O PAPEL DO INTELECTUAL NO MUNDO ATUAL

José Ivo Follmann – Aula Inaugural no Mestrado em Educação, 03 de março de 1997

O texto aqui publicado reproduz literalmente a palestra e todo o diáologo e troca de idéias que se seguiram na oportunidade. O conteúdo da palestra foi reproduzido em forma de artigo: O Papel do Intelectual no Mundo Atual. Revista Estudos Leopoldenses, Série Educação, V. 1, N. 1, 1997, p.9-26.

Palavras introdutórias

O tema que a Coordenação e o Colegiado deste Programa de Mestrado me propõe para a aula inaugural deste ano é sem dúvida um tema de grande responsabilidade, dado o grupo de intelectuais que aqui participa, e é também um tema terrivelmente desafiador, se considerarmos o “mundo atual” no qual vivemos. O peso da responsabilidade e a profundidade do desafio, por um lado, se desfazem um pouco quando sei que se trata de um tema no qual todos os participantes desta aula têm muito caminho andado e muitas sinalizações de caminhos a fazer e a andar, tendo consequentemente muito a contribuir, mas eu, por outro lado, estaria sendo irresponsável, como professor e, enquanto tal, intelectual, se o desafio de ajudar a recolher e a organizar estes caminhos andados (passado) e as sinalizações existentes (futuro), não fosse a minha preocupação principal também neste momento (presente).

Em outras palavras, para redizer e complementar estas frases introdutórias, eu não estaria sendo fiel ao tema proposto, se não prestasse atenção ao que está expresso no Ofício, que a Comissão Coordenadora do Mestrado me dirigiu, convidando-me para a presente participação. Diz o Ofício: “Na Reunião do Colegiado resolvemos propor como tema para este primeiro encontro do ano: O papel do intelectual no mundo atual. Acreditamos que, assim, estaremos fomentando a reflexão conjunta em torno de nossa tarefa como Mestrado.”  Sugere-se aqui uma pequena perversão do conceito de “aula inaugural”, com a qual eu concordo plenamente. Uma aula inaugural é, por definição, um discurso de sapiência (oração de sapiência) proferido pelo Reitor, Diretor ou algum Professor na abertura de um Curso. Diga-se: para criar um impacto bom e positivo no grupo… Não é nesta linha que estou pensando, nem a Coordenação e o Colegiado pensam. (Se estivessem com este pensamento certamente teriam procurado outra pessoa para falar…) Minha sugestão quer fazer diretamente juz ao que o Ofício invitatório indica. Assim, a partir de algumas poucas colocações iniciais que me proponho a fazer, de uma maneira suficientemente clara e sobretudo aberta e sem demasiados ordenamentos limitativos e inibitórios, sugiro que entabulemos, na sequência, uma reflexão conjunta sobre o tema. Aliás, não quero estar enganado quando penso que todos aqui estão de acordo que uma aula, mais do que discurso de sapiência, é sempre espaço para a reflexão conjunta, sob a animação de um professor. (Observe-se de passagem que a atividade do professor em sala de aula, neste sentido, é atividade intelectual por excelência: o professor no caso se empenha junto com os alunos em ordenar e reordenar saberes, tendo em vista o que cada integrante do grupo vivencia e presencia no seu cotidiano.)

A temática desta aula é, sem dúvida, de fundamental importância dentro do contexto de um Mestrado em Educação voltado para a Educação Básica. (Se lermos a nova LDB encontraremos muitas justificativas para esta afirmação). O esforço todo que se faz aqui neste Mestrado – se quiserem  corrigir-me ou complementar, por favor, façam-no, antes que eu diga inverdades! – está em fazer deste programa um meio de criação intelectual conjunta ou coletiva profundamente ligada ao processo social que vivemos e que é vivido pelas crianças, pelos jovens e pelos adultos que participam no processo de educação básica. Este Mestrado se pauta por uma determinada concepção de intelectual: não se busca a formação de meros reprodutores do saber bancado por professores bem formados – ou bem “deformados”, se quiserem; todo empenho se volta por oportunizar e fornecer apoios para o trabalho de produtores do saber. O trabalho que é assim oportunizado e apoiado é um trabalho não individual mas coletivo. Isto não é algo óbvio e que se encaminha facilmente mediante um roteiro de boas intenções. Trata-se de um desafio muito grande dentro do meio acadêmico em geral e do meio acadêmico de pós-graduação em particular. O respeito aos saberes dos alunos, o respeito aos saberes acumulados de todo grupo e dos outros em geral, nem sempre é suficientemente exercitado por quem não têve esta oportunidade em sua dura e árdua trajetória de estudos… (Ou então: por quem se vê, no cotidiano acadêmico, submetido a um insano clima de competição – alguns chamam de sadio clima de competição! -, de conquista e preservação de espaços.)

