A IMPORTÂNCIA DO DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO E O FUTURO DO MUNDO DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES

Pe. José Ivo Follmann sj, 15/09/2002

Palestra proferida em Encontro dos Ex-colegas do Colégio Santo Inácio, Salvador do Sul.

“Alarga o espaço da tua tenda, estende as cortinas das tuas moradas (…), alonga as cordas, reforça as estacas” (Isaías, 54,2).

O Diálogo inter-religioso é, sem dúvida, um dos temas mais instigantes e que porta uma profunda incidência no presente e no futuro da humanidade. Já passou o tempo em que falar de religiões e de religiosidades era considerado coisa do passado ou coisa de gerações vencidas e de contextos sócio-culturais anacrônicos. O mundo continua habitado pelo religioso. Mudou a “forma de habitar”, e o “habitante” assumiu novas formas, mas ele continua presente e muito visivelmente presente.

Não é a minha intenção fazer aqui uma leitura histórica das mudanças no “mundo das religiões e das religiosidades” ao longo dos tempos, mas é importante que a nossa reflexão tenha presente em seu horizonte, por um lado, a distinção entre os “tempos pré-modernos”, os “tempos modernos” e os “tempos pós-modernos” no que diz respeito ao “mundo das religiões e das religiosidades” e, por outro lado, a mistura e simultaneidade desses três “tempos”, constatável em grande parte das manifestações desse “mundo das religiões e das religiosidades” em nossos dias.

A abordagem que eu me proponho a fazer é sociológica (talvez de uma Sociologia mais militante do que acadêmica), procurando apontar algumas notas sugestivas para um roteiro de reflexão, cuja complementação e efetivação compete, a rigor, a cada um dos leitores e das leitoras, dentro da medida de seus conhecimentos pessoais, de suas percepções e, também, de sua vivência religiosa.

Enquanto contribuição para o nosso encontro de ex-alunos do Colégio Santo Inácio, Kappesberg, o texto se justifica, não só pela atualidade do assunto, mas, sobretudo, porque a Missão da Companhia de Jesus, hoje, tem no diálogo inter-religioso um de seus pilares centrais e traz uma muito significativa contribuição para uma nova compreensão deste diálogo ao situá-lo de forma integrada com o serviço da fé, a promoção da justiça e o diálogo entre as culturas.

Colocado este horizonte de leitura, vamos ao nosso tema: “a importância do diálogo inter-religioso e o futuro do mundo das religiões e das religiosidades”.

Os grandes desafios vividos pela humanidade em sua paradoxal “homogeneização e diversificação”, neste início de um novo século e de um novo milênio, lançam interrogações específicas para a compreensão do “mundo das religiões e das religiosidades”. A contribuição da Sociologia (ao lado de outras Ciências Humanas) faz-se importante na medida em que ajuda a contextualizar esse fenômeno, fornecendo, também, chaves para a sua interpretação e para a ação concreta visando o presente e o futuro.

Nunca se falou tanto em diálogo inter-religioso e nunca a humanidade foi tão interrogada sobre as guerras religiosas. Nunca também o “mundo das religiões e das religiosidades” mostrou tanta complexidade. Nunca as suas semelhanças e as suas diferenças foram tão conhecidas.

O enorme debate gerado a partir do atentado ao World Trade Center (WTC), nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, aguçou radicalmente esta temática. A religião e os fundamentalismos religiosos tornaram-se matéria de divulgação diária em grande parte dos meios de comunicação. Muitos espaços, normalmente fechados para a divulgação de assuntos ligados à religião, abriram-se para esse debate, oportunizando, inclusive, preciosas e importantes reflexões de estudiosos das religiões, bem como, manifestações muitas vezes esclarecedoras de renomados líderes religiosos. Isto foi perceptível, inclusive, ainda neste ano, no entorno da memória do primeiro aniversário daquele impactante acontecimento.

O presente texto é construído de uma maneira muito simples, em três momentos, tendo presente três grandes centralidades de referência, com as quais procuro trabalhar em minhas abordagens sociológicas, que podem ser expressas aqui, da seguinte forma: 1) “as religiões e as religiosidades em sua significação social”, 2) “o campo religioso propriamente dito” e 3) “as implicações da dinâmica pessoal dos sujeitos religiosos”.

1) Voltando o nosso olhar para “as religiões e as religiosidades em sua significação social” colocamos a questão da mútua repercussão no processo social como um todo e a existência ou não de diálogo inter-religioso. As religiões e as religiosidades são vistas em sua participação na construção do todo, ou seja, a atenção do estudioso ou do observador volta-se para o grande processo social, que pode ser definido como a produção da sociedade por ela mesma, e as religiões e as religiosidades, como participantes ativas (produtoras) e passivas (produzidas) dentro deste processo. Pelo lado da participação ativa, pode-se dizer, por exemplo, que o diálogo inter-religioso é, sobretudo, escola de cidadania e que os integrismos e fundamentalismos são fonte de destruição social e de guerra. Como também, por outro lado, o contexto social, cultural e político repercute, em geral, diretamente nos modos de ser do “mundo das religiões e das religiosidades”. Hoje, segundo alguns analistas, existe um processo de “DES-moralização” das religiões, na medida em que entram no mesmo jogo de mercado imposto pelo contexto. Somente a existência de uma boa cultura de diálogo inter-religioso poderá “RE-moralizar” as religiões, ajudando-as a preservarem as suas missões fundamentais. A “promoção da justiça” nas sociedades, certamente, estará facilitada na medida da existência deste verdadeiro diálogo.

