DIALOGANDO COM OS CONCEITOS DE INTERDISCIPLINARIDADE E DE TRANSDISCIPLINARIDADE: CAMINHOS PARA O FUTURO DAS INSTITUIÇÕES EDUCACIONAIS.

Publicado como artigo na Revista INTERTHESIS, em 2013.

A tábua de salvação da universidade…

José Ivo Follmann

Artigo publicado na Revista INTERTHESIS, UFSC a partir de palestra proferida no Seminário Internacional: Interdisciplinaridade no Ensino, na Pesquisa e Extensão – SIIEPE, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Florianópolis, 23-25 de outubro de 2013.

Abrindo janelas…

A maneira como vou iniciar a minha participação neste evento, talvez soe estranha e provocativa. Hoje tenho consciência de que, apesar de ter quarenta anos de atuação no meio acadêmico, não preciso esforçar-me muito para, às vezes, nele parecer estranho. Isto, talvez, se deva ao fato de estar marcado por uma trajetória religiosa e de militância no campo religioso, fazendo com que me transforme, às vezes, numa espécie de profanador do espaço sagrado da Academia… Ser estranho é fácil, mas a minha humilde pretensão aqui é poder ser provocativo…

Antes de entrar no debate das questões que me foram colocadas, vou falar do povo nas ruas do Brasil, vou falar do Papa Francisco e vou falar de uma Mãe de Santo.

Iniciemos com as “manifestações de junho” e suas repercussões na Academia… Quando as “manifestações de junho” aconteceram, os políticos, a sociedade e a academia se sentiram pegos de surpresa. Vou ater-me à academia. Nós, da academia, fomos surpreendidos. E falo isto enquanto sociólogo… Ouviram-se muitos comentários. Obviamente, também, muitos acadêmicos e professores participaram das manifestações. Não poderia ser diferente. No entanto, será que a academia deixou-se interrogar pelas manifestações? Muitos talvez digam que sim. Muitos talvez digam que não. Alguns disseram: “A Academia fez a sua parte. Fez reflexões em sala de aula. Aconteceram mesas de debate com professores. Houve elaboração de muitos papers”. Outros disseram: “A Academia fez-se ausente. Lavou as mãos. Só faturou academicamente em cima dos eventos. Entendeu que é problema dos políticos e da sociedade”.

Em formaturas que eu presidi no início deste semestre (agosto, 2013) eu repeti diversas vezes as seguintes palavras, revestidas de empáfia característica: “A partir das ‘manifestações de junho’ deste ano, um dos muitos comentários que se ouviu foi: ‘Depois desses eventos o Brasil não voltará mais a ser o mesmo; a sociedade brasileira não voltará mais a ser a mesma’… E eu acrescento: ‘A universidade brasileira não poderá mais ser a mesma; as profissões não poderão mais ser as mesmas; a profissão de vocês não poderá ser mais a mesma!’…” Fiquei sempre muito satisfeito e até impressionado com o efeito evidente que este discurso repercutia nos rostos concordes do público e dos novos profissionais em festa. Passada a euforia daqueles momentos de discurso impactante, já me perguntei, muitas vezes, sobre a verdadeira efetividade daquelas palavras. Uma nova Universidade é possível? Quais devem ser as características desta nova Universidade?

Depois de aberta esta primeira janela, vou para outra… Olhemos agora para dois homens com o nome Francisco, talvez até inspirados no mesmo Francisco… Falo do Papa Francisco, falo do jesuíta Francisco Xavier e falo do grande inspirador de muitos, Francisco de Assis.

No século XVI, Francisco Xavier, em uma de suas cartas, enquanto missionário jesuíta atuante no Extremo Oriente, manifestava uma grande ansiedade com relação às universidades europeias devido à sua acomodação e pouca eficácia frente aos desafios urgentes da humanidade .(1) No seu ardor missionário cristão, ele escrevia que tinha vontade de retornar à Europa e, “se fazendo de louco”, andar pelos corredores dessas universidades para, aos gritos, denunciar a sua insensibilidade e indiferença e o carreirismo egoísta, alimentado pela mera busca de títulos, de parte de seus estudantes.

Mais de quatro séculos depois, surpreendentemente, a dois meses atrás, o Papa Francisco, em uma importante entrevista para a Revista Civilta Cattolica e, com ela, para uma Rede de Periódicos no mundo todo, ao se dirigir aos jesuítas e ao mundo intelectual em geral, falou de três palavras chaves fundamentais: diálogo, discernimento e fronteiras, e estabeleceu uma analogia ousada e muito perspicaz: “Assedia-nos sempre o perigo de viver como em laboratório. (…) Os laboratórios me causam medo, porque no laboratório os problemas são dissecados e levados para casa, fora de seu contexto, para domesticá-los, para dar-lhes um verniz. Não se pode levar as fronteiras (da realidade complexa) para casa, é necessário viver nas fronteiras e ser audazes”.

Deixando no ar este questionamento, quero abrir uma terceira janela para concluir esta introdução prévia… Trago à cena a lição de vida que recebi de uma Mãe de Santo (2) , que já serviu para muitos momentos de reflexão. Estava participando de um seminário sobre espiritualidade e religiões de matriz africana. A Mãe de Santo, que era uma das painelistas, acabara de fazer uma reflexão de grande profundidade e que, no meu entender, deveria merecer um registro escrito. No final de sua colocação, perguntei-lhe sobre porque as religiões de matriz africana, ainda hoje, continuavam resistentes ao registro escrito das grandes lições de vida e fé de seus líderes e, também, de suas reflexões espirituais e religiosas. Ela me respondeu: “Padre Ivo, vou dizer uma coisa muito certa. Se a gente escreve, aí vêm outros, leem e saem fazendo bobagem!…” Foi uma resposta inesperada, que já me oportunizou muita reflexão.

Em primeiro lugar: valores e atitudes não se aprendem em livro! Ou seja, existem dimensões no conhecimento que não passam pela simples captação da razão. As formulações da linguagem sempre serão pobres para dar conta delas. Só podem ser colhidas na vivência e no coração. A simples apreensão pela leitura, quando não acompanhada pela acolhida vivencial, proporciona uma falsificação cognitiva.

Abertas estas três janelas, temos um ambiente bastante iluminado (ou não) para apresentar os pontos que queremos introduzir na participação nesta mesa de diálogo. Partindo, em um primeiro momento, de um questionamento amplo sobre a defasagem existente entre academia e sociedade, faço, em um segundo momento, breve reflexão sobre a importância e pertinência da inter e transdisciplinaridade para ajudar a dirimir esta defasagem, dentro da discussão proposta, realçando para tal a importância do papel da extensão universitária. Num terceiro momento são apresentados alguns desafios, oportunidades e perspectivas dentro do tema da institucionalização da inter e transdisciplinaridade no meio acadêmico, com a apresentação de alguns exemplos concretos.

A defasagem entre o meio acadêmico e a sociedade

Hoje em dia, em nosso meio, muitas vezes se ouve dizer que existe uma defasagem grande entre o que a sociedade em geral, o mercado em particular e os governos esperam do sistema de ensino, particularmente da educação superior e o que são as condições efetivas existentes neste sistema e nesta educação superior para uma produção de conhecimentos e formação de profissionais condizentes com as reais necessidades.

Às vezes nos deparamos com comentários que sugerem que existe um verdadeiro abismo, quase intransponível, entre estes dois mundos. Mesmo que sejam conhecidos diversos esforços para terminar com este abismo, existem muitos outros processos em andamento que acabam aumentando o mesmo.

É estranho que isto seja tão forte no Brasil onde existe uma dimensão dentro da definição oficial da universidade, que tem a finalidade de reduzir essa defasagem e de aproximar a academia e a sociedade, que é a dimensão da extensão universitária. Na definição da universidade brasileira está evidenciada a intenção de, através da extensão, aproximar o ensino e a pesquisa do contexto no qual eles se realizam. Onde a produção do conhecimento e a formação de profissionais sejam condizentes com as demandas da realidade social.

O contexto atual sinaliza, com vigor, para diversas sensibilidades ou pautas sociais, entre as quais está com destaque a questão da sustentabilidade socioambiental, e o apelo para a contribuição do sistema de ensino neste sentido. Mas o que tem a ver isto com a reflexão sobre interdisciplinaridade e transdisciplinaridade aqui proposta? Tem tudo a ver, pois é dentro do processo de aproximação ou de busca de aproximação entre academia e sociedade que se acelerou o processo de gestação da própria interdisciplinaridade e, sobretudo, da transdisciplinaridade. E são as opções por buscar soluções inter e transdisciplinares que criam as melhores condições para acelerar a aproximação entre academia e sociedade.

Talvez se possa dizer que é nas soluções inter e transdisciplinares que reside, em grande parte, a salvação para o futuro das próprias universidades e seu sentido na sociedade.

Em suma, entendo que as práticas inter e transdisciplinares, no cotidiano das instituições de educação superior e do sistema educativo em geral, serão um grande facilitador para superar a lacuna entre os dois mundos e propiciar alinhamento deste sistema para a sustentabilidade socioambiental.

Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade

Estou transgredindo um pouco a solicitação da coordenação do evento, ao introduzir junto ao conceito de interdisciplinaridade, o conceito de transdisciplinaridade. Esta transgressão, que espero não ser grave, deixa-me mais à vontade e ajuda a conectar mais facilmente com a reflexão sobre extensão universitária, cujo viés, no meu entendimento, é essencial para a minha participação nesta mesa.

Alguns colocam a segmentação disciplinar do conhecimento e a sua departamentalização como frutos perversos da modernidade. Isso está, talvez, na origem de uma das maiores crises geradas pela própria modernidade. Trata-se de um efeito perverso porque, em sua concepção original, encontramos a função de complementaridade entre os diferentes aportes, mas quem alimentava esse ideal não se deu conta de que os pequenos mundos do saber, criados e cultivados em compartimentos, também implicariam em recantos de poder e de competição. Esses recantos passaram a negar a importância e a pertinência dos demais recantos do saber e, até mesmo, se chegou a questionar a própria legitimidade da interação e relação produtiva com eles. Sem falar do quase interdito que passou a vigorar com relação às contaminações do saber com elementos considerados espúrios ao mundo dos saberes disciplinados (das disciplinas).

O mundo acadêmico é o mundo das disciplinas. É, também, muitas vezes, um mundo que sucumbe a certas arrogâncias disciplinares… Segundo Ubiratan D´Ambrósio, “faz-se necessário o rompimento da arrogância da certeza disciplinar”.(3) Para este educador, a disciplina traz consigo um critério de certeza arrogante, não deixando espaço para um entendimento que transcenda o aparente. As certezas disciplinares são reconduzidas à aproximação da verdade na medida em que se instauram processos multi ou pluridisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. A rigor, são diferentes “movimentos” metodológicos de um mesmo “que fazer” científico.(4) O último desses “movimentos”, a transdisciplinaridade, não significa um momento ou etapa de superação ou desconsideração da contribuição específica dos outros “movimentos” das disciplinas, seja em suas produções isoladas, seja na forma multi ou pluridisciplinar de produção do conhecimento, somando, justapondo ou criando interfaces complementares entre disciplinas, ou, ainda, na forma interdisciplinar, de efetivo diálogo e intercâmbio conceptual e metodológico entre as mesmas. A transdisciplinaridade reflete em si todos esses “movimentos” metodológicos, acrescendo-lhes uma abertura madura para a integração de saberes diferentes, sejam eles saberes de disciplina ou combinação de disciplinas ou, ainda, saberes de outras ordens, que transcendem as disciplinas, atuando como “interrogantes externos”. (Follmann, J. I., Lobo, I. M. et allii , 2003, p.10). Para Basarab Nicolescu, no qual me apoio mais diretamente,“a transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica (…) diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina.” (Nicolescu, 2000, p.15)(5)

Isto não é novidade e nem inovação que esteja extrapolando das orientações fundamentais da própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei 9394/96), pois esta já orienta para a busca de saberes, que são externos e transversais às disciplinas, dentro da produção do conhecimento e dos processos educativos.

No sentido transdisciplinar, a produção de conhecimento e o processo educativo supõem a integração dos saberes e supõem, também, a abertura e o não-fechamento dos saberes, no sentido de se alimentarem mutuamente e, sobretudo, de se deixarem transcender (ultrapassar) na permanente busca do melhor bem para o ser humano e o seu contexto. A transdisciplinaridade nasceu com essa vocação, ou seja: por meio dela se busca a integração dos saberes internos e externos aos esquemas disciplinares, onde os saberes de fora da academia (buscados nas percepções do cotidiano, nas percepções artísticas e outras sensibilidades ou mesmo nas tradições sapienciais da humanidade), funcionam como interrogantes externos dentro do processo de produção do conhecimento e do processo educativo.(6) É quando a extensão universitária passa a fazer parte de todo o processo educativo da instituição acadêmica.

No processo de extensão universitária, a atitude transdisciplinar tem mais condições objetivas de aflorar. Uma atitude transdisciplinar implica exercer a madura abertura aos interrogantes externos e ao conhecimento produzido fora do seu campo de domínio teórico, intradisciplinar e disciplinar. Exige ser humilde e cooperativo frente aos diferentes saberes, reconhecendo as limitações das disciplinas ou de seu campo de domínio teórico-técnico diante da realidade da complexidade. A atitude transdisciplinar nos convida ao exercício da coragem para recusar-se a simplesmente aceitar como dado imutável a realidade na qual se está inserido. As pessoas com atitude transdisciplinar são pessoas mais abertas àquilo que está além da sua área de conhecimento e aplicação, portanto tendem a apresentar mais facilidades de trabalhos em equipes multi e interdisciplinares. É convicção que a universidade que fez uma opção pela transdisciplinaridade deve, de forma permanente, buscar incluir em seu modo de proceder, em todos os níveis, a atitude transdisciplinar.

Desafios, oportunidades e perspectivas

Com o objetivo de tomar parte da roda de diálogo sobre os novos e velhos desafios, oportunidades e perspectivas para as propostas de interdisciplinaridade e de transdisciplinaridade dentro do processo de reprogramação do sistema educacional brasileiro, proponho aqui alguns apontamentos contemplando obstáculos, processos críticos e estruturas para os quais devemos estar atentos.

Nível dos obstáculos e sua superação

Vou direto ao ponto: no meu entender o principal obstáculo para todo e qualquer avanço inter e transdisciplinar é a ausência de foco estratégico direcionado para a superação da defasagem entre o meio acadêmico e a sociedade.