Obviamente não estou trazendo uma proposta “populista”, lembrando a concepção de “intelectual populista” conforme Horácio Gonzalez. Não quero ser “maldito” por tão pouco… Não tenho, no entanto, a menor dúvida de que o intelectual em geral – e o professor, em particular – não sobrevive bem sem algumas boas pitadas de “populismo” e de “provocação da maldição”.[1]

Para meu gosto pessoal, é preferível sem dúvida ser um intelectual maldito por excesso de “populismo” do que sofrer a maldição do intelectual prepotente e inadaptado, que confunde o “ser intelectual” com sofisticação do arquivo pessoal, com acumulação privada de conhecimentos ou com erudição nos saberes.

Do jeito como vão as coisas, ao nível da informatização, o ser intelectual exigiria hoje mais do que acumular e armazenar conhecimentos, saber acessar os mesmos. Na verdade, o ser intelectual tem muito pouco a ver com isto, ou seja: com acúmulo de conhecimentos de dados ou de técnicas de acessamento aos conhecimentos ou com erudição. O ser intelectual tem muito pouco a ver com capacidade e oportunidade de armazenagem.

Aliás não há intelectuais mais malditos numa Universidade do que aqueles que muito armazenaram e pouco são capazes de reconhecer o que está fora de seu armazém. (Nem sempre são tão malditos assim. Às vezes são bem e belamente idolatrados, não sem bafejos de ingenuidade e alienação. Isto faz parte da patologia acadêmica!…)  Hoje os computadores – em concorrência desleal, diga-se de passagem! – estão tomando o lugar destes “intelectuais”.

A rigor, mais uma vez estou introduzindo um pequeno viés de perversão conceitual uma vez que os dicionários da língua portuguêsa colocam o “ser intelectual” como sinônimo de ser portador de grande cultura, de ser dotado de inteligência e de ser prendado de dotes do espírito. Notem bem, eu não estou pregando a não importância de todas estas coisas. São importantes e fundamentais. O perigo está em confundir o ser intelectual com tudo isto, em reduzir o ser intelectual a estes aspectos que são puramente meios instrumentais.

Henry A. Giroux fala amplamente disto e cita palavras de Antonio Gramsci, fazendo uma crítica a esta maneira de ver o fruto da atividade intelectual, como “sinônimo de conhecimento enciclopédico, onde em consequência o homem é visto como um simples depósito no qual se colocam e conservam dados empíricos ou fatos brutos isolados, sendo arquivados posteriormente em seu cérebro como nas colunas de um dicionário de tal forma que, no tempo devido, (o homem) seja capaz de responder a diversos  estímulos do mundo externo. … (Isto) só serve – continua Antonio Gramsci – para criar inadaptados, pessoas que se consideram superiores ao restante da humanidade por ter acumulado na sua memória uma certa quantidade de fatos e datas, que eles exibem, a tempo e fóra do tempo, até o ponto de levantar quase uma barreira entre eles mesmos e os demais”.[2]