2) O nosso segundo olhar volta-se para “o campo religioso propriamente dito”. Talvez aí estejamos frente a um dos aspectos mais sérios a ser considerado. Estou falando diretamente dos conflitos internos ao próprio campo religioso. Trata-se do nível institucional e inter-institucional. O campo religioso é considerado como um dos campos mais contaminados pela disputa institucional, mesmo que isto seja muitas vezes bastante invisível. Isto torna-se facilmente compreensível, quando levamos em consideração que se trata de confronto de “convicções”. Segundo Paul RICOEUR (1995, p. 183) “não admitimos facilmente que aqueles que não pensam como nós tenham o mesmo direito, que temos, de professar suas convicções porque, pensamos, isso seria dar um direito igual à verdade e ao erro”. Muralhas institucionais são criadas para proteger a “verdade” do “erro”. Enquanto essas muralhas não forem transformadas em paredes com muitas janelas e portas, as religiões estarão longe de se ajudarem mutuamente a encontrar as suas identidades e as suas fecundas e fecundantes diferenças. O campo religioso permanecerá, hoje e no futuro, um campo de grande significação social e cultural, na medida em que não precisarmos identificar em primeiro plano a sua marca conflitual característica, mas a sua busca de diálogo. O campo religioso poderá ser testemunho de diálogo cultural e, por que não, testemunho de democracia.

3) O terceiro olhar que quero apontar (para nossa reflexão) refere-se à própria vivência pessoal da fé, enquanto tal. Estamos aqui referindo-nos ao nível mais profundo, que é o nível da própria prática religiosa, da vivência de fé. Em alguns contextos é bastante visível, hoje, a existência de instituições religiosas ou religiões preocupadas quase que exclusivamente com a vinculação e fidelização das pessoas às suas propostas institucionais. O empenho por ajudar as pessoas a despertarem efetivamente para uma fé sólida e comprometida fica, nestes casos, em segundo plano, quando não totalmente ausente. Ou então, se olharmos pelo lado dos próprios sujeitos individuais, é comum constatarmos a existência de práticas religiosas repetitivas e vazias, contribuindo unicamente para a sobrevivência institucional, quando não voltadas basicamente para a satisfação social ou atendimento a carências psicológicas imediatas. Esta constatação não pode ocultar, no entanto, a existência (crescente!, segundo alguns) de práticas de uma fé constantemente alimentada e cultivada dentro das perspectivas de adesão e convicção pessoais. Seria importante podermos testar a hipótese de que, hoje, nas religiões instituídas, em geral, a prática de adesão pessoal passa a ganhar terreno sobre a prática de rotina ou de conveniência social e institucional. De todas as formas, uma coisa é certa: é na busca do cultivo autêntico da fé, independente da orientação ou vínculo religioso, que encontramos os melhores elementos para uma maior substanciação e fundamentação do sujeito cultural e cidadão que somos.

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Como podem perceber, coloquei três grandes frentes de desafios para a nossa reflexão sobre o diálogo inter-religioso. São desafios que aparecem, de uma forma ou outra, nas mais diferentes abordagens sobre a temática: 1) A responsabilidade cidadã dos que vivem uma religiosidade ou integram uma religião, no sentido de serem efetivamente forças de agregação social e não de desagregação social, sendo protagonistas de promoção da justiça e de uma cultura de paz e diálogo e não de uma cultura de guerra e discórdia. 2) A responsabilidade institucional das religiões pelo cultivo de uma cultura de diálogo profundo entre elas para somarem forças e não desperdiçarem as suas forças em divisões e mútuos combates ou medos sem sentido. 3) E, sobretudo, nos dias de hoje, a responsabilidade dos que desenvolvem uma religiosidade ou dos integrantes das religiões, de cultivarem profundamente os seus valores e a sua fé dentro de um mundo e de uma humanidade tremendamente esvaziada de sentidos.

Por falar em cultivar os valores e a fé, deve-se lembrar aqui que muitas vezes se pensa que o diálogo inter-religioso ou o ecumenismo não passam de mecanismos para unificar artificialmente e matar a diversidade. Isto certamente seria um grande risco, caso não houvesse um autêntico processo de diálogo, mediado por um perfeito casamento entre humildade, convicção religiosa e abertura à verdade. O diálogo só existe quando se fala de igual para igual. É importante que se perca os medos e que aconteça a aproximação. Só assim, no conjunto, se terá mais força. É importante que a identidade de cada um seja preservada e reforçada, mas é também importante que haja uma grande aproximação uns dos outros, pois assim haverá mais oportunidades de se desfazerem os medos mútuos e uma maior percepção de que o outro não é tão perigoso como sempre o imaginamos. Isto também ajudará a que se percebam os diferentes “tempos” do “mundo das religiões e das religiosidades”, os quais se misturam, às vezes, num mesmo indivíduo ou grupo, onde traços de “pré-modernidade”, de “modernidade” e de “pós-modernidade” sobrepõem-se. Esses diferentes “tempos” devem ser reconhecidos e respeitados.

O “mundo das religiões e das religiosidades”, na sua rica diversidade, faz sentido no presente e no futuro, na medida em que, além de sua inequívoca vocação de proporcionar as religações com o Transcendente, o ser e o agir da humanidade puderem encontrar nele, e em seu multicolorido harmonioso, fonte de paz e de inspiração para o diálogo e para a justiça.

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