Sem este foco estratégico toda e qualquer iniciativa inter e transdisciplinar corre o risco de ser inócua para uma verdadeira transformação do meio acadêmico. Pode-se até desenvolver iniciativas pontuais e produzir belos eventos trazendo à discussão esta temática. Podem-se enriquecer currículos e produzir papers e artigos. O meio acadêmico, no entanto, permanecerá o mesmo, enriquecido por uma nova performance discursiva.

Para prevenir este risco faz-se necessário que se coloque no centro de toda discussão três perguntas chaves: 1) A primeira questão, em nosso “que fazer” universitário, sempre deve ser: Que sociedade nós queremos? 2) Uma segunda questão naturalmente se seguirá: Que sujeitos formar para essa sociedade que queremos? 3) A terceira questão, consequentemente, fará voltar o nosso olhar para as universidades enquanto tal: Que educação nós necessitamos? E, dentro desta questão: Que universidade para ser coerente com a educação necessária para os sujeitos e a sociedade buscados? (Follmann, 2008, p.322)

Se o nosso sonho é com uma sociedade sustentável, isto é: com uma inovação tecnológica condizente com os avanços internacionais e com o estabelecimento de garantias de sustentabilidade social e ambiental, em vista da sobrevivência equilibrada da sociedade e do meio ambiente no presente e no futuro, os cidadãos e profissionais desta sociedade devem passar por um processo de formação condizente e o sistema no qual este processo formativo se dá deve ser impulsionador disto.

Aliás, o sociólogo Boaventura de Souza Santos, numa frase, que está em epígrafe, na apresentação do texto do Plano Nacional de Extensão, expressa, em certo sentido, o que aqui está pontuado: “Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino”. (7)

Em nível de processos críticos, alguns apontamentos

O processo crítico central é o da avaliação da vida da academia e seus resultados. A academia aqui é concebida como espaço de produção de conhecimento e espaço de formação profissional. Trata-se de um espaço constituído de muitas instâncias e dimensões que devem estar em sinergia com as duas finalidades definidoras.

O que deve ser avaliado, em todas as instâncias e em todas as dimensões, é o grau de excelência acadêmica na produção de conhecimento e na formação profissional. E se formos coerentes com a busca por eliminar a grande defasagem entre Academia e sociedade, a avaliação da excelência acadêmica terá que levar em conta, sobretudo, o tipo de impacto na sociedade gerado pelo processo de produção de conhecimento e pela formação profissional.

É com esta finalidade que eu estou inserindo, nesta minha participação, uma reflexão especial sobre a importância da extensão universitária. Introduzi o conceito de transdisciplinaridade junto com o conceito de interdisciplinaridade porque entendo que a transdisciplinaridade é o verdadeiro pulmão de vida da extensão universitária e traz legitimidade na participação desta nos processos de produção de conhecimento e formação profissional. Aliás, a transdisciplinaridade não é só pulmão de vida da extensão universitária, mas ela pode ser também considerada como provocada e alimentada pela mesma dimensão da vida universitária.

Acostumei-me, ao longo dos últimos anos, a pautar o conceito de extensão universitária a partir de um conceito de responsabilidade social universitária – RSU. Mais precisamente a partir de uma experiência de avaliação que está em vigor na Associación de las Universidades Jesuítas de América Latina – Ausjal. Esta rede de universidades instituições de ensino superior vem assumindo, de alguns anos para cá, como uma das referências centrais para o seu sistema de avaliação, o conceito de responsabilidade social universitária – RSU, nos seguintes termos:
“A habilidade e efetividade da universidade em responder às necessidades de transformação da sociedade em que está imersa, mediante o exercício de suas funções substantivas: ensino, pesquisa, extensão e gestão interna. Estas funções devem estar animadas pela busca da promoção da justiça, da solidariedade e da equidade social, mediante a construção de respostas exitosas para atender aos desafios implicados em promover o desenvolvimento humano sustentável.” (Ausjal, 2010, p.23)

Este conceito foi formulado a partir, sobretudo, das contribuições de François Vallaeys (2006), o qual, quando a serviço do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, lançou importantes luzes para a sua operacionalidade. A rede de RSU da Ausjal trabalha o conceito no horizonte amplo de cinco impactos a serem considerados: o educativo, o epistemológico-cognoscitivo, o social, o organizacional e o ambiental.

Uma avaliação atenta destes cinco impactos é caminho fecundo na busca das respostas adequadas às grandes questões postas e, particularmente, às três perguntas que formulamos em relação a “que universidade nós necessitamos”. O horizonte dos cinco impactos referidos é o horizonte de todo projeto político pedagógico de uma universidade, que busca a excelência, e, as perguntas formuladas, bem respondidas, são o conteúdo central para o mesmo.

De fato, as três perguntas que formulamos acima dentro da questão “que universidade nós necessitamos”, só assumem o sentido radical, na medida em que as concebemos em sua transversalidade no horizonte dos cinco impactos aqui pautados:

(Impacto educativo ou de ensino-aprendizagem). A vida universitária gera um impacto direto na formação dos estudantes que dela participam. Influencia no seu modo de entender e interpretar o mundo e na sua relação com a transcendência, consigo mesmo e com os outros, com a sociedade e com todo o meio ambiente. Gera formas de comportamento e de atribuição de valores com relação à vida, ao exercício profissional e ao papel cidadão com vistas à sustentabilidade socioambiental. Por isto é importante que a universidade procure exercer com cuidado
“a gestão socialmente responsável da formação acadêmica e pedagógica, propiciando experiências vivenciais, iniciativas inter e transdisciplinares, interinstitucionais, bem como a reflexão crítica sobre as experiências e iniciativas.” (Ausjal, 2010, p. 26)

É fundamental que o estudante seja estimulado a buscar a excelência em seus estudos. Esta excelência só será completa no compromisso socioambiental. Se o ambiente no qual se dá esta busca estiver contaminado por processos elitistas, excludentes, egoístas e carreiristas, haverá grandes dificuldades para o encaminhamento de um bom “casamento” entre a busca da excelência e o compromisso socioambiental, como algo assimilado no “DNA” do processo educativo.

(Impacto epistemológico-cognoscitivo). A universidade é espaço privilegiado de cultivo de saberes e produção de conhecimentos e inovações tecnológicas. Sobre este privilégio paira uma forte hipoteca social que clama por uma condução responsável. É necessário
“evitar a fragmentação do saber, favorecer a articulação entre tecnociência e sociedade, promover a democratização da ciência e influir na definição e seleção dos problemas da agenda científica da universidade priorizada para o desenvolvimento sustentável e equitativo da sociedade.” (Ausjal, 2010, p.27)

Da mesma forma como no processo educativo, o espaço do cultivo de saberes e da produção de conhecimentos e inovações tecnológicas, quando preservado dos exclusivismos carreiristas, facilitará uma busca da excelência com compromisso socioambiental.

(Impacto social). O impacto sobre a sociedade gerado pela universidade não acontece só pelos profissionais e lideranças que ela forma ou pelos novos conhecimentos e inovações por ela gerados. Ele acontece, também, diretamente, enquanto a universidade é um ator social e uma referência presente na sociedade. Neste sentido, a universidade
“deve promover o progresso por meio de suas ações, gerar capital social, vincular a educação dos estudantes à realidade exterior e atuar como interlocutora para a solução dos problemas.” (Ausjal, 2010, p. 27)

São as ações sociais diretas, através de programas e projetos sociais, que poderão oferecer as condições mais favoráveis para que, na interlocução com o concreto da vida social, a excelência acadêmica não se desgarre e se descaracterize dentro do círculo fechado da academia.

(Impacto organizacional). A cultura organizacional da instituição universitária é o espelho daquilo que esta quer realizar através de sua missão na sociedade. Existem impactos na vida de cada um dos integrantes da comunidade interna a serem considerados. Estes impactos deixam marcas na vida das pessoas, podendo influir, profundamente, na qualidade de todo o resto. Neste sentido a instituição
“deve visar à gestão socialmente responsável da própria universidade, de maneira coerente com os princípios institucionais (…), num ambiente que favoreça a inclusão, a participação e a melhoria contínua.” (Ausjal, 2010, p.27)

A gestão interna da instituição sempre será o espelho da busca da excelência acadêmica somada ao compromisso com a sustentabilidade socioambiental. Ou seja, em sua organização, ao mesmo tempo em que se prima pela qualidade dos serviços, se oferecem os melhores exemplos de inclusão social e de cuidado com o meio ambiente.

(Impacto ambiental). Como as demais organizações, as universidades, no exercício de suas atividades cotidianas, geram impactos ambientais que afetam a sustentabilidade em nível global. Neste sentido, a universidade, também,
“deve contribuir para criar uma cultura de preservação e proteção do ambiente e visar a gestão socialmente responsável dos recursos ambientais disponíveis, em favor das gerações atuais e futuras.” (Ausjal, 2010, p.27)

Da mesma forma como, em nível das ações sociais diretas, expressas nos programas e projetos de extensão, assim também todo o cuidado ambiental desenvolvido pela instituição em seu entorno, oferecerá condições mais favoráveis para uma excelência acadêmica comprometida com a sustentabilidade socioambiental.

A partir destes cinco impactos nós temos condições de questionar o conceito de excelência acadêmica. Ou melhor, temos condições de ressignificar o conceito de excelência acadêmica. Existe, neste sentido, dentro do próprio quadro da Ausjal, uma proposta explícita de repensar o conceito de excelência acadêmica, pontuando o seguinte: Quando os estudantes se reconhecem dentro de um ambiente que dá, claramente, a sua contribuição científica e técnica na busca de respostas aos problemas socioambientais enfrentados, eles se sentirão também mais instigados para um preparo profissional excelente e engajado. Torna-se muito difícil colar o compromisso social e o engajamento cidadão em profissionais que, ao longo de toda a sua formação, foram motivados para a excelência com a finalidade puramente de competição do mercado, como infelizmente frequentemente é praticado… Em um texto voltado para a educação na América Latina, o jesuíta Luiz Ugalde, ex-presidente da Ausjal, sublinha que os profissionais preparados por nossas universidades devem dar conta dos quatro “C”, isto é: devem ser conscientes, competentes, compassivos e comprometidos (Ugalde, 2013). Para universidades comprometidas com a sustentabilidade socioambiental, este é o conceito de excelência acadêmica que fará sentido.

O que Luiz Ugalde sintetiza com as quatro palavras se coloca na radical contracorrente da busca egoística do sucesso, que às vezes contamina certos processos instituídos:
“Aquele que doa a sua vida, ainda que pareça perdê-la, está ganhando. Este mistério da vida é a alma de nossa educação que busca formar homens e mulheres ‘para os demais’ e ‘com os demais’.” (Ugalde, 2013, p. 2)

Um profissional consciente é aquele que alimenta uma atitude de exame, avaliação, autocrítica, transformação e aperfeiçoamento. Trata-se de alguém que desenvolve conscientemente a sua liberdade para decidir e usá-la responsavelmente. Alguém que reconhece a dignidade das outras pessoas. Ama a sua própria realização e a dos outros, pois entende que os demais não são seus objetos, mas pessoas igualmente chamadas a realizar-se num grande coletivo onde ele também está incluído.

Além de consciente, o profissional deve também ser competente. Aliás, ele buscará ser profundamente competente, na medida da sua consciência. O profissional bem qualificado tem mais chances de ter uma ação exitosa. Ser competente significa ter o conhecimento suficiente para proporcionar um serviço com êxito e segurança. Ser competente significa não defraudar os que buscam os bons serviços dessa competência. A incompetência é uma fraude e um risco para os demais.

Uma terceira característica é a solidariedade ou compaixão. Fala-se do profissional capaz de “sentir com”, “sofrer com”, ou seja, de ser solidário com os outros. O profissional compassivo é aquele que reconhece e ama a vida do outro como a sua própria e se solidariza com suas necessidades. É um profissional cuidador, corresponsável e sensível para ver e responder às necessidades dos outros, padecendo com eles e sendo-lhes solidário.

Um profissionalismo assim cultivado, com consciência, competência e compaixão solidária, implicará um profundo compromisso com a realidade. O profissional que formamos deve ser um profissional comprometido com a vida, com a humanidade e com a sustentabilidade do planeta. O compromisso soma consciência e compaixão (solidariedade) com competência para atuar efetivamente na realidade, buscando a causa dos males e a construção de instituições e estruturas de solução. O profissional comprometido busca, com criatividade, novas possibilidades para todos, partindo de uma visão crítica com relação a tudo o que mutila e estraga a sociedade humana e o meio ambiente.

Os processos interdisciplinares e, sobretudo, os transdisciplinares dão as melhores chaves para uma percepção dos principais requisitos desta forma de conceber a excelência acadêmica e sua avaliação. Uma aventura destas é tremendamente difícil e quase inconcebível dentro das estruturas comuns da Academia seccionada em pesquisa, ensino e extensão, seccionada em departamentos, seccionada em faculdades ou centros. É também tremendamente difícil e quase inconcebível dentro de um esquema de produtividade puramente quantitativa e vazia, como vem acontecendo em muitas situações.

Como rever os arranjos organizacionais vigentes?

Sob este pequeno sub-título vou tomar a liberdade de pontuar alguns fragmentos de processos vividos na universidade onde trabalho há mais de quarenta anos.

(Mexendo nas estruturas organizacionais)

O processo vivido pela Unisinos, desde meados da década de 1990, dentro de um processo de planejamento estratégico, com diversos momentos consecutivos, mas buscando um permanente alinhamento, tem a pretensão de propor, entre muitas outras coisas, uma ruptura definitiva com a cultura departamentalizante. Parte-se do entendimento de que um dos maiores problemas que a vida universitária costuma enfrentar é a departamentalização do saber e tudo o que nisto está implicado. A opção pela transdisciplinaridade ganhou força dentro deste contexto, fazendo parte, assim, de todo um processo, que a instituição vive, nos últimos quase vinte anos, no qual devem ser destacadas, pela sua repercussão interna e externa: a extinção dos departamentos (1995) e a extinção dos centros (2003). Trata-se de iniciativas que não foram fáceis e, com certeza, ainda não estão suficientemente assimiladas na vida da própria Unisinos, pois esta vinha de uma história estruturando-se rigidamente em departamentos, muitos deles bastante bem dinamizados. O mesmo também deve ser dito da posterior estrutura de centros, os quais acabaram sendo grandes “departamentões” ou, até, pequenas universidades, sendo colhidos pelo decreto do desmonte, no auge de sua consolidação e promissores planos de futuro.