Ao reler estas palavras de Antonio Gramsci, não posso deixar hoje de relembrar um fato que aconteceu comigo há alguns dias atrás… No final da tarde, na hora do meu chimarrão à sombra em frente à casa, estava conversando com um conhecido meu, seu Lorineo, morador do Bairro, que, de passagem, aproveitou para puxar uma prosa. Falando do clima, das dificuldades para conseguir trabalho, da vida dos outros, lá pelas tantas eu disse: “Pois é, na segunda-feira próxima eu vou ter que falar uma palestra na UNISINOS sobre “o papel do intelectual no mundo atual”… Lorineo, o que tu dirias se eu te perguntasse, para que servem os intelectuais hoje?”… Ele ficou quieto, terminou o chimarrão pensativo como quem está buscando uma resposta à altura, passou a cuia, enxugou o suor, depois disse (meio desajeitado, meio incomodado com a pergunta inoportuna, imprópria e talvez arrogante): “Olha! A palestra é na UNISINOS? Se eles não sabem, eu vou saber? Vou te dizer uma coisa! Se eu soubesse a metade sobre este assunto, eu até te daria algumas idéias para discutir…” “Como assim?” perguntei. “Ah! é assunto muito complicado! Isto aí é só pra…”, disse ele. Já que eu tinha entrado na conversa, continuei: “Pois, para mim, todos são intelectuais. Não sei porque tu dizes que este assunto está tão longe e está tão fóra do alcance! Por acaso as pessoas não pensam, não se planejam, não se organizam, avaliam a sua vida e a dos outros? Para fazer isto, usa-se a inteligência. Quem usa sua intelegência para organizar sua vida e às vezes também a dos outros é um intelectual. A nossa maneira de viver e pensar é a nossa cultura, o intelectual é quem organiza a cultura. Sempre estamos organizando nossa cultura…” Eu já estava começando a me incomodar por estar misturando a linguagem que preparava mentalmente para a fala de hoje e a linguagem daquele chimarrão com o Lorineo, quando ele quebrou mais uma vez o silêncio e disse com um sorriso denunciador: “É, mas tem muita gente por aí que organiza é a sua “curtura”. De cultura não tem nada! Quando se precisa deles para pensar um pouco no bem dos outros, sempre dizem que não sabem, que isto é para os outros, mais preparados. E quando os outros fazem, tascam o pau em cima!” Eu ri. Fui guardar a cuia e disse: “É verdade! Pois sabes, eu acho que vou falar isto que tu acabas de dizer, nessa palestra!” Ele riu, achando que eu estava de gozação. Depois fiquei refletindo e tive a impressão de não ter entendido todo o alcance daquilo que Lorineo dissera… O fato é que nós dois estávamos brincando com a palavra cultura: enquanto ele se referia à “curtura” dos não cultos, na minha cabeça passavam terríveis maus pensamentos a respeito da “curtura” dos cultos.)

A concepção enciclopédica e de intelectual erudito está de mais a mais condenada a não ter público. Se fôsse uma concepção relevante figuraria talvez na galeria de quadros de intelectuais de Horácio Gonzalez; ele teria incluído, entre seus tipos, o “intelectual enciclopédico” ou “intelectual erudito”. Estes “intelectuais” estão sendo superados pelos cérebros eletrônicos, assim como as máquinas de escrever e as impressoras tomaram o lugar dos amanuenses em outros tempos…

As minhas colocações, repito, apesar de toda ênfase com que as palavras vêm carregadas, não querem investir contra a existência dos grandes sintetizadores do conhecimento humano, dos grandes organizadores da cultura ou dos “grandes intelectuais”. A importância e a necessidade destes intelectuais é indiscutível. Ao longo da história do pensamento e das idéias em nosso século, uma contribuição importante, neste sentido, foi a de Karl Manheim com a sua concepção de “intelectualidade desvinculada”, a “intelligentsia” (“Freischwebende Intelligenz”).[3] Seria uma intelectualidade que consegue pairar acima das influências ideológicas existentes e contribuir para as grandes sínteses válidas para todos os grupos.

Não devo estar muito enganado se disser que estamos próximos aqui da concepção de “grande intelectual” de que fala Antonio Gramsci, tanto na sua forma de “intelectual cosmopolita” quanto na sua forma de “intelectual nacional-popular”. Numa tentativa de sintetizar de uma forma bem suscinta parte da contribuição deste autor, pode-se dizer que o “cosmopolita” é o organizador da cultura humana, – se é possível falar assim! – e o “nacional-popular” é o organizador da cultura de uma nação, de um povo.

