ABRACEI AS ÁRVORES E PEDI PERDÃO AOS JESUÍTAS QUE AS HAVIAM PLANTADO

Crônica escrita no dia 31 de março de 2019.

José Ivo Follmann sj (31/03/2019)

Foi no último domingo de março. Eu havia celebrado a missa na antiga capela do Centro Cultural de Brasília – CCB. A capela estava lotada. Sabíamos que aquela era a última missa ali realizada. Mesmo que já eram passados muitos meses depois do anúncio deste encerramento, eu ainda notava tristeza no olhar de muitas pessoas. Afinal, eram muitas décadas de celebrações naquele espaço. Tentei penetrar no íntimo de cada um daqueles olhares, tentando vislumbrar a origem da tristeza no olhar, suas histórias de vida e de frequência naquele ambiente.

Uma crônica de despedida em homenagem às árvores do antigo Centro Cultural de Brasília – CCB

O ambiente não era só a capela. Era o Centro Cultural de Brasília, como um todo. O auditório, as salas, o contorno aconchegante e o abraço reconfortador do verde formado por um parque de plantas e árvores de todos os tamanhos, sinfonia de verde de muitas cores, odores e sons. Um verdadeiro oásis multicolorido e multifuncional no coração de Brasília, pulsando no ritmo dos anseios de muitas pessoas. Era, sobretudo, um espaço de fácil acesso e convergência para momentos de reflexão e encontro de movimentos e organizações populares e eclesiais do Distrito Federal. Um oásis de resistência, na mente de muitas pessoas. Tudo estava entristecido por um clima de melancólica expectativa da destruição. 

Fizemos uma foto coletiva. Foi grande o esforço dos fotógrafos e fotógrafas de plantão, para tentar incluir aquele grupo relativamente grande, na foto. Nos despedimos. Algumas pessoas visitaram as instalações novas provisórias, construídas com material de galpão de obra. Um espaço leve, atrativo. As pessoas mostraram alento e conforto. Diversos, no entanto, retomaram o seu grande desconforto pelas numerosas árvores que estavam prestes a serem cortadas.

Como eu fazia todos os dias, na tarde daquele domingo fiz a minha caminhada. Não é necessário dizer que aquela caminhada assumiu um sentido especial. No meio das árvores, havia uma trilha, em formato, ao mesmo tempo, alinhado e desalinhado. Eu conhecia aqueles alinhos e desalinhos nos mínimos detalhes. No período de chuvas tudo ali era repleto de infinitas surpresas diárias desenhadas no encanto de um verde exuberante e multicolorido.

Em cada caminhada, a primeira volta sempre exigia um pequeno esforço por desobstruir a trilha. No período da seca, eram frutas caídas, exalando odores fortes, misturando-se a folhas e galhos secos e verdes, insistindo em se atravessar desajeitados. No período das chuvas, era um explodir indomável de ervas verdejantes e vigorosas, se enroscando por cima do passeio, se pegando na roupa do transeunte intruso. Parecia estratégia da natureza, como um alerta invisível: Aqui deve-se ter cuidado ao caminhar! Este chão não tem a lógica da racionalidade viciada que domina!

Naquele domingo foi a caminhada de despedida. Eu tinha consciência disso. Estávamos no período da maior pujança do verde. Eu mal conseguia olhar para todas aquelas árvores. Meu coração estava apertado e eu balbuciava preces de constrangimento e confusão. Imaginava com tristeza a dor de meus companheiros de gerações anteriores, padres e irmãos jesuítas, que haviam plantado grande parte daquelas árvores. Comungava amargamente com a revolta que estava instalada no coração de muitos. Aquelas árvores estavam tão lindas! Tão vigorosas! Tão viçosas! Felizes por existirem, agitavam abundantes acenos, como quem celebra a sua contribuição para o grande equilíbrio da natureza. Pareciam homenagear com gratidão aqueles que lhes haviam dado a chance de ali crescerem e haviam cuidado delas.

Na terceira volta esqueci o exercício físico e reduzi o passo. Olhei demoradamente para cada árvore. Vi com tristeza que todas elas, sem distinção, estavam marcadas com um selo amarelo. Todas elas estavam rigorosamente numeradas. Marcadas para morrer? Era o controle ambiental (Selinhos do IBAMA? …). Desde os arbustos adolescentes mais magrinhos de alguns poucos centímetros de diâmetro em seu magro ensaio de tronco até os troncos enormes de mais de dois metros de diâmetro. A numeração das árvores marcadas para morrer ia até 242. A maioria daquelas árvores, pequenas e grandes, novas e velhas, não sobreviveria. O selinho amarelo era a marca da morte. Oxalá elas pudessem entender – pensei confusamente – que estava chegando o seu fim naquele espaço. Pedi a elas que nunca esquecessem de alimentar aquele espaço com a incomensurável energia que ali haviam acumulado ao longo de tantos anos.

Naquele domingo, que era 31 de março de 2019, minha mente e meu coração distribuíram abraços de despedidas. Eram árvores pequenas e grandes, novas e velhas acolhendo a minha dor. Meu delírio fazia pensar que elas sabiam o motivo daquele abraço. Meu coração pedia perdão aos que haviam cultivado com tanto carinho aquele verdadeiro jardim botânico. Foi a minha última caminhada naquele jardim. Não concluí as minhas seis voltas, que faziam parte do meu ritual diário sagrado. Me despedi apressado, sem olhar para trás. Apressei-me para abrir o computador e traçar o primeiro rascunho desta humilde crônica. Ela é uma homenagem. Um pedido de perdão. Um compromisso renovado. Homenagem, pedido de perdão e compromisso frente ao número 242 e toda memória de vida e história que nele se expressa. Que os 242 selinhos amarelos grampeados nos troncos pequenos e grandes nunca se apaguem de minha memória. (Nota: efetivamente, mais tarde, o número total da derruba foi de 233, permanecendo em pé 9 lindas árvores, nos fundos da residência da Comunidade dos Jesuítas. É um novo começo para novo belo jardim, agora em espaço mais apertado…)

O CUIDADO COMO UM LEGADO ESPIRITUAL INACIANO NA “PÓS-PANDEMIA”.

Publicado na Revista EM COMPANHIA, em julho de 2020.

Texto de reflexão espiritual com perspectiva formação pastoral

Artigo para a Revista Em Companhia, Província do Brasil, Companhia de Jesus

José Ivo Follmann sj – 15/07/2020

A palavra cuidado é muito importante no vocabulário interno da Companhia de Jesus. Pode-se dizer que o “cuidado das pessoas” e o “cuidado apostólico” fazem parte da espiritualidade inaciana e do modo de ser jesuíta. Também o “Cuidado da Casa Comum”, que se consagrou com a Carta Encíclica Laudato Sí, em 2015, com o Papa Francisco, reflete uma longa história de tomada de consciência interna à Companhia de Jesus, ao longo das últimas Congregações Gerais, na construção de relações justas com Deus, com os outros na sociedade e com os dons da criação, ou seja, no cuidado da vida em todas as suas dimensões e expressões.

Foi o que me veio à mente, de imediato, frente à pergunta feita pela jornalista sobre qual o “legado da vida e espiritualidade de Santo Inácio” em vista de um compromisso nosso na “nova realidade pós-pandemia”. Mas, talvez, o início da resposta, deva ser: “ver Deus em tudo”. Também é uma expressão de síntese vigorosa na espiritualidade inaciana. Além de síntese vigorosa é uma expressão de força indescritível. É algo profundamente mobilizador. Muitas vezes me deixo arrebatar pela riqueza espiritual tremenda que está assim expressa.

Em Inácio de Loyola, isto se moldou dentro de um processo profundo de conversão. Ele se entregou radicalmente a esse processo deixando que uma nova espiritualidade reconfigurasse a sua vida.

A humanidade, hoje, tem a oportunidade de entregar-se, como um todo, a um processo de transformação em suas “normalidades”. A sacudida em Inácio de Loyola foi radical e gerou um projeto pessoal e coletivo totalmente novo. Cada um e cada uma de nós tem a alegria de participar e de estar envolvido e envolvida, de alguma forma, no projeto coletivo que resultou da conversão de Inácio de Loyola. Nós comungamos, através desse projeto, na mesma Missão de Jesus Cristo.

A sacudida da humanidade, no atual momento de pandemia, está sendo intensa e, por todos os recantos da terra despontam sinalizações e vislumbres consistentes de um novo mundo possível e necessário. Estão sendo tecidas novas lógicas em nível pessoal e coletivo. O seu alcance e sua consistência ainda não são mensuráveis. Mas, com certeza, apontam para a necessidade e a urgência da transformação radical.

Ainda estamos afundados na pandemia. Ainda não sabemos quando poderemos vislumbrar a nova realidade, que alguns estão chamando de “pós-pandemia”. Ainda temos dificuldades para desenhar, em nossas mentes e corações, essa realidade futura. Algumas ideias são repetidas. Vou citar duas: 1) A pandemia veio para inaugurar definitivamente aquilo que, há muito tempo, vem sendo denominado de “mudança de época”. 2) Com a pandemia as seguranças que marcaram as normalidades do século XX caem por terra e se inicia, de verdade, o século XXI.

Segundo o Cardeal José Tolentino Mendonça, a atual pandemia nos faz entrar em uma nova época da história. A pandemia vai passar. Mas nós já estaremos em outra época da história, em termos culturais, civilizacionais e espirituais: uma época espiritualmente outra. (Palestra, FAJE, junho 2020)

Como já sinalizei, Inácio de Loyola foi um radical. Foi personalidade que protagonizou rupturas radicais em sua própria trajetória. Inaugurou uma espiritualidade transformadora, radicalmente contestadora das lógicas dominantes em sua própria família e em seu contexto social e cultural. Ele mexeu nas estruturas de base que o sustentavam. A guinada espiritual lhe proporcionou um novo sentido à vida. Passou a ver as pessoas e as coisas a partir de uma lógica totalmente outra. Passou a “ver Deus em tudo”, assumindo um comportamento totalmente novo.

A pandemia também vem mexendo muito conosco. Mexeu com nossas lógicas. Mexeu com as estruturas de base e as certezas que nos sustentam. Ela reacendeu, em todos os recantos da terra, a busca e a escuta das diversas vozes da sabedoria humana na história. Essas vozes sempre estiveram presentes. Infelizmente a humanidade tornou-se surda a elas.

Em uma leitura que fiz em inícios de 2019, de um pequeno livro de Leonardo Boff (2018), de antes da pandemia, uma passagem me chamara particular atenção: “Vamos criar juízo e aprender a ser sábios e a prolongar o projeto humano, purificado pela grande crise que seguramente nos acrisolará”. O autor referia duas passagens riquíssimas da Sagrada Escritura, onde Deus aparece como “apaixonado amante da vida” (Sb 11, 24) e que nos faz um apelo radical: “Escolhe a vida e viverás” (Dt 30, 28). Leonardo Boff escrevia: “Andemos depressa, pois não temos muito tempo a perder”.

A pandemia me fez compreender mais profundamente aquela assertiva. Eu torço, agora, para que a pandemia possa efetivamente contribuir para que paremos de correr na direção errada (da morte) e para que aceleremos os passos na direção certa (da vida).

As nossas instituições vão estar povoadas de protocolos para o exercício do cuidado conosco e com quem está conosco. O nosso avanço, no entanto, deve apontar para muito além desses protocolos. Que o sonho, ou, o apelo à conversão, que o Cardeal Tolentino manifestou, ao falar em nova época “espiritualmente nova”, se faça um efetivo processo de transformação em nós!

Eu torço para que saltemos muito além dos protocolos e que o processo de conversão se faça realidade na disposição de nossos corações, fazendo-nos efetivos no cuidado: a) Cuidado por refazermos em nós a capacidade de reconhecer o outro em sua dignidade, mediante gestos concretos de fraternidade, acolhimento e denúncia de toda ordem de preconceitos e discriminações; b) Cuidado por delinear caminhos para a construção de sociedades geradoras de vida, sem as escandalosas e crescentes injustiças sociais e desigualdades; c) Cuidado por cultivar a vida em todas as suas expressões e dons da criação, em geral. Em suma, um cuidado regenerador nosso no amor a toda a vida que pulsa em nossa Casa Comum.

Colocados no horizonte da Ecologia Integral e do cuidado da Casa Comum de que nos fala a Laudato Sí (2015), todos os cuidados aqui mencionados são dimensões da prática da justiça socioambiental. A realidade “pós-pandemia” deverá encontrar-nos profundamente revigorados/as na disposição de sermos, em nosso cotidiano e em todos os níveis de nossa atuação, cultivadores/as da justiça socioambiental. Talvez deva ser um dos traços fundamentais da espiritualidade que necessitamos.

Neste sentido, o Marco da Promoção da Justiça Socioambiental da Província (Marco PJSA), em sua nova edição (2020), conclui com fortes apelos para que nos empenhemos em propor que a economia esteja a serviço das necessidades básicas de todos os seres humanos e de sua qualidade de vida, bem como conserve os dons da criação e não continue comprometendo mortalmente a natureza. Que, em nossas vidas, em nossas instituições e no mundo econômico, político e social, sejamos protagonistas do cuidado com a vida, uma vida digna para todos e todas.

É importante que junto com toda a humanidade tenhamos aprendido a lição da pandemia. Um aprendizado de que não podemos voltar a fazer as mesmas coisas e da mesma maneira.

SUPERANDO AS MESMICES: EM BUSCA DE UMA PROPOSTA TRANSDISCIPLINAR

Palestra proferida em setembro de 2006 em Seminário Internacional, UNISINOS.

A tábua de salvação da universidade

P. José Ivo Follmann sj [1]
Secretário para a Justiça Socioambiental
Província dos Jesuítas do Brasil;
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos.

Palestra proferida no III Seminário Internacional sobre Limites e Possibilidades do Direito Moderno – Uma Visão Transdisciplinar, UNISINOS, Setembro de 2006.[2]

São Francisco Xavier, como missionário atuante no Extremo Oriente, em um dos contatos escritos, através de carta,[3] manifestava uma grande ansiedade com relação à acomodação e ao pouco resultado das Universidades Européias, frente às grandes necessidades da humanidade. Ele escrevia que tinha vontade de retornar à Europa e, “se fazendo de louco”, andar pelos corredores dessas Universidades e denunciar, aos gritos, a “insensibilidade e indiferença” delas e dos seus estudantes, com relação ao que a humanidade efetivamente mais estava necessitando. Esse santo, nos limites de sua compreensão, dentro de seu ardor missionário, se referia, evidentemente, à necessidade da evangelização e do anúncio dos valores cristãos para toda a humanidade.

Sem repetir a mesma visão de mundo desse heróico jesuíta do século XVI, hoje, são muitas as vozes que se levantam e que gostariam de “se fazer de louco” para sacudir as Universidades de seu torpor e sua acomodação nas mesmices de uma Academia insensível e indiferente frente aos destinos da humanidade e dos problemas concretos existentes no cotidiano das pessoas e da sociedade.

Talvez devamos dizer que não se trata, tanto, de insensibilidade e indiferença frente aos problemas humanos, mas da própria incapacidade de perceber e reconhecer as potencialidades da Universidade e os múltiplos valores que nela estão escondidos e são mal aproveitados.

O título desta minha participação neste III Seminário Internacional sobre Limites e Possibilidades do Direito Moderno – Uma Visão Transdisciplinar, foi inspirado em uma frase do Professor Ubiratan D’Ambrosio, em recente palestra nesta casa,[4] onde ele disse que “a transdisciplinaridade é o caminho de superação da mesmice.” Quero expressar a minha admiração em relação a toda a equipe que preparou o presente Seminário. Já é o terceiro e, portanto, existe uma história acumulada. Trata-se de uma história que faz parte, também, de um importante processo vivido pela nossa Universidade, sobretudo, desde o ano de 2001, na busca de definir-se como Universidade que faz uma opção institucional pela transdisciplinaridade. Já foram dados vários passos e, talvez, já possamos dizer que a superação da mesmice, ainda que débil e tributária dos rancorosos limites de uma cultura disciplinar secular, está sendo esboçada com firmeza.

Colocando-me na seqüência de minhas contribuições nos Seminários anteriores, onde fui desafiado, por duas vezes consecutivas, a trazer reflexões para uma discussão do conceito de transdisciplinaridade e de sua pertinência no atual contexto acadêmico e profissional, trago para este momento mais três fragmentos ou recortes, que, no meu entender, poderão jogar novas luzes ou interrogações sobre a temática.

Em minha participação no Primeiro Seminário, preocupei-me em propor algumas reflexões sobre o conceito de transdisciplinaridade, diferenciando-o de multi, pluri e interdisciplinaridade, e usei, na oportunidade, diversas imagens para ajudar a definir a essencialidade do conceito.

Desde o Primeiro Seminário, acostumei-me a falar em quatro momentos metodológicos de um mesmo “que fazer” científico: 1) a disciplinaridade; 2) a multi e pluridisciplinaridade; 3) a interdisciplinaridade; 4) a transdisciplinaridade. Com a afirmação da transdisciplinaridade não se está deixando de afirmar a importância da contribuição específica das disciplinas, seja em suas produções isoladas, seja na forma multi ou pluridisciplinar de produção do conhecimento, somando, justapondo ou criando interfaces entre disciplinas, ou, ainda, na forma interdisciplinar, de efetivo diálogo e intercâmbio conceptual e metodológico entre disciplinas. A transdisciplinaridade estará presente em todos esses momentos metodológicos, na medida em que houver uma madura abertura para a integração dos saberes, seja saberes de disciplinas, seja saberes de “interrogantes externos”, que as transcendem.[5] Para Basarab Nicolescu, no qual esta conceituação se apóia, “a transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica, diz respeito àquilo que está, ao mesmo tempo, entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina.”[6]

No Segundo Seminário aprofundei algumas imagens, como: a do “poço”, utilizada freqüentemente por Ubiratan D’Ambrosio; a da “ultrapassagem”, buscada numa reflexão de Dom Helder Câmara; a do “menino que queria conhecer o mundo”, título de um livro de Carlos Rodrigues Brandão.

Retomando sinteticamente: 1) Ubiratan D’Ambrosio, ao falar do conhecimento, utiliza a analogia do poço, “assim, como ao descer num poço a percepção do terreno ao redor vai se tornando mais e mais difícil, o conhecimento especializado pode conduzir a uma falta de percepção do contexto em que tal conhecimento foi produzido.”[7] 2) Dom Helder Câmara um dia, inquieto, exclamou “Ah! Se a sede de ultrapassagem – comum a todos os volantes – levasse volantes e passageiros a aprenderem a ultrapassar-se!” É necessário que saibamos ultrapassar a nós mesmos, constantemente, para não nos tornarmos ultrapassados. A Academia facilmente corre o risco de ser ultrapassada, voltada que está para os seus disciplinamentos e os regramentos internos de seu mundo. Os Acadêmicos correm o risco de ficar à parte do contexto no qual se inserem, movimentando-se de forma paralela e construindo ‘torres de marfim’, à parte, alheios aos grandes debates e embates da humanidade. 3) Carlos Rodrigues Brandão, em um de seus livros no qual retrata a história de Paulo Freire “A história do menino que lia o mundo”,[8] destaca que esse menino que lia o mundo, aprendeu a perder o medo porque começou a entender as coisas e o mundo. Só temos medo frente ao que não entendemos. É preciso saber colocar no background de nossas análises científicas disciplinadas e de alta qualidade e habilidade, o “isso não é tudo”, esses caminhos não são suficientes! É importante repetir permanentemente para nós mesmos: Existem outras percepções, que transcendem a percepção disciplinar.[9]

Hoje vou propor novas aproximações… Os três fragmentos ou recortes que vou sinalizar, aqui, de forma sucinta, pretendem colocar-se numa seqüência das reflexões anteriores, buscando aprofundamentos, através da provocação de novos diálogos. Vou falar de: 1) a “lição de uma Mãe-de-Santo”; 2) a “leitura de um documento dos Jesuítas”; e, 3) o “o triângulo da vida de Ubiratan D’Ambrosio”.[10] Após essas três entradas, aparentemente desencontradas, tentarei, a título de conclusão ou encaminhamento de debate, levantar algumas questões direcionadas para a temática central do presente Seminário.

1. A Lição de uma Mãe-de-Santo

Aproveito para trazer, aqui, a lição que recebi de uma Mãe de Santo.[11] Estava participando de um seminário sobre teologia das religiões de matriz africana. A Mãe de Santo, que era uma das painelistas, acabara de fazer uma reflexão de grande profundidade e, no meu entender, de registro escrito necessário. Perguntei-lhe, no final de sua colocação, por que as religiões de matriz africana, ainda hoje, continuavam resistentes ao registro escrito das grandes lições de vida e fé de seus líderes e, também, de suas reflexões espirituais e religiosas. Ela me respondeu: “Padre Ivo, se a gente escreve, aí vêm outros, leem e saem fazendo bobagem!…” Foi uma resposta inesperada, que já me oportunizou muita reflexão.

Em primeiro lugar: valores e atitudes não se aprendem em livro! Ou seja, existem dimensões no conhecimento que não passam pela simples captação da razão. As formulações da linguagem sempre serão pobres para dar conta delas. Só podem ser colhidas na vivência e no coração. A simples apreensão pela leitura, quando não acompanhada pela acolhida vivencial, proporciona uma falsificação cognitiva. A frase “aí vêm outros, lêem e saem fazendo bobagens!” pode ser entendida também como “aí vêm outros, lêem, acham que sabem e saem fazendo bobagens!