(Revisitando a história sob o ponto de vista da idéia transdisciplinar)

Um grupo de trabalho dentro do processo de planejamento estratégico empreendeu uma revisitação de projetos e grupos na universidade nos quais havia sinais de abertura interdisciplinar ou transdisciplinar Em nossa revisitação à Universidade um aspecto muito revelador empolgou o grupo: a existência do Instituto Anchietano de Pesquisa – IAP, que é um instituto anterior à própria Unisinos, hoje integrado na Universidade, mas com vínculo direto à mantenedora. Este instituto pauta, desde a sua origem, grande parte de suas atividades por uma clara atitude transdisciplinar. Na outra ponta também deve ser destacada a recente criação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, acontecida em 2001. Trata-se de um instituto com perspectiva claramente transdisciplinar, e vem-se afirmando como um espaço criativo de encontro dos diferentes saberes, na promoção de eventos, grupos de estudo e publicações diversas. Este grupo de trabalho produziu em 2003 uma publicação coletiva, envolvendo as diferentes áreas de conhecimento: “Universidade e Transdisciplinaridade: uma proposta em construção”. (Follmann, J.Ivo; Lobo, Ielbo (orgs), 2003)

(O esforço por instituir uma linguagem institucional)

Outro grupo de trabalho, “grupo de linguagem organizacional”, foi também decisivo em avançar na implantação da “cultura da transdisciplinaridade” retomando, entre outros conceitos, o conceito de transdisciplinaridade, a partir de uma constatação de que existem diversos empregos diferentes do mesmo na própria universidade e a necessidade de se pautar melhor uma mesma linguagem institucionalmente reconhecida, uma vez que se trata de opção da instituição. O grupo apresenta a seguinte formulação: A transdisciplinaridade é uma forma de entender e organizar o conhecimento que se traduz no reconhecimento e integração de saberes oriundos de diferentes perspectivas teóricas, correntes, escolas e tendências dentro das disciplinas e outras fontes de saber não reconhecidas academicamente (tradições míticas, filosóficas, religiosas; artísticas, bem como, o saber popular). (…) A abordagem transdisciplinar é um caminho diverso do caminho da competição e da formação de guetos e recantos de poder. Ao mesmo tempo, considera a contribuição das disciplinas e declara legítimas as metodologias clássicas sem promover a perda das identidades que constituem a diversidade universitária. A transdisciplinaridade tem o compromisso de dar vida e renovar as disciplinas, metodologias e identidades, propondo uma nova ordem, mais complexa e, portanto, adequada à realidade.(8)

(Estruturas curriculares proporcionando formação integral)

Mas não bastam mexidas na estrutura organizacional e de linguagem. As mexidas mais fundas devem ser na própria sala de aula e no processo ensino-aprendizagem. O grande desafio que se impõe à universidade é a formação integral daqueles que buscam na academia a sua capacitação para o exercício profissional. É um desafio porque, a par das rápidas mudanças que vivemos e do esclerosamento relativamente fácil de profissões constituídas, a humanidade está, mais do que nunca, à beira de danos irreparáveis, causados por uma ilustração tecnocientífica muitas vezes amparada em fundamentos de consistência duvidosa. Tal contexto exige a presença de profissionais humanamente integrados, capazes de enxergar e criar, além dos limites dos pequenos mundos de suas especialidades.

Refletindo sobre o processo do cultivo da ideia de transdisciplinaridade na universidade em que trabalho, alimentei a convicção de que o passo mais importante dado para isso foi anterior à própria discussão deste conceito na instituição. Foi quando a instituição estabeleceu um conjunto de conteúdos em cada currículo de curso com o objetivo de promover o que foi chamado de “formação humanística”. Isso foi e continua sendo efetivamente uma semente fecunda para a cultura da transdisciplinaridade, dentro do “que fazer” universitário. O objetivo central da proposta de formação humanística era e é o de ajudar os estudantes, de todos os cursos, a abrirem os horizontes de seus entendimentos especializados e disciplinares para uma compreensão mais ampla de comprometimento com o ser humano, enquanto tal, para as exigências éticas envolvidas nisso e para a importância de nossa inserção latino-americana no grande movimento da história que vivemos.

A transdisciplinaridade supõe, entre outras coisas, sobretudo, a predisposição das disciplinas no sentido de se deixarem interrogar, permanentemente, de fora. As atividades de formação humanística podem ser entendidas, neste sentido, como um conjunto de “interrogantes externos”, na medida em que apontam para três horizontes de importância fundamental: as interrogações antropológicas, as interrogações éticas e as interrogações históricas de cidadãos do mundo, responsavelmente situados no continente latino-americano.

(Trazendo a extensão para dentro do espaço de ensino-aprendizagem)

Às vezes, ouvimos, com razão, comentários de que as oportunidades de uma verdadeira extensão universitária são muito restritas e se torna inviável pensar a extensão como um processo efetivamente integrado na formação de todos os estudantes e muito menos de pensá-la como partícipe ou integrada nos processos de pesquisa e de produção do conhecimento.

Com todas as facilidades tecnológicas e de comunicação existentes hoje, deveríamos sentir-nos mais desafiados a trazer (ou levar) a extensão universitária para dentro das salas de aula e para dentro dos nossos laboratórios de pesquisa. É evidente que é totalmente impossível e mesmo impróprio pensar em proporcionar a todos os estudantes contatos presenciais com diferentes problemáticas dentro do processo socioambiental, mas isto não nos pode eximir de cuidar ao máximo para proporcionar este contato com aquilo que a tecnologia e as facilidades de comunicação hoje proporcionam. Repensar a extensão universitária significa, sobretudo, repensar a sala de aula e o processo de ensino-aprendizagem e o conceito de laboratório. Significa impregnar esses ambientes (ou processos) com a cultura da transdisciplinaridade.

Anotações conclusivas…

Vou concluir de uma forma parecida com o que fiz em uma recente palestra no VII Congresso Nacional de Ensino Religioso, na Universidade Federal de Juiz de Fóra, MG, trazendo três pequenas anotações: uma primeira traz em seu centro a palavra humildade, uma segunda traz em seu centro a palavra conversão e a terceira faz culminar a nossa reflexão com a palavra amor. Peço licença para ser coerente com o que acabo de dizer sobre a importância da transdisciplinaridade: humildade, conversão e amor são posturas humanas repletas de muito saber e, com certeza, um ótimo condimento dentro do processo de produção de conhecimento.

Quero, neste sentido, manifestar o meu apreço ao antropólogo Otávio Guilherme Velho (2005), o qual em uma entrevista para a Revista IHU On Line usou a palavra “humildade”. A partir da percepção deste antropólogo é fundamental que as ciências sociais e os estudos da sociedade no Brasil, mais do que nunca, se desfaçam de certos ranços que ainda dominam a academia brasileira, para assumir com humildade um olhar mais atento, de forma transdisciplinar, para a dimensão religiosa da sociedade, condição fundamental para uma compreensão em profundidade desta mesma sociedade.

Dando agora um salto da lembrança de um cientista social como é Otávio Guilherme Velho, para um meio religioso, num grupo de meditação dentro do Movimento Brahma Kumaris onde um dia estive presente. Alguém, no final, chamou a atenção de todos para: “Só um minuto!”… “Convidamos você a fazer esta experiência: a cada hora, interrompa a sua ação e o fluxo do seu pensamento, com a seguinte mensagem: Sou um ser especial, somos seres especiais e com outros seres especiais dançamos e formamos a ‘ciranda da vida’.” (BK) É a idéia do Ano Sabático, em forma de comprimido, pensei comigo… Trata-se do momento de retomar a visão do todo. Momento de fazer as pazes conosco mesmos. Momento de conversão: de fazer convergir a nossa dispersão, o nosso todo disperso… Fiquei pensando: talvez necessitemos, efetivamente, mais disso. Para que o nosso conhecimento e os nossos processos de produção de conhecimento sejam mais verdadeiros, precisamos de humildade e de conversão.

Tanto o movimento de humildade (o de se esvaziar das próprias certezas), quanto o movimento de conversão (o de no silencio contemplativo fazer convergir no próprio ser, toda multiforme grandeza que o habita) são condições fundamentais para exercer o trabalho de produção de conhecimento e de formação de profissionais com amor. Onde há amor, a vida é gerada, a vida é cultivada e a vida é cuidada. Ela se torna vida em abundância.

Para encerrar faço reverência à Mãe de Santo, que me introduziu e digo: “É necessário que coloquemos os condimentos da humildade, da conversão e do amor na produção do conhecimento e formação de profissionais para que os nossos conhecimentos nos levem a fazer menos bobagens e os profissionais que ajudamos a formar façam menos bobagens”.

Notas:

  1. Francisco Xavier, missionário jesuíta, dentro da visão de mundo por ele refletida, falava nos valores cristãos que deveriam chegar a todo o mundo. (As cartas eram usuais no governo da Ordem dos Jesuítas).
  2. Ialorixá Dolores Senhorinha Dornelles, Associação Africanista Santo Antonio de Categeró, São Leopoldo, RS.
  3. Ubiratan D’Ambrósio, 2003, em conferência no Seminário de Formação Docente, na Unisinos.
  4. Não são momentos, nem fases no processo de aquisição do conhecimento, como muito bem detalha Pierre Weil in Weil, P., D’Ambrosio, U. e Crema, R., 1993, p.9-75
  5. O conceito de transdisciplinaridade é objeto de debate desde quando foi empregado pela primeira vez por J. Piaget. Um Centro de importante referência internacional é o CIRET (Centre International de Recherches et Ètudes Transdisciplinaires), fundado na França em 1987. No Brasil existem diversos Centros, destacando-se o CETRANS da USP (Centro de Estudos Transdisciplinares) e o IEAT da UFMG (Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares).
  6. (Para muitos o conceito de transdisciplinaridade ainda não amadureceu suficientemente para um uso produtivo na Academia e preferem restringir os limites mais avançados da mesma para a proposta de interdisciplinaridade, concentrando nela a necessária abertura ao diálogo e inovação epistemológica.)
  7. Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e SESu / MEC. Plano Nacional de Extensão. (Edição Atualizada, 2000/2001).
  8. Grupo “Linguagem Organizacional”, Unisinos

Referências bibliográficas

AUSJAL – Associação das Universidades Jesuítas da América Latina. Políticas e Sistema de Autoavaliação e Gestão da Responsabilidade Social Universitária da Ausjal. São Leopoldo: Edunisinos, 2010.

FOLLMANN, J. Ivo; LOBO, Ielbo M. (orgs). Transdisciplinaridade e Universidade: uma proposta em construção. São Leopoldo: Edunisinos, 2003.

FOLLMANN, J. Ivo. Universidade e sociedade; uma relação que se ressignifica. In: AUDY, Jorge Luis Nicolas; MOROSINI, Marília Costa (orgs). Inovação e Qualidade na Universidade. Porto Alegre: EdiPucrs, 2008, p. 313-323.

NICOLESCU, Basarab. Educação e transdisciplinaridade. Brasília: Ed. Unesco Brasil, 2000.

UGALDE, Luiz. Conscientes, Competentes, Compasivos y Comprometidos; por una educación de calidad en la perspectiva ignaciana. RJ.: CPAL, 2013 (texto inédito).

VALLAYES, François. Que Significa Responsabilidade Social Universitária. Revista Estudos. São Paulo: ABMES – Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior, Ano 24, N. 36, 2006, pp. 35-56.

VELHO, Otávio Guilherme. Ciências Sociais e Religião. In Faustino Teixeira; Renata Menezes (orgs.). Religiões no Brasil. IHU On Line. (Número especial sobre as Religiões no Brasil) Ano 4, n.169, 19 de dezembro de 2005, pp. 8-10.

WEIL, P.; D’AMBROSIO, U.; CREMA, R. Rumo à nova transdisciplinaridade; sistemas abertos de conhecimento. São Paulo: Ed.Summus, 1993.

A CATEGORIA DE RAÇA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS: RETOMANDO A MEMÓRIA DE ALGUNS PROCESSOS DE ORDEM POLÍTICA, SOCIAL E CULTURAL NA HISTÓRIA DO BRASIL.

Publicado como artigo na Revista Ciências Sociais Unisinos, em 2013. (Artigo em coautoria com Adevanir Aparecida Pinheiro)

Falar de raça é urgente e necessário, no Brasil.

José Ivo Follmann e Adevanir Aparecida Pinheiro (*)

Artigo publicado na Revista Ciências Sociais Unisinos. 49 (1), 2013, pp. 26-29. (O texto reproduz uma reflexão realizada a partir de alguns textos em coautoria com Adevanir Aparecida Pinheiro e apresentada por José Ivo Follmann em uma Mesa Redonda, dialogando com José Carlos dos Anjos).

Introdução

Para entrar neste debate depois da fala de José Carlos dos Anjos, é, em primeiro lugar, necessário que eu diga que concordo com a reflexão e a argumentação dele.(1) O palestrante buscou estabelecer um caminho de compreensão da eclosão da categoria raça em Cabo Verde e da sua eclosão no contexto brasileiro. Trata-se de um caminho bastante provocativo e gerador de avanço na reflexão. Partindo de leituras apuradas da história das relações de raça na Ilha de Santiago, Cabo Verde e de aspectos do processo de relações entre brancos e negros no Brasil, o palestrante destacou, por um lado, que em Cabo Verde a categoria raça eclodiu como “racialidade” diferenciada de parte dos brancos, o que, depois, ao longo do tempo, se tornou insustentável e degenerou, enquanto, por outro lado, no Brasil a categoria raça eclodiu em diversos momentos como reação a um Estado que se caracterizou historicamente por sua ação permanente para desmantelar a ideia de raça e de Brasil como sociedade de raças.

Lamento muito em não poder contar aqui com a presença da coordenadora de nosso NEABI – Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas, – e que comigo coordena pesquisas na temática, pois as reflexões que tenho sobre esta questão são todas construídas em coautoria com ela. Os principais aspectos do que aqui vou falar, reproduzem, de uma forma revisada e ampliada, extratos de textos elaborados e publicados em coautoria com esta professora. Trata-se de pontos que reforçam, complementam a reflexão rica e provocativa do palestrante e, em alguns aspectos, acrescentam elementos diferenciados para uma compreensão mais ampla de seu argumento.

