Históricas, no sentido de gerar uma desacomodação em muitos aspectos e uma certa redinamização.

  1. (Perspectiva do sujeito) Uma outra questão a ser posta é: Não estaria o neopentecostalismo, através de seu aguerrido combate, mediante a ritualização do exorcismo etc, fortalecendo a umbanda, pelo efeito inverso? O “tornar-se igual ao inimigo para combatê-lo” pode certamente levar ao efeito imediato esperado, mas também pode levar, a longo prazo, a uma espécie de desmoralização daquele que ataca e a um fortalecimento e ressignificação das representações e práticas daqueles que são combatidos. Para isto, trago presente a profunda capacidade de resistência silenciosa acumulada na alma brasileira ao longo de séculos. Aqui eu gostaria de entrar com um terceiro olhar sociológico, a partir da perspectiva do sujeito. Segundo Guy Bajoit “os indivíduos selecionam (adotam ou rejeitam) os sentidos culturais (as idéias, as representações, as normas, as opiniões, os valores, os princípios) em função das necessidades da gestão de si mesmos.”  Olhando sob este ponto de vista, alcançamos mais facilmente o que está mais profundamente entranhado nos sujeitos que constituem a sociedade: a sua cultura. Falamos, portanto, da “gestão de si mesmo” de um povo marcado indelevelmente por aquilo que é o povo brasileiro em sua grande maioria: carne da carne de pretos e índios supliciados e mão possessa, que os supliciou, como diz o texto que o conferencista recolheu de Darci Ribeiro. A sociedade brasileira é constituída da gente sofrida que somos e da gente insensível e brutal, que também somos, como diz o mesmo autor. Sofridos e insensíveis, eu diria que sim, mas profundamente orgulhosos de nossa alegre inventividade e profundamente ciosos de nossos santos e nossos deuses.  Eu me arriscaria a dizer: A alma brasileira não é uma alma sujeitável a racionalidades instituídas, nem mesmo se são racionalidades religiosas, quando impostas de cima para baixo… Uma alma, eu diria, curtida num longo processo contraditório de dominação, cujo sujeito tem uma profunda sede de afirmação.

Neste contexto, “gestão de si mesmo” não lembra tanto uma busca libertária pós-moderna, mas tem muito mais a ver com a revanche de uma alma secularmente machucada e tripudiada por todo tipo de poder, entre eles o religioso. Pergunto até quando vai durar a intermediação neopentecostal desta revanche. Talvez o Prof. Bobsin tenha razão ao arriscar o palpite de que a Umbanda tenderá a sair por cima…

A alma brasileira é religiosa e muito religiosa. O sujeito brasileiro é portador de uma religiosidade acumulada ao longo de séculos. É um sujeito mais pronto para sintonizar com propostas revestidas de apelos sagrados, do que com propostas revestidas da racionalidade moderna secularizada.

  • Comentário dois:
  • (Alguns dados de pesquisa em realização) Além deste arrolamento de hipóteses e provocações bastante soltas, quero fazer ainda um pequeno comentário considerando dados recentes de uma pesquisa, ou seja, um cadastro de locais de culto religioso e templos, que estamos realizando na Região Metropolitana de Porto Alegre nos últimos anos. Creio que alguns dados colhidos nesta pesquisa podem ajudar-nos neste momento de reflexão…
  • (Novos locais de culto e templos nas últimas duas décadas) Se olharmos especificamente para dois municípios da nossa vizinhança, cujas totalizações já existem em nosso banco de dados (Cachoeirinha e Esteio), notaremos um fortíssimo incremento no número de locais de culto religioso e templos, tanto no meio pentecostal e neopentecostal quanto no meio das religiões afro e de umbanda, durante as últimas duas décadas, sobretudo durante a última década, conforme o quadro 1 abaixo:

 

Quadro 1

RELIGIÕES E INCREMENTO DE LOCAIS DE CULTO E TEMPLOS NO PERÍODO DE 1980-1999, EM CACHOEIRINHA E ESTEIO (RMPA, RS)