Quantas bobagens fazem professores em sala de aula, porque leram (talvez tudo de sua matéria) e acham que sabem, mas não são capazes de estar atentos à vida de seus alunos ou mesmo à sua própria vida! Quantas bobagens fazem profissionais da lei em seus afazeres jurídicos, porque leram e acham que sabem!

Em segundo lugar: a Academia e as instituições consolidadas não são os únicos espaços de estruturação das áreas de conhecimento ou dos campos de saber. Existem áreas e campos de conhecimento e saber, cujas hierarquias de poder estão situadas fora do meio acadêmico e das instituições consolidadas.

A lembrança da Mãe de Santo nos faz retomar uma imagem que é muito cara a Ubiratan D’Ambrosio. Ele fala das “gaiolas epistemológicas”. As grades das gaiolas epistemológicas só serão, efetivamente, rompidas na medida em que o conhecimento puder ser construído em profundo diálogo com atitudes e valores. Só num processo assim, estaremos formando homens e mulheres com capacidades efetivas e humanas para construir cultura nos lugares onde estiverem atuando, compartilhando conhecimentos, compatibilizando comportamentos e afirmando valores.

No diálogo inter-religioso aprende-se muito. O diálogo inter-religioso já me fez aprender muito. É um processo no qual se aprende, por exemplo, a aceitar que o outro, que antes era talvez simplesmente uma realidade que se tolerava, possa ser alguém em pé de igualdade, sendo, inclusive, referência para nós. Ele ajuda a aceitar a possibilidade de outras hierarquias na produção do conhecimento, para além daquelas que normalmente consideramos válidas. No diálogo inter-religioso experimentamos a ajuda desses outros. Eles nos ajudam a sermos melhores em nossa própria religião. O caminho do diálogo inter-religioso é um bom caminho de aprendizagem para uma cultura transdisciplinar.

Com a licença da Mãe de Santo, permitam-me fazer um pequeno parêntesis, aqui: Em determinada ocasião, numa das muitas participações em encontros que envolvem a temática do diálogo inter-religioso, estávamos reunidos com um grupo grande de seguidores do Movimento Brahma Kumaris. No final daquele evento, alguém nos trouxe uma proposta, que achei muito inspiradora. A pessoa falou em vibrações da paz. Só um minuto! “Convidamos você a fazer esta experiência: a cada hora, interrompa a sua ação e o fluxo do seu pensamento, com a seguinte mensagem: Sou um ser especial, somos seres especiais e com outros seres especiais dançamos e formamos a ‘ciranda da vida’.” (BK) É a idéia do Ano Sabático, em forma de comprimido. Trata-se do momento de retomar a visão do todo. Momento de fazer as pazes conosco mesmos. Fiquei pensando: talvez necessitemos, efetivamente, mais disso. Para que o nosso conhecimento seja mais verdadeiro e para que os nossos conhecimentos nos levem a fazer menos bobagens, esses momentos de encontro conosco mesmos, fazem uma tremenda falta!

2. Um Desafio para os Jesuítas

Sem sair da esfera religiosa e do diálogo inter-religioso, faço agora um convite para nos determos brevemente diante de um texto atual que circula no meio jesuítico.[12] Estamos em uma instituição jesuítica, por isso é mais do que oportuna esta nota… Com uma distribuição de alcance restrito, circula no meio jesuíta, um texto intitulado “Globalização e marginalização”, abril de 2006.[13] Ele foi elaborado por uma equipe internacional e intercultural de jesuítas, nomeada pelo Superior Geral, sob a coordenação do Secretariado de Justiça Social, da Companhia de Jesus. Trata-se de um dos textos de trabalho que vêm preparando, de forma longínqua, a Congregação Geral da Ordem, a realizar-se em janeiro de 2008.

Quero trazer duas recomendações que, entre outras muitas, dignas de serem ressaltadas, chamaram a minha particular atenção: a) é recomendável, que cada jesuíta se empenhe em defender ao menos uma cultura, que não seja a sua; b) é recomendável, que cada jesuíta se empenhe em conhecer a fundo ao menos mais uma religião, além da sua própria.

Não se trata, portanto, de ter simplesmente uma atenção e procurar conhecer as outras culturas e religiões e dialogar com as mesmas, mas empenhar-se em defender e empenhar-se em conhecer a fundo. Trata-se de uma provocação grande.

Não é, evidentemente, um documento oficial da Ordem, mas, certamente, ele aporta indicativos muito sérios e pertinentes para a nossa reflexão, para que se possa avançar, de forma efetiva, na construção da transculturalidade e da transdisciplinaridade.

Retomar esta reflexão fará muito bem para a Ordem Religiosa em questão, mas convido a todos aqui presentes, ou aos que tomarem contato com este texto, a deixarem que este desafio os provoque.

Ubiratan D’Ambrosio também falou: “No encontro com o outro tem que ter ética!” Sugerindo, é claro, o respeito pela essencialidade do ser humano. Eu logo fiz o link com a questão de inclusão social, tão falada e talvez tão mal praticada! Nós, em geral, gostamos muito de fazer inclusão. De fazer dos outros objetos de nosso trabalho de inclusão. As coisas começam a se complicar no momento em que temos que dar o passo para o reconhecimento do sujeito do outro que está sendo incluído: aceitá-lo como sujeito de sua própria inclusão. Com muita facilidade nos deixamos cegar por pequenas limitações (maneiras de se comportar não condizentes com o nosso padrão estabelecido, etc), para perpetuar, de forma inconsciente, a condição de objeto do outro a ser incluído.

É muito difícil e, às vezes, quase impossível, a tarefa de enfrentar essa nossa limitação. Precisamos, em primeiro lugar, reconhecer os nossos próprios limites, preconceitos e estereótipos, para podermos aceitar o outro como sujeito, sujeito de inclusão e sujeito também incluído (como nós). Mais difícil, ainda, se faz a tarefa de reconhecer no outro, o qual, na minha cabeça, deve ser incluído, como um possível sujeito de minha própria inclusão. Isto é: como alguém que pode contribuir para que eu seja mais gente!

Talvez as duas recomendações destacadas do texto aqui referido possam traçar novos caminhos para os nossos trabalhos de inclusão social…

3. O “Triângulo da Vida” de Ubiratan D’Ambrosio

Um terceiro apontamento, que gostaria de fazer, diz respeito a uma interrogação pedagógica que me ocorreu ao ouvir o Professor Ubiratan D’Ambrosio apresentar a bela síntese explicitada no que ele denomina de “triângulo da vida”. Trata-se de uma metáfora matemática: o fenômeno da vida sintetizado nos seis elementos de um triângulo, onde os três vértices, – o indivíduo, a natureza e a sociedade (os outros), – estão complexamente “intermediados por instrumentos, comunicação e emoções, trabalho e poder, que foram e são essenciais para o desenvolvimento das civilizações”. Podemos falar em atitudes, conhecimentos e capacidades.

Tendo presente o rico conceito de conhecimento com o qual o palestrante costuma trabalhar, no qual se misturam fecundamente também as dimensões do comportamento e dos valores. Aliás, comportamento e valores são indissociáveis.

Ubiratan D’Ambrosio diz: “Eu acredito que é possível uma sociedade onde a arrogância, a desigualdade e o fanatismo não existam mais. Para tal, nós precisamos de uma dramática mudança nos fundamentos de nossa civilização. As normas e valores universalmente aceitos, assim como os sistemas de criação de valor e trabalho, baseados no ganha/perde e na escassez/abundância, são insustentáveis. Nós precisamos de uma ética, focada na mudança da competição para a cooperação, do seccionamento humano para a interconectividade humana, da dependência humana para a interdependência humana, do medo para o amor, do individualismo para o altruísmo. Esta será a mais significativa mudança em toda a história humana e o início de uma caminhada na direção de uma civilização planetária.” Se consideramos estes desafios isoladamente, parecem simplórios e até ingênuos, mas eles, considerados em seu conjunto, refletem um complexo sistema de conhecimento, ou seja, envolvem modos ou estilos de relacionar-se, de entender, de expor o contexto natural, sócio-cultural e imaginário. Segundo Ubiratan D’Ambrosio, por razões até agora pouco explicadas, a espécie humana deu absoluta prioridade a um dos vértices do triângulo: o vértice do indivíduo.

Nós poderíamos pensar uma “matriz” pedagógica, na qual valores, atitudes e conhecimentos de professor e alunos entrassem em permanente roda de explicitação, no momento do indivíduo, no momento social e no momento natural, ou seja: em relação a si, em relação aos outros, em relação à sociedade e em relação à natureza. Em suma, como fazer para que numa sala de aula aconteça a verdadeira construção da cultura e não simples transmissão?

Para concluir…

Em primeiro lugar, não é necessário dizer que o “desafio da Mãe de Santo” fala por si. “Se a gente escreve, aí vêm outros, lêem e saem fazendo bobagem!” “Aí vêm outros, lêem, acham que sabem e saem fazendo bobagem!” Que saibamos ter todos os nossos sentidos muito abertos para apreender a realidade viva que não consegue estar abarcada nos textos e documentos frios que desfilam na nossa frente. Que, sobretudo, nunca deixemos de voltar a nossa atenção aos sujeitos sobre os quais está escrito nos textos e documentos que manipulamos.

Em segundo lugar, a palavra de ouro é o diálogo. Este supõe radical abertura ao outro, ao diferente, a ponto de chegar a um conhecimento profundo dele e de colocar-se em defesa do mesmo. O conhecimento profundo do outro só é possível quando conseguimos des-absolutizar a nossa posição. A maior prova dessa “des-absolutização” está em colocar-se na defesa do direito de realizar-se plenamente dentro dos ditames de outra cultura, que o outro tem.

Em terceiro lugar: O “triângulo da vida” que Ubiratan D’Ambrosio propõe, deve ser para nós uma chamada para a superação da racionalidade individualista para uma racionalidade planetarista, onde o nosso pensar e o nosso agir estão sempre atentos às conseqüências que este pensar e agir têm na sociedade e na natureza. Para que a nova sociedade, onde arrogâncias, desigualdades e fanatismos não tenham mais vez, seja possível, é necessário que as nossas atitudes, os nossos conhecimentos e as nossas capacidades se revistam sempre mais dessa racionalidade que integra, de forma harmônica, a relação com os indivíduos, a sociedade e a natureza.

Em suma, estas são as três pontuações que queria trazer para o presente Seminário e faço votos que possam ser transformadas em pistas inspiradoras na construção de uma cultura da transdisciplinaridade.

NOTAS

[1] Doutor em Sociologia, Padre Jesuíta, Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNISINOS.

[2] Palestra transcrita e revisada pelo autor.

[3] A prática das cartas era uma prática muito usual na recém criada Companhia de Jesus, no século XVI.

[4] Ubiratan D’Ambrosio. Conhecimento e Valores Humanos. Programa de atualização dos docentes. UNISINOS, Unidade de Apoio de Recursos Humanos, setembro de 2006.

[5] Ver Follmann, J. Ivo; Lobo, Ielbo M. et allii. Transdisciplinaridade e Universidade: uma proposta em construção. São Leopoldo: Edunisinos, 2003, p.10.

[6] Nicolescu, Basarab. Educação e transdisciplinaridade. Brasília: Ed. Unesco Brasil, 2000, p.15.

[7] Conferência realizada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, 08 de maio de 2003. (Ver também D’Ambrosio, Ubiratan. Transdisciplinaridade, São Paulo: Palas Athena, 1997).

[8] Brandão, Carlos R. A história do menino que lia o mundo. São Paulo: ANCA, 2002. (Fazendo Hist. nº7, MST)

[9] Desenvolvemos mais amplamente a descrição destas “imagens” em artigo publicado na Revista Ciências Sociais Unisinos. Vol. 41, N. 1, jan/abril 2005: “O Desafio Transdisciplinar: alguns apontamentos” (p. 53-57) [1] D’Ambrosio, Ubiratan. Knowledge and Human Values. Segundo Congresso Mundial de Transdisciplinaridade

[10] D’Ambrosio, Ubiratan. Knowledge and Human Values. Segundo Congresso Mundial de Transdisciplinaridade. Vila Velha, Vitória, ES, setembro de 2005.

[11] Ialorixá Dolores Senhorinha Dornelles, Associação Africanista Santo Antonio de Categeró, São Leopoldo, RS.

[12] Da mesma Ordem Religiosa, a Companhia de Jesus, da qual faz parte São Francisco Xavier, referido, no início.

[13] Social Justice Secretariat. Globalisation and Marginalisation; our global apostolic response. (Report of the Task Force on Globlisation and Marginalisation). Rome, February 2006.

TRANSDISCIPLINARIDADE, DIÁLOGO E COMPROMISSO SOCIAL: DESAFIOS PARA A RENOVAÇÃO DA ACADEMIA

Palestra proferida em Liverpool, Inglaterra, em abril de 2014.

A tábua de salvação da universidade

P. José Ivo Follmann sj
Secretário para a Justiça Socioambiental
Província dos Jesuítas do Brasil;
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos.

MESA REDONDA: INTERNATIONAL FEDERATION OF CATHOLIC UNIVERSITIES – IFCU; XXV Colloquium of ACISE “Being open to the others” – Liverpool Hope University, 04/23-25/2014

RESUMO:

O artigo propõe uma reflexão sintética sobre o possível papel da educação superior na realização do sonho de sociedades sustentáveis, pautando, para tal, a importância da cultura transdisciplinar, do diálogo e do compromisso social na produção do conhecimento e na formação dos profissionais. As concepções de ‘transdisciplinaridade’ (Basarab Nicolescu) e de ‘ecologia dos saberes’ (Boaventura de Souza Santos) são retomadas na perspectiva de se repensar o sentido da universidade hoje, enriquecendo-as com apontamentos a partir de estudos sobre a importância do compromisso social da universidade e da extensão universitária, através do conceito de responsabilidade social universitária (François Vallaeys). Além de estabelecer uma aproximação sugestiva entre as concepções de ‘ecologia dos saberes’ e de ‘transdisciplinaridade’ e sua importância para a educação superior, hoje, o texto partilha algumas reflexões a partir do cotidiano de ‘que fazer’ universitário. A reflexão é desenvolvida no horizonte dos desafios que a universidade enfrenta dentro do contexto social brasileiro e latino-americano, tendo em vista a sociedade sustentável. O artigo conclui com apontamentos e questionamentos que sugerem a necessária ‘reinvenção’ da universidade na perspectiva do ‘abrir-se para os outros’.

Palavras Chave: Transdisciplinaridade; Responsabilidade Social Universitária; Diálogo

INTRODUÇÃO

Tendo como horizonte, o contexto latino-americano e, especificamente, o contexto brasileiro, e a urgência de se pensar a responsabilidade das universidades para ajudar a garantir o futuro da humanidade mediante sociedades sustentáveis, são dados quatro passos na reflexão: – Horizontes Direcionadores da Universidade e Responsabilidade Social Universitária; – As Cinco Dimensões do ‘Que Fazer’ Universitário; – Transdisciplinaridade e Diálogo de Saberes: Um Atalho Fundamental; – Extensão Universitária, Caminhos de Ruptura do Abismo e ‘Reinvenção’ da Universidade na Perspectiva do ‘Abrir-se para os Outros’.

HORIZONTES DIRECIONADORES DA UNIVERSIDADE E RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA

Hoje em dia, em nosso meio, muitas vezes se ouve dizer que existe uma defasagem grande entre o que a sociedade em geral, o mercado em particular e os governos esperam do sistema de ensino, particularmente da educação superior e quais as condições efetivas existentes neste sistema para uma produção de conhecimentos e formação de profissionais condizentes com as reais necessidades da sociedade. Isto redobra de importância e urgência quando colocamos no horizonte a construção de sociedades sustentáveis, como é o horizonte direcionador da proposta contida neste texto. Ou seja, a questão se centra sobre as condições que as universidades apresentam para dar conta daquilo que deveria ser a sua finalidade como produção de conhecimentos e formação de profissionais condizentes com a construção de sociedades sustentáveis.

Às vezes nos deparamos com comentários que sugerem que existe um verdadeiro abismo, quase intransponível, entre estes dois mundos. Mesmo que sejam conhecidos diversos esforços para superar este abismo, existem muitos outros processos em andamento que acabam aumentando o mesmo.

Como romper este abismo? Como construir pontes efetivas que permitam o trânsito sobre o mesmo? Sem fazer rodeios, entendo que, em primeiro lugar, é necessário que se coloque no centro do horizonte direcionador algumas questões chaves: – Que sociedade humana nós queremos? Queremos efetivamente construir sociedades sustentáveis? – Que tipo de sujeitos (pessoas) deve ser formado, para que este tipo de sociedade se faça possível? – Que educação nós necessitamos e que universidade queremos para sermos coerentes com a educação necessária para os sujeitos e a sociedade buscados?

Se o nosso sonho é com uma sociedade sustentável, isto é: com uma inovação tecnológica permanente e com o estabelecimento de garantias de sustentabilidade social e ambiental, em vista da sobrevivência equilibrada da sociedade e do meio ambiente no presente e no futuro, os cidadãos e profissionais desta sociedade devem passar por um processo de formação condizente e o sistema, no qual este processo formativo se dá, deve ser impulsionador disto. Quando eu falo em Universidade, o faço dentro deste horizonte. Ou seja, só vejo sentido em lutar por uma Universidade que efetivamente se coloque nesta perspectiva.

Tornou-se bastante usual em debates recentes, sobretudo, a partir do incentivo da UNESCO, o conceito de Responsabilidade Social Universitária – RSU. O conceito tem em si uma riqueza muito grande e traz para o centro das atenções a importância de se ver o processo universitário em sua totalidade orgânica e transversalmente integrada. Reproduzo aqui o conceito formulado pela Associação das Universidades Jesuitas de América Latina – AUSJAL, inspirado em Vallayes (2006), nos seguintes termos: “A habilidade e efetividade da universidade em responder às necessidades de transformação da sociedade em que está imersa, mediante o exercício de suas funções substantivas: ensino, pesquisa, extensão e gestão interna. Estas funções devem estar animadas pela busca da promoção da justiça, da solidariedade e da equidade social, mediante a construção de respostas exitosas para atender aos desafios implicados em promover o desenvolvimento humano sustentável.”[i]

AS CINCO DIMENSÕES DO ‘QUE FAZER’ UNIVERSITÁRIO

O sistema de avaliação implantado na AUSJAL para dar conta do conceito de Responsabilidade Social Universitária – RSU está pautado na avaliação de cinco impactos, dando conta de cinco dimensões chave da vida da universidade. Estou sempre mais convencido, em coerência com o que coloquei como horizonte direcionador da Universidade, que devemos estar atentos, de forma integrada, a essas cinco dimensões: a educativa (a vida acadêmica em seu processo de ensino-aprendizagem), a epistemológica e cognoscitiva (a vida acadêmica em seu processo de produção de conhecimento), a organizacional (a vida acadêmica em sua gestão organizacional e administrativa interna), a social (a vida acadêmica em sua relação com a sociedade), e a ambiental (a vida acadêmica em sua relação com o meio ambiente). Trata-se de cinco dimensões da universidade que, a rigor, nos proporcionam ângulos suficientes para visualizar a totalidade da vida de uma Universidade. A avaliação da vida acadêmica só será efetiva e completa quando conseguirmos dar conta destas cinco dimensões de forma integrada, no próprio processo avaliativo. O impacto ou a presença da academia se dará através destas cinco dimensões. O que a AUSJAL faz para avaliar a Responsabilidade Social Universitária pode ser um modelo inspirador para uma avaliação mais ampla de todo o ‘que fazer’ universitário e de avaliação da excelência acadêmica.

Tendo em vista a produção de conhecimentos e a formação de profissionais para a construção de sociedades sustentáveis, é importante que, na avaliação da vida acadêmica, se esteja atento: a) em seus processos de ensino-aprendizagem e de produção de conhecimento, ao compromisso socioambiental, junto à excelência acadêmica e ao espírito inovador e empreendedor; b) em sua gestão organizacional e administrativa interna, à sustentabilidade socioambiental junto à sustentabilidade econômico financeira; c) em sua relação com a sociedade, ao testemunho institucional e práticas de incidência externa no que tange à reconstrução das relações humanas de reconhecimento e valorização dos diferentes (combate ao preconceitos e discriminações) e à busca de formas de combate às desigualdades sociais no que tange ao trabalho e acesso aos bens; d) em sua relação com o meio ambiente, da mesma forma, ao testemunho institucional e às práticas inovadoras na relação sustentável com o meio ambiente.

Uma aventura destas é tremendamente difícil e quase inconcebível dentro das estruturas comuns da academia seccionada em pesquisa, ensino e extensão, seccionada em departamentos, seccionada em faculdades, institutos ou centros. É, também, muito difícil e quase inconcebível dentro de um esquema de produtividade puramente quantitativa e vazia, como vem acontecendo em muitas situações.