Três mecanismos de esquecimento

Em um artigo recentemente publicado em Cadernos de Extensão VII, com o título “Trabalho de Extensão Universitária com Afrodescendentes: Refazendo Laços e Desatando Nós” (Pinheiro e Follmann, 2012) sublinhamos a importância de se “fazer a memória dos muitos mecanismos de esquecimento aos quais os negros trazidos para o Brasil foram submetidos”. (Pinheiro e Follmann, 2012, p. 106). Talvez, agora, a partir das reflexões pertinentes de José Carlos dos Anjos, possamos alimentar a hipótese de que o Estado brasileiro, enquanto repressor da ideia de sociedade de raças no Brasil, pode ser entendido como um Estado que encontrou nesses mecanismos o seu principal respaldo para conseguir adiar por tanto tempo a verdadeira eclosão de raça neste país.

Entre os mecanismos que lembramos, ocupa referência central, talvez não pela sua frequência, mas pela sua força simbólica, uma das práticas mais explícitas e perversas de alienação conhecidas, que é a imagem da “árvore do esquecimento”. (2)

Mencionamos, também, naquele artigo, por um lado, a imposição de uma nova religião, e, por outro lado, a desestruturação violenta dos laços familiares, misturando clãs e etnias, como outros dois “mecanismos de esquecimento” bastante conhecidos. Existe importante documentação sobre esses dois processos. O que deve ser destacado, aqui, é a função exercida por esses processos no sentido do desmonte e do esquecimento das raízes étnicas, culturais e religiosas dos sujeitos africanos trazidos à força para o Brasil através do tráfico de escravos.

Não se pode, no entanto, dizer que esses mecanismos conseguiram suplantar radicalmente a ideia de raça no Brasil… Mesmo que a categoria raça não tenha eclodido com vigor devido ao contexto de dominação das mentes e do coração, ela nunca deixou de dar mostras de sua fervura potencial.

A “árvore do esquecimento” não deve ser estritamente ligada à ideia de alienação (Follmann, 2012) mesmo que esta fosse a intenção dos traficantes. Era à sombra das árvores que os “Griots” (sábios, contadores de história), especificamente, transmitiam toda robustez dos ensinamentos culturais passando seus valores de geração a geração. Tratava-se de uma referência cultural muito profunda. Pode-se auferir daí que um ritual de esquecimento tenha, em muitos casos, assumido, na dor, o significado de ritual de resistência e reafirmação das raízes culturais, que jamais poderiam ser esquecidas. (3)

Assim como a resistência à violência simbólica representada na “árvore do esquecimento”, também, as tradições religiosas, que a imposição do catolicismo oficial quis apagar, foram conservadas e resistiram, sendo permanente motivo de reavivamento da memória. Os sujeitos africanos, mesmo na situação de escravizados resistiram de forma inteligente, reinventando as suas tradições religiosas sob o disfarce e camuflagem católicos.

Também a fatídica separação das famílias e povos, que foi talvez o sofrimento mais doloroso e que deixou marcas muito pesadas na maioria dos afrodescendentes brasileiros, não conseguiu matar a essência do grande senso de solidariedade e profundo sentir de família daquelas culturas.

Concluíamos naquele escrito que essas considerações nos fazem perceber que, no caso dos negros feitos escravos e submetidos a práticas perversas de alienação, se repete de forma talvez paradigmática o que se conhece em muitas outras situações na história da humanidade: ninguém ou nada consegue aniquilar (ou alienar totalmente) as consciências humanas.

Uso de teorias racistas

Lembramos, em segundo lugar, naquele texto o uso de teorias racistas, com a precípua função de legitimar os empreendimentos de escravização dos negros africanos. Trata-se de um agravante que acompanhou as práticas e os mecanismos aqui mencionados. Para além da busca de legitimar a escravização, essas teorias foram mais longe, patrocinando intelectualmente políticas de branqueamento nacional. Os escritos de José Arthur Conde de Gobineau (década de 60 e 70 do século XIX) foram particularmente marcantes neste sentido. Segundo o mesmo, as raças “inferiores” (africanas) mesclando-se com outras raças “superiores” (européias) estariam levando o Brasil a uma degenerescência, sem futuro. Dentro da lógica de seu pensamento, pode-se dizer que, segundo ele a vinda de maior número de brancos para o Brasil era uma necessidade urgente e fazia-se também urgente preservar os brancos da contaminação do sangue negro… (4)

Políticas de branqueamento

Em terceiro lugar, foram lembradas as políticas de branqueamento da sociedade brasileira, como políticas afirmativas em favor dos imigrantes brancos eurodescendentes, em flagrante descaso com relação aos negros. Essas políticas marcaram o período de processo de abolição da escravatura e o período pós-abolição, evidenciando um processo de “purificação racial” e de “desafricanização” do Brasil.

As políticas de branqueamento, respaldadas nas teorias propaladas pelo Conde de Gobineau, foram sendo, aos poucos, radicalmente contestadas em sua intencionalidade perversa. Destaca-se a lucidez sociológica de Florestan Fernandes, segundo o qual o grande projeto chamado de “ordem social”, pós-abolição da escravatura, pode ser definido como um projeto elaborado por brancos e feito para os brancos. A sociedade brasileira organizou-se na virada do século XIX para o século XX, num formato de reprodução das desigualdades sociais e raciais, negando uma ordem justa e afirmativa para a população dos ex-escravos. A sociedade brasileira cultivou a reprodução do “senso comum de discriminação” e, na esteira de uma perversidade silenciosa, a população negra ficou relegada a uma quase invisibilidade. Quando José Carlos dos Anjos fala do Estado brasileiro como um Estado negador do Brasil como sociedade de raças, está falando, sobretudo, disto, desta invisibilização dos negros.

Florestan Fernandes (1972), avaliando o modo como a sociedade se organizou no período pós-abolição, comentou que:

Não é de se estranhar, (…), que os setores favorecidos pela dinamização do desenvolvimento capitalista voltassem as costas ao drama humano dos descendentes dos ex-escravos e, ainda mais, que ignorassem as implicações negativas da falta de integração da sociedade nacional ao nível das relações raciais. (Fernandes, 1972, p.31)

Em síntese, chamamos a atenção para o fato de que a história brasileira está marcada por um conjunto de práticas ou mecanismos de esquecimento que tentaram subjugar a mente e o coração dos negros africanos que foram escravizados e traficados para o Brasil. Entre estes mecanismos destacamos: o “ritual” da árvore do esquecimento; a imposição de uma nova religião oficial; a desagregação dos grupos de parentesco e das etnias. Referimos também que nunca faltaram resistências de toda ordem a esses mecanismos e práticas. Essas resistências certamente teriam sido mais vigorosas e ágeis, se não tivessem se deparado com a perversidade intelectual das teorias racistas na “justificação” da escravidão e a perversidade política que organizou a sociedade brasileira pós-escravidão de forma a buscar o branqueamento. Estes foram os dois entraves mais complicados, para que as resistências mencionadas pudessem aflorar com mais vigor.

Importância do conceito de “afrodescendentes”

Em outro artigo sobre “Afrodescendentes em São Leopoldo: memória coletiva e processos de identidade”, publicado na Revista Ciências Sociais Unisinos (Follmann e Pinheiro, 2011) lembrávamos que por muito tempo a África foi estudada como um continente de “negros selvagens”. Isto construiu uma concepção muito pejorativa do Continente Africano e é permanentemente reforçado pelas atuais notícias sobre desgraças que acontecem em diferentes países daquele continente, reduzindo a imagem de suas sociedades a um submundo de selvageria que precisa da benevolência e da piedade dos povos civilizados e evoluídos.

Já na primeira metade do século passado, Ramos (1946) nos alertava do embuste de tudo isto. Segundo este autor, trata-se de uma invenção europeia para justificar o tráfico e a exploração colonial.

Não queremos voltar à avaliação das justificativas perversas do tráfico escravo e da exploração colonial, que reaparecem continuamente com novas formas. O que interessa ressaltar, aqui, é o quanto isto afetou e afeta diretamente a vida psíquica de milhões de sujeitos, ligados às etnias de afrodescendentes. Foram gerados processos de identidade perversos no seio da população negra. Além de perversos, esses processos continuam sendo mantidos e cultivados no senso comum e na cultura popular, sobretudo, por força das notícias que são reproduzidas sobre o Continente Africano.

Estereótipos misturados com desconhecimento, por um lado, e desatenção histórica misturada com medo, por outro lado, geram muita confusão e sofrimento. São confusões e sofrimentos reproduzidos também pelos silêncios da academia. É contra os silêncios da academia, ou os falsos conhecimentos da mesma, que a Lei 10639/2003, se insurgiu e trouxe novo direcionamento em resposta a toda uma viva eclosão da categoria raça pelo viés de movimentos negros sempre mais visíveis e fortalecidos ao longo das últimas três décadas no Brasil.

Dentro do contexto estudado, o conceito de “afrodescendentes” dá conta do que normalmente se entende por “afro-brasileiros”, destacando-se, no entanto, as raízes históricas africanas e a consciência de descender de culturas provenientes de um continente, portador de um processo histórico e cultural muito rico e pouco conhecido ou, até, esquecido ocultado. Este nosso argumento se vê reforçado, sobretudo, pelo grande significado da Conferência Mundial de Durban em 2001 , (5) na qual a internacionalidade da afrodescendência foi evidenciada como uma realidade muito mais ampla que a afro-brasilidade.

Visa-se com este conceito ajudar a romper o processo desencadeado pela “árvore do esquecimento” e outros mecanismos e práticas de alienação e esquecimento. Já vimos como, junto a cada um dos mecanismos ou práticas que referimos, foram identificáveis importantes estratégias de resistência e como essas resistências foram retardadas tanto pelas teorias racistas como pelas políticas afirmativas do branqueamento. O termo afrodescendente revela uma tomada de posição afirmativa para refazer um elo da história que foi escondido. Ao se dizer afrodescendente se aguça a curiosidade por saber de suas origens e se multiplicam as interrogações sobre os “porquês” do esquecimento… Ao se dizer afrodescendente, abre-se um horizonte de interrogações e de buscas que visam reconstruir o fio da história, que, por muito tempo, foi considerada perdida, mas que revive na memória que não se apagou. O conceito de “afrodescendentes” ajuda a eclosão da categoria raça. No senso comum reina uma terminologia que em grande parte nasceu embebida nos mecanismos e práticas de esquecimento e alienação. O conceito de “afrobrasileiros” não apresenta a força heurística de “afrodescendentes”, pois sugere, implicitamente, uma história construída no horizonte do mito da “democracia racial” brasileira.

Importância da emergência da categoria raça

A tríplice referência ou o tríplice horizonte (tenebroso) iluminador, apontado acima, nos leva, também, a acolher a importância do conceito de raça, como um conceito político e gerador de conhecimento. Falar em raça negra frente à raça branca tem um poder mobilizador muito grande, inclusive para a geração de um conhecimento efetivo que consiga fazer justiça frente aos desmandos históricos que são conhecidos.

Já é página virada na história a polêmica em torno das diferentes raças humanas em termos genéticos. Existe só uma raça humana e é muito provável que a humanidade tenha as suas raízes históricas mais antigas nas áreas que hoje são conhecidas como continente africano.

Aliás, quando se fala raça, parece que se visualiza exclusivamente a raça negra. Talvez se tenha que voltar à pergunta sobre a “raça branca”… Trata-se de uma chave invertida com relação ao que lembrou José Carlos dos Anjos em sua fala sobre a realidade da Ilha de Santiago, Cabo Verde, onde a eclosão raça se deu pelo viés da raça branca. É uma questão embaraçosa e que gera normalmente perplexidades, além do profundo silêncio que gera nos sujeitos de raça branca. É talvez tão ou mais embaraçosa que a questão que pergunta pelos “projetos dos afrodescendentes”… Não existe raça branca, assim como não existe raça negra! Contudo, não devemos esquecer que a raça branca se impôs como hegemônica no mundo ocidental afirmando (politicamente) a inferioridade das outras raças. É necessário que a questão do embotamento da consciência branca eurodescendente (e eurocêntrica) seja trazida ao centro do debate.

Trata-se de uma consciência que permanece, muitas vezes, algemada no seu senso de superioridade. São inúmeros os aspectos históricos relacionados a isso, que, no entanto, mereceram pouca atenção no contexto social e acadêmico brasileiros. Esses aspectos são muitas vezes camuflados para não mostrar ou evidenciar as fragilidades e as vergonhas da parte da população sempre (auto) considerada superior. (Pinheiro, 2011)

Referências bibliográficas:

FERNANDES, Florestan. O Negro no Mundo dos Brancos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1972.

FOLLMANN, José Ivo. Processos e identidade versus processos de alienação. Rev. Identidades!. 2012.

FOLLMANN, José Ivo; PINHEIRO, Adevanir Ap.. Afrodescendentes em São Leopoldo: memória coletiva e processos de identidade. Ciências Sociais Unisinos. N. 47(2), 2011, p. 141-152.

PINHEIRO, Adevanir Aparecida. Identidade Étnico-Racial e Universidade: A dinâmica da visibilidade da temática afrodescendente e as implicações eurodescendentes, em três instituições de ensino superior no sul do País. São Leopoldo: Tese Doutorado em Ciências Sociais, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2011. 375p.

PINHEIRO, Adevanir Ap.; FOLLMANN, José Ivo. Trabalho de Extensão Universitária com Afrodescendentes: Refazendo Laços e Desatando Nós. Cadernos de Extensão VII. Ed. Unisinos, 2012, pp. 105-112.

RAMOS, Arthur. As Culturas Negras no Mundo Novo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946 (2ª ed. ampliada).

Autores:

(*) José Ivo Follmann: Sociólogo. Jesuíta. Doutor em Sociologia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Unisinos. Assessor do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – Neabi, Unisinos

(*) Adevanir Aparecida Pinheiro: Assistente Social, Doutora em Ciências Sociais. Professora de Graduação na Unisinos. Coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – Neabi, Unisinos. (A redação final revista e ampliada do presente texto, mesmo mantido na forma de interlocação pessoal do painelista, foi retomada em coautoria com a Profa. Dra Adevanir Aparecida Pinheiro em coerência ao fato de grande parte do que foi apresentado no painel esteve baseado também em textos precedentes escritos em coautoria com a mesma.)