(Observação: o total de locais de culto e templos, em dezembro de 1999, em Cachoeirinha era de 165 e em Esteio era de 118)

RELIGIÕESCACHOEIRINHAESTEIOTOTAL
1980-891990-991980-891990-99
Pentecostais e Neopentecostal13451032100
Evangélicas Históricas352010
Católica729422
Afro e Umbanda73271561
Kardecista13105
Diversas11013
TOTAL32882952201
Fonte: CEDOPE & GDIREC, Unisinos, dezembro de 1999

 Vemos por este quadro que em Cachoeirinha, do total de 32 novos locais inaugurados na década de oitenta, 7 são de religiões afro ou umbanda e 13 de pentecostais ou neopentecostais (note-se que neste período também são inaugurados no mesmo município 7 templos católicos). No mesmo município, na década de noventa, do total de 88 novos locais, 32 são de religiões afro ou umbanda e 45 de pentecostais ou neopentecostais (neste período são inaugurados 2 templos católicos novos).

Se olharmos para o município de Esteio, temos que do total  de 29 novos locais de culto religioso e templos inaugurados na década de oitenta, 7 são de religiões afro ou umbanda, 10 são pentecostais ou neopentecostais (e 9 são católicos). No mesmo município de Esteio, na década de noventa, foram inaugurados 52 locais de culto religioso e templos, dos quais 15 são de religiões afro ou umbanda e  32 de pentecostais ou neopentecostais (e 4  são católicos).

  • (Número de freqüentadores por semana…) Um dado muito interessante que temos a partir do cadastro é o que diz respeito ao número de freqüentadores por semana em cada local de culto religioso ou templo (talvez se trate dos fiéis mais identificados com a rotina de sua instituição religiosa e que se consideram mais profundamente vinculados e membros efetivos). Vejamos no quadro 2 abaixo:

Quadro 2

RELIGIÕES E FREQÜÊNCIA SEMANAL EM LOCAIS DE CULTO E TEMPLOS, MUNICÍPIOS DE CACHOEIRINHA E ESTEIO (RMPA, RS)

RELIGIÕESCACHOEIRINHAESTEIO
Pentecostais e Neopentecostais48,4%44,1%
Evangélicas Históricas10,2%6,9%
Católica31,9%31,4%
Afro e Umbanda4,2%10,7%
Espiritismo Kardecista3,4%4,3%
Diversas1,9%2,6%
FREQ. SEMANAL (TOTAL)36.162                  (30,1%)29.764               (37,2%)
POPUL.MUNICIP. (TOTAL)(120.000)(80.000)
Fonte: CEDOPE & GDIREC, UNISINOS, dezembro de 1999

O município de Cachoeirinha conta hoje com  uma população de 120.000 habitantes. Deste total, o número dos que freqüentam algum local de culto ou templo por semana é de 36.162 (ou seja: 30,1% da população).  Se tomarmos estes 36.162 freqüentadores semanais, 48,4% deles são pentecostais ou neopentecostais.  

Quanto ao município de Esteio, a sua população hoje é de 80.000 habitantes. Deste total, 29.764 freqüentam algum local de culto religioso ou templo por semana (ou seja: 37,2% da população).  Se tomarmos este total de freqüentadores semanais, 44,1% são pentecostais ou neopentecostais.

  • (Algumas questões…) Infelizmente não temos ainda o dado para uma comparação histórica. Certamente dentro de dez anos poderemos fazer isto e poderemos, inclusive, verificar algumas das hipóteses que aqui estão sendo discutidas. Continuarão os pentecostais e neopentecostais crescendo no mesmo ritmo? Haverá uma retomada católica e das evangélicas históricas pelo viés dos movimentos carismáticos em contextos sócio-econômicos de periferia? Haverá um crescimento mais acelerado em nível das religiões de raízes africanas e de umbanda? Ou estes subcampos dentro do campo religioso tenderão sempre a diluir as suas fronteiras, levando a afirmar uma religiosidade administrada em nível pessoal sem interferências institucionais muito claras, sobretudo, marcas institucionais forjadas na dominação…

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