Em tais situações, o sistema de avaliação da chamada ‘excelência acadêmica’ deve ser radicalmente revisto, pois está exacerbando uma corrida quantitativa de ‘produtividade científica’, em grande parte inócua e desconectada com o que deveria ser a finalidade central da universidade. É fundamental que avaliação seja realizada no contexto institucional tendo em vista a continuidade, permanência e garantia de futuro e no contexto da relação da instituição com a realidade social e ambiental envolvente tendo em vista a capacidade de interlocução nos processos de produção do conhecimento e de formação de profissionais. O contexto institucional e a sua capacidade de interlocução devem ser identificáveis tanto em relação ao passado, aos valores e saberes acumulados pelas mais diversas vias, como em relação ao futuro, à busca inovadora de soluções para a humanidade em vista de sociedades sustentáveis e universidades que sejam preparadas e propícias para tal. Este deve ser o referencial para adjetivar de forma coerente a excelência acadêmica. Ou seja, se formos coerentes com a busca por eliminar a grande defasagem entre academia e sociedade, em vista de produção de conhecimentos condizente e da formação de profissionais condizente, a avaliação da excelência acadêmica terá que levar em conta, sobretudo, o tipo de processo desenvolvido na academia, a sua efetiva capacidade de abertura e interlocução com as múltiplas formas de saber e o tipo de impacto gerado por este processo no contexto socioambiental.

TRANSDISCIPLINARIDADE E DIÁLOGO: UM ATALHO FUNDAMENTAL

Para que se possa trilhar o caminho complexo aqui sinalizado, muitos passos devem ser dados, a depender dos diferentes contextos e limitações institucionais. Quero, no entanto, destacar um atalho que entendo como fundamental: o cultivo da ‘cultura da transdisciplinaridade’.

Havendo este cultivo, o ambiente estará facilitado e fecundo para que se concebam e se desencadeiem iniciativas acadêmicas (programas, projetos e atividades) de formação profissional e de produção de conhecimento de efetiva incidência no contexto em todos os níveis.

Mas o que é transdisciplinaridade? O que explica toda esta atenção? Por vezes não nos damos conta de que é dentro do processo de interrogações sobre

a defasagem entre a Universidade e o seu contexto, ou sobre a busca de aproximação entre academia e sociedade que se acelerou o processo de gestação da transdisciplinaridade. Fica sempre mais claro que as opções por buscar soluções transdisciplinares são as que criam as melhores condições para acelerar a aproximação entre academia e sociedade. Talvez se possa dizer que é nas soluções transdisciplinares que reside, em grande parte, a salvação para o futuro das próprias universidades e seu sentido na sociedade. Entendo que as práticas transdisciplinares, no cotidiano das instituições de educação superior, – e isto é válido para o sistema educativo em geral, – serão um grande facilitador para superar a lacuna entre os dois mundos, promovendo uma maior aproximação entre o meio acadêmico e as demandas da sociedade.

O mundo acadêmico é o mundo das disciplinas. É, também, muitas vezes, um mundo que sucumbe a certas arrogâncias disciplinares… As certezas disciplinares são reconduzidas à aproximação da verdade na medida em que se instauram processos multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. A rigor, são diferentes ‘movimentos’ metodológicos de um mesmo ‘que fazer’ científico.[ii] O último desses ‘movimentos’, a transdisciplinaridade, não significa um momento ou etapa de superação ou desconsideração da contribuição específica dos outros ‘movimentos’ das disciplinas, seja em suas produções isoladas, seja na forma multidisciplinar de produção do conhecimento, somando, justapondo ou criando interfaces complementares entre disciplinas, ou, ainda, na forma interdisciplinar, de efetivo diálogo e intercâmbio conceptual e metodológico entre as mesmas. A transdisciplinaridade reflete, em si, todos esses ‘movimentos metodológicos’, acrescendo-lhes uma abertura madura para a integração de saberes diferentes, sejam eles saberes de disciplina, combinação de disciplinas ou, ainda, saberes de outras ordens, que transcendem as disciplinas, atuando como “interrogantes externos”.[iii] Para Basarab Nicolescu, no qual me apoio mais diretamente, “a transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica (…) diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina”.[iv]

A transdisciplinaridade nasceu com essa vocação. Por meio dela se busca a integração dos saberes externos aos esquemas internos disciplinares, onde os saberes de fora da academia (buscados nas percepções do cotidiano, nas

percepções artísticas e outras sensibilidades ou criatividades, ou, mesmo, nas tradições sapienciais da humanidade, sem falar nas percepções concretas na prática dentro dos diversos campos, como saúde, lazer, política, trabalho fabril, etc), funcionam como interrogantes externos dentro do processo de produção do conhecimento e do processo educativo.

Pessoalmente tenho uma longa experiência na percepção do papel importante que os saberes religiosos e as sensibilidades dessas tradições podem contribuir no processo de produção do conhecimento. Inclusive o diálogo inter-religioso pode ser considerado como um excelente laboratório testemunhal de prática transdisciplinar.

EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, CAMINHOS DE RUPTURA DO ABISMO E ‘REINVENÇÃO’ DA UNIVERSIDADE NA PERSPECTIVA DO ‘ABRIR-SE PARA OS OUTROS’

Como já foi mencionado, na legislação que rege as universidades brasileiras são destacadas três finalidades chaves das mesmas: o ensino, a pesquisa e a extensão. Esta última finalidade envolve toda função de interface da universidade com o contexto no qual ela está inserida. A academia aparece como ator social, que, além das pesquisas que são desenvolvidas e do ensino que é pautado nos processos de formação dos profissionais, também exerce um papel de incidência direta no meio socioambiental em que se insere, contribuindo no desenvolvimento da sociedade na busca de soluções inovadoras nas relações humanas e na superação das desigualdades, bem como, na relação com o meio ambiente. No exercício deste papel ela oferecerá a seus alunos, espaços de formação profissional mais próxima e comprometida com todo o contexto humano, cultural, social, tecnológico e ambiental, que os envolve.

É urgente que a academia refaça alianças e se reconcilie com um imenso acervo de saberes que foram tornados ausentes por ela mesma. Esta riqueza pode estar fazendo falta para a humanidade. Mencionei a dimensão religiosa, que é portadora de parcela desta multi variada riqueza não suficientemente presente nos processos de produção do conhecimento e formação de profissionais. Mencionei esta dimensão por fazer parte de minha prática

imediata. Muitas outras dimensões, mais ou menos importantes, deveriam ser mencionadas. Como foi observado anteriormente, isto está presente tanto nas tradições sapienciais, como nas percepções na vida do dia-a-dia e em todos os campos de relações.

O sociólogo português Boaventura de Souza Santos (2007) avançou muito no debate sobre transdisciplinaridade, com o conceito de ‘ecologia dos saberes’ resultando da ruptura com a linha abissal criada entre os saberes disciplinados na racionalidade acadêmica (cultivados na ‘razão indolente’) e os demais saberes portadores de riquezas infindas que foram tornadas ausentes no processo de produção do conhecimento e formação de profissionais. A contribuição deste sociólogo consegue radicalizar de forma mais contundente o mesmo conteúdo presente no conceito de transdisciplinaridade, chamando a atenção para este processo de geração das ausências na produção do conhecimento, ou seja, o processo acadêmico acabou gerando perdas para o conhecimento no seio da humanidade contemporânea, que podem vir a ser irreparáveis, se essa linha abissal não for rompida.

Entendo que um caminho privilegiado para a ruptura da linha abissal pode ser a extensão universitária quando desenvolvida de forma transversal envolvendo todas as dimensões da Universidade e não como serviços extensionistas à parte como muitas vezes acontece sem repercutir na vida da própria academia como um todo. Aliás, o próprio Boaventura de Souza Santos, em um texto que se tornou paradigmático, colocado em epígrafe na apresentação do texto do Plano Nacional (Brasileiro) de Extensão, expressou claramente que: “Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino”.[v]

Neste sentido o sistema de avaliação da Responsabilidade Social Universitária, proposto pela AUSJAL pode ser um referente muito apropriado para repensar a extensão universitária transversalmente perpassando todas as dimensões do ‘que fazer’ acadêmico. Eu ousaria propor isto como uma fórmula revolucionária de ‘reinvenção’ da própria universidade, fazendo dela um novo espaço transdisciplinar de produção de conhecimento e de formação profissional, espaço no qual, ao lado dos saberes disciplinados da academia, a riqueza de todos os demais saberes, muitas vezes tornados ausentes, esteja reconhecida de forma ativa.

CONCLUSÃO

Em todo este passeio breve feito pelos meandros da responsabilidade social universitária, da transdisciplinaridade – com breve incursão no conceito de ecologia dos saberes – e da extensão universitária, sempre trilhando o pavimento do cotidiano da academia em sua complexidade, podemos anotar que ‘abrir-se para os outros’ pode ser sugerido como um tema principal na ‘reinvenção’ da Universidade. A extensão universitária, enquanto pulsando em todo organismo vivo da Universidade, é espaço de cultivo da transdisciplinaridade e chave para o sucesso na aproximação da academia com a sociedade, podendo ser vista como condição de inovação nos processos de formação profissional e de produção do conhecimento.

Ao concluir esta reflexão sintética, tenho a consciência renovada da grande distância existente entre o sonho e a realidade. No entanto, os limites só serão superados na medida em que forem dados passos concretos, no dia a dia do ‘que fazer’ acadêmico, perpassando todas as suas dimensões.

REFERÊNCIAS

AUSJAL – Associação das Universidades Jesuítas da América Latina (2010). Políticas e Sistema de Autoavaliação e Gestão da Responsabilidade Social Universitária da Ausjal. São Leopoldo: Edunisinos.

FOLLMANN, J. Ivo; LOBO, Ielbo M. (orgs) (2003). Transdisciplinaridade e Universidade: Uma proposta em construção. São Leopoldo: Edunisinos.

NICOLESCU, Basarab (2000). Educação e Transdisciplinaridade. Brasília: Ed. Unesco Brasil.

SANTOS, Boaventura de Souza (2007). A Crítica da Razão Indolente: Contra a lógica do desperdício da experiência. São Paulo: Cortez.

VALLAEYS, François (2006). Que Significa Responsabilidade Social Universitária. Revista Estudos. São Paulo: ABMES – Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior, Ano 24, N. 36, pp. 35-56.

WEIL, P.; D’AMBROSIO, U.; CREMA, R. (1993). Rumo à nova transdisciplinaridade; sistemas abertos de conhecimento. São Paulo: Ed.Summus.

NOTAS

[i] Ausjal, 2010, p.23
[ii] Não são momentos, nem fases no processo de aquisição do conhecimento, como muito bem detalha Pierre Weil in Weil, P., D’Ambrosio, U. e Crema, R., 1993, p.9-75
[iii] Follmann, J.I., Lobo, I. M. et allii, 2003, p.10.
[iv] Nicolescu, 2000, p. 15..
[v] Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e SESu / MEC. Plano Nacional de Extensão. (Edição Atualizada, 2000/2001

CAMINHOS DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL E ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO

Palestra proferida na UNICAP, Recife, PE, em abril de 2020.

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

Conferência preparada por José Ivo Follmann para: III Seminário de Espiritualidades contemporâneas, pluralidade religiosa e diálogo.

UNICAP, Recife 22-24/04/20 20 (evento postergado). Publicado em E-Book: GILBRAZ, Aragão; VICENTE, Mariano (orgs). Desafios dos Fundamentalismos (Espiritualidades, Transdisciplinaridade e Diálogo – 3). Recife: EdUnicap/OTTR, 2020, pp. 113-133.

CONTEXTUALIZAÇÃO

Talvez possa ser chocante iniciar este texto sobre “caminhos de justiça socioambiental e espiritualidade do cuidado” mostrando imagens que expressam flagrantes injustiças.

É o olhar de uma criança negra, representando milhões de olhares de crianças obrigadas a sobreviver no meio dos dejetos do escandaloso déficit habitacional de nossas periferias. São crianças que crescem dentro de submundo estreito e desumano. É um olhar, que na sua expressão de inocência e encanto, grita por justiça. É um olhar no qual se perfilam milhões de olhares de adultos, já não mais inocentes, mas humilhados, desconfortados, revoltados ou desesperadamente conformados, na dor e na angústia de um “destino” injustificado, interrogando diariamente o mundo do luxo, do desperdício e da indiferença que os esmaga. Uma interrogação que vem do mundo do lixo, da fome e do anseio por atenção e reconhecimento.

No olhar triste e desencantado do líder indígena frente a um dos múltiplos monstros empreendedores, devastadores do seu habitat, se mistura a tristeza e o desespero de centenas de povos originários vítimas de processos genocidas que marcam a história latino-americana, em geral, e brasileira, em particular, ao longo de mais de 500 anos. Aliás, a marca genocida do processo colonizador já perturbou muitas vezes a minha mente. Isto, sobretudo, porque continuamos marcados pela mente colonizadora e grande parte de nosso existir, inclusive, de nossas espiritualidades não consegue se libertar disso. É um olhar que nos interroga com vigor, ao mesmo tempo, fascinante e profundamente perturbador. Um olhar acompanhado pelo grito desesperado dos povos indígenas sendo diariamente violentados em todo território amazônico.

Depois de mais de quinhentos anos não conseguimos, ainda, nos libertar do processo colonizador ou colonialista, que continua habitando as nossas mentes, os nossos comportamentos e impregna os nossos governantes. Parece que na sociedade brasileira, como também acontece em muitas outras sociedades, a própria humanidade e o “bom senso humano” ficaram abafados, reprimidos e esquecidos. O ser humano foi desviado de sua real identidade, se assim se pode dizer. Isso poderia soar como uma frase de efeito poético se não fosse a gravidade geradora de conflito de que é portadora.

Diversas pessoas que iniciaram esta leitura talvez se sintam desconfortadas, como eu mesmo me sinto, em trazer aqui como chamada inicial, um mote tão repetido e tão batido, que é este tema. Mas precisamos ser honestos com a nossa história e a nossa realidade. Dissimular, esquecer, colocar panos quentes, sempre foi o pior caminho. Todos/as sabemos isto. Deixemos que a história nos incomode. Quem for historiador nos perdoará por mais este pequeno pecado…

Um dia, alguém disse que a América Latina seria totalmente outra se os “colonizadores” no século XV e XVI tivessem tido um mínimo de reconhecimento dos seres humanos, das populações e dos povos que habitavam, nesse contexto, e que nela tinham o seu habitat há milênios. Se, ao invés de uma postura de não reconhecimento, de dominação e de espoliação, tivesse ocorrido simplesmente um movimento de aproximação, de intercâmbio, de diálogo e de mútuo enriquecimento, a história seria outra.

Isso soa absurdo, pois não se deve ler o passado com os paradigmas do presente. No entanto, infelizmente, os paradigmas do passado permanecem vivos e a perversidade denunciada, num passado longínquo, continua absurdamente atual, em todos os processos de dominação, exploração e desrespeito aos seres humanos, que, mais do que nunca, se multiplicam em nossa sociedade.

Voltando à imagem da criança negra olhando para nós do meio do lixo, precisamos fazer, também, um recuo histórico. Não vamos comentar os quase quatrocentos anos de escravidão de africanos no Brasil, que marcaram de forma indelével a estrutura social brasileira. A nossa atenção vai focada na maneira como se deu a chamada “abolição da escravatura”, ou seja, a realidade da população negra no imediato pós-escravidão ou pós-abollição. Como os afrodescendentes se viram tratados depois que deixaram de ser escravos? Não se pode dizer que a tragédia foi maior que a sofrida pelos povos indígenas, porque estes, desde a ocupação comandada a partir do tempo de Pedro Álvares Cabral, nas costas brasileiras e anteriormente, por outros aventureiros, em outras costas latino-americanas, até nossos dias, sobrevivem como vítimas de um permanente genocídio. Mas o que se desenhou desde os tempos de pós-escravidão ou pós-abolição, até nossos dias, com relação à maioria negra da população brasileira, é o processo de invisibilidade. Trata-se de uma invisibilidade desenhada no bojo do processo de branqueamento que foi o grande projeto nacional. As políticas de branqueamento, desde o final do Império, com Dom Pedro II, vieram dominando grande parte de nossa história, produzidas e tuteladas, sobretudo, pelas elites dominantes.

Eu gosto muito de um conceito trabalhado por Adevanir Aparecida Pinheiro,[1] que é o conceito de “branquidade”, diferenciando de “branquitude”. Esta autora (2014) retoma estes conceitos que ela já desenvolvera em sua tese doutoral em 2011. Branquidade diz respeito aos sujeitos que negam a importância do conceito de raça enquanto conceito político, não se abrindo para o diálogo sobre essa importância. Por sua vez quando os sujeitos brancos aceitam a importância do conceito de raça enquanto conceito político e interagem de igual para igual, aí sim, segundo a autora, nós podemos falar em branquitude.  Ao contrário de branquitude, a branquidade seria o resultado mais radical e perverso do branqueamento. O seu enraizamento na sociedade é um entrave muito complicado para que se possa implementar uma verdadeira educação das relações étnico-raciais. O primeiro passo para esta educação deverá ser a quebra da prisão da branquidade, para que a branquitude se liberte. Os brancos e brancas pensando, sentindo e vivendo revestidos de branquitude, terão de fato condição de contribuir na recuperação da verdadeira identidade nacional de tríplice referência: indígena, negra e branca.

Não temos como falar de autêntica espiritualidade do cuidado sem desobstruir este tríplice caminho. É necessário limpar os três acessos, as três vertentes, pois sabemos que as melhores contribuições e legados da espiritualidade do cuidado estão nas duas vertentes que historicamente foram obstruídas. E pior, obstruídas por espiritualidades demasiadamente contaminadas por lógicas e racionalidades brancas europeias.

Mas o que tem a ver tudo isto com justiça socioambiental? Tem tudo a ver. A alma da justiça socioambiental é a espiritualidade do cuidado. Se não colocarmos estas referências duras de nossa história no centro de nossa reflexão, a nossa abordagem sobre justiça socioambiental no Brasil será fatalmente manca e sem sentido. Como também a espiritualidade do cuidado não passará de um jogo de máscaras. Por quê? Porque as vítimas centrais das injustiças (socioambientais) estariam ausentes. E, a rigor, as vertentes mais lúcidas da espiritualidade do cuidado não estariam no centro do palco, ou seja, os principais protagonistas da espiritualidade do cuidado continuariam sendo as vítimas centrais (invisíveis) das injustiças.

CONCEITO DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL[2]

Na Laudato Sí (L.S. n. 49), o Papa Francisco, assim se expressou: “hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres”. (Grifos do autor).

No Marco de Orientação da Promoção da Justiça Socioambiental – Marco PJSA, da Província dos Jesuítas do Brasil, temos a seguinte formulação para definir justiça socioambiental:

Todas as ações que têm como objetivo colaborar para a superação das injustiças presentes em nossa herança histórica e reproduzidas pelo atual modelo de desenvolvimento extrativista e financeiro, gerador de desigualdades sociais e de agressões ambientais inomináveis. A rigor, dentro da perspectiva da concepção de ecologia integral, que nos foi apresentada pelo Papa Francisco, em sua Carta Encíclica Laudato Si (LS), existe uma sinalização implícita do conceito de (in)justiça envolvendo o nosso convívio na Casa Comum, em todas as esferas de relações, com o convite para um processo urgente e necessário de reconciliação e construção de relações justas. Trata-se basicamente de todas as relações que o ser humano empreende: as relações com Deus; as interpessoais, de geração, de gênero, étnico-raciais, religiosas, culturais, sociais, políticas, econômicas e, também, com os dons da natureza“. (JESUÍTAS, 2020)

Está muito evidente que, de fato, no chamado do Papa, na Carta Encíclica, está embutido um desafio à realidade humana como um todo, em toda a sua complexidade. Esta é a grande novidade, a grande inovação em termos de Ensino Social da Igreja, que Laudato Sí expressa. A Justiça Socioambiental não pode ser, simplesmente, pautada como conjunto de práticas reativas a situações pontuais, decorrentes dos chamados conflitos ambientais, como muitas vezes o conceito é trabalhado na Academia. Ela é uma intervenção na sociedade como um todo em seu modo de ser e se organizar, incluindo a relação com os dons da criação e, a rigor, a espiritualidade

Estamos vivendo em um mundo estragado (degradado) em todos os aspectos. Isto envolve as pessoas em suas relações, a organização social em suas relações políticas, econômicas e culturais, e, também, o meio ambiente como um todo. É neste mundo como um todo que incide a justiça, que será justiça socioambiental na medida em que tiver no horizonte a complexa inter-relação de tudo. O desafio está em propor um conceito de justiça socioambiental que seja efetivamente operacional abrangendo os diferentes níveis de ação, tanto em nossos processos de produção de conhecimento, como nos processos de tomada de decisão e nos processos da vida do dia-a-dia, no cotidiano.

Muito se avançou, por diversos caminhos e tempos recentes, na reflexão teológica e pastoral focando o cuidado da vida em todas as suas dimensões e sublinhando a ideia de que “tudo está estreitamente interligado”. (L.S. 16). O Patriarca Bartolomeu, referido pelo Papa Francisco (L.S. 6), fala em “túnica inconsútil da criação”. O duplo foco, do cuidado da vida e da inter-relação de tudo, é uma ponte direta para a retomada de elementos centrais nas diferentes tradições teológicas e religiosas que tomam consciência da permanente atualidade de suas intuições ou revelações originárias, apontando para o grande “religar” no “cuidado da alma da humanidade”.