Notas:

1.Na palestra, o Prof. Dr. José Carlos dos Anjos explicitou com detalhes o argumento de que na Ilha de Santiago, Cabo Verde, a eclosão da categoria raça se dá pelo viés da afirmação da elite branca portuguesa, na esteira do Estado Imperialista Português, mas esta categoria implode com o tempo, por degenerescência. Ou seja, a categoria raça eclode pelo discurso e prática afirmativa do Estado para distinguir o branco e posteriormente implode apesar da persistência da elite em afirmar a branquidade. No Brasil o Estado se empenha em reprimir a ideia de sermos uma sociedade de raças, mas a categoria raça eclode, pela mão do movimento negro. Não só eclode, em diversos momentos, mas persiste e insiste, à revelia das ações do Estado.

2. Durante grande parte do período de tráfico dos africanos escravos para o continente americano, e especificamente para o Brasil, eles eram submetidos a um ritual antes de serem embarcados. Era um ritual para esquecerem o seu passado… Eram obrigados a dar voltas em redor de uma árvore, a chamada “árvore do esquecimento”. Ao serem capturados e importados do continente africano para outros países e para o Brasil, eles eram obrigados a fazerem o ritual de esquecimento, ou seja, os homens tinham que dar nove voltas em torno da árvore do esquecimento e as mulheres davam sete voltas. Esta “árvore do esquecimento” continua, depois, se repetindo sob as mais diferentes formas ao longo do processo de escravidão e pós-escravidão…

3. A árvore do “Baobá ou embondeiro” significava para os africanos o lugar do conhecimento e contos das histórias dos antepassados, passando de geração em geração. Os traficantes de escravos ao se darem conta da importância disso para os escravos, determinavam a prática do apagamento da memória e identidade. O “baobá ou embondeiro” passou assim também a ser conhecido como a “árvore do esquecimento”. OS GRIOTS. Disponível em http://minhavidanaafrica.blogspot.com.br/2009/12/blog-post.html (Acessado em 10 de maio de 2012).

4. Ver José Arthur Conde de Gobineau. L’Emigration au Brésil, 1874, in Georges Raeders, 1988.

5. Conferência Mundial contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a intolerência asociada, que se organizou em Durban na África do Sul em setembro 2001.

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Este BLOG é de criação recente e tem como finalidade facilitar o acesso a textos e registros do autor, em sua relação com diferentes círculos de diálogo e de reflexão. Trata-se de uma espécie de “baú” ou “balaio” onde se encontram coisas novas e velhas de produção do autor. Os textos e outros registros do autor vão sendo postados na medida de demandas criadas. Em geral se trata de textos escritos e publicados ao longo de toda trajetória de produção intelectual do autor. Além dos textos, houve, também, um recente estímulo para colocar alguns registros fotográficos mais significativos da própria trajetória do autor.

PROCESSOS DE IDENTIDADE VERSUS PROCESSOS DE ALIENAÇÃO: ALGUMAS INTERROGAÇÕES.

Artigo publicado na Revista Identidades, em 2012

O ser humano é um ser de projeto

José Ivo Follmann*

Artigo publicado na Revista IDENTIDADE! Escola Superior de Teologia – EST, v. 17, n.1, 2012, pp. 83-90.

Sempre que se fala em identidades ou, melhor, em processos de identidade, vêm à mente, em primeiro plano, ideias de singularidades diferentes, de alteridades e de processos alternativos ou, mesmo, de processos de oposição. Muitas vezes isto desvia a nossa atenção de uma questão chave que são os processos de alienação. Trata-se de algo fundamental termos presente que estes processos são, a rigor, a negação (ou esvaziamento) dos processos de identidade. O exercício de reflexão para construir o conceito de processo de identidade nos ajuda a não deixarmos este aspecto de lado.

A. Touraine (1993) quando trata deste tema em sua teoria sobre os movimentos sociais, nos reporta à seguinte reflexão: “os movimentos sociais (…), o da classe superior e o da classe popular, (…), não estão em relação de igualdade, não estão na situação de dois cavaleiros (nas mesmas condições) se opondo em um torneio. A situação de conflito é, também, em seu início, uma relação de dominação.” (p.339) O autor conclui: “a consciência popular pode ser dominada pela alienação; ela o é quando não se forma um movimento social”. (p.339)

Nesta perspectiva, encontramos, também, ricas sugestões nas reflexões feitas por T. Evers (1984), quando ele em seus estudos sobre os movimentos sociais na América Latina contrapõe à ideia de identidade a ideia de alienação. O autor faz desta oposição um dos pontos centrais em um artigo em que se interroga sobre o “novo” dos “novos movimentos sociais” na América Latina.

Isto nos reporta a P. Berger (1971), o qual nos lembra da importante oposição entre a dinâmica do “opus proprium” e do “opus alienum”.(1) O ser humano, quando se percebe apenas como sujeitado a projetos de outrem, não suporta, ou seja, não se realiza e não desenvolve a sua autoestima enquanto sujeito. Também não se pode falar em construir processo de identidade dos outros ou para os outros… Para nós, um processo de identidade não existe a não ser na forma de manifestação da capacidade autônoma dos indivíduos e grupos na construção de sua história.

A luta pela “autonomização” de identidade expressa uma insubmissão aos processos que são dados, rejeitando, também, todo o tipo de alienação, seja ela prática ou teórica (Chauí, 1982). A identidade não pode ser encontrada dentro de estruturas autoritárias e, mais que isso, exclui a uniformidade: só pode se desenvolver na diversidade, que requer um cenário político no qual ‘todas as vozes, todas’ (como diz uma canção chilena) possam ser escutadas (Evers, 1984).

Com a ideia de processo de identidade, supera-se a simples oposição entre o “passado” e o “futuro”, entre as “trajetórias” e os “projetos”. Segundo F. Debuyst (1992), identidade não é somente a herança histórica, mas é também a maneira com que esta herança é atualizada, comportando reações próprias frente aos desafios atuais. Na verdade, a relação entre a dimensão projetiva, ou seja, da busca e abertura para o futuro, e a história passada, com tudo o que isto significa em termos de experiências acumuladas, é fundamental para a análise das realidades sociais mais diversas.

No que diz respeito ao processo de identidade, isto toma, contudo, uma significação ainda mais acentuada. É na maneira com que um indivíduo ou um grupo (uma coletividade) estabelece a relação entre seu futuro e seu passado ou, ainda, entre seus projetos e suas trajetórias, que temos, de forma particular, as indicações principais para desvendar quais são os definidores de seus processos de identidade. Pode-se definir processo de identidade como a busca constante de estabelecer coerência lógica entre as experiências vividas e aquilo que se tem como objetivo (Remy; Voye; Servais, 1991 e Ruscheinsky, 1990).

Além desta permanente busca na construção da coerência lógica entre as experiências vividas e os rumos da vida que vão sendo traçados, os processos de identidade se dão dentro de uma complexa relação entre as individualidades e as coletividades, que acontecem por meio das mais diversas esferas de sociabilidade ou dimensões da vida social. Uma das esferas de sociabilidade ou dimensões mais profundas da vida social é a esfera ou dimensão das relações étnicorraciais. Muito já se debateu a respeito dos movimentos e organizações dos afrodescendentes no Brasil. O debate acumulado e os diversos estudos deveriam permitir que a temática pudesse fluir mais facilmente, hoje, tanto no meio acadêmico como no convívio cotidiano, mas não é o que acontece. Não acontece porque subsistem questões não resolvidas. Uma dessas questões não resolvidas tem a ver com problemas de acesso à autocompreensão dos próprios processos de identidade. Ou, talvez, formulando em termos mais radicais, tem a ver com processos de alienação sofridos. Estamos referindo “processos de identidade” e “processos de alienação” tanto de negros como de brancos…(2)

Muitas vezes já se ouviu falar dos diversos mecanismos e práticas voltados para o esquecimento e alienação da população de escravos. Entre esses mecanismos e práticas devem ser destacados três: a chamada “árvore do esquecimento”,(3) a imposição de uma nova religião oficial e forçada dispersão e separação das famílias e culturas. Sabemos como, no bojo de cada um desses mecanismos e em reação aos mesmos, foram geradas resistências inteligentes e muito consistentes. Esses movimentos e práticas de resistência só não tomaram maior visibilidade e vigor nos processos de identidade da população afrodescendente no Brasil, porque o forte entrave, por um lado, da forma perversa como as teorias racistas foram usadas para atingir a alma dos escravos e ex-escravos e, por outro lado, do embuste das políticas de branqueamento provocadas pelas mesmas teorias racistas, representou um freio perverso e dobrado. (Pinheiro e Follmann, 2012)

Retomando a formulação da noção de identidade que apresentamos em um artigo anterior (Follmann, 2001), e levando em conta novos avanços em nossas reflexões e estudos, sublinhamos aqui que processos de identidade envolvem dinâmicas coletivas, dinâmicas individuais e dinâmicas que expressam interações entre o nível individual e o nível coletivo, colocando em permanente diálogo valores socialmente propostos ou disciplinados e valores pessoalmente buscados ou reivindicados.

São processos que se dão tanto para outrem como para si mesmo, tendo por resultado sempre uma “costura” de uma parte, entre o que é “herdado” e o que é “almejado” e, de outra parte, entre o que é “atribuído” e o que é “assumido”. Em nossa tese doutoral (Follmann, 1993) procuramos demonstrar que um caminho para abarcar os aspectos essenciais de tudo isso seria o de se colocar os projetos, os motivos, as práticas – as estratégias – e as trajetórias vividas, em permanente relação, nos três níveis acima apontados. Esses processos acontecem nas diferentes esferas de sociabilidade ou dimensões da vida social. Neste sentido podemos falar em “processos étnicorraciais de identidade” assim como em “processos religiosos de identidade”, “processos regionais de identidade” ou “processos profissionais de identidade”, etc.

É oportuno que lembremos toda a complexidade envolvida nos processos de identidade… Eles acontecem na “permanente interação entre os sujeitos, diferenciando-se e considerados diferentes uns dos outros ou assemelhando-se e considerados semelhantes uns aos outros, e carregando em si as trajetórias vividas por estes sujeitos, em nível individual e coletivo e na interação entre os dois, os motivos pelos quais eles são movidos (as suas maneiras de agir, a intensidade da adesão e o senso estratégico de que são portadores) em função de seus diferentes projetos, individuais e coletivos.” (Follmann, 2001, p.59)

Alguém um dia, em uma Oficina com Afrodescendentes (em Projeto de Extensão da Universidade), levantou uma questão que nos deixou muito pensativo: “quais são os projetos dos afrodescendentes”? Não estariam os negros sendo, simplesmente, reduzidos a viver segundo os projetos de uma sociedade branca? A pergunta pairou no ar… E nós passamos a ampliar a questão: onde reside efetivamente o “opus proprium” e o que é “opus alienum” no seu modo comportamental? Por que os afrodescendentes em um meio como o de São Leopoldo, por exemplo, têm tanta dificuldade de se afirmarem como afrodescendentes? E mais, quais são os projetos individuais e coletivos em função dos quais se orientam seus processos de identidade? O que dizer dos processos de interação entre os afrodescendentes e a relação dos mesmos com os que não são afrodescendentes, no passado e no presente, considerando os complexos caminhos de aproximações e distanciamentos e considerando as estratégias envolvidas nesses processos? Por que é tão difícil ser um afrodescendente neste país que é a segunda maior população negra do mundo?

Educação das Relações Étnicorraciais significa, sobretudo, dar conta dessas e de outras questões, para denunciar, por um lado, os processos de alienação e desvelar, por outro, os processos de identidade, que formataram a história de nossa sociedade. Só assim se terá efetivas condições para a construção consistente de um futuro cidadão.

Notas.

  1. A coisa própria (de iniciativa e controle próprios) e coisa alheia (de iniciativa e controle do outro). Ver P. Berger (1971).
  2. Estritamente no que se refere a processos de alienação, é importante anotar que os mesmos não acontecem em uma via só. Normalmente são reforçados por processos de abafamento, descaso, desconhecimento da parte dominante, que também se ancoram em processos de alienação mais amplos. Os indivíduos se veem orientados mecanicamente por concepções de origem alheia ao próprio controle e compreensão. (Esta reflexão se apoia em Follmann, 2001; Berger, 1971; Touraine, 1993; Evers, 1984)
  3. Durante grande parte do período de tráfico dos africanos escravos para o continente americano, e especificamente para o Brasil, eles eram submetidos a um ritual antes de serem embarcados. Era um ritual para esquecerem o seu passado… Eram obrigados a dar voltas em redor de uma árvore, a chamada “árvore do esquecimento”. Ao serem capturados e importados do continente africano para outros países e para o Brasil, eles eram obrigados a fazerem o ritual de esquecimento, ou seja, os homens tinham que dar nove voltas em torno da árvore do esquecimento e as mulheres davam sete voltas. Esta “árvore do esquecimento” continua, depois, se repetindo sob as mais diferentes formas ao longo do processo de escravidão e pós-escravidão… (Ver mais em Pinheiro e Follmann, 2012)

AUTOR:

(*) Doutor em sociologia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

Referências bibliográficas:

BERGER, P. (1971). El dosel sagrado: elementos para una sociología de la religión. Buenos Aires: Amorrortu.

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FOLLMANN, J.I. (2001). Identidade como conceito sociológico. Rev. Ciências Sociais Unisinos. Vol. 37, N. 158.

EVERS, T. (1984). Identidade, a face oculta dos novos movimentos sociais. Novos Estudos Cebrap, N. 4.
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PINHEIRO, Adevanir Aparecida (2011). Identidade Étnico-Racial e Universidade: A dinâmica da visibilidade da temática afrodescendente e as implicações eurodescendentes, em três instituições de ensino superior no sul do País. Tese Doutorado em Ciências Sociais. São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

PINHEIRO, A.A.; FOLLMANN, J.I. (2012). Trabalho de Extensão Universitária com Afrodescendentes: refazendo laços e desatando nós. (Artigo enviado para publicação Forum de Extensão das Universidades Comunitárias, FOREXT, 2012).

REMY, J.; VOYE, L.; SERVAIS, E. (1991). Produire ou reproduire: une sociologie de la vie quotidienne. Vol. I: Conflits e transaction sociale (1978). Bruxelles: De Boeck Université.

RUSCHEINSKY, A. (1990). A emergência de atores coletivos: o movimento dos trabalhadores sem-terra. Rev. Cadernos do Cedope, N. III – 3.

TOURAINE, A. (1993). Production de la societé. (Primeira edição em 1973). Paris: Ed. Le Seuil.

PROCESSOS DE IDENTIDADE.

Breve texto para uso didático em sala de aula, elaborado em 2013

O ser humano é um ser de projeto

José Ivo Follmann

Na elaboração da tese doutoral, em 1994, tivemos oportunidade de desenvolver uma reflexão ampla sobre o conceito de identidade e, sobretudo, de PROCESSOS DE IDENTIDADE. É oportuno que lembremos toda a complexidade envolvida nos processos de identidade… Eles acontecem na

permanente interação entre os sujeitos, diferenciando-se e considerados diferentes uns dos outros ou assemelhando-se e considerados semelhantes uns aos outros, e carregando em si as trajetórias vividas por estes sujeitos, em nível individual e coletivo e na interação entre os dois, os motivos pelos quais eles são movidos (as suas maneiras de agir, a intensidade da adesão e o senso estratégico de que são portadores) em função de seus diferentes projetos, individuais e coletivos.” (Follmann, 2001, p.59)

Na pesquisa para a tese em 1994,

“procuramos demonstrar que um caminho para abarcar os aspectos essenciais de tudo isso seria o de se colocar os projetos, os motivos, as práticas – as estratégias – e as trajetórias vividas, em permanente relação, nos três níveis acima apontados. Esses processos acontecem nas diferentes esferas de sociabilidade ou dimensões da vida social. Neste sentido podemos falar em “processos étnico-raciais de identidade” assim como em “processos religiosos de identidade”, “processos regionais de identidade” ou “processos profissionais de identidade”, etc.” (Follmann, 2012, p.86)

Em um artigo recente, com o título “Processos de identidade versus processos de alienação: algumas interrogações”, pode-se colher o seguinte recorte, para refletir sobre o conceito de PROCESSOS DE IDENTIDADE:

“São processos que se dão, tanto para outrem como para si mesmo, tendo por resultado, sempre, uma “costura” de uma parte, entre o que é “herdado” e o que é “almejado” e, de outra parte, entre o que é “atribuído” e o que é “assumido”.” (Follmann, 2012, p.86)

Referências:

FOLLMANN, J. I. (2012). Processos de Identidade versus processos de alienação: algumas interrogações. Rev. Identidade! São Leopoldo: EST., 17, n.1, janeiro-março, 2012, pp.83-89

FOLLMANN, J. I. (2001). Identidade como conceito sociológico. Rev. Ciências Sociais Unisinos. Vol. 37, N. 158, pp.44-65.

FOLLMANN, J.I. (1994). Religião, política e identidade: os católicos no Partido dos Trabalhadores no Brasil. Rev. Estudos Leopoldenses. V. 30, N. 139, pp. 85-110.

NEGROS E BRANCOS NO BRASIL: TRÊS PONTOS DE REFLEXÃO.

Artigo publicado na Revista Identidade!, em 2011. O texto foi elaborado em coautoria com Adevanir Aparecida Pinheiro.

Falar de raça é urgente e necessário, no Brasil

Artigo publicado em coautoria em 2011 pela Revista IDENTIDADE! e disponível em: http://www.est.edu.br/periodicos/index.php/identidade

Adevanir Aparecida Pinheiro (*)
José Ivo Follmann (**)

RESUMO

O artigo pretende ser uma provocação para a reflexão, pontuando três aspectos de fundamental relevância para ajudar a balizar a Educação das Relações Étnico-Raciais no Brasil: o medo do desconhecido, a ação afirmativa e a questão do branco. No final os autores arrematam apontando para o exemplo perverso da Europa xenofóbica.

No Brasil, por muito tempo, tentou-se resolver o futuro das relações étnico-raciais através do esquecimento. Hoje, finalmente, com muita lucidez, vivemos políticas que colocam em primeiro plano a memória. Não se trata da memória oficial, mas da memória que, por muito tempo, foi cultivada e conseguiu sobreviver nos subterrâneos da nossa história.

A história do Brasil escamoteou e continua a escamotear o longo período de quase quatro séculos de escravidão de milhões de africanos negros, fazendo com que a negritude, a branquitude (e branquidade) e a relação entre negros e brancos, sejam questões falseadas e insuficientemente resolvidas. Deve-se ter presente, sobretudo, que até hoje não se conseguiu dar conta de fazer a narrativa completa das implicações sociais envolvidas na forma como foi realizada a abolição da escravatura e as políticas afirmativas com relação à população de imigrantes brancos, em que esse processo esteve envolvido.

Carecemos, no Brasil, de educação para lidar de maneira justa e lúcida com as conseqüências disso na sociedade e cultura. Isto é tão verdade que foi necessário reformular (formular melhor) a Lei 9.394 (Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 1996) através da Lei 10.639 (2003) no que diz respeito especificamente às temáticas da história e cultura dos afrodescendentes e sua obrigatoriedade nas instituições de ensino. (1)

Eliane Cavalleiro, em escrito publicado em Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais, do Ministério da Educação (2006), na condição, então, de Coordenadora Geral de Diversidade e Inclusão Educacional, afirma: os 118 anos que nos separam da Lei Áurea não foram suficientes para resolver uma série de problemas decorrentes das dinâmicas discriminatórias forjadas ao longo dos quatro séculos de regime escravocrata. Ainda hoje, permanece na ordem do dia a luta pela participação de negros e negras nos espaços da sociedade brasileira, e pelo respeito à humanidade dessas mulheres e homens, reprodutores e produtores de cultura. (BRASIL, MEC-SECAD, 2006, p.14-15)

O patrimônio histórico e cultural trazido pelos africanos negros é tão vigoroso, que conseguiu sobreviver e representar um incomparável e marcante legado para a sociedade brasileira. No mesmo texto aqui citado, a autora assim se expressa: Nas formas individuais e coletivas, em senzalas, quilombos, terreiros, irmandades, a identidade do povo negro foi assegurada como patrimônio da educação dos afro-brasileiros. Apesar das precárias condições de sobrevivência que a população negra enfrentou e ainda enfrenta, a relação com a ancestralidade e a religiosidade africanas e com os valores nelas representados, assim como a reprodução de um senso de coletividade, por exemplo, possibilitaram a dinamicidade da cultura e do processo de resistência das diversas comunidades afro-brasileiras. (BRASIL, MEC-SECAD, 2006, p.14)

A ausência da temática dos afrodescendentes negros nas escolas, em todos os níveis, continua sendo gritante, no Brasil. O desconhecimento com relação à África, sua história e cultura, chega a ser escandaloso, quando sabemos quão rica e genuína é a sua contribuição e a de seus filhos e filhas na construção do Brasil e da brasilidade. E, sobretudo, quando sabemos quão duras foram as condições de exploração, exclusão e agressão à dignidade humana, em que se deu essa rica e genuína contribuição.

O medo do desconhecido

Como primeiro ponto de reflexão, retomamos uma inspiração encontrada em Carlos Rodrigues Brandão. Este autor, em um de seus livros no qual retratou a história de Paulo Freire (O Menino que Lia o Mundo), destacou que esse menino que lia o mundo, aprendeu a perder o medo porque começou a entender as coisas e o mundo. Nós em geral temos medo frente ao que não entendemos. Quando não se entende de determinado assunto, tem-se muito medo de entabular conversa sobre o mesmo.

Talvez possamos dizer que a temática dos afrodescendentes negros no Brasil está muito ausente nas escolas porque existe um grande desconhecimento em torno da mesma. Muitos professores e professoras têm medo de abordar o assunto.
Às vezes se ouve falar que tocar nesse tema pode acender as brasas que estão mortas debaixo das cinzas da história, despertando indesejados conflitos raciais. Trata-se do medo associado ao desconhecimento, pois, no caso específico da temática dos afrodescendentes negros, no Brasil, gera menos conflito proporcionar o conhecimento, do que sonegar o conhecimento.

O campo religioso pode ser considerado uma referência exemplar neste sentido. Os ressentimentos e conflitos tendem a crescer na medida em que imperam a desinformação e o desconhecimento mútuos. Ao contrário, a harmonia, o convívio fraternal, o respeito e o diálogo começam a vigorar na medida em que cresce o conhecimento de par a par. No desconhecimento as religiões tendem a se demonizar mutuamente e a afirmar a superioridade de sua proposta e missão com relação às demais.

Hoje estamos longe do tempo em que o padre católico batizava os escravos africanos negros, dando-lhes a “identidade” de católicos, ato contínuo à ordem do comprador dos mesmos que mandava marcar com o ferro em brasa (o selo da posse) as suas novas mercadorias, como peças de trabalho. Apesar dessa sistemática violência, a cultura religiosa dos afrodescendentes persistiu em sua riqueza e diversidade. Hoje em dia se pode conversar honesta e tranquilamente sobre isto. Podemos presenciar diversas situações de diálogo e reconhecimento mútuos envolvendo lideranças católicas e lideranças de religiões de matriz africana junto com representantes de diversas outras denominações e confissões religiosas para desenvolver propostas comuns.

Um Grupo Inter-religioso de Diálogo que existe na UNISINOS, dentro do Programa Gestando o Diálogo Inter-religioso e o Ecumenismo – GDIREC é um testemunho vivo disto… Foi exatamente a partir de desejos expressos neste Grupo que foi desenvolvido com mais atenção o trabalho de inclusão dos sujeitos afrodescendentes e da proposta de Educação das Relações Étnico-Raciais na Universidade. Este Grupo havia levado a sério a necessidade de superar os medos internos que nele subsistiam, partindo para a busca de um maior conhecimento e reconhecimento mútuos.

A importância da ação afirmativa

Como segundo ponto de reflexão, fazemos um convite para olharmos de frente a grave questão ideológica, no Brasil, o falseamento, o mito da democracia racial, os esquecimentos e obstruções da memória, que fazem das escolas e dos professores, veiculadores e reprodutores de explicações fáceis ou de “não explicações”, ajudando a sonegar sutilmente as raízes dos processos de identidade dos afrodescendentes negros em nossa sociedade.

É necessário propor, também em sala de aula, com honestidade, o debate público sobre a questão da grande dívida social que o Brasil tem com relação aos afrodescendentes negros que constituem em torno de 50% da população brasileira.

Trata-se da metade da nossa sociedade cujos ancestrais foram vítimas de um dos mais longos períodos de escravidão conhecidos na história humana: quase quatro séculos de escravidão de africanos negros no Brasil. Para sermos mais precisos é necessário lembrar que segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, através do Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2011), temos no Brasil 50,7% de autodeclarados pretos e pardos (ou seja, negros, como normalmente é consenso nas classificações mais usuais); no Rio Grande do Sul temos 16,1% de autodeclarados pretos e pardos (ou seja, negros) e em São Leopoldo temos 13,7% de autodeclarados pretos e pardos (ou seja, negros). Normalmente a discriminação tende a ser mais sentida, mesmo que invisível, naqueles contextos em que o percentual de afrodescendentes, por uma série de fatores históricos, é mais baixo. É exatamente nestes contextos que o esforço das ações afirmativas deve ser mais lúcido e vigoroso.

Não faz sentido trabalhar a temática dos afrodescendentes negros no Brasil em sala de aula, se persistir a gritante ausência dos mesmos afrodescendentes nas Universidades. Às vezes são feitas comparações com a situação racial nos Estados Unidos, onde a política afirmativa teve a sua época e hoje já está superada. É importante sabermos que, naquele país, os afrodescendentes negros representam 12,6% da população e, depois de um esforço lúcido e vigoroso em termos de políticas afirmativas, hoje são numerosos os que já conseguiram posições de destaque na sociedade.

As políticas de ação afirmativa são necessárias para recuperar as enormes desvantagens sofridas por um segmento da sociedade com relação a outro, mas elas nunca devem significar abrir mão da exigência no preparo técnico e na qualidade. Devem significar formas criativas e inovadoras de proporcionar acesso ao preparo técnico e à qualificação.

A questão dos brancos

Somos facilmente vítimas de um jogo secreto que desvia a atenção do verdadeiro foco. Segundo Pinheiro, que em sua tese de doutoramento (Pinheiro, 2011) discutiu o conceito de “branquidade”, distinguindo-o de “branquitude”,(2) fala-se sempre em “questão do negro” ou “questão do índio”, quando de fato é uma “questão do branco”, em primeira instância… Se os estudos das relações étnico-raciais não tiverem um olhar atento para esse jogo secreto, continuando focados apenas nas etnias historicamente inferiorizadas, eles poderão ser novamente “um tiro no próprio pé”. Estaremos correndo o risco de redobrar as mesmas escamoteações históricas já conhecidas no Brasil.

Este é o terceiro ponto de reflexão: um convite a que nos associemos à linha de reflexão, que traz ao centro do debate a questão do embotamento da consciência branca eurocêntrica. É uma consciência que permanece, muitas vezes, algemada no seu (auto)senso de superioridade. São inúmeros os aspectos históricos relacionados a isto, aos quais se deu pouca atenção no contexto social e acadêmico brasileiro. Esses aspectos muitas vezes são camuflados para não mostrar ou evidenciar as fragilidades e as vergonhas da parte da população sempre (auto)considerada superior.

Como já apontamos no início deste texto, o Brasil, até hoje, não conseguiu dar conta de fazer a narrativa completa das implicações sociais envolvidas na forma como foi realizada a abolição da escravatura e as políticas afirmativas com relação à população de imigrantes brancos, em que esse processo esteve envolvido. Deve-se destacar que políticas afirmativas, que teriam sido humana e racionalmente necessárias, foram sonegadas à população dos afrodescendentes, no período pós-abolição da escravatura. E mais: os grupos que costumam assumir atitudes de “escândalo” ou de desacordo frente às políticas afirmativas com relação aos afrodescendentes, que hoje estão sendo colocadas em pauta, mesmo que isto aconteça de uma forma tímida e com muita dificuldade, em alguns contextos, talvez nem conheçam as políticas afirmativas executadas naquela época com relação aos brancos acolhidos em nosso país… Ou se têm conhecimento delas, pouco se importam, porque, afinal de contas, tudo isso estava pautado para garantir o “branqueamento” da sociedade brasileira…

As raízes históricas disto são profundas e é necessário cavar muito para chegar e elas e arrancá-las. Um dos caminhos que vislumbramos é o de assumir a causa do outro. Em um recente texto (abril 2006), elaborado por uma equipe internacional e intercultural de jesuítas sob a coordenação do Secretariado de Justiça Social da Ordem dos Jesuítas (Companhia de Jesus), que circulou no meio dessa Ordem durante a preparação da 35ª Congregação Geral (Órgão Máximo de Governo da Ordem dos Jesuítas), havia, entre outras, a seguinte recomendação: é recomendável que cada jesuíta se empenhe em defender ao menos uma cultura, que não seja a sua! Esta formulação não entrou em nenhum texto oficial, mas é com certeza altamente inspiradora. Trata-se de uma ótima fórmula para um branco romper as algemas de seu embotamento racial, colocando-se na efetiva defesa do negro e fazendo de sua prática cotidiana uma “prática afirmativa” deste outro tão espezinhado em nossa história.