TRÊS ÊNFASES TEMÁTICAS OU DIMENSÕES DA JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL

O Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA,[3] tem buscado enfrentar esse desafio construindo, teórica e empiricamente, um conceito de justiça socioambiental, centrado na atenção a três ênfases temáticas ou dimensões. Em cada uma dessas três dimensões podemos identificar, transversalmente, três posições estratégicas para incidir na realidade ou níveis de incidência na construção da justiça socioambiental. O que para alguns pode parecer, à primeira vista, um artifício complicador, é no entanto, um potencial operativo de fácil manejo na organização consistente de nossas ideias e ações, a rigor de nossa práxis transformadora.  

Falando a linguagem da cultura do cuidado, estamos focados em três grandes cuidados: o cuidado da dignidade humana, o cuidado dos dons da criação e o cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas, diminuição das desigualdades sociais.

  • O Reconhecimento da dignidade do ser humano.

É a dimensão do cuidado da dignidade humana, amparada no reconhecimento. Esta dimensão acontece, na prática, nas relações com o diferente, nas relações étnico-raciais, religiosas, de geração, de origem nacional, de visões de mundo e opções, buscando sempre formas de estabelecer o diálogo, o valor da pluralidade e a inclusão de todos/as.

A justiça começa a ser construída na medida da tomada de consciência de que todos somos habitantes e fazemos parte da Casa Comum e cada um/a tem o direito de ser reconhecido em dignidade nas suas diferenças. Assim são práticas de justiça socioambiental, todas as práticas que reconhecem e cultivam por dentro das diferenças de todas as ordens, a dignidade do ser humano e suas particulares repercussões na vida pessoal e cultivo da própria dignidade em nossa Casa Comum.

  • Cuidado dos dons da criação, da vida e da saúde dos ecossistemas.

É a dimensão do cuidado dos dons da criação. Trata-se da conservação, preservação e usos adequados dos dons naturais, em vista do cuidado dos ecossistemas saudáveis e da vida para o futuro do planeta terra e de seus habitantese atenção especial ao nosso modo de ser, viver e trabalhar e à diversidade da vida nos diferentes biomas de cada território.

A justiça socioambiental, nesta dimensão, se expressa através de práticas com relação aos dons da criação, que podem ser percebidas nos diferentes níveis de participação social, indo desde uma radical revisão das práticas na produção do conhecimento, das tomadas de decisão e do tratamento harmonioso e equilibrado dos dons da criação, no seu cultivo e uso no dia-a-dia. Estão em pauta, neste ponto, as repercussões destas práticas do bom equilíbrio e harmonia das condições da nossa Casa Comum.

  • O Ordenamento das políticas, da sociedade e da economia em vista da diminuição das desigualdades sociais.

É a dimensão do cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas. Nesta terceira dimensão está fundamentalmente em questão a diminuição das desigualdades, das exclusões sociais e da pobreza, pela busca do acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, segurança, saúde, moradia, educação, alimentação e nacionalidade. A rigor, o que está em pauta, são os grandes e pequenos processos decisórios na sociedade em seus ordenamentos políticos e econômicos e na condução das políticas públicas. Estão em pauta bons resultados de tudo isto, para um convívio harmônico e inclusivo em nossa Casa Comum.

Assim, com o foco na ideia de que tudo está interligado nesta nossa Casa Comum, são práticas de justiça socioambiental, práticas econômicas e políticas pautadas no atendimento aos direitos sociais e humanos básicos, no reconhecimento da dignidade do ser humano e no cuidado dos dons da criação como dimensões básicas no Cuidado da Casa Comum.

Três posições estratégicas ou níveis de incidência na promoção da justiça socioambiental

Tentando pensar na prática o nosso compromisso com a promoção da justiça, nesta perspectiva de amplitude socioambiental, faço um convite para buscarmos atalhos operacionais. Podemos, neste sentido, distinguir três níveis concretos, como diferentes instâncias ou posições estratégicas na realização da justiça ou da justiça socioambiental. As práticas de justiça devem expressar-se no nível da produção do conhecimento, no nível das tomadas de decisão, e, sobretudo, no nível cotidiano de nosso ser, viver e agir, no dia-a-dia.[4]

Em nível de produção do conhecimento, através do reconhecimento das diversas formas de saber e de percepção da vida e das coisas, muito para além dos simples conhecimentos disciplinados pelo mundo acadêmico, destaca-se a busca da superação da linha abissal que separa, por um lado, conhecimentos academicamente valorizados e, por outro lado, saberes excluídos do mundo racional-científico. Destaca-se a valorização da diversidade na percepção da realidade. Nos aspectos relacionados à Igreja, o convite é absorver com humildade os conhecimentos populares e tradicionais em nossas práticas religiosas, através da consolidação de uma “Igreja em Saída”. Em suma, é uma proposta de buscar valorizar uma “ecologia dos saberes”, de modo geral e, em particular, nas práticas de Igreja.

No nível da tomada de decisões, a postura de cultivo aberto e não excludente do conhecimento, respeitando o lugar de fala de cada um e de cada uma, imprimindo práticas cada vez mais democráticas é, sem dúvida, aporte fundamental para um maior acerto na gestão, dando conta de autêntica e ampla cultura de participação e de reconhecimento da dignidade dos sujeitos envolvidos nas decisões, na política, na economia e na organização social, cultural e institucional. Neste sentido, sugere-se caminhar para formas inovadoras de implementar e avaliar as políticas públicas, formas estas embasadas em indicadores mais sustentáveis e na busca de uma sociedade equitativa e justa, em termos políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais.

Enfim, no nível das práticas do cotidiano, estamos no chão do cuidado por dentro das práticas pessoais e coletivas no dia-a-dia. É o campo do cotidiano, o campo da singeleza e simplicidade do dia-a-dia, do cuidado e da justiça, na vida como ela acontece. O espaço e o tempo de profundo sedimentar do cuidado da nossa Casa Comum, no testemunho vivo do reconhecimento do outro dentro de suas especificidades culturais, religiosas, entre outras, por mais diferentes que possam ser frente às nossas. Aqui, sem dúvida, todos/as somos chamados/as a uma conversão socioambiental radical e profunda em nossas práticas cotidianas, sejam elas pessoais ou institucionais.

A PRÁTICA DA JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL COMO ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO[5]

Penso que, sempre tendo presente as três ênfases ou dimensões em pauta (o ser humano em sua dignidade, o convívio com os dons da criação e o ordenamento socioeconômico e das políticas púbicas) e as três posições ou níveis de incidência (produção do conhecimento, influência nos processos de decisão e o modo de ser na vida cotidiana), a humanidade, em geral, e a sociedade brasileira, em particular, necessitam urgentemente centrar-se na cultura do cuidado e desfazer-se da tragédia da cultura da indiferença.[6] A atenção central deve ser colocada na dimensão relacional e na interligação de tudo dentro do convívio humano, nas relações interpessoais, na sociedade e em relação aos dons da natureza.

Este é o chão concreto de realização da prática da justiça e, mais especificamente, a prática da justiça socioambiental. Precisamos estar cuidadosamente atentos à prática da justiça socioambiental em todo complexo convívio humano. Este estar “cuidadosamente atentos” é o que, aqui, também chamo de espiritualidade do cuidado. É denominada assim porque tem em seu centro o permanente cuidado da dignidade humana e da vida em todas as suas manifestações.

Em outras palavras, é uma espiritualidade que perpassa o cuidado da dignidade humana, o cuidado dos bens da criação e o cuidado do ordenamento social e econômico de inclusão e igualdade. Estes cuidados podem ser exercidos tanto em nível de produção do conhecimento, de influência nas tomadas de decisão e no modo de ser, viver e agir dentro do cotidiano.

Precisamos de uma espiritualidade que nos mude, radicalmente, em nossas práticas. Que nos faça retomar o verdadeiro caminho da justiça. Leonardo Boff, em “Reflexões de um velho teólogo e pensador” (2018) nos aponta que:

“A singularidade de nosso tempo reside no fato de que a espiritualidade vem sendo descoberta como dimensão do profundo do ser humano, como o momento necessário para o pleno desabrochar de nossa individuação e como espaço da paz no meio dos conflitos e desolações sociais e existenciais”. (BOFF, 2018, p.166)

A espiritualidade é geradora de mudança interior. O autor nos lembra um pensamento radical do grande líder religioso oriental Dalai Lama: “Espiritualidade é aquilo que produz dentro de nós uma mudança”! (“Se não produz em você uma transformação, não é espiritualidade”!). O autor comenta esta frase, afirmando que existem mudanças e mudanças. O ser humano é um ser de mudanças, pois nunca está pronto. No entanto, há “mudanças que não transformam sua estrutura de base” e há mudanças que são verdadeiras transformações “capazes de proporcionar um novo sentido à vida ou abrir novos campos de experiência e de profundidade, rumo ao próprio coração e ao Mistério de todas as coisas. Não raro é no âmbito da religião que ocorrem tais mudanças. Mas nem sempre”. (BOFF, 2018, p.165-166)

Esta manifestação pelo valor da espiritualidade, como força regeneradora, está amparada no próprio grito do autor, que nos diz: “vamos criar juízo e aprender a ser sábios e a prolongar o projeto humano, purificado pela grande crise que seguramente nos acrisolará”. (BOFF, 2018, p. 158). Acrescenta:

Incentivam-nos as escrituras judaico-cristãs: “Escolhe a vida e viverás” (Dt 30,28), e Deus se apresentou “como o apaixonado amante da vida” (Sb 11, 24). Andemos depressa, pois não temos muito tempo a perder. (BOFF, 2018, p. 159)[7]

É um pequeno grito que se soma a infinitos outros gritos, que se levantam em todos os recantos da terra, fazendo coro ao grande e insondável mistério de amor do “grito regenerador” de Jesus Cristo. As três perguntas originárias retornam e reboam: “Onde estás”? “Onde está o teu irmão”? “Como está a criação”?[8]

A Espiritualidade, que hoje nos é solicitada, é a disposição de nossos corações para buscar os melhores caminhos para a construção de sociedades geradoras de vida; refazer-nos em nossa capacidade de reconhecer o outro em sua dignidade; de nos indignarmos frente às desigualdades escandalosas e inaceitáveis e à situação desumana, vivida, por muitos irmãos e irmãs; de cuidar da vida e dos dons da criação, impelidos pelo amor a toda a vida que pulsará neste planeta terra, no futuro. É a disposição de sermos no cotidiano: cultivadores/as de justiça socioambiental.

INTERROGAÇÕES E DESAFIOS DENTRO DO MOMENTO CONJUNTURAL VIVIDO

Qualquer leitura de nossa realidade hoje não resiste às evidências de flagrantes atentados à justiça socioambiental e de debilidades na prática de uma espiritualidade do cuidado. Vou propor um pequeno exercício de ordenar de forma sistemática algumas dessas evidências. Obviamente, dentro do espaço que temos, não será possível passar de uma simples “chuva de ideias” ou “chuva de percepções”, que proponho ordenar a partir de três perguntas amplas. É uma provocação  para o exercício pessoal de cada um e de cada uma e para a continuação do nosso diálogo.

  • Como está o conhecimento, no Brasil?
  • (Cuidado da dignidade humana). Após mais de duas décadas de esforços mais ou menos sucedidos pela instituição de políticas educacionais renovadas, inclusivas, inovadoras e abertas ao diálogo, assiste-se no Brasil nos dias de hoje a uma guinada brusca à “direita”. Trata-se de verdadeira guerra de ideias entre a denúncia contra a “ideologia de gênero” e a afirmação da diversidade e da liberdade de opções, que parecia consolidada na sociedade. Alguns Ministérios do atual Governo são os principais vetores do combate à “ideologia de gênero”, associando-a ao que é denominado por eles de “marxismo cultural” e, em consequência, um combate acirrado contra o mundo intelectual e cultural que ao longo das últimas décadas teria se alimentado nessas “ideologias perversas”. Este combate vem acompanhado por uma sutil promoção de uma espiritualidade e religião alienante cultivada por determinadas lideranças neopentecostais de grande poder mobilizador.
  • (Cuidado do meio ambiente natural). Com relação ao que nós denominamos cuidado do meio ambiente natural, imperam, hoje no Brasil, propostas explícitas de “combate a esse cuidado”, através de duas ideias chaves: 1) Os “recursos naturais” (sic) devem ser explorados intensivamente para gerar riqueza e o Estado deve garantir que isto possa acontecer; 2) Os defensores do meio ambiente são orquestrados por interesses do “comunismo” ou por interesses de organismos que querem internacionalizar a Amazônia, ou seja, apossar-se dos recursos naturais da Amazônia, em prejuízo aos interesses nacionais.
  • (Cuidado da sociedade). O que é notável em nível de concepções com relação ao meio ambiente natural, assume formas mais alarmantes com relação à própria sociedade e seu ordenamento político e econômico. Trata-se do cultivo do preconceito que dissemina a ideia de que a corrupção é algo endêmico no meio político e que os únicos que podem salvar a sociedade são os empresários geradores de trabalho e emprego. Predomina a ideia da naturalização das desigualdades e todos os defensores de políticas que busquem facilitar uma diminuição das desigualdades sociais, são rotulados como “comunistas”, seguidores do “marxismo cultural” e inimigos dos “cidadãos de bem”.
  • (Anotação sobre espiritualidade). Mas nem tudo são trevas… É impressionante o que a pandemia (da Covid-19)[9] conseguiu desencadear em termos de criatividade e disseminação do conhecimento. Pessoalmente me vejo diariamente surpreendido e impactado pelas incontáveis formas com que muitas pessoas, – em número crescente, pois isto é contagiante, – procuram socializar os seus conhecimentos e seus dons artísticos, de forma gratuita, muitas vezes movidos pelo esforço solidário de passar conhecimentos, boas ideias e bons momentos de lazer para os outros, em suma, de cuidar dos outros. A pandemia estimulou a espiritualidade do cuidado em nível de conhecimento. Independentemente da pandemia, nos últimos anos, talvez em grande parte como resposta ao alerta com relação aos riscos obscurantistas vigentes, estão se constituindo e reforçando importantes redes e iniciativas de educação popular para rearticular uma produção de conhecimento autêntica e democrática, amparada nisso que alguns denominam, por exemplo, no contexto amazônico, de “cuidadania”.
  • Como está o empenho da incidência cidadã nos rumos do Brasil?
  • (Cuidado da dignidade humana). A reconstrução cidadã do Brasil, após o longo período da ditadura militar, chegou a um patamar importante na promulgação da Constituição de 1988 que foi considerada a “constituição cidadã”. Nas décadas que se seguiram, muitos esforços, com sucessos e fracassos, foram realizados para regulamentar aquelas conquistas de 1988. No entanto, nos últimos anos, houve uma radical quebra em tudo isso. Os acirramentos ideológicos tomaram conta. Tornou-se inviável qualquer busca de diálogo construtivo. Nas últimas eleições presidenciais (2018), a indústria de “fake News” mostrou-se, sobretudo, como um instrumento poderoso, e talvez tenha sido o fator decisivo. A cultura das “fake”, crescentemente difundida nas redes sociais, desconsidera, ao extremo, todo e qualquer cuidado para com a dignidade das pessoas que são os alvos, ou seja, as vítimas.  Isto virou “cultural” ou seja, é um comportamento bastante generalizado em termos de “debate público” e de veiculação de ideias.
  • (Cuidado do meio ambiente natural). Isto também se revela quando se trata de pensar políticas com relação às terras indígenas, por exemplo. É repetidamente afirmado que aquilo que é defendido por certas lideranças no meio indígena, em geral de grande reconhecimento nacional e internacional, são ideias falsas atreladas a interesses estrangeiros. Busca-se, então, “libertar” os indígenas deste atrelamento e, em nome de uma política “de ajudar os indígenas a serem como nós”, pretende-se implementar uma legislação facilitadora da ocupação de terras reservadas aos povos indígenas para a exploração do capital ou para a implementação de grandes empreendimentos do próprio Estado.
  • (Cuidado da sociedade). Se voltarmos o nosso olhar para a sociedade enquanto tal e seu ordenamento político e econômico, teremos como constatações centrais o seguinte: O governo atual, que se elegeu em grande parte impulsionado pela disseminação de “fakes”, se caracteriza por: 1) Apoiar-se na ideia de que foi democraticamente eleito contando com o apoio dos “cidadãos de bem”; 2) Dar claras demonstrações de total desrespeito aos valores republicanos; 3) Orientar-se por uma política econômica falaciosa amparada num extrativismo selvagem e financeirização incerta; 4) Desarticular e desmontar ostensivamente políticas públicas e sociais duramente conquistadas a partir de várias gerações.
  • (Anotação sobre espiritualidade). Em termos de ordenamento político e econômico da sociedade, nestes tempos de pandemia sanitária, o Brasil vive um verdadeiro “pandemônio” de instabilidade e incertezas cotidianas. No meio desse “pandemônio”, podemos, no entanto, vislumbrar a prática da espiritualidade do cuidado de parte de muitas pessoas e grupos. Trata-se do cuidado vigilante para que as coisas não desandem de vez e o prejuízo seja grande demais para a população. É um cuidado que, em geral, não tem cor partidária e pode expressar-se tanto em manifestos junto aos órgãos de legislação pública e de decisão dos rumos do país, como, também, em campanhas e mobilizações de apoio imediato, para com as maiorias pobres mais necessitadas de alimentos e cuidados de higiene e saúde. Esta novidade ou expressão “inusitada” de cuidado certamente também é visível em algumas lideranças empresariais.
  • Como está o jeito de viver no dia-a-dia, no Brasil?
  • (Cuidado da dignidade humana). O cotidiano brasileiro está habitado por contrastes marcados pela naturalização de agressões à dignidade humana de toda ordem. Parece que a relação entre a casa grande e a senzala, do longo período de escravidão negra no Brasil, nos marcou de forma indelével. O desconforto de enormes favelas formando cinturões desumanos sem medida, cercando (de forma ameaçadora) o conforto e o luxo de conjuntos de prédios, palácios e mansões, parece constituir-se na marca registrada da maioria das grandes cidades do Brasil. Desenha-se, com naturalidade, na mente das pessoas um convite sutil a assumir esta realidade como algo dado e imutável: umas pessoas parecem estar merecendo mais do que as outras. A desconstrução desta naturalização da desigualdade é o grande desafio da ciência. No entanto, conforme já mencionamos acima, no início deste título, o Brasil está vivendo um clima de combate acirrado contra o mundo intelectual e cultural, pois este, ao mostrar a origem não natural das desigualdades, estaria alimentando “ideologias” ofensivas aos “cidadãos de bem”.
  • (Cuidado do meio ambiente natural). Existe uma distância enormemente abissal entre o cotidiano ou a vida do dia-a-dia das pessoas que vivem no submundo urbano e o das pessoas que vivem em situação mais ou menos confortável em seus apartamentos e casas, sem falar do “supermundo” das mansões de luxo. A naturalização da desigualdade é alimentada e reforçada diariamente através deste impacto visível da desigualdade nas condições habitacionais e de vida. Por dentro da percepção do déficit habitacional e da crescente realidade dos moradores de rua, que são dois grandes desafios para o cotidiano e a relação (in)justa dos seres humanos com o seu meio natural, a interrogação mais atenta deve ser dirigida ao mundo do desperdício que passa por dentro do modo de viver cotidiano em nossas casas, de menor ou maior conforto.
  • (Cuidado da sociedade). Tentar entender o impacto sobre o cotidiano, do que está acontecendo no Brasil hoje, nos alerta mais uma vez em relação às terríveis desigualdades. A pandemia, que assola o país, neste semestre, colocou esta questão a nu. Não se encontrou fórmula de “isolamento social” cabível num contexto tão desigual. Como forçar a ficar em casa pessoas que só encontram um pouco de liberdade e dignidade, na rua ou fora de casa? Não se tem registro de políticas afirmativas que realmente estivessem focadas nesta situação de desigualdade. Todas as políticas mais bem sucedidas no combate à Covid-19 estavam focadas na população que têm condições de um cotidiano e vida do dia-a-dia mais ou menos confortável. A principal preocupação repetidamente manifesta pelo poder executivo central do país, foi em chamar os trabalhadores a saírem de casa para trabalhar e ganhar o seu sustento. O empenho honesto e sincero por preservar a vida dessas pessoas e proporcionar lhes um mínimo de proteção nas condições limitadas e desumanas em que vivem, foi praticamente inexistente. O momento seria de tomarmos consciência, como nação, do tremendo problema de déficit habitacional em que o país está imerso. A pandemia trouxe muitos legados. Que este desafio do déficit habitacional também seja um legado.
  • (Anotação sobre espiritualidade). Uma espiritualidade do cuidado em nosso cotidiano deve estar marcada pela consciência permanente dos contrastes abissais existentes no habitat da população brasileira. É importante povoar o nosso próprio habitat dessa consciência, refletindo-se tanto no cuidado e atenção às pessoas que conosco vivem e que nos procuram, como cuidando do bom uso de tudo, evitando desperdício e favorecendo reaproveitamentos. Que as crianças e jovens que crescem em nosso meio possam beber de nossas vidas e de nosso testemunho, uma autêntica “cultura do cuidado”, ou seja: espiritualidade do cuidado.