Para concluir: um pensamento a partir da Europa…

Talvez hoje o grande pecado da Europa seja o de não fazer nada pela África!, clamou um dia alguém. Todos nós sabemos que a Europa é rica, graças, em grande parte, a tudo o que conseguiu conquistar e saquear de outros continentes, entre os quais está, sobretudo, a África. Essas conquistas e esses saques não foram algo pacífico… Um rápido passeio pelo continente europeu nos faz lembrar diversos dos seus principais países, envolvidos, em outros tempos, em ações clamorosas contra o patrimônio dos povos africanos e contra a sua dignidade. São muitos os relatos registrados e que sempre voltam à tona em conversas espontâneas, lembrando saques, espoliações, depredações, atrocidades e mortandades no Congo, Kênia, Namíbia, Senegal, África do Sul, Costa do Marfim, Angola, Rodésia, Moçambique e outros países. Ao ouvir tudo isso, ficamos horrorizados ao vermos as notícias sobre uma Europa, que se dá ao direito e ao luxo de repelir, com violência, pobres e famigerados africanos, amontoados em precárias embarcações, tentando entrar pela costa sul, na desesperada busca da sobrevivência.

Se a Europa fosse conseqüente e coerente com suas próprias políticas de direitos humanos, teria que acolher de braços abertos aos africanos e, de joelhos, suplicar o seu perdão, oferecendo-lhes com solicitude compartilhar algo de tudo aquilo que lhes foi tirado. Trata-se de uma mensagem anônima distribuída eletrônicamente. No corpo da mesma mensagem, está mencionado Frederico Mayor Zaragoza, com a sentença seguinte: Não é com o esquecimento que se resolverá o futuro. É com a memória!

Inspiramo-nos nesta observação com relação à Europa xenofóbica para, também, dizer: Não é com o esquecimento do passado que o Brasil construirá o seu futuro. É com a memória!

Notas:

  1. Mais tarde, esta reformulação da LDB foi ampliada pela Lei 11.645 (2008), incluindo também mais explicitamente a história e a cultura dos povos indígenas, no mesmo sentido.
  2. Pinheiro (2011) estabeleceu importante distinção entre branquitude e branquidade: a primeira (branquitude) referindo-se aos brancos que demonstram uma atitude clara negativa ou positiva com relação aos negros; a segunda (branquidade) referindo-se aos brancos, que às vezes são em grande número, que simplesmente ignoram a questão da relação racial como algo inexistente, ou seja, trata-se de algo totalmente bloqueado ou obstruído. A autora se baseia em Maria Aparecida Bento (2002) em Vron Ware (2004) e outros.

Referências bibliográficas:

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CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
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PINHEIRO, Adevanir Aparecida; FOLLMANN, José Ivo. Afrodescendentes em São Leopoldo: memória coletiva e processos de identidades. Revista Ciências Sociais Unisinos. N. 47(2): 143-154, maio/agosto de 2011.
PINHEIRO, Adevanir Aparecida. Identidade Étnico-Racial e Universidade: a dinâmica da visibilidade da temática afrodescendente e as implicações eurodescendentes, em três instituições de ensino superior no sul do País. (TESE DE DOUTORAMENTO). São Leopoldo: Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNISINOS, 2011.
WARE, Vron et al. Branquidade: identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

(*) Assistente Social; Dra. Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – NEABI; Professora da UNISINOS.
(**) Padre Jesuíta, Dr. Sociologia pela Université Catholique de Louvain La Neuve, Bélgica; Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNISINOS.

ÁFRICA – PREFERÊNCIA APOSTÓLICA DA COMPANHIA DE JESUS (JESUÍTAS): UM OLHAR JESUÍTA SOBRE A ÁFRICA BRASILEIRA.

Artigo publicado na Revista Jesuítas, em 2009.

Falar de raça é urgente e necessário, no Brasil

Observação: O artigo se refere às Preferências Apostólicas da Companhia de Jesus em vigor até 2018. Para o período de 2019 a 2029, a Companhia de Jesus optou por quatro preferências: Aprofundamento dos Exercícios Espirituais (prática do discernimento); Os pobres e desamparados; A juventude; O cuidado da casa comum.)

José Ivo Follmann sj (*)

(Artigo publicado na Revista Jesuítas, dezembro de 2009)

Introdução
De alguns tempos para cá, o meu fascínio pelos povos africanos veio crescendo. Trata-se de um aprendizado. Inicialmente aprendi a respeitar e a reconhecer os negros afrodescendentes, no convívio paroquial na Vila Duque em São Leopoldo, RS. Também durante o meu tempo de mestrado em São Paulo, residindo na Zona Leste daquela grande cidade, vi mais de perto a força e a vitalidade da metade negra do Brasil. Na Bélgica, durante meu doutorado, conheci muitos africanos de diferentes países, alguns deles jesuítas, dos quais aprendi muito. Mas quem me faz cultivar o fascínio ao extremo são os líderes de religiões de matriz africana, que participam do Grupo Interreligioso de Diálogo, criado em 2002, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo/RS. A singeleza e a sinceridade com que estes líderes – às vezes, sem mesmo serem afrodescendentes – se referem à mãe África, recitando orações e invocações aos Orixás, nas línguas originárias, sempre me fascinaram.

O meu fascínio cresceu na minha brevíssima estada em Moçambique, em julho de 2009, a convite do Regional Jesuíta, para ajudar em oito dias de Exercícios Espirituais junto a meus companheiros jesuítas, tendo como referência a 35ª Congregação Geral. O grupo do retiro estava constituído por 48 jesuítas, dos quais 37 moçambicanos, 5 portugueses e 6 vindos do Brasil. Fiquei muito feliz ao encontrar companheiros de diferentes províncias do Brasil, e senti-me muito desafiado, sobretudo, frente aos moçambicanos…

Entre os retirantes estava o P. Francisco Almenar sj, meu amigo Paco, e lembrei-me de textos de Notícias que ele enviara, depois de sua chegada ao Moçambique. Em abril de 2008, ele citara algumas frases de sua primeira fala pública em uma celebração, sete dias depois de chegar para abraçar a nova missão em terras de África: Sinto-me como uma criança de sete dias. Como uma criança, preciso que vocês me ensinem a falar como vocês falam, a rezar como vocês rezam, a viver como vocês vivem e a cantar como vocês cantam. Três meses depois, em julho de 2008, num belo hino de louvor ao Senhor, o mesmo Paco assim se expressava: Eu te louvo, Senhor, porque o povo moçambicano é, antes de tudo, um fervilhar de vida, de movimento, de capacidade de resposta e iniciativas ante os colossais obstáculos interpostos pela história…

A humanidade precisa voltar a ser criança para descobrir a África. Não escrevo re-descobrir, porque os primeiros encontros de Europeus com Africanos foram envoltos em intenções de dominação e espoliação e pouco caso se fez por realmente descobrir os povos, a sua história e a sua cultura. Os povos africanos são povos que sobrevivem na alegria, mesmo que carregando muita dor. Uma dor profunda acumulada por diversas dominações coloniais, em suas diferentes formas e origens. Mas, sobretudo, a dor da desagregação, vítimas de administrações coloniais desastradas e que foram concluídas de uma forma desrespeitosa e irresponsável.

Ao iniciar este texto, junto minhas palavras às do meu amigo Paco, prosseguindo na sua prece de louvor: Eu te louvo, Senhor, porque a humanidade está reencontrando a África! Porque a Companhia de Jesus está ajudando a humanidade a reencontrar-se com a África! Porque nós brasileiros nos reencontramos conosco mesmos, reencontrando a nossa metade africana!

A exultação de louvor não é só porque nós brasileiros estamos tomando maior consciência de que a metade de nossa população é negra. Isto é verdade e é fundamental para que se faça justiça à nossa história, mas é importante, sobretudo, lembrar que na África reside o berço da humanidade. O teólogo Hans Küng, em seu vídeo documentário, Religiões do Mundo – Religiões Tribais, em meio às suas reflexões sobre a contribuição dos povos africanos e suas religiões, afirma: “ainda que sejamos muito diferentes, dado as características raciais, todos temos presumivelmente uma origem africana comum. Por baixo da pele, somos todos africanos”.

O presente artigo está focado nesta questão de fundo. Partindo da forte constatação de que o Brasil, em termos numéricos de população, é o segundo país mais negro do mundo, e do vivo chamado da Companhia de Jesus, colocando a África entre as grandes preferências apostólicas nos dias de hoje, recordo, inicialmente, por um lado, a complexidade e a riqueza multicultural representadas no continente africano, e, por outro lado, a imensa e impagável dívida que países de outros continentes, sobretudo do continente europeu, contraíram para com os povos africanos, devido à terrível e desumana dominação e espoliação exercida ao longo da história. O Brasil, mesmo que por motivos diversos dos países europeus, é também grande devedor da África. Além de devedor da África, o Brasil carrega dentro de si, a marca histórica de quase quatro séculos de escravidão, e, a exemplo da maneira perversa como os países europeus “concluíram” as suas dominações coloniais no continente africano, o modo de fazer a “abolição da escravatura”, tremendamente desrespeitoso e carregado de irresponsabilidade administrativa e humana. Neste sentido, o artigo é concluído com um duplo desafio para os jesuítas brasileiros, pois a África está situada no continente africano, mas também está entre nós.


A Companhia de Jesus convoca


A 35ª Congregação Geral, em seu Decreto 3, n.39, reafirmou alguns “pontos de atenção especial” para o apostolado atual da Companhia de Jesus e entre estes pontos ou estas preferências apostólicas está o continente africano. Falando da África como preferência apostólica, o texto diz o seguinte: Conscientes das diferenças culturais, sociais e econômicas, na África e Madagascar, mas conscientes também das grandes oportunidades, desafios e da variedade dos trabalhos apostólicos, reconhecemos a responsabilidade da Companhia na apresentação de uma visão mais integral e humana deste continente. Além disso, todos os jesuítas são convidados a uma maior solidariedade com um apoio efetivo à missão da Companhia de inculturar a fé e de promover mais justiça nesse continente.

Para nós jesuítas brasileiros, a convocação da Companhia de Jesus, para que se assuma a África entre as preferências apostólicas, soa, ao mesmo tempo, como um convite familiar e como um chamado desafiador. O fato numérico de sermos o segundo país mais negro do mundo, ao mesmo tempo em que nos traz à memória lados trágicos de nossa história, nos chama à responsabilidade histórica com os povos africanos, como nossos povos irmãos de sangue. O Brasil pode ser considerado, em parte, uma grande diáspora africana, e, assim, podemos dizer que a África também é aqui. Para a Companhia de Jesus no Brasil, o chamado mundial para uma atenção preferencial pelos povos africanos, soa como um chamado de dupla dimensão. Ou seja, a nossa melhor forma de nos voltarmos para o continente africano, é a de dedicarmos mais a nossa atenção aos afrodescendentes negros em nossa sociedade e sermos facilitadores da recuperação de sua memória e raízes culturais.

Para tal, é necessário, num primeiro momento, que nos afastemos de uma visão simplista que tende a encarar o continente africano como se tivesse uma única identidade ou uma só cultura africana… A África é um conjunto de muitos povos, culturas e línguas. Trata-se de um continente muito complexo, em termos de tradições culturais. Só no país Moçambique, que trago à memória, por uma questão de circunstâncias pessoais já referidas, conhece-se mais de 50 línguas ou dialetos diferentes, revelando uma grande diversidade, apesar de apresentarem uma matriz cultural originária única, que é a matriz banto. A diversidade africana está presente também no Brasil.


Desafio para a Europa


Talvez hoje o grande pecado da Europa seja o de não fazer nada pela África!, clamou um dia alguém. Todos nós sabemos que a Europa é rica, graças, em grande parte, a tudo o que conseguiu conquistar e saquear de outros continentes, entre os quais está, sobretudo, a África. Essas conquistas e esses saques não foram algo pacífico… Um rápido passeio pelo continente europeu nos faz lembrar diversos dos seus principais países, envolvidos, em outros tempos, em ações clamorosas contra o patrimônio dos povos africanos e contra a sua dignidade. São muitos os relatos registrados e que sempre voltam à tona em conversas espontâneas, lembrando saques, espoliações, depredações, atrocidades e mortandades no Congo, Kênia, Namíbia, Senegal, África do Sul, Costa do Marfim, Angola, Rodésia, Moçambique e outros países. Ao ouvir tudo isso, ficamos horrorizados ao vermos as notícias sobre uma Europa, que se dá ao direito e ao luxo de repelir, com violência, pobres e famigerados africanos, amontoados em precárias embarcações, tentando entrar pela costa sul, na desesperada busca da sobrevivência.

Se a Europa fosse conseqüente e coerente com suas próprias políticas de direitos humanos, teria que acolher de braços abertos aos africanos e, de joelhos, suplicar o seu perdão, oferecendo-lhes com solicitude compartilhar algo de tudo aquilo que lhes foi tirado. Li isto, um dia, em uma mensagem distribuída eletrônicamente. No corpo da mesma mensagem, estava mencionado Federico Mayor Zaragoza, com a sentença seguinte: Não é com o esquecimento que se resolverá o futuro. É com a memória!


Desafio para o Brasil: três pontos de reflexão

Os três pontos que vou apresentar aqui retomam o que está desenvolvido num breve texto em co-autoria com a Prof. MS Adevanir Aparecida Pinheiro, Notas sobre a temática dos afrodescendentes negros na escola (Primeiro Fórum de Pedagogia, Unisinos, setembro de 2008).

No Brasil, por muito tempo, tentou-se resolver o futuro das relações étnicorraciais através do esquecimento. Hoje, finalmente, com muita lucidez, vivemos políticas que colocam em primeiro plano a memória.

A história do Brasil escamoteou e continua a escamotear o longo período de quase quatro séculos de escravidão de milhões de africanos negros, fazendo com que a negritude, a branquitude e a relação entre negros e brancos, sejam questões falseadas e insuficientemente resolvidas.