PALAVRAS PARA (NÃO) CONCLUIR

No início desta fala eu referia o olhar da criança negra nos interrogando de dentro dos dejetos, do lixo e do submundo da periferia e referia, também, o olhar do líder indígena impactado tristemente pela presença de múltiplos monstros empreendedores, devastadores do seu habitat. São olhares que nos interrogam. A espiritualidade do cuidado é uma espiritualidade que se deixa interrogar por esses olhares e por muitos outros necessitados do cuidado.  

REFERÊNCIAS

BOFF, Leonardo. Reflexões de um velho teólogo e pensador. Petrópolis: Vozes, 2018.

CIRNE, Lúcio Flávio Ribeiro. O Espaço da Coexistência: uma visão interdisciplinar de ética socioambiental. São Paulo: Ed. Loyola, 2013.

FRANCISCO, Papa. Laudato Sí. (Carta Encíclica do Sumo Pontífice). São Paulo: Paulus/Loyola, 2015.

FOLLMANN, J. I. O ‘Cuidado Da Casa Comum’ Como Caminho De Espiritualidade E Justiça. Revista Convergência. Rio de Janeiro, Vol. LIV, n. 523, 2019a, pp. 58-69

FOLLMANN, J. I. Justiça Socioambiental e Vida Religiosa Consagrada. Revista Convergência. Rio de Janeiro, Vol. LIV, n. 526, 2019b, pp. 50-60.

JESUÍTAS. Marco de Promoção da Justiça Socioambiental: Marco PJSA. Rio de Janeiro: Companhia de Jesus, Província do Brasil, 2ª Ed. Reformulada e atualizada, Publicação provisória PDF, maio de 2020.

PINHEIRO, A. A.. O Espelho Quebrado da Branquidade: Aspectos de um Debate Intelectual, Acadêmico e Militante. 1. ed. São Leopoldo: Casa Leiria, 2014.


NOTAS

[1] Professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, doutora em Ciências Sociais, coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – NEABI.

[2] Os textos deste sub-título e do próximo reproduzem diversos excertos do Marco da Promoção da Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil, em sua nova edição provisória (JESUÍTAS, 2020), também já presentes em artigo de minha autoria publicado na Revista Convergência em 2019. (FOLLMANN, 2019b)

[3] Trata-se de um “Observatório em Rede” da Província do Brasil, Companhia de Jesus, com núcleo articulador em Brasília, DF. www.olma.org.br 

[4] São os mesmos “atalhos operacionais” assumidos também pelo Marco da PJSA já mencionado.

[5] Na segunda parte deste subitem são reproduzidos excertos de artigo publicado na Revista Convergência. (FOLLMANN, 2019a)

[6] Destaco, no momento presente, a eleição do Papa Francisco (2013) e a surpreendente viagem dele à Ilha de Lampedusa, sul da Itália, alguns meses depois de assumir como Líder Máximo da Igreja, onde ele denunciou a “globalização da indiferença”. Destaco também os recorrentes apelos deste Papa por uma “Igreja em saída”.

[7] CIRNE, 2013, p.191-197, com o subtítulo “ética ambiental e espiritualidade” fala em uma verdadeira conversão do ser humano. Refere dois caminhos paradigmáticos importantes na tradição cristã: a herança espiritual de Francisco de Assis, conhecida sobretudo pelo famoso “Cântico das Criaturas”, que expressa o louvor ao Deus altíssimo, a humanidade que se faz irmã das criaturas e o respeito e admiração por todo o mundo criado; e a herança dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, no qual o próprio Princípio e Fundamento apresenta um caminho de vida no qual Deus, o ser humano e o ambiente (o mundo) estão intimamente inter-relacionados; encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus é o grande horizonte na “oração para alcançar o amor” dos Exercícios Espirituais Inacianos.

[8] “Onde estás”? Foi assim que Deus interpelou Adão. (Gn 3,9).[8]  “Onde está o teu irmão”? Foi assim que Deus interpelou Caim. (Gn 4,9). “Como está a criação”? Assim interpela Deus a humanidade, não deixando que ela esqueça seu mandato de cuidar de tudo. (Gn. 1, 26-31; 2, 15). No que se refere a Gn. 2, 15 e, especialmente, Gn. 1, 26-31, em termos teológicos “o ser humano na criação” está abordado de forma muito detalhada e profunda por CIRNE, 2013, p. 82-89.

[9] Este texto foi concluído no auge dos efeitos, no Brasil, da pandemia da COVID-19, que mexeu com toda a humanidade no primeiro semestre de 2020.

BRASIL RELIGIOSO, PÓS-MODERNIDADE E PROCESSOS DE IDENTIDADE

Publicado em livro organizado por Carlos A. Gadea e E. Portanova Barros, em 2013.

Capítulo de livro

Artigo publicado como capítulo no livro organizado por C. A. Gadea e E. Portanova Barros. A ‘Questão Pós’ nas Ciências Sociais: crítica, estética, política e cultura. Curitiba: Ed. Appris, 2013, pp. 231-249

Resumo: A realidade complexa da esfera religiosa no Brasil no presente contexto de pós-modernidade, convida para uma reflexão sobre a importância do estudo de processos religiosos de identidade para uma compreensão mais apurada da sociedade. É o que o texto procura fazer pautando, no início, algumas observações empíricas para, num segundo momento, convidar para uma reflexão sobre o processo de secularização e os processos de identidade neste contexto.

Palavras chave: religiões e religiosidades no Brasil; processos de identidade; secularização encantada; pós-modernidade.

Abstract: The brazilian religious sphere´s complex reality in the present context of post modernity, invites to reflect about the importance of the identity’s religious processes for a more focused comprehension on the society. That´s what the text is trying to do, showing, at first, some empirical observations for, secondly, invite to a reflexion about the secularization process and the identity´s processes in this context.

Key words: religions and religiosities in Brazil; identity´s process; enchanted secularization; post modernity.

INTRODUÇÃO

Que significado têm as religiões e religiosidades para o estudo e a compreensão da sociedade em contextos de pós-modernidade? A pergunta não é nova. As respostas são diversas. Sem voltar a todas as respostas existentes, quero propor um passeio reflexivo por dentro do Brasil religioso em seu contexto atual. Partindo de uma pequena “roda de conversa” sobre as atuais estatísticas religiosas no Brasil, na qual são sinalizados diversos alertas e questionamentos empíricos, o texto envereda pela trilha da pergunta sobre a plausibilidade do religioso no mundo atual e da discussão sobre o impacto do processo de secularização para, no final, desembocar na questão dos processos de identidade. Trata-se de um conjunto de questões chaves para os estudos da sociedade em contextos pós-modernos e a pergunta final, que permanece, é: o que podemos colher do estudo sobre os processos de identidade nas manifestações religiosas no Brasil de hoje, para o avanço dos estudos da sociedade e das Ciências Sociais, neste contexto?

Um breve passeio por alguns atalhos empíricos destaca, inicialmente, quatro aspectos: 1) a questão dos hibridismos, bricolagens e arranjos religiosos do convívio na diversidade, com destaque ao modo como as religiões de matriz africana sobreviveram e se afirmaram; 2) a memória com relação à questão das fortes institucionalidades religiosas, mormente do catolicismo; 3) a atenção para o recente confronto de forças dentro da esfera religiosa, destacando a crescente afirmação das forças evangélicas pentecostais e neopentecostais; 4) a importância dos graus diversos de adesão ou envolvimento dos fiéis nas práticas de suas religiões. O texto também retoma a ideia, apoiada na percepção arguta de Martin N. Dreher, de que os comportamentos nas manifestações religiosas, no Brasil de hoje, são comportamentos, ao mesmo tempo, modernos, pré-modernos e pós-modernos. (Dreher, 2005).

O “MUNDO DAS RELIGIÕES” NO BRASIL

O “mundo das religiões” no Brasil é realmente um “mundo”. O fenômeno complexo que envolve crenças religiosas, descrenças, religiões, religiosidades e espiritualidades, mais do que nunca, desafia a pauta de estudiosos e cientistas sociais. As estatísticas fornecidas e conhecidas proporcionam uma aproximação útil, apesar das suas limitações que são amplamente conhecidas e já se tornaram quase paradigmáticas.

O Censo Demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostra uma nítida evolução do quadro estatístico de composições e recomposições na esfera religiosa da sociedade brasileira. São inumeráveis os comentários, nos meios de comunicação e, também, em grande variedade de publicações, dando conta da queda numérica sensível daqueles que se declaram católicos (de 95,2% da população em 1940 para 64,6% em 2010) e do aumento, sempre mais acelerado, daqueles que se declaram evangélicos (de 2,6% da população em 1940 para 22,2% em 2010), bem como aumento grande daqueles que se declaram “sem religião” (de 0,2% da população em 1940 para 8% em 2010), incluindo, neste último grupo, os descrentes ou ateus (que, provavelmente, não passa de 1% da população). A multiplicação do número de religiões que se somam no quadro das “demais” e “diversas” denominações (2% da população em 1940 para 5,2% em 2010), também é pauta nesses comentários e publicações, especialmente no que diz respeito ao paradoxo do pequeno percentual registrado quando se trata de seguidores das religiões da matriz africana (0,3% da população em 2010).

Apesar de limitados, os números falam por si, mas é importante que algumas questões básicas agravantes dos limites sejam mencionadas antes de avançarmos em nosso raciocínio: 1) Qual o efetivo grau de influência que teve sobre as religiões de matriz africana o fato de terem sobrevivido, ao longo de séculos, travestidas e camufladas, sob a sombra de formas e expressões religiosas católicas? Não estaria isto fazendo com que muitos seguidores dessas religiões continuem se identificando oficialmente como católicos? 2) A explosão inusitada da diversificação na esfera religiosa não estaria relacionada com o fato do longo represamento motivado pelos quase quatro séculos de opção religiosa única, tendo o catolicismo religião oficial no Brasil? 3) Qual a origem do acentuado incremento de evangélicos de recorte pentecostal e, sobretudo, neopentecostal, ao longo da segunda metade do século XX, gerando uma transformação radical na esfera religiosa brasileira?

Se estas, por um lado, são questões de recorte mais institucional, é importante, por outro lado, que se esteja muito atento a um aspecto que acontece por dentro e por fora das fronteiras institucionais, que é a crescente cultura de afirmação do sujeito individual. Trata-se de um processo que se acentua desde a segunda metade do século XX e perpassa praticamente todas as sociedades. Os contextos nos quais este processo é gerado e alimentado são, sobretudo, contextos de fragmentação, de incertezas e angústias para o ser humano. São contextos fornecedores de um terreno fértil para o cultivo dos processos religiosos de identidade autogeridos pelos próprios sujeitos.

São questões e apontamentos que ajudam a enriquecer as análises estatísticas com detalhes importantes, ou melhor, com questionamentos e pontos de interrogação… Mesmo que as questões e apontamentos feitos ajudem a ler com mais cuidado as estatísticas, está suficientemente claro que nem as estatísticas, nem as questões e apontamentos mencionados, conseguem dar conta da complexidade da dimensão religiosa na sociedade brasileira, que se desenha nos processos de identidade protagonizados no plano pessoal pelos sujeitos individuais.

ALGUNS ATALHOS EMPÍRICOS

Para quem estuda a sociedade brasileira, no atual contexto que assume também aspectos de pós-modernidade, os registros estatísticos no que diz respeito à dimensão religiosa, por si só, já apresentam grande complexidade apontando para um processo acelerado de diversificação. A sua realidade, no entanto, se faz incontavelmente mais complexa e desafiadora, quando espelhada no registro de episódios ou referências que são paradigmáticos desta dimensão. Trata-se de ingredientes vigorosos nos processos de identidade.  De uma forma singela, convido para uma rápida incursão por quatro atalhos empíricos que me parecem paradigmáticos, para uma compreensão maior dos processos de identidade:

O primeiro atalho empírico pode ser alcançado através de uma referência que é clássica, colhida em João Guimarães Rosa: “Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. (…) Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca.” (Rosa, 1980, p.15). Pode-se dizer que, de certa forma, existe uma mente pós-moderna sabiamente constatada e expressa na estética de alguns autores, romancistas e poetas da modernidade brasileira. O diálogo registrado pelo autor é paradigmático. Registra a cultura do jeitinho, do arranjo pessoal e das bricolagens espontâneas. Trata-se de uma cultura muitas vezes citada e gerada pela necessidade de sobrevivência da própria tradição religiosa, como foi o caso, por exemplo, das religiões de matriz africana. Pode-se levantar com segurança a hipótese de que, se houvesse um registro estatístico dando conta de dupla ou múltipla adesão religiosa, as estatísticas desenhariam um quadro diferente. Religiões como as de matriz africana e outras apareceriam com muito maior expressividade estatística e a informação estaria mais próxima dos verdadeiros processos religiosos de identidade.

O segundo atalho empírico é feito mediante referência a um evento histórico de grande significação que foi a pronunciamento de Dom Sebastião Leme, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, por ocasião da inauguração da estátua do Cristo do Corcovado em 1931, quando assim se expressou, em tom de desafio: “Ou o Estado (…) reconhece o Deus do povo, ou o povo não reconhecerá o Estado!”. (Della Cava, 1975, p.15). A força das instituições religiosas faz efetivamente parte da história política do Brasil. Neste nível os nossos apontamentos podem acolher a busca recorrente e unilateral de atendimento de interesses institucionais, que sempre pesaram sobre a alma brasileira. Muitas manifestações públicas de massa, mobilizando grandes públicos, que são recorrentes hoje em dia, vão nesta linha. Podem ser olhados como demonstrações de força política, ou seja, de ocupação do espaço público. Uma complementação estatística neste sentido seria de fundamental importância para que se pudesse ter informação sobre o grau de consciência dos seguidores de determinada religião com relação ao impacto público esperado de sua instituição.

O terceiro atalho empírico dá conta do episódio do “chute da santa” ocorrido em 12 de outubro de 1995. Trata-se de um episódio, que, muito além de sua ruidosa repercussão midiática e social, tem um alcance simbólico sem igual em termos composição e recomposição da esfera religiosa brasileira. Naquela data, dia da santa católica “Nossa Senhora Aparecida”, culturalmente consagrada no mundo católico como a Padroeira do Brasil, o bispo Sérgio Von Helder da Igreja Universal do Reino de Deus, em um programa matutino, na Rede Record, chamado “O Despertar da Fé”, proferiu insultos e deu chutes na imagem desta santa, em frente às câmaras. O episódio tornou-se conhecido como o episódio do “chute da santa”. Ricardo Mariano (2005) se reporta diversas vezes a este episódio em seus estudos para uma sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. (Mariano, 2005). O “chute da santa” simboliza todo um movimento agressivo para provocar uma inflexão na esfera religiosa brasileira contra o predomínio religioso católico. As estatísticas parecem confirmar o amplo sucesso deste movimento. A prática de combater de forma recorrente, buscando desclassificar, símbolos e práticas religiosos do meio católico ou das religiões de matriz africana, é uma prática usual no meio neopentecostal e gera fortes repercussões nos processos de identidade.

O quarto atalho empírico está relacionado com uma frase que se ouve com muita frequência: “eu sou católico, mas não praticante!” ou, “eu sou espírita, mas não sou de frequentar!”. Ou seja, em termos de adesão ou envolvimento dos fiéis nas práticas de suas instituições religiosas, é notável o convívio ou a justaposição de adesões mais livres (light) e menos comprometidas, de participação e frequência mais rarefeitas, que, em muitas situações é o comportamento da maioria, ao lado de adesões mais densas (hard) e mais comprometidas de participação e frequência mais intensas. Em pesquisa realizada em alguns municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre[1] utilizamos como indicador de adesão densa (hard), a frequência semanal a celebrações em locais de culto e templos. Os resultados foram, no mínimo, curiosos, servindo como um contraponto às estatísticas conhecidas. Nos seis municípios estudados, aproximadamente 29% da população tem alguma participação religiosa semanal. Se olharmos só para estes 29% de frequentadores semanais, a pesquisa nos mostra que, destes, aproximadamente, 48% são de frequência em cultos evangélicos (8% evangélicos históricos e 40% evangélicos pentecostais e neopentecostais), 36% são de frequência em missas ou celebrações católicas, 10% em celebrações de matriz africana e/ou umbandista, 3% em sessões espíritas e 3% em outras celebrações religiosas. (Follmann e outros, 2005). Na atenção ao percentual dos que frequentam semanalmente (29%), cabe, no entanto, chamar a atenção para a importância de se identificar práticas religiosas existentes em nível dos outros 71% da população que não frequentam semanalmente em espaços de acesso público… Dados deste tipo em âmbito nacional certamente trariam um incremento impar na qualidade da informação das estatísticas religiosas. Neste sentido também poderia ser muito útil um levantamento do tempo de exposição a programas religiosos veiculados tanto pela rádio quanto pela televisão.

As questões e apontamentos mencionados no início do texto e estes quatro atalhos empíricos, adjetivados com rápidos devaneios com relação aos Censos Demográficos, devem ser complementados, ainda, com uma observação, que considero fundamental para um desenho mais apurado dos processos de identidade. Trata-se da população denominada “sem religião”. Se nas estatísticas oficiais 8% da população são registrados como “sem religião” e os ateus ou descrentes, somados neste segmento representam provavelmente somente 1%, seria muito importante que se pudesse ter acesso a melhores detalhamentos e informações a respeito das formas de religiosidades e espiritualidades vivenciadas por este grande contingente populacional, inclusive com atenção a religiosidades e espiritualidades praticadas e cultivadas via meios de comunicação, bem como o acolhimento de práticas de autoajuda bem sucedidas.

TRES ATALHOS TEÓRICOS

Este rápido sobrevoo empírico e o conjunto de devaneios e proposições, que o acompanhou, com todos os riscos de superficialidade, fazem perceber que existem traços no Brasil religioso que são importantes para o debate sobre a sua incidência no processo de compreensão da vida humana em sociedade em suas diferentes expressões nestes tempos de pós-modernidade. Sem pretender esgotar o assunto, proponho três atalhos teóricos, retomando reflexões sobre: a “plausibilidade do religioso no contexto pós-moderno”, a “teoria da secularização e a ideia da secularização encantada” e a questão central deste texto que são os “processos de identidade ou processos religiosos de identidade”. Estes atalhos teóricos ajudam a lançar luzes para avançarmos na questão central deste texto: Qual a importância dos processos de identidade em contextos de pós-modernidade, considerando o Brasil religioso nos tempos atuais?

PLAUSIBILIDADE DO RELIGIOSO NO CONTEXTO PÓS-MODERNO

Em sua obra O Dossel Sagrado, Peter Berger faz dois movimentos importantes de reflexão. Num primeiro movimento reflexivo, ele nos conduz por questões que relacionam a religião com a construção e a manutenção do mundo, e, num segundo movimento reflexivo, traz aportes fundamentais para o entendimento do processo de secularização e as implicações do mesmo para a plausibilidade da religião. (Berger, 2004)

Este autor tornou-se referência obrigatória na sociologia contemporânea das religiões e na sociologia em geral. Logo no início de sua obra, ele retoma a sua premissa de que a sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo e realça que a religião ocupa um lugar de destaque nesse empreendimento.  Cabe ressaltar a atenção dada por ele à função de legitimação da religião e aos processos de alienação e des-alienação, nos quais a religião também participa.

Peter Berger escreveu esta obra em 1967 (Berger, 2004) e, na época, segundo o seu entendimento, o processo de secularização estava levando a uma fragilização do religioso, decorrência da perda de força de referência das grandes instituições religiosas como garantidoras de uma visão ordenada dos mundos. O pluralismo religioso estaria debilitando a própria religião em sua plausibilidade. O sociólogo brasileiro que mais vigorosamente se alinhou com a tese de fragilização do religioso a partir da secularização, foi Antonio Flavio Pierucci (2004). Chegou a falar da desmoralização das religiões na medida em que vão sendo forçadas a se lançarem em um mercado sempre mais competitivo. (Pierucci e Prandi, 1996).

Estaria a religião fadada a um processo irrecuperável de desmoralização? Ou, pelo contrário, estaria acontecendo, um processo de remoralização do religioso via processos de identidade?

Segundo Ricardo Mariano, o próprio Peter Berger, vários anos depois de ter lançado o seu clássico O Dossel Sagrado, teria rejeitado sua perspectiva teórica pregressa, afirmando ser “falsa a suposição de que vivemos em um mundo secularizado” e que “toda a literatura escrita por historiadores e cientistas sociais, chamada vagamente de ‘teoria da secularização’, está essencialmente equivocada”. (Berger, apud Mariano, 2011, p.241)

De fato, o que se conhece por secularização não pode ser considerado um processo que leva ao fim da religião, mas sim o processo que institui um novo momento na esfera religiosa, onde a religião ganha novos modos de ser e agir, novo dinamismo e formas novas, novo nascimento e nova presença. Enquanto as instituições religiosas se veem diminuídas em sua incidência social e pública, a religião parece restabelecer-se com vigor e vida renovada, em nível dos sujeitos individuais em seus processos religiosos de identidade.

Assim a ação eficaz para a vida, garantidora de uma visão ordenada dos mundos, que era sempre ação precípua das instituições religiosas enquanto empreendimentos humanos através dos quais se estabelece um “cosmos sagrado” (Berger, 2004), tende a ser assumida e assimilada de mais a mais no plano do sujeito individual ou no plano pessoal, fazendo com que, em lugar de grandes “cosmos sagrados” tenhamos uma constelação de “microcosmos sagrados”, refletindo “sínteses pessoais” vividas com profundidade e garantindo, por baixo da aparente fragmentação e caos, a visão ordenada dos mundos consistente e, mais do que nunca, dinâmica. Oneide Bobsin, em recente artigo (2011), acresce um viés interessante de reflexão com a ideia de “humanismo de auto-transcendência”, que inclusive extrapola a própria esfera religiosa propriamente, manifestando-se também pela via de fórmulas bem sucedidas de autoajuda.

A SECULARIZAÇÃO ENCANTADA

A antropóloga Regina Novaes lembrava, em 2005, que vivemos num tempo de “ventos secularizantes”, mas, ao mesmo tempo, devemos estar atentos ao “espírito do tempo”. Segundo esta antropóloga, dá-se, de fato, “um tipo de secularização quando diminui o peso das autoridades religiosas tradicionais e a obrigação de um jovem seguir a religião dos pais”. No entanto, “partilhando das possibilidades culturais desta época, os jovens desta geração estão sendo chamados a fazer suas escolhas em um campo religioso mais plural e competitivo”. (Novaes, in Teixeira e Menezes, 2005, p.16). O “espírito do tempo” de que fala esta antropóloga, tem a ver com a ideia de multiculturalismo, de reconhecimento do diferente, de desmonte da monopolização da cultura e da religião.

Os “ventos secularizantes” misturados com o “espírito do tempo” nos colocam no centro de nosso ponto de reflexão. Talvez para abreviar, pudéssemos falar que vivemos tempos de secularização encantada (Follmann, 2007). A expressão se apoia na “teoria da modernidade religiosa”. (Hervieu-Léger e Champion, 1986). A secularização não pode ser tomada como sinônimo de desencantamento ou de perda da alma humana. Estamos falando de uma secularização que ajuda a restabelecer a verdadeira alma roubada (ou usurpada) pelos racionalismos e racionalidades e, também, sobretudo, por poderios sagrados, que construíram uma superestrutura desconectada com a realidade interferindo na condução da vida humana, da organização social e da natureza, com regramentos ditados por interesses institucionais.

Secularização é um processo que conduz, essencialmente, à afirmação da autonomia das realidades terrestres. Após tempos de distorções e ressecamentos, e como resultado inesperado da modernidade, de mais a mais, desperta a consciência de que essas realidades são complexas e cheias de encanto e de dimensão do eterno. Existe um novo encontro com o religioso, mediado pela liberdade de opção e não pela determinação institucional. Vive-se hoje um tempo muito favorável de libertação dos sujeitos humanos com relação às instituições religiosas, as quais às vezes exerceram e exercem papel de atrofiamento do próprio religioso. Carlos Eduardo Sell e Franz Josef Brüseke (2006) apontam exatamente para isto. Estes dois autores, retomando a contribuição da socióloga francesa, lembram que “o que caracteriza a nossa época não é tanto a indiferença religiosa ou a descrença; mas, acima de tudo, o fato de que as crenças religiosas escapam ao controle das grandes igrejas e das instituições religiosas”. (Sell e Brüseke, 2006, p.189-190).  Trata-se de uma busca do ser humano em pensar-se por si mesmo e diz respeito a um processo de individualização e de subjetivação da vida religiosa.

Às vezes as religiões, no afã de colocar-se a serviço dessa dimensão de encanto, do sentimento de plenitude e de ruptura com o vazio e a angústia frente às incertezas de referência dentro das realidades terrestres, se apropriaram e apropriam de tal modo da mesma, que a sufocam, ressecam ou atrofiam.

OS PROCESSOS DE IDENTIDADE

O presente texto iniciou colocando na roda de conversa algumas aproximações em torno das estatísticas religiosas no Brasil. Não foi algo fortuito, nem casual… Procurou-se sinalizar que o quadro estatístico religioso é uma ponta visível de um enorme ‘iceberg’ constitutivo da complexidade dos processos de identidade que acontecem na sociedade, mediados pela dimensão religiosa. As diferentes questões e uma série de atalhos empíricos, explicitados no início do texto, apontam para dimensões desta complexidade nem sempre suficientemente conhecidas. Destaque especial deve ser dado à simultaneidade de formas modernas, com formas pré-modernas e pós-modernas que caracteriza a esfera religiosa nos atuais contextos de pós-modernidade da sociedade brasileira.

O sujeito religioso no contexto de pós-modernidade, no Brasil de hoje, se movimenta permanentemente em encruzilhadas que são ao mesmo tempo complexas e móveis. Trata-se de um contexto de vias que se movimentam compondo e recompondo cruzamentos e acessos. Todo o ser humano vive e sobrevive na sociedade organizando-se em um projeto de vida, o qual é por ele articulado, com maior ou menor consistência, com maior ou menor condição de autogestão. Quando se perde totalmente a força articuladora própria, pode-se falar que o ser humano está afundado em processos de alienação, tendo que viver ou sobreviver segundo projetos de outrem. Peter Berger, na mesma obra já referida anteriormente, ao falar da alienação contrapõe a ideia de opus alienum à de opus proprium. (Berger, 2004). Parece elementar, mas é tremendamente inspirador.

Quando na minha pesquisa de doutorado trabalhei o conceito de identidade, inspirei-me com a ideia de “encruzilhada” ou de “cruzamento complexo” de vias (sem semáforo), ou, ainda, de “lugar de encontro” e de “cruzamento” de diferentes projetos. Em uma palavra: o conceito nasceu da ideia da interação, ou seja, a identidade é uma constante “costura” que se faz no seio da interação. “Costuras” fazem-se sempre necessárias. (Follmann, 2001).

Segundo Gilberto Velho (1987, p. 26ss), os projetos estão sempre ligados a contextos específicos. Um projeto não é jamais um fenômeno puramente subjetivo. Ele sempre é elaborado em um “campo de possibilidades”. As questões e atalhos empíricos explicitados anteriormente sinalizam para alguns “campos de plausibilidades”. O projeto, segundo o autor, pode ter a inspiração em outro lugar, mas o sujeito do projeto deve fundamentalmente considerar seus contemporâneos com os quais deverá estar em contato para atingir seus objetivos.  Levando essa ideia ao extremo, o projeto, dentro da experiência de fragmentação, que é a experiência diária dos indivíduos em sociedade especificamente em contextos de pós-modernidade, não é nada mais que a tentativa permanente de dar sentido e coerência à sua existência em interação com a complexidade plural que os envolve e atravessa.

A grande fragilização e ameaça constante de fragmentação vivida pelos indivíduos em sociedade e, sobretudo, o vazio e a angústia em contextos onde as referências institucionais perderam força, fazem com que os mesmos busquem alguma referência, que ao mesmo tempo seja suficientemente segura (para a realização do projeto pessoal) e suficientemente independente para que a autonomia pessoal seja preservada. Em uma sociedade na qual a dimensão religiosa exerce um substrato cultural predominante e historicamente consolidado, é fácil de entender que as sínteses religiosas pessoais possam tornar-se as principais formas de se potencializar isto. Elas sempre são construídas mediadas pela complexidade concreta presente na esfera religiosa. Talvez tenhamos uma boa chave de explicação do fenômeno da alta expansão religiosa independente de vinculação institucional. Religiosidade que convive com a secularização e nela, inclusive, se fortalece.

CONCLUSÃO

Para concluir, faço três apontamentos… O apontamento inicial é um convite a retornarmos às estatísticas religiosas apresentadas pelo IBGE. Chama atenção o fato de em alguns Estados da Federação, como Acre, Rio de Janeiro, Rondônia e Roraima e poder-se-ia ainda acrescentar Espírito do Santo e Distrito Federal, que apresentam um elevado percentual de evangélicos, concentram também os percentuais mais elevados de pessoas sem religião. (IBGE, 2012). O crescimento acelerado do percentual de evangélicos se dá, em grande parte, devido ao aumento da incidência do segmento neopentecostal. Este fato vem ao encontro da hipótese de certa proximidade, em determinadas circunstâncias, entre fatores que desencadeiam a busca da solução neopentecostal, com apelo ao sucesso pessoal sem compromisso de participação e vinculação comunitária, e a identificação como sem religião, traduzível, em muitos casos, como religiosidade de “arranjo pessoal”. Ambas são soluções individualizantes e de reforço da subjetividade pessoal. São, a rigor, neste sentido, soluções secularizantes e apontam na direção das principais interrogações teóricas aqui expostas.

O segundo apontamento vem ao encontro da radical importância manifesta na intuição que nos alerta sobre a simultaneidade e justaposição das formas pré-modernas, modernas e pós-modernas no cotidiano da esfera religiosa brasileira em nossos dias. Existe certamente uma acentuada tendência de ampliação na margem de participação das soluções pós-modernas que podem ser visibilizadas mediante os seguintes fatos: – o grande segmento populacional que se diz religioso, mas com nenhuma adesão ou envolvimento institucional mínimo; – a proliferação sem conta de fórmulas de autoajuda e programações religiosas de massa e midiáticas; – a já mencionada coincidência entre contextos de crescimento do segmento neopentecostal e aumento da população que se diz sem religião.

Por fim, o último apontamento retorna à pergunta formulada inicialmente: o que podemos colher do estudo sobre os processos de identidade nas manifestações religiosas no Brasil de hoje, para o avanço dos estudos da sociedade e das Ciências Sociais, neste contexto?  Para abreviar o argumento, me associo ao antropólogo Otávio Guilherme Velho (in Teixeira e Menezes, 2005: p.11-12) para dizer que é fundamental que as ciências sociais e os estudos da sociedade no Brasil, mais do que nunca, se desfaçam de certos ranços que ainda dominam a academia brasileira, para assumir com humildade um olhar mais atento, de forma transdisciplinar, para a dimensão religiosa da sociedade, condição fundamental para uma compreensão em profundidade desta mesma sociedade.

BIBLIOGRAFIA

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VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1987 (1ª Ed. 1981).


[1] A pesquisa sobre os Locais de Culto e Templos na Região Metropolitana de Porto Alegre abrangeu os municípios de Canoas, Cachoeirinha, Esteio, Sapucaia do Sul, São Leopoldo e Novo Hamburgo (a pesquisa se estendeu de 1994 a 2004)

INTERPELADAS E INTERPELADOS POR UMA CULTURA AFIRMATIVA

Reflexão feita a partir de uma reunião no Colegiado do PPG de Ciências Sociais, em outubro de 2019.

Falar de raça é urgente e necessário, no Brasil

José Ivo Follmann (06/10/2019)

Contextualização

Na reunião que tivemos, no dia 05/09/2019, esbocei algo sobre o que venho chamando de necessidade de instaurar uma CULTURA AFIRMATIVA em nível de Educação Superior, para que se criem condições efetivas de educação das relações étnico-raciais no Brasil (lei 10639/03 e 11645/08). Eu estava focado especificamente naquilo que consigo entrever como um dos papéis chaves de nosso Programa, sobretudo, em relação a essa temática. Lidar com isso exige, em primeiro lugar, o reconhecimento daquelas e daqueles que provêm de um acumulado histórico de exclusões e invisibilidade. Essas pessoas são os principais sujeitos da temática e têm uma percepção especial e única da mesma. A sua afirmação é chave. Todas/os concordamos e temos consciência disto.

A nossa reunião foi boa e oportuna, apesar de um pouco estrangulada no tempo com relação a algumas demandas que exigiam muito mais aprofundamento. Diversas ideias vieram me acompanhando em minha viagem de retorno a Brasília. Tento colocar algo no papel aqui, para complementar o que apenas me foi possível esboçar. Tivemos muitos outros atravessamentos no diálogo, perfeitamente compreensíveis. Agradeço a uma das colegas que lembrou, no decorrer da reunião, a expressão “Universidade inclusiva”.

Trata-se de uma contribuição simples e coloquial, sem outras pretensões além de querer provocar a continuidade e o aprofundamento de nosso diálogo.

Ações afirmativas

Nós sabemos que as ações afirmativas têm caráter inclusivo e compensatório ou mesmo restaurativo para grupos (pessoas) na sociedade, que foram e estão sendo lesados no acesso pleno aos direitos, devido a discriminações e preconceitos produzidos e reproduzidos pela mesma sociedade.

As ações afirmativas são importantes e necessárias para ajudar a acelerar processos de inclusão, favorecendo a instauração de condições mais condizentes em termos de democracia e justiça na sociedade. É necessário que nós cientistas sociais estejamos muito atentas/os para desvendar necessidades de ações afirmativas, apontando para a potencialização de políticas neste sentido. Ao falar políticas tenho presente um sentido amplo, indo desde políticas internas a instituições específicas até políticas públicas de Estado.

Seria ingênuo, no entanto, pensarmos que as ações afirmativas resultarão em uma sociedade inclusiva pela simples criação, formulação e publicação de políticas e suas regulamentações. Aliás, nem mesmo a sua efetivação na prática, dessas políticas, é garantidora do sucesso. Sendo mais explícito, as ações afirmações, formuladas como políticas, mesmo quando colocadas em prática, não terão automaticamente os efeitos desejados se não forem sustentadas por uma sinergia cultural proativa.

Cultura afirmativa

É no cultivo dessa sinergia cultural proativa que o papel das/os intelectuais e especialmente das/os profissionais da Educação Superior é chave. Aliás “ações afirmativas” são perigosas e podem causar efeitos perversos quando não estiverem revestidas e acompanhadas de uma cultura afirmativa.

O sucesso das ações afirmativas depende disto. Como gerar uma cultura afirmativa? Quais os caminhos para facilitar isto? Já sinalizei para o papel chave da Educação Superior, mas vamos descer ao chão concreto. Fazendo um atalho, eu creio que o caminho principal se desenha sempre que pudermos “povoar” o contexto no qual trabalhamos e vivemos com práticas pedagógicas testemunhais, que evidenciem, no dia-a-dia, posturas afirmativas focadas na correção (desconstrução) de ideologias, preconceitos e vícios constituintes do plano mais profundo do convívio social e da estrutura da sociedade.

Somos muito privilegiadas/os, neste sentido, pelas múltiplas oportunidades de uso do espaço da sala de aula e produção de textos. É um privilégio que suporta também uma imensa responsabilidade, pois pode acontecer que transformemos esses espaços em ambiente de reforço perverso das mesmas ideologias, dos mesmos preconceitos e vícios, revestindo-os de belas e atraentes teorizações. Às vezes, as ricas elaborações teóricas passam a servir de cortina de fumaça, para ocultar o nosso absenteísmo ou omissão por encarar em sério os reais conflitos, que não enxergamos vivamente desenhados e presentes na própria sala. Podemos também ser omissas/os e ausentes, quando as nossas interlocuções no espaço da sala de aula e nos textos que escrevemos ou orientamos, não contribuem para a desconstrução da hegemonia das euro-referências deixando de afirmar as afro-referências e as referências nossas autóctones.

Um conceito que foi muito pautado na reunião é o conceito de racismo estrutural. É um conceito muito oportuno para esta nossa conversa, reflexão e encaminhamentos coletivos. Agradeço à coordenadora da reunião ter lembrado para todas/os isto, com o texto que disponibilizou. É oportuno, sobretudo, para colocar em pauta o que aqui estou chamando de cultura afirmativa. Ou seja: nascemos e vivemos marcados pelo racismo; existe uma espécie de “normalidade racista” nos embebendo em todos os níveis, impregnando nossas mentes e corações. O racismo estrutural, que no Brasil apresenta traços particularmente carregados, necessita de medidas que possam ter impacto estrutural intenso, abrangente, profundo e permanente. Afinal, somos apeladas/os a desconstruir os efeitos dos mais de 350 anos de regime de escravidão negra. Sabemos que são mais de 350 anos, se considerarmos, sobretudo, o processo político e social de não afirmação e de exclusão que se seguiu à abolição. Esta herança maldita, queiramos ou não, habita as mentes e corações da sociedade brasileira. Somos uma sociedade artificial e perversamente branqueada.

Revestir-se de forma consciente e sempre renovada de posturas afirmativas (ou de uma cultura afirmativa) é o que melhor deveria identificar, neste sentido, profissionais que atuam na Educação em Nível Superior e, particularmente, aquelas/es que atuam na Produção de Conhecimento e Formação Acadêmica, em nível de pós-graduação.

Sublinho a expressão “revestir-se de forma consciente e sempre renovada de posturas afirmativas”, porque todas/os somos permanentemente envenenadas/os pelo racismo estrutural, sendo facilmente reprodutoras/es do mesmo, em manifestações de sentimentos, em falas, gestuais, silêncios, posturas e, até, em formas de avaliação de textos.

Ser de cultura afirmativa exige, da educadora e do educador, vigilância permanente. Vigilância, sobretudo, para não sucumbir à solução fácil de se proteger atrás da trincheira das normas e padrões estabelecidos. Muitas injustiças são cometidas exatamente quando os juízes em vez de serem efetivamente juízes, se sentem no dever de “ser justos”, se escondendo na cômoda trincheira do estabelecido na lei… Não se trata de nivelamento por baixo. É questão de procedimento pedagógico diferenciado e afirmativo, alcançando o mesmo nível de exigência.

Na contextualização inicial, referi que lidar com a temática do racismo exige, em primeiro lugar, o reconhecimento daquelas e daqueles, que são as vítimas deste racismo, como sujeitos protagonistas e interlocutores fundamentais. Um Programa como o nosso só fará jus ao seu papel, na medida em que conseguir ter efetivamente o reconhecimento interno e externo, neste aspecto.

Eu até ousaria concluir esta pequena reflexão com uma provocação: será que intelectuais de nosso nível e área de formação que não se empenham ativamente em ajudar a desconstruir o racismo estrutural, não estariam sendo elas/es mesmas/os imputáveis de racistas, por omissão ou absenteísmo?

Questões para aprofundar:

1) Será que não corremos o risco de sermos alvo de desconfiança ou até de deboche, quando a nossa emblemática e tão zelosamente buscada “excelência acadêmica” não vier acompanhada e entranhada numa autêntica cultura afirmativa? Isto é particularmente sério, considerando a nossa área de concentração.

2) Estamos suficientemente confortados com os critérios de avaliação praticados? Até que ponto não somos também vítimas da “ideologia da meritocracia”? Uma cultura inclusiva não deveria fazer com que revíssemos procedimentos de avaliação para colocarmos critérios de mérito efetivamente justos na balança? Podemos estar sendo vítimas de nossas próprias inseguranças ao nos protegermos atrás de critérios “objetivos” instituídos, nos tornando incapazes de enxergar os verdadeiros méritos, desenhados nas trajetórias pessoais de produção do conhecimento das pessoas que são nossas/os orientandas/os e de outras/os profissionais.

3) Precisamos urgentemente, em minha opinião, revisar de forma mais aprofundada algumas das pautas de ação de nosso Programa. É necessário retomar a história do Programa para possíveis correções de rumo em alguns pontos que são chaves na interlocução com a comunidade e as necessárias interfaces para sermos efetivos interlocutores reconhecidos pela excelência e, também, por uma cultura afirmativa (a construir). É necessário que se ganhe em institucionalidade de produção do conhecimento e em protagonismo das instâncias e dos grupos envolvidos, talvez, através de núcleos de pesquisa dinamicamente integrados com sua face de extensão.

Pela história da instituição, em grande parte, os caminhos estão facilitados. Tenho, no entanto, plena certeza que diversas iniciativas poderiam ter sido muito melhor articuladas e potencializadas. Mas, ainda está em tempo. Que a presente “oportunidade da crise” possa ser efetivamente fecunda. É preciso um exercício de cultura afirmativa, encontrando os melhores meios para que todas as instâncias que estão na ponta das interlocuções possíveis em questão, sejam efetivos protagonistas autorais, contando com as interlocuções proativas instituídas no PPG.

4) Vou ser repetitivo, na última questão: Todas/os concordamos com a real existência do racismo estrutural. Temos consciência, também, que a sua persistência na sociedade é muito destruidora do convívio social democrático e justo, prejudicando inclusive as boas condições de produção de conhecimento. Penso, neste sentido, que deveríamos ser zelosos em “povoar” as nossas reflexões e produções científicas com mais referências explícitas a essa questão. Muitas vezes, ao ler teses, dou-me conta de oportunidades de diálogo sobre isto que se deixa passar “em silenciosos vazios”. A vigilância permanente é importante. Em geral a opção por não tocar no tema se baseia num falso protecionismo (para com a orientanda ou o orientando) para não entrar numa temática que exigiria “nova” tese. Às vezes, no entanto, será a única oportunidade na formação desta/e profissional para se deixar interpelar conscientemente por esta temática.

Eu sou, pessoalmente, de opinião que nós deveríamos fazer o esforço, sempre que a oportunidade se oferece, de orientar para que se deixe algo explícito no texto da tese, neste sentido, nem que seja através de nota de roda pé. De uma forma bem singela, eu veria isso como um procedimento interessante e oportuno para o processo educativo de nossas/os orientadas/os, gerando também nelas/es uma cultura afirmativa. É na minha opinião um caminho interessante para a “educação das relações étnico-raciais”.