Carecemos, no Brasil, de educação para lidar de maneira justa e lúcida com as conseqüências disso na sociedade e cultura. Isto é tão verdade que foi necessário formular a Lei 10.639 (2003) e legislações subseqüentes como complementações esclarecedoras da Lei 9.394 (Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 1996) no que diz respeito especificamente às temáticas da história e cultura dos afrodescendentes e sua obrigatoriedade nas instituições de ensino. Mais tarde, pela Lei 11.645 (2008) foram incluídas a história e a cultura dos povos indígenas.

Eliane Cavalleiro, em escrito publicado em Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais, do Ministério da Educação (2006), na condição de Coordenadora Geral de Diversidade e Inclusão Educacional, afirma: os 118 anos que nos separam da Lei Áurea não foram suficientes para resolver uma série de problemas decorrentes das dinâmicas discriminatórias forjadas ao longo dos quatro séculos de regime escravocrata. Ainda hoje, permanece na ordem do dia a luta pela participação de negros e negras nos espaços da sociedade brasileira, e pelo respeito à humanidade dessas mulheres e homens, reprodutores e produtores de cultura.

O patrimônio histórico e cultural trazido pelos africanos negros é tão vigoroso, que conseguiu sobreviver e representar um incomparável e marcante legado para a sociedade brasileira. No mesmo texto aqui citado, a autora assim se expressa: Nas formas individuais e coletivas, em senzalas, quilombos, terreiros, irmandades, a identidade do povo negro foi assegurada como patrimônio da educação dos afro-brasileiros. Apesar das precárias condições de sobrevivência que a população negra enfrentou e ainda enfrenta, a relação com a ancestralidade e a religiosidade africanas e com os valores nelas representados, assim como a reprodução de um senso de coletividade, por exemplo, possibilitaram a dinamicidade da cultura e do processo de resistência das diversas comunidades afro-brasileiras.

A ausência da temática dos afrodescendentes negros nas escolas, em todos os níveis, continua sendo gritante, no Brasil. O desconhecimento com relação à África, sua história e cultura, chega a ser escandaloso, quando sabemos quão rica e genuína é a sua contribuição e a de seus filhos e filhas na construção do Brasil e da brasilidade. Trago aqui, nesta singela abordagem sobre a África, como preferência apostólica da Companhia de Jesus, três pontos de reflexão que devem mobilizar a nós jesuítas do Brasil, em primeiro plano…


O medo do desconhecido

Como primeiro ponto de reflexão, retomo uma inspiração encontrada em Carlos Rodrigues Brandão. Este autor, em um de seus livros no qual retratou a história de Paulo Freire “A história do menino que lia o mundo” (2002), destacou que esse menino que lia o mundo, aprendeu a perder o medo porque começou a entender as coisas e o mundo. Nós em geral temos medo frente ao que não entendemos. Quando não se entende de determinado assunto, tem-se muito medo de entabular conversa sobre o mesmo. Talvez possamos dizer que a temática dos afrodescendentes negros no Brasil está muito ausente nas escolas porque existe um grande desconhecimento em torno da mesma. Muitos professores e professoras têm medo de abordar o assunto.

Às vezes se ouve falar que tocar nesse tema pode acender as brasas que estão mortas debaixo das cinzas da história, despertando indesejados conflitos raciais. Trata-se do medo associado ao desconhecimento, pois, no caso específico da temática dos afrodescendentes negros, no Brasil, gera menos conflito proporcionar o conhecimento, do que sonegar o conhecimento.

O campo religioso pode ser considerado uma referência exemplar neste sentido. Os ressentimentos e conflitos tendem a crescer na medida em que imperam a desinformação e o desconhecimento mútuos. Ao contrário, a harmonia, o convívio fraternal, o respeito e o diálogo começam a vigorar na medida em que cresce o conhecimento de par a par. No desconhecimento as religiões tendem a se demonizar mutuamente e a afirmar a superioridade de sua proposta e missão com relação às demais.

Hoje estamos longe do tempo em que o padre católico batizava os escravos africanos negros, dando-lhes a identidade de católicos, ato contínuo à ordem do comprador dos mesmos que mandava marcar com o ferro em brasa (o selo da posse) as suas novas mercadorias, como peças de trabalho. Apesar dessa sistemática violência, a cultura religiosa dos afrodescendentes persistiu em sua riqueza e diversidade. Hoje em dia se pode conversar honesta e tranquilamente sobre isto. Podemos presenciar diversas situações de diálogo e reconhecimento mútuos envolvendo lideranças católicas e lideranças de religiões de matriz africana junto com representantes de diversas outras denominações e confissões religiosas para desenvolver propostas comuns.


A importância da ação afirmativa

Como segundo ponto de reflexão, faço um convite para olharmos de frente a grave questão ideológica, no Brasil, do falseamento, do mito da democracia racial, do esquecimento e do escamotear, que faz das escolas e dos professores veiculadores e reprodutores das explicações fáceis ou das “não explicações”, ajudando a sonegar sutilmente as raízes da identidade dos afrodescendentes negros em nossa sociedade.

É necessário propor, também em sala de aula, com honestidade, o debate público sobre a questão da grande dívida social que o Brasil tem com relação aos afrodescendentes negros que constituem em torno de 50% da população brasileira. Trata-se da metade da nossa sociedade cujos ancestrais foram vítimas de um dos mais longos períodos de escravidão conhecidos na história humana: quase quatro séculos de escravidão de africanos negros no Brasil.

Não faz sentido trabalhar a temática dos afrodescendentes negros no Brasil em sala de aula, se persistir a gritante ausência dos mesmos afrodescendentes nas Universidades. Às vezes são feitas comparações com a situação racial nos Estados Unidos, onde a política afirmativa teve a sua época e hoje já está superada. É importante sabermos que, naquele país, os afrodescendentes negros só representam 12,6% da população e são numerosos os que já conseguiram posições de destaque na sociedade.

As políticas de ação afirmativa são necessárias para recuperar as enormes desvantagens sofridas por um segmento da sociedade com relação a outro, mas elas nunca devem significar abrir mão da exigência no preparo técnico e na qualidade. Devem significar formas criativas e inovadoras de proporcionar acesso ao preparo técnico e à qualificação.


A questão dos brancos

Somos facilmente vítimas de um jogo secreto que desvia a atenção do verdadeiro foco. Segundo a Prof. MS Adevanir Aparecida Pinheiro, que em sua tese de doutoramento está discutindo o conceito de “branquidade”, fala-se sempre em “questão do negro” ou “questão do índio”, quando de fato é uma “questão do branco”, em primeira instância… Se os estudos das relações étnicorraciais não tiverem um olhar atento para esse jogo secreto, continuando focados apenas nas etnias historicamente inferiorizadas, eles poderão ser novamente “um tiro no próprio pé”. Estaremos correndo o risco de redobrar as mesmas escamoteações históricas já conhecidas no Brasil.

Este é o terceiro ponto de reflexão: um convite a que nos associemos à linha de reflexão, que traz ao centro do debate a questão do embotamento da consciência branca eurocêntrica. É uma consciência que permanece, muitas vezes, algemada no seu senso de superioridade. São inúmeros os aspectos históricos relacionados a isto, aos quais se deu pouca atenção no contexto social e acadêmico brasileiro. Esses aspectos muitas vezes são camuflados para não mostrar ou evidenciar as fragilidades e as vergonhas da parte da população sempre (auto-)considerada superior.

As raízes históricas disto são profundas e é necessário cavar muito para chegar e elas e arrancá-las. Um dos caminhos que vislumbramos é o de assumir a causa do outro. Em um recente texto (abril 2006), elaborado por uma equipe internacional e intercultural de jesuítas sob a coordenação do Secretariado de Justiça Social da Companhia de Jesus, que circulou no meio dos jesuítas durante a preparação da 35ª CG, já referida, havia a seguinte recomendação: é recomendável que cada jesuíta se empenhe em defender ao menos uma cultura, que não seja a sua! Esta formulação não entrou em nenhum texto oficial, mas é com certeza altamente inspiradora e faz parte do espírito da Companhia de Jesus. Trata-se de uma ótima fórmula para um branco romper as algemas de seu embotamento racial, colocando-se na efetiva defesa do negro e fazendo de sua prática cotidiana uma “prática afirmativa” deste outro tão espezinhado em nossa história.


Como jesuíta brasileiro: uma provocação

Talvez o mesmo sentimento pulse no coração de muitos companheiros jesuítas no Brasil… Para mim, o grande chamado da Companhia de Jesus, que coloca a ‘África como preferência apostólica’, tem um forte e duplo sentido: se, por um lado, temos a obrigação de ajudar a levar de volta para a África ao menos um pouco de toda inteligência e força humana que foi de lá arrancada para ajudar a construir, à força, o nosso país, somos, por outro lado, convocados a engajar-nos radicalmente no processo de reeducação das relações étnicorraciais em nosso país, contribuindo para que os afrodescendentes negros em nossa sociedade, nesta nossa diáspora africana, possam reconstituir a sua dignidade e suas raízes históricas e culturais.

Se, no passado, de certa forma, nós fomos coniventes com o tráfico de escravos e com a escravidão, que no presente, saibamos ser profetas da reeducação das relações étnicorraciais no Brasil e ativos defensores da reconstituição da dignidade do continente africano, no concerto mundial.

AUTOR:(*) Sacerdote jesuíta. Professor do programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil.

QUANDO O ESPÍRITO DE DEUS CHOROU, EU ESTAVA DE ANIVERSÁRIO.

Pequena crônica escrita em 25 de janeiro de 2019.

Trata-se de um registro biográfico muito impactante

José Ivo Follmann sj

(Crônica escrita no dia 25 de janeiro de 2019)

Era 25 de janeiro de 2019. Eu estava no terceiro dia do meu retiro espiritual, fazendo os Exercícios Espirituais Inacianos de oito dias. É uma prática anual nossa, como jesuítas, de fortalecimento na espiritualidade. Repleto de agradecimento e contentamento, era um dia muito especial para mim, pois estava completando 72 anos de vida e 44 anos de exercício da função sacerdotal na Igreja Católica.

Nosso retiro, neste ano teve um foco ecológico, pautado na ecologia integral. Foi para mim de crescimento na percepção e convicção de que o grande caminho de reencontro da humanidade com ela mesma, é o caminho da espiritualidade. Ou seja, só teremos condições de criar juízo ao nos depararmos com o Espírito de Deus.

Este pensamento se confirmara dentro de mim com muito vigor. Eu reconstruía saborosamente as minhas narrativas pessoais.

Era um dia de graça plena. Crescera tremendamente em mim a convicção de que a transformação pessoal não é uma questão de esforço, mas de agradecimento. Os nossos esforços são muitas vezes tão idiotas, autossuficientes e inconstantes. O sabor da ideia que espelhava o Amor incondicional, total e pessoal, inebriava a mente e o coração.

Minha mente e meu coração estavam em festa. Uma festa pessoal para mim! Lembrava também gostosamente todas as pessoas que fazem parte de minha história. Foi quando uma notícia triste caiu como um raio. Estava me preparando para presidir a eucaristia. Afinal, eu havia sido escolhido, por ser meu dia de festa! Um colega se aproximou de mim e disse: Aconteceu uma tragédia! Acho que será pior que a de Mariana. É em Minas Gerais. Liga o celular, vais ver! Liguei o celular, meio assustado e um pouco incrédulo. O que poderia ser tragédia maior que a de Mariana!?

As postagens eram muitas. Algumas confusas, sem ter informações adequadas. Mas o fato estava aí. Cru e nu! Escancarado! Jorrando lama. Enlameando. Afogando. Matando. Risco de gravidade maior que o da tragédia anterior. É tragédia? Tragédia não! Crime de lesa humanidade! Onde ficaram os aprendizados tidos? Não é possível que Mariana não tenha ensinado nada! Somos uma sociedade de idiotas! A que ponto pode chegar a irresponsabilidade humana! Foram gritos que automaticamente se levantaram em meu íntimo.

Fiquei confuso. Tentei me concentrar. Afinal estava me preparando para a celebração da eucaristia e teria que falar um pouco da minha trajetória vocacional. Era também a festa da Conversão de São Paulo, baluarte da Igreja. Apresentei um perfil inspirador sobre São Paulo, mas, depois, confesso que fiquei confuso, pois estava falando de coisas da origem da Igreja e de coisas pessoais totalmente secundárias, quando aquele momento deveria ser focado em algo que estava abalando os alicerces da humanidade e do Brasil. Quando me dei conta, vi que tinha falado tempo demais. Quis acrescentar uma reflexão sobre aquele horroroso impacto do momento, mas a pressão do horário me fez calar, sufocando algo muito sério dentro de mim. Estava perturbado porque eu via o Espírito de Deus chorando, mas não era capaz de expressar o que deveria.

Eu vi o Espírito de Deus chorando e eu mal balbuciei um pedido de oração pelas vítimas da tragédia. O Espírito de Deus chorou por causa de nossa insensatez e incapacidade de retribuir amor e agradecer. O Espirito de Deus chorou porque barragens se rompem quando não existe cuidado com a segurança, a vida e a dignidade de quem vive nas redondezas. Assim como permanentemente chora o Espírito de Deus por não sermos capazes de nos assumir como irmãs e irmãos, de não nos reconhecermos radicalmente em nossa dignidade por dentro das diferenças étnico-raciais, religiosas e tantas outras diferenças que são objeto de discriminação, violência, exclusão e morte.O Espírito de Deus chorou por causa da prepotência ingrata e usurpadora dos interesses do dinheiro que se colocam acima do ser humano. O Espírito de Deus chorou pela vida de milhões de seres que trabalhavam e brincavam em seu jardim e repentinamente se viram envenenados, sufocados e afogados, mais uma vez, na lama envenenada pela cobiça e irresponsabilidade humanas.

Obrigado Senhor, por ter renascido pelo batismo, um batismo de sangue, um batismo de lama, neste dia 25 de janeiro de 2019. A celebração dos 72 anos de vida e 44 anos de ministério sacerdotal, neste ano foi um presente especial.

Não, não estou agradecendo pelo crime dos responsáveis das empresas e dos órgãos públicos de controle e proteção. Os responsáveis deverão ser chamados à responsabilidade e responder em juízo. A minha gratidão é porque nunca mais vou esquecer, que no dia do meu aniversário, o Espírito de Deus chorou.