Apoiando-me na interessante e conhecida contribuição da coordenadora do NEABI, poder-se-ia dizer que uma postura vigilantemente ativa, neste sentido, nos fará contribuir para diminuir a reprodução da “branquidade” e aumentar a produção de “branquitude”, gerando uma sociedade mais sadia nas relações étnico-raciais.

JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL: BUSCANDO UM CONCEITO OPERACIONAL NO HORIZONTE DA ECOLOGIA INTEGRAL

Reflexão elaborada em julho de 2019. Com ampliações posteriores para Revista Convergência e para VII Congresso de Teologia na PUC-Rio

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

José Ivo Follmann (1)

(Este texto reproduz parcialmente uma reflexão abordada em artigo em fase de publicação na Revista Convergência, CRB)

Introdução

O conceito de “justiça socioambiental” circula, há alguns anos, no meio acadêmico, na prática das organizações sociais e religiosas e em movimentos sociais, mas não está perceptível nele uma efetiva distinção com relação ao conceito de justiça ambiental. É prática da academia a existência de uma clara distinção entre justiça social e justiça ambiental. No entanto, para proporcionar um entendimento mais efetivo do conceito de justiça ambiental, passou-se a denominar como “justiça socioambiental”, com o argumento de que não existe como encontrar solução de crise ambiental, sem a promoção da justiça social, ou seja, sem ter um olhar de justiça para os que mais sofrem os desmandos com relação ao meio ambiente.

Se existe conflito ambiental, o mesmo se dá devido à desigualdade social no acesso a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, para usar expressão da Constituição Brasileira, art. 225. Ou seja, existe uma desigualdade social com característica ou relação ambiental.

Certamente houve muitos avanços importantes e pertinentes a celebrar neste debate. Entendo, no entanto, que é urgente desvincular a ideia da “justiça socioambiental”, do conceito de justiça ambiental. Mas, também, obviamente, não se deve partir parra a simples soma da justiça social e justiça ambiental. É necessário que se retome a questão fundamental da interlocução, diálogo de par a par, interconexão entre justiça social e justiça ambiental. A justiça socioambiental acontece nesta complexa inter-relação e conexão entre justiça social e justiça ambiental. Não é necessário negar a importância didática dos dois conceitos – justiça social e justiça ambiental – em seu uso conforme as diversas situações. O que deve ser evitado é o remendo conceitual da sobreposição pura e simples do “socioambiental” ao “ambiental” na definição da “justiça socioambiental”.

O que o presente texto quer ensaiar é a construção de um conceito de Justiça Socioambiental – JSA que seja coerente com o paradigma da Ecologia Integral, apresentada pelo Papa Francisco na Encíclica Laudato Sí, tentando construir uma operacionalidade teórica e prática deste conceito.

Praticando a justiça socioambiental: em três dimensões e diferentes níveis de ação

A referência de fundo é o paradigma da Ecologia Integral. Nesta perspectiva, ao falar em justiça socioambiental – JSA estamos focados na complexa interlocução, diálogo de par a par e interconexão entre justiça social e justiça ambiental. A JSA acontece nesse entrelaçamento entre justiça social e justiça ambiental, que diz respeito à busca de vida justa e equilibrada em todas as dimensões e níveis de ação humana e social e na sua relação com os dons da criação.

Na Laudato Sí (L.S. n. 49), o Papa Francisco, assim se expressou: hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres.

Entendo que, de fato, no chamado do Papa está embutido um desafio à realidade humana como um todo, em toda a sua complexidade. A JSA não pode ser, simplesmente, pautada como conjunto de práticas reativas a situações pontuais, decorrentes dos chamados conflitos ambientais, como sinalizei acima. Ela é uma intervenção na sociedade como um todo em seu modo de ser e se organizar, incluindo a relação com os dons da criação.

Estamos vivendo em um mundo estragado (degradado) em todos os aspectos. Isto envolve as pessoas em suas relações, a organização social em suas relações políticas, econômicas e culturais, e, também, o meio ambiente como um todo. É neste mundo como um todo que incide a justiça, que será JSA na medida em que tiver no horizonte o grande “tecido inconsútil” (L.S. 9) onde “tudo está estreitamente interligado”. (L.S. 16)

O desafio está em propor um conceito de JSA que seja efetivamente operacional, que possa dar conta das principais dimensões da complexa existência humana em sociedade e na sua relação ambiental e dos níveis de ação mais decisivos e chaves neste existir.

Fonte: Elaboração de José Ivo Follmann

Três dimensões operacionais

O Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA,(2) tem buscado enfrentar esse desafio construindo, teórica e empiricamente, um conceito de Justiça Socioambiental – JSA, centrado na atenção a três eixos ou dimensões, que perpassam transversalmente os diferentes níveis níveis de ação. Falando a linguagem da cultura do cuidado, estamos focados em três grandes cuidados: o cuidado da dignidade humana, o cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas e o cuidado dos bens da criação.

O Reconhecimento da dignidade do ser humano.

É a dimensão do cuidado da dignidade humana, amparada no reconhecimento. Esta dimensão acontece, na prática, nas relações com o diferente, nas relações étnico-raciais, religiosas, de geração, de origem nacional, de visões de mundo e opções, buscando sempre formas de estabelecer o diálogo, o valor da pluralidade e a inclusão de todos/as.

A justiça começa a ser construída na medida da tomada de consciência de que todos somos habitantes e fazemos parte da Casa Comum e cada um/a tem o direito de ser reconhecido em dignidade nas suas diferenças. Assim são práticas de JSA, todas as práticas que reconhecem e cultivam por dentro das diferenças de todas as ordens, a dignidade do ser humano e suas particulares repercussões na vida pessoal e cultivo da própria dignidade em nossa Casa Comum.

Cuidado dos dons da criação, da vida e da saúde dos ecossistemas.

É a dimensão do cuidado dos dons da criação. Esta dimensão está expressa na constante atenção à conservação, preservação e usos adequados dos dons da criação, em vista do cuidado dos ecossistemas saudáveis e da vida para o presente e futuro do planeta terra e dos seres nele habitantes.

A JSA, nesta dimensão, se expressa através de práticas com relação aos dons da criação, que podem ser percebidas nos diferentes níveis de participação social, indo desde uma radical revisão das práticas na produção do conhecimento, das tomadas de decisão e do tratamento harmonioso e equilibrado dos dons da criação, no seu cultivo e uso no dia-a-dia. Estão em pauta, neste ponto, as repercussões destas práticas do bom equilíbrio e harmonia das condições da nossa Casa Comum.

O Ordenamento da sociedade ou a superação das desigualdades sociais.

É a dimensão do cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas. Nesta terceira dimensão está fundamentalmente em questão a superação das desigualdades, das exclusões sociais e da pobreza, pela busca do acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, segurança, saúde, moradia, educação, alimentação e nacionalidade. A rigor, o que está em pauta, são os grandes e pequenos processos decisórios na sociedade em seus ordenamentos políticos e econômicos e na condução das políticas públicas. Estão em pauta bons resultados de tudo isto, para um convívio harmônico e inclusivo em nossa Casa Comum.

Assim, com o foco na ideia de que tudo está interligado nesta nossa Casa Comum, são práticas de JSA, práticas econômicas e políticas pautadas no atendimento aos direitos sociais e humanos básicos, no reconhecimento da dignidade do ser humano e no cuidado dos dons da criação como dimensões básicas no Cuidado da Casa Comum.

Diferentes níveis operacionais

Além das três dimensões, em termos operacionais necessitamos de outros atalhos garantidores de operacionalidade conceitual. Podemos, neste sentido, distinguir níveis concretos, como diferentes instâncias ou espaços de expressão e realização da justiça ou da JSA. Identificamos três como chaves para isto. As práticas de justiça podem ser identificadas no nível da produção do conhecimento, no nível das tomadas de decisão, e, sobretudo, no nível cotidiano de nosso ser, viver e agir, no dia-a-dia.

Em nível de conhecimento, através do reconhecimento das diversas formas de saber e de percepção da vida e das coisas, muito para além dos simples conhecimentos disciplinados pelo mundo acadêmico. Destaca-se a busca da superação da linha abissal que separa, por um lado, conhecimentos academicamente valorizados e, por outro lado, saberes excluídos do mundo racional-científico. Destaca-se a valorização dos diversos saberes. (Nos aspectos relacionados à Igreja, somos convidados a absorver com humildade, os conhecimentos populares e tradicionais em nossas práticas religiosas, através da consolidação de uma “Igreja em Saída”.)

No nível da tomada de decisões, a postura de cultivo aberto e não exclusivista do conhecimento, é, sem dúvida, aporte fundamental para um maior acerto na gestão, dando conta de autêntica e ampla cultura de participação e de reconhecimento da dignidade dos sujeitos envolvidos nas decisões. Neste sentido, sugere-se caminhar para formas inovadoras de implementar e avaliar as políticas públicas, formas estas embasadas em indicadores mais sustentáveis e na busca de uma sociedade igualitária e inclusiva.

Enfim, no nível das práticas do cotidiano, estamos no chão do cuidado por dentro das pequenas práticas pessoais e coletivas no dia-a-dia. É o campo do cotidiano, o campo das pequenas coisas do dia-a-dia, do cuidado e da justiça, na vida como ela acontece. O espaço e tempo de profundo sedimentar o cuidado da nossa Casa Comum, no testemunho vivo dentro das práticas pessoais e coletivas do dia-a-dia. Aqui, sem dúvida, todos/as somos chamados/as a uma profunda conversão socioambiental.

São diferentes níveis de ação, nos quais se pode manifestar o chão concreto de realização da prática da justiça e, mais especificamente, a prática da JSA. Precisamos de JSA em nossos meios de produção de conhecimento, em nossos processos de tomadas de decisão, em nosso modo de proceder nas práticas cotidianas em geral.

Concluindo

A reflexão aqui apresentada não pretendeu ser mais do que chave de provocação, visando a sua continuidade. Penso que, sempre tendo presente as três dimensões em pauta (o ser humano em sua dignidade, o convívio com os dons da criação e o ordenamento socioeconômico e das políticas púbicas), a humanidade, em geral, e a sociedade brasileira, em particular, necessitam urgentemente centrar-se na cultura do cuidado e desfazer-se da tragédia da cultura da indiferença. A atenção central deve ser colocada na dimensão relacional e na interligação de tudo dentro da experiência humana na criação.

Assim, retomando os níveis de intervenção, referidos neste texto, podemos dizer que a JSA é praticada na medida em que, tanto nas dimensões do cuidado da dignidade humana e do cuidado dos bens da criação, como na dimensão do cuidado do ordenamento social e econômico de inclusão e igualdade, estiverem sendo adotadas medidas de prática de justiça, na produção do conhecimento, nas tomadas de decisão e no modo de ser, viver e agir dentro do cotidiano.

A prática da Justiça Socioambiental – JSA, assim definida, tem muito a contribuir no momento difícil que enfrenta a sociedade brasileira. Trata-se de um desafio que pede, em primeiro lugar, a realização do nosso próprio “tema de casa”, dentro de nossa Casa Comum.

NOTAS:

  1. Doutor em Sociologia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Mestrado e Doutorado), UNISINOS. Sacerdote jesuíta e Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil. (O presente texto repete e reproduz parcialmente, artigo a ser publicado na Revista Convergência, CRB e conferência a ser proferida no VII Congresso de Teologia, Rio de Janeiro).
  2. Trata-se de um “Observatório em Rede” da Província dos Religiosos Jesuítas do Brasil, com núcleo articulador em Brasília, DF. www.olma.org.br

O APOSTOLADO SOCIAL FAZ PARTE DO ‘DNA’ DA COMPANHIA DE JESUS

Entrevista publicada em agosto de 2010, em IHU OnLine.

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

Entrevista publicada por Graziela Wolfart no IHU OnLine Edição 337 | 09 agosto 2010. O entrevistado demonstra a sua crença de que os jesuítas têm por vocação buscar sempre o bem maior e mais universal e que o trabalho em rede pode ser um importante facilitador para isto. Depois de relatar aspectos da trajetória histórica do apostolado social da Companhia de Jesus, o professor e padre jesuíta José Ivo Follmann afirma, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line: “retomando e reforçando o binômio Serviço da Fé e Promoção da Justiça e a urgência do Diálogo Cultural e Inter-Religioso, as novas dimensões que apontam forte são o cuidado com o meio ambiente (dimensão ecológica) e a atenção às novas fronteiras, num mundo que avança vertiginosamente no meio científico e tecnológico levando às vezes de roldão a dignidade e o sentido da existência humana”. Mas reconhece que “nem sempre o social conseguiu ter a visibilidade e a importância que o carisma inaciano lhe exige”.

IHU On-Line – Qual a postura e as principais ações da rede SJ-CIAS na Província do Sul?
José Ivo Follmann – A Rede SJ-CIAS (Rede Jesuíta de Cidadania e Ação Social) nasce da urgência de termos uma ação articulada e efetiva no Setor Social da Província do Sul. Nasce, sobretudo, da necessidade de aprendermos a trabalhar em rede. A palavra chave é APRENDER. SJ-CIAS quer ser uma escola de aprendizado para que saibamos colocar-nos em rede nacional, latino-americana e mundial. Para trabalhar em rede é necessário que comecemos em nossa própria casa. Precisamos cultivar-nos nesta exigência que se faz sempre mais irreversível para que nossas ações ganhem em força e em amplitude. Como jesuítas, nós temos por vocação buscar sempre o bem maior e mais universal. O trabalho em rede pode ser, sem dúvida, um importante facilitador para isto.

IHU On-Line – O senhor poderia recuperar a história do apostolado social da Companhia de Jesus? Quando isso começa? Quais são as motivações iniciais? Como surgiram os CIAS? Como isto chegou até nós?
José Ivo Follmann – O Apostolado Social faz parte do DNA da Companhia de Jesus. Inácio de Loyola, que era de estirpe nobre, viveu o seu processo de conversão em uma profunda experiência de encarnação na condição de mendigo. Para ele e seus companheiros, na Itália, já a partir de 1537, (portanto dois anos antes da fundação da Companhia), o Apostolado Social (práticas junto aos empobrecidos) era uma das frentes de atividade, ao lado da pregação, do ensino catequético e da confissão. É de destaque uma importante iniciativa social junto às mulheres de rua ou prostitutas, em Roma. Por diversos fatores, o apostolado social, enquanto tal, não chegou a ser colado historicamente à “marca” jesuíta enquanto apostolado próprio da Companhia, até a primeira metade do século XX. Isso está relacionado, em grande parte, com a concepção de pastoral que predominava na Igreja católica e também, mais tarde, com a maneira como esta Igreja se relacionou com o mundo moderno, em todos os campos, mas, sobretudo, no campo social. Também está associado à supressão sofrida pela Companhia de Jesus e a maneira como ela se restaurou buscando, em primeiro plano, afirmar-se no campo educacional. No entanto, alguns nomes são notáveis e exemplares, tais como: o Pe. Francisco Xavier , no Oriente, o Pe. Ricci , na China, o Pe. Nobili , na Índia, o Pe. Pedro Claver , na Colômbia, o Pe. Von Spee , na Alemanha e os padres Nóbrega, Anchieta , Vieira , Malagrida e outros, no Brasil. Não se pode deixar de referir, sobretudo, o monumental trabalho junto aos povos indígenas guarani, os “povos das missões” , ao longo dos séculos XVII e XVIII. Ao longo do século XX, especialmente nas décadas de 1930 a 1960, foram notáveis algumas presenças organizadoras, promocionais e assistenciais junto à classe operária urbana. Devem ser lembrados, próximos de nós, os padres João Batista Reus, Leopoldo Brentano, Inácio Valle, Cândido Santini, Claudio Mascarello e outros. Destaque grande também deve ser feito à incidência no desenvolvimento e organização social no meio rural. Devem ser citados diversos nomes, neste sentido, mas vamos destacar o nome do Pe. Max Von Lassberg e do Pe. Theodor Amstad . O primeiro como desbravador de novas fronteiras agrícolas ajudando a fundar novas comunidades; e o último pela maravilhosa obra das cooperativas no meio rural. Os quatro últimos Superiores Gerais passaram a sublinhar com maior insistência a importância do Apostolado Social na Companhia de Jesus. A começar pelo Pe. João Baptista Janssens, passando pelo Pe. Pedro Arrupe, depois Pe. Peter-Hans Kolvenbach e hoje o Pe. Adolfo Nicolás .

O papel do Pe. Janssens:  A começar pelo Pe. João Batista Janssens, que na célebre Instrução Apostólica de 10/10/1949, justifica a necessidade do Apostolado Social como expressão genuína da nossa vocação, explicitada nas prescrições do Instituto, e exigência diante dos danos produzidos pelo comunismo ateu e do liberalismo capitalista e suas consequências indesejáveis: a situação dos trabalhadores, produto nefasto das injustiças sociais e das perturbadoras estruturas econômicas. Em meados da década de 1950, o mesmo Pe. Janssens confiou ao Pe. Foyaca, uma visita a todas as Províncias da América Latina, tendo como ponto de atenção: os jesuítas e a questão social. É a partir da Instrução Apostólica de 1949 e desta visita do Pe. Foyaca, que devemos ler a origem dos CIAS (Centros de Investigación y Acción Social). Em carta a todos os Provinciais da América Latina, em 24/12/1962, Pe. Janssens incentivava, na época, a promoção e o desenvolvimento dos CIAS no contexto latino-americano. O Pe. Pedro Arrupe, ao assumir como Superior Geral, em 1965, herdou, assim, um grande dinamismo no Setor. Já em 1966, registrava-se a existência de 23 CIAS, com 165 jesuítas neles atuantes, em toda a Companhia Universal. Sendo que, destes, 11 na América Latina, com 87 jesuítas neles atuantes. Em Carta sobre o Apostolado Social na América Latina, 12/12/1966, o Pe. Arrupe anunciava a criação do CLACIAS (Consejo Latino Americano de CIAS), e escrevia o seguinte: “O objetivo fundamental dos CIAS (e, consequentemente, do Apostolado Social) será a transformação da mentalidade e das estruturas sociais no sentido da justiça social, preferentemente no setor da promoção popular, com a finalidade de possibilitar uma maior dedicação, participação e responsabilidade, em todos os níveis da vida humana”.

A condução de Pe. Arrupe:A partir da Congregação Geral XXXI, o Pe. Arrupe assim se refere ao Apostolado Social: “O que o Apostolado Social diretamente pretende, com todo o empenho, é informar as próprias estruturas da convivência humana de mais justiça e caridade, para poder qualquer homem participar em pessoa, e exercer a sua iniciativa e responsabilidade em todos os setores da vida social”. A Congregação Geral XXXII, em grande parte devido à forte liderança do Pe. Pedro Arrupe, ao definir a Missão da Companhia, deu centralidade ao binômio integrado: serviço da fé e promoção da justiça, recuperando para os dias de hoje o que está expresso, em outras palavras, na Fórmula Originária do Instituto. Nem tudo foi tranquilo e sem sofrimento no seguimento fiel a esta Missão. Houve desconfortos e desilusões, para não falar de perseguições.

O Pe. Peter Hans Kolvenbach, mesmo que marcado inicialmente pelo cuidado por curar algumas feridas no tecido social da Companhia e em sua relação com o corpo todo da Igreja, ao longo de sua longa trajetória como Superior Geral, no entanto, manifestou de forma crescente a sua apreensão e preocupação para que se encontrassem formas de redimensionar e revigorar o Apostolado Social na Companhia, como expressão importante de sua Missão nos dias de hoje. A Congregação Geral XXXIV, sob a sua liderança, reafirmou a formulação da Missão, seguindo a Congregação Geral XXXII, que apresentara o binômio integrado do Serviço da Fé e Promoção da Justiça e acrescentou novos aspectos, chamando a atenção, também, para a importância fundamental do Diálogo Cultural e Inter-Religioso.

Com o Pe. Adolfo Nicolás, amparado pela Congregação Geral XXXV, o Apostolado Social desponta com novas dimensões e renovado vigor. Retomando e reforçando o binômio Serviço da Fé e Promoção da Justiça e a urgência do Diálogo Cultural e Inter-Religioso, as novas dimensões que apontam forte são o cuidado com o meio ambiente (dimensão ecológica) e a atenção às novas fronteiras, num mundo que avança vertiginosamente no meio científico e tecnológico levando às vezes de roldão a dignidade e o sentido da existência humana. Mais do que nunca, a partir da Congregação Geral XXXV, se insiste na importância de um vigoroso trabalho em rede para termos condições de fazer algo que tenha efetivo impacto e alcance.

IHU On-Line – Nesse contexto histórico e dentro da proposta dos CIAS, como surgem o Cedope e o IHU? O que influencia o fato de surgirem dentro de uma universidade?
José Ivo Follmann – Eu tive, pessoalmente, a sorte de acompanhar o CEDOPE ao longo de toda a sua história desde o ato formal de sua criação em 1971 até o ato formal de sua extinção em 2001. Também fiz parte da criação do IHU em 2001, liderando como Diretor do então Centro de Ciências Humanas da Unisinos o longo processo de reflexão, e, por que não, negociação, relativo a esta nova criação. O CEDOPE foi liderado na sua criação e grande parte de sua existência, nas primeiras duas décadas, pelo Pe. Pedro Calderan Beltrão que adotou uma postura diferenciada com relação aos CIAS (Centros de Investigación y Acción Social). Ele postulava um trabalho social mais científico e de caráter acadêmico. O Pe. Beltrão nunca quis de fato que o CEDOPE fosse considerado como um CIAS, pois ele tinha diferenças ideológicas e teóricas com relação à linha em geral adotada nos CIAS. No final de três décadas de existência o CEDOPE talvez estivesse mais próximo da ideia originária de CIAS, mas estava se sentindo a necessidade de maior foco e também integração com a universidade. Foi o que desencadeou a ideia da criação do que hoje é o IHU (Instituto Humanitas Unisinos) somando-se neste processo, além do CEDOPE, o Núcleo de Humanismo Social Cristão e a própria Pastoral da universidade.

IHU On-Line – Qual seria a principal diferença do IHU em relação aos outros CIAS?
José Ivo Follmann – O IHU nasce como proposta de renovação ou de ressignificação da própria ideia de CIAS para os nossos tempos. Ele foi construído inspirado basicamente na ideia dos CIAS, mas dando a esta ideia um novo rosto e uma nova dinâmica de interlocução dentro dos grandes debates presentes nos dias de hoje, tendo como apoio facilitador a interface e a estrutura da universidade. O IHU, no meu entender, consegue ser a expressão daquilo que, em muitos momentos, foi e está sendo almejado por diversos CIAS, na busca de uma maior aproximação com o debate acadêmico, sobretudo quando se trata de trabalhos de pesquisa.

IHU On-Line – O senhor, de fato, vê a questão social como central na Companhia de Jesus?
José Ivo Follmann – Para mim, a questão social é central na Companhia de Jesus. Como eu disse no início, faz parte do seu DNA. Sempre me empenhei por isto. Entrei na Companhia de Jesus com esta perspectiva no meu horizonte. Mas creio que existem entendimentos diferentes do que significa questão social e de como fazer frente a ela. São entendimentos que se expressam em posturas teóricas e metodológicas diferenciadas, às vezes até opostas.

AÇÕES AFIRMATIVAS

Texto preparado para publicação na plataforma do Curso de Especialização em EaD Cidadãos para o Mundo, 11 de maio de 2019

A cidadania se expressa sobretudo na vigilância sobre as políticas públicas

Texto preparado para Curso em EaD pela Faculdade dos Jesuítas de Filosofia e Teologia – FAJE, Belo Horizonte, MG, Cidadãos para o Mundo (2019-2020).

José Ivo Follmann sj

Introdução e contextualização

A Constituição Brasileira de 1988 está pautada por e para um Estado Democrático e se destina a “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (…)”. Esta Constituição afirma no seu artigo 5º que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)”. Além disto deve ser lembrado o artigo 225º que fala: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. (BRASIL, 1988)

A necessidade de afirmar aquilo que já está garantido na lei, poderia parecer redundante, se não fosse, por um lado, a histórica e permanente desigualdade brasileira que subtrai de segmentos significativos da população, o acesso aos direitos mais básicos para a sua vida cidadã, e, por outro lado, a escandalosa degradação de todo nosso habitat vital ou, em termos mais amplos, o meio ambiente. Chama a atenção a naturalização e a banalização que se consolidou na sociedade brasileira, frente as suas desigualdades e degradações socioambientais. Esta banalização é tão forte, que iniciativas contra a realidade desigual e degradante acabam sendo vistas como algo anormal ou inusitado. Este aparentemente “anormal” e “inusitado” deve ser afirmado. Felizmente, de tempos em tempos, esta afirmação acontece com mais intensidade.

Para corrigir o descompasso entre o direito ao acesso igualitário sobre bens e serviços públicos afirmados na lei, por um lado, e a realidade social desigual e de degradação ambiental, por outro lado, o Estado e a sociedade civil, quando existe vontade política, ensaiam esforços, mais ou menos consequentes, para estabelecer políticas de superação do paradigma do “normal” das desigualdades e degradações, buscando garantir o acesso aos direitos e buscando promover melhores condições de vida para o futuro. Tais políticas, formuladas pelo Estado em conjunto com a sociedade civil, são práticas instituídas na sociedade, cultivadas a partir de valores amplamente aceitos, que inspiram e respaldam as garantias de direitos constitucionais.

Podemos falar de formas de políticas que são muito anteriores ao surgimento do próprio Estado e da atual sistemática visibilizada nas chamadas “políticas de ações afirmativas”. Podemos inclusive nos remeter ao amplo cultivo de práticas sociais, respaldadas ou motivadas por valores de origem religiosa ou não, consolidando-se muitas vezes na instituição de obras sociais, mais ou menos vigorosas, para o atendimento dos segmentos mais fragilizados da população, movendo verdadeiras políticas de atendimento humanitário e caritativo, através de ações permanentes que garantem o acesso ao mínimo necessário à sobrevivência humana.

Se em geral se fala em ações afirmativas de caráter compensatório ou mesmo restaurativo para grupos de pessoas na sociedade, pode-se também falar em ações afirmativas de caráter testemunhal e pedagógico, que têm como função a aceleração da correção de ideologias, preconceitos e vícios (culturais ou tecnológicos) da sociedade em todos os seus níveis, seja nas relações interpessoais, seja no nível organizacional enquanto tal ou seja na relação da sociedade e dos indivíduos com a natureza.

O Estado e o processo de cidadania no Brasil

O processo histórico brasileiro fez com que o Estado fosse constituído de uma forma muito lenta no seu papel precípuo de efetivação de políticas públicas, em geral, e, particularmente, de políticas públicas de defesa e garantia de direitos humanos e sociais, bem como, de cuidado ambiental.

Na medida em que o Estado foi sendo fortalecido pela instituição de legislações voltadas para a defesa dos direitos humanos e sociais universais, incluindo, consequentemente, os segmentos mais desfavorecidos, ficou, também, sempre mais evidenciada a necessidade de regulamentar e garantir o efetivo acesso a tais políticas. A garantia destes direitos para todos e todas é dever do Estado que, na qualidade de Estado Republicano deve prezar pelo bem comum de todos cidadãos e cidadãs, em condições de vida favoráveis à sua dignidade em habitat apropriado.

Trata-se de direitos para o exercício pleno da cidadania. Estes direitos, segundo Evaldo Vieira (2018, p.191) vão desde poder usufruir de condições mínimas de segurança e conforto socioeconômico, até acessar ao legado sociocultural e a um padrão de vida que possa ser considerado o mínimo para o exercício da cidadania.

Sempre que se busca efetivar políticas públicas, a complexidade social e humana também se evidencia. Não podemos buscar soluções, segmentando a realidade. Torna-se visível a existência de situações que exigem, para além do cumprimento da aplicação das políticas instituídas, ações afirmativas especiais, e, sobretudo, uma visão integral da realidade. A história vem nos mostrando que o simples fato de existirem leis que preconizam a igualdade e a equidade no acesso aos direitos básicos, não garante, por si só, o acesso a estes direitos. Ademais, em geral, o simples acesso a direitos em si, de pouco vale para a busca das verdadeiras soluções.

Assim é que diferentes campos setoriais das políticas públicas se constroem somente mediante pressão sistemática dos segmentos envolvidos nas referidas políticas, com o apoio ou intermediação de movimentos sociais e organizações da sociedade civil. Isto se faz mais evidente naquelas situações nas quais existem agravantes que podem ser impeditivos ou de freio à eficácia das mesmas políticas instituídas, caso não tiverem um tratamento de reforço especial.

Políticas de ação afirmativa são imprescindíveis

São situações em que segmentos que sofreram e sofrem discriminação social por preconceito culturalmente arraigado têm o seu acesso ao pleno exercício cidadão muito mais prejudicado do que outros vivendo em situação econômica similar, mas não sendo alvos de semelhante discriminação. Situações em que a máxima preconizada pela Constituição sobre a igualdade no acesso de direitos, é negada. Situações em que se faz evidente a degradação do habitat, de extrema calamidade ou de risco grave para o futuro da vida e do planeta terra. Nestes casos, as ações devem ser ostensivamente afirmativas para fazer frente à cultura de negação ou de negatividade desfavorável aos segmentos sociais em questão. A instituição de políticas de ação afirmativa se faz imprescindível para que os acessos ao convívio cidadão não se posterguem.

Ações afirmativas são conjuntos de medidas que se amparam no fato de que as pessoas não são tratadas de forma igual no que tange ao acesso aos seus direitos, devido a processos discriminatórios subjacentes às relações. São processos muitas vezes sutis e dissimulados, de difícil apreensão, fazendo com que as mesmas oportunidades juridicamente preconizadas não sejam de fato as mesmas oportunidades reais. Os próprios prejudicados nem sempre se dão conta de que são vítimas de processo discriminatório, muito menos dos prejuízos que isto lhes acarreta. No mesmo sentido, as situações de degradação do habitat humano estão tão degradadas que parece que “assim deve ser” e que “não há solução possível”…

Elas (as ações afirmativas) são, ao mesmo tempo, processos de aceleração para compensar desvantagens históricas sofridas e processos de desmonte dos obstáculos interpostos na sociedade por este mesmo passado histórico e pelas elites dominantes.

Como também podem ser ações testemunhais contra a fácil acomodação frente à degradação ambiental. Trata-se de ações de discriminação positiva visando sacudir o torpor da discriminação negativa subsistente na sociedade. Em vista disso é fundamental que essas ações sejam protagonizadas pelos próprios sujeitos afirmados.
Os principais alvos de ações afirmativas sempre são as diferentes ideologias e práticas discriminatórias, tais como: o racismo, o machismo, a xenofobia, a homofobia, entre outras. São ideologias e práticas que imputam a determinados segmentos sociais características coletivas e pejorativas que impedem o pleno e livre exercício cidadão. Essas ideologias e práticas, como já sinalizei anteriormente, são em geral dissimuladas, manifestando-se “por baixo dos panos”. Elas são de difícil objetivação. As vítimas em geral vivem desamparadas e “sem testemunhas”.

Além das ideologias e práticas discriminatórias, que exigem ações afirmativas, existem também processos ideológicos e consequentes comportamentos, que marcam a sociedade e são destrutivos da boa convivência humana e no meio ambiente. Também são necessárias, neste sentido, ações afirmativas que testemunhem caminhos corretos no trato dos dons da natureza e da coisa pública.

As ações afirmativas são, a rigor, mecanismos catalizadores para o estabelecimento do verdadeiro processo democrático no País. Através delas são facilitados: – a concretização da igualdade de oportunidades; – a transformação cultural, psicológica e pedagógica; – o pluralismo e a diversidade; – a eliminação de barreiras invisíveis que impedem a plena cidadania de negros, indígenas, mulheres e outros segmentos discriminados; – a erradicação da cegueira frente aos desmandos da humanidade com relação aos dons da criação e vida do planeta terra.

Ações afirmativas como fatores de mudança cultural

Em sua dimensão mais profunda, as ações afirmativas são fator de mudança cultural, auxiliando a criar novas visibilidades e parâmetros sociais, no trato dos seres humanos entre si, no convívio social, no trato da organização da sociedade e no trato da nossa relação com os dons da criação. Ações afirmativas, neste sentido, são possíveis e necessárias nos diferentes âmbitos. Podemos destacar: 1) Ações afirmativas na busca do reconhecimento profundo da dignidade de todos os seres humanos, por dentro das relações étnico-raciais, da diversidade religiosa, geracional, de gênero, de visões de mundo e opções, na busca proativa do diálogo, do valor da pluralidade e da dinâmica da reconciliação; 2) Ações afirmativas em prol da melhoria e efetivação de políticas de superação das desigualdades sociais, promovendo o acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, saúde, moradia, educação e alimentação; 3) Ações afirmativas de conservação, preservação e usos adequados dos dons da natureza, em vista do cuidado dos ecossistemas saudáveis e da vida para o futuro do planeta terra e de seus habitantes.

Em suma, trata-se de diferentes parâmetros que acabam se tornando referências emblemáticas para o cultivo da autoestima e do desmonte dos preconceitos, gerando visibilidades, outrora ofuscadas, no mercado de trabalho, na representação política, nas instituições de produção de conhecimento, nos meios de comunicação e no próprio convívio com a natureza. Trata-se de movimento fundamental para a consolidação de um Estado Democrático de Direito, que seja promissor para as gerações presentes e futuras.

A Campanha da Fraternidade 2019 e as ações afirmativas

A Campanha da Fraternidade organizada pela Conferência dos Bispos do Brasil – CNBB, da Igreja Católica, no presente ano de 2019, tem como tema “Fraternidade e Políticas Públicas”. É uma temática muito oportuna e seu texto base e demais materiais têm um caráter ao mesmo tempo conceitualmente consistente e politicamente didático. É um tema que certamente não pode ficar confinado a um período limitado de tempo…

O texto da CF 2019 dá uma visão ampla sobre o que são políticas públicas e descreve sucintamente as suas diferentes expressões. Sente-se, no entanto, a lacuna de uma referência específica às “políticas públicas de ações afirmativas”. Não tenho condições de medir a intencionalidade desta lacuna, mas chama atenção, mais uma vez, que “ações afirmativas” não são um assunto tranquilo e continua sendo um terreno minado. É uma constatação a mais para que se afirme a sua importância e urgência. Mais do que nunca políticas de ação afirmativa são urgentes.

O que deve ser observado, nesta referência à Campanha da Fraternidade, é o fato que toda “campanha” tem em si um significado de ação afirmativa com relação a algo de não está sendo suficientemente afirmado ou considerado na sociedade.

Como entender o “ódio de classe” por causa de ações afirmativas?

Em recente texto que publiquei em uma obra coletiva – “Dialogando com Jessé Souza” (FOLLMANN, 2018) – desenvolvi a reflexão seguinte:

Vivemos, hoje, na sociedade brasileira, como Jessé Souza muito bem aponta em diversas passagens de seus textos, um clima de ódio ao pobre, uma verdadeira cultura de ódio ao pobre. Trata-se de ódio a uma política de “ações afirmativas”. Trata-se de ódio a segmentos da população que teriam sido favorecidos “indevidamente” por essa política, tendo o seu caminho facilitado para o acesso a benefícios e a espaços que nunca antes podiam ser imaginados. Ou seja, ousou-se romper com a velha estrutura mental preservada intacta desde o longo período de escravidão. Na verdade, o ódio ao escravo, no período da escravidão, foi transposto hoje para o ódio ao pobre. No Brasil de hoje, mata-se mais pobres do que se mata, por exemplo, na guerra da Síria. Note-se que a maioria dos pobres é de população negra. Não se trata, portanto, só de um esquema mental que não mudou. As próprias relações étnico-raciais concretas não se alteraram.

Vivemos em uma sociedade na qual nunca, efetivamente, se criaram condições de verdadeira democracia intelectual… (…) A ideologia da meritocracia talvez possa servir como exemplo. Jessé Souza chega a dizer que não merece o nome de cientista quem defende a meritocracia tal como é cultivada no Brasil, pois é óbvio que a desigualdade vem do ventre materno e não da escola. As pessoas são olhadas de cima para baixo. O que incomoda hoje a classe média é que se ousou, em nível de poder executivo central, olhar para a ralé, olhar de baixo para cima. Houve empenho por promover a inclusão. O acesso aos benefícios. Pela primeira vez em 500 anos se conseguiu mexer com um velho e tácito “acordo” de classes, fazendo com que diminuísse verdadeiramente a desigualdade. Isto mexeu muito com a classe média elitizada. Aliás, sempre continuando com o pensamento de Jessé Souza, dá-se hoje uma verdadeira criminalização do próprio princípio da igualdade. Parece que o fato de se ter questionado a “linha da dignidade”, não tem perdão. Ousou-se tornar visível o que é real, mas deveria ser mantido na invisibilidade. Aquele que ousou fazer isto, merece ser jurado de morte.

As cotas raciais e as políticas de inclusão em favor de determinados segmentos sobre os quais pairam fortes preconceitos na sociedade, são um dos maiores combustíveis para ajudar a reproduzir este ódio. No entanto, sabemos que ao longo da história brasileira, existem abundantes exemplos de políticas afirmativas, estabelecendo cotas sociais ou outros mecanismos (de discriminação positiva) para atender a urgências reconhecidas em favor de segmentos sociais diversos.

Mencione-se, por exemplo, as políticas de favorecimento às diferentes levas de migrantes europeus já ao longo do século XIX e século XX. Pode-se dizer que no período imediatamente após a abolição da escravatura houve mais empenho em ações afirmativas em prol da população branca de descendência europeia do que em prol afrodescendentes, provenientes da população majoritária negra que fora escravizada.
Mas existem exemplos mais recentes de políticas de cotas, que não causaram o ruído que as cotas raciais causam. O exemplo mais evidente é a lei que em 1968 estabeleceu cotas que favoreciam integrantes de famílias rurais – Lei nº 5.465, de 3 de julho de 1968 – que teve durabilidade até 1985.

O papel revolucionário da educação das relações étnico-raciais

Tomando como exemplo principal as ações afirmativas com relação aos afrodescendentes em nossa sociedade, podemos fazer o seguinte resgate histórico recente: Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o Ministério da Justiça criou em 1996 o I Programa Nacional dos Direitos Humanos (I PNDH) e dentro do mesmo contexto foi nomeado um Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra (GTI População Negra) o qual entre diferentes temas, pautou especificamente a questão das ações afirmativas. Para este GTI a ação afirmativa diz respeito a medidas especiais e temporárias, tomadas pelo Estado e/ou pela iniciativa privada, espontânea ou compulsoriamente, voltadas para a eliminação de desigualdades historicamente acumuladas, em vista da garantia de igualdade de oportunidade e tratamento, com a compensação de perdas provocadas pela discriminação e marginalização. Esta discriminação e marginalização pode dar-se por motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero entre outros.

Na verdade, vítima de um processo de políticas de branqueamento de muitas mãos, o Brasil e a sociedade brasileira têm dificuldade em recuperar a sua afro referência e também auto referência. Fomos viciados em nos enxergar como euro referentes. Um passo de suma importância, apontando para uma política pública inteligentemente pensada, foi sem dúvida a “Lei da Educação das Relações Étnico-raciais” – Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003 – assinada pelo Governo Luiz Inácio Lula da Silva, logo no início de seu mandato. Esta lei que está focada na inclusão dos afrodescendentes foi ampliada através da Lei nº 11.745 de 10 de março de 2008, acrescentando as populações indígenas dentro da mesma preocupação política.

Já vimos acima como essas políticas não caíram do céu, como uma iniciativa de governantes iluminados ou sensíveis. Referimos aqui Fernando Henrique Cardoso e depois Luiz Inácio Lula da Silva. Existe um longo acúmulo de lutas e pressões tanto dos movimentos negros através de suas diversas articulações e frentes, como dos movimentos e organizações que refletem os interesses da causa indígena.

A grande novidade e esperança que está presente na Educação das Relações Étnico-raciais – ERER, apesar das fortes turbulências hoje vividas e dos reais riscos de atrasos, dentro da conjuntura política presente, está em estabelecer mecanismos concretos de recuperação do horizonte cultural e referência africano (raízes africanas) e do horizonte cultural e referência autóctone (raízes originárias/indígenas).

Assim, além dos diferentes formatos ou modalidades de políticas de cotas raciais (ou étnico-raciais) que têm a sua importância transitória de aceleração, o foco principal das políticas públicas de ações afirmativas em favor da população afrodescendente e dos integrantes dos povos indígenas está na Educação das Relações Étnico-raciais cultivada em sala de aula em todos os níveis e segmentos educacionais. É, com certeza, um dos caminhos mais razoáveis para contribuir na desconstrução do nosso embotamento euro referente e da afirmação dos horizontes auto e afro referentes. A Educação das Relações Étnico-raciais,(1) na medida em for levada a sério, contribuirá essencialmente na derrubada da clausura alienada dentro do imaginário euro-referente, que sobre todos nós, brasileiras e brasileiros: brancos/as (eurodescendentes), indígenas (autóctones) e negros/as (afrodescendentes).

Notas:

Um exemplo de boa prática na aplicação da ERER é o da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, na qual a partir de coordenação de Profa. Dra Adevanir Aparecida Pinheiro, coordenadora do NEABI – Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas, foi criada uma disciplina de “Educação das Relações Étnico-Raciais e Culturais para o Ensino Básico”, como atividade obrigatória para todos os Cursos de Licenciatura da Universidade.

Referências bibliográficas:

BRASIL. Constituição – República Federativa do Brasil 1988. Brasília: Presidência da República, 1988.

BRASIL. Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: MEC-SECAD, 2006.

BRASIL. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC-SECAD. 2009.

CNBB. Campanha da Fraternidade 2019: Fraternidade e Políticas Públicas. (Texto Base). Brasília: CNBB, 2019.

FOLLMANN, J.I. (org). Dialogando com Jessé Souza. São Leopoldo: Casa Leiria, 2018.

PINHEIRO, A. A.; FOLLMANN, J.I. Negros e Brancos no Brasil: três pontos de reflexão. Revista Identidade! São Leopoldo: Escola Superior de Teologia -EST., 2011. http://professor.unisinos.br/joseivofollmann/2019/03/01/negros-e-brancos-no-brasil-tres-pontos-de-reflexao/

VIEIRA, Evaldo. Os Direitos e a Política Social. São Paulo: Cortez, 2018.