Peço desculpas pelo “trançado improvisado” que coloca lado a lado, dois autores, que a rigor são muito diferentes. Faz parte do que estou tentando dizer…

O ser intelectual, no nível aqui expresso, implica no cultivo de espírito livre, não diretamente vinculado a organizações e interesses ideológicos, políticos e econômicos muito determinados. Faz parte da liberdade do ser intelectual, estar aberto ao outro. Karl Manheim fala da importância de se forjar isto com o máximo de frequência possível mediante a aproximação de diferentes pontos de vista. (Devo confessar que sempre tive muitas simpatias por esta contribuição mannheimiana. Apesar dos preconceitos existentes na época, lidei muito com este autor nos meus tempos de estudos de graduação em Ciências Sociais!) A abertura para diversos pontos de vista é fundamental para que seja preservada esta liberdade frente às parcialidades demasiadamente reduzidas, fechadas e ofuscadas. Ser intelectual é ser interdisciplinar.[4]

Aliás o que se denominou nas últimas décadas de “crise de paradigmas” não passa de um colocar definitivamente em xeque as “perspectivas unívocas”, as “explicações fechadas” e as “teorias prontas e incontestáveis”. É sem dúvida um novo tempo de avanço intelectual.

Peço que me permitam um pequeno depoimento pessoal, que servirá inclusive para ajudar a ordenar a reflexão que estou apresentando aqui. Tive pessoalmente a rica oportunidade de ser orientado na elaboração da tese de doutorado, por Jean Remy um sociólogo que se destaca por cultivar a importância de trabalhar simultaneamente diferentes pontos de vista teóricos sem deturpar o que há de genuinamente específico e novo dentro de cada uma das contribuições. Habituei-me a abordar a realidade social, ao mesmo tempo, a partir de uma perspectiva que destaca a “lógica dos movimentos sociais”, de uma perspectiva que destaca a “lógica dos campos de atividade” e de uma perspectiva que destaca a “lógica do sujeito e da dinâmica pessoal”.[5]

Em Busca de um Esquema Analítico

O ser intelectual hoje tem muito a ver com movimentar-se com liberdade no meio da complexidade do mundo atual. Ajudar a humanidade a dar conta da complexidade. Ajudar a humanidade a organizar-se de tal forma que as pessoas não acabem esfaceladas e estraçalhadas. É neste sentido que temos grandes e provocadoras contribuições de Edgar Morin.[6]

Os três recortes teóricos trabalhados em conjunto não pretendem evidentemente dar conta da complexidade da realidade social, mas para mim esta maneira de trabalhar está sendo muito proveitosa para garantir uma certa distância frente a posturas dogmaticamente fechadas. Ao mesmo tempo que ajudam nos estudos sociológicos, são também referências importantes nas atividades de intervenção no processo comunitário e social e contribuem especialmente na própria construção e reconstrução constante da identidade de quem reflete e atua.

Apresentarei aqui os mesmos três recortes, para, num esboço ainda em fase bem tateante, mostrar como esta maneira de trabalhar teoricamente pode ser útil na organização de nossa reflexão sobre os intelectuais e seu papel no mundo atual.

Neste sentido, quero sugerir em seguida algumas notas, mais ou menos arranjadas dentro de cada um dos recortes. As idéias sugeridas não são acabadas e devem ser retomadas, ampliadas e corrigidas, em nossa reflexão conjunta a seguir e sobretudo nos muitos encontros que vocês terão em seus seminários e trabalhos de pesquisa durante o tempo de Mestrado.

1 –

Primeiramente, podemos alinhar algumas idéias sobre o papel dos intelectuais, tendo presente, como referência principal, a existência do conflito central dentro da sociedade, estando em questão a apropriação e gestão de sua historicidade. Trata-se da perspectiva teórica que estuda a sociedade através do estudo dos movimentos sociais que a constituem, ou seja: a categoria movimentos sociais está posta em primeiro plano no trabalho de interpretação. Temos presente particularmente a perspectiva que Alain TOURAINE seleciona em seus estudos da sociedade.  Tem-se aí o papel dos intelectuais sendo organicamente alinhado em função do conflito central referente à auto-produção da sociedade, marcado pela “lógica dos movimentos sociais”.[7]

Pensando a sociedade em seu processo de produção de si mesma, nós podemos apontar basicamente para três grandes motores ou geradores deste processo: o confronto sócio-econômico (de classes) através da luta sindical, o confronto político (de conquista de poder) através da luta partidária, o confronto sócio-cultural (espaço da sociedade civil) através dos mais diferentes movimentos e organizações sociais e culturais. No centro de tudo, estão os intelectuais como os organizadores e dinamizadores deste processo, em suma como os organizadores e dinamizadores da própria sociedade. Entra aí o conceito de “intelectuais orgânicos” de Antonio Gramsci.

Uma das maiores contribuições no debate sobre o intelectual está, sem dúvida, em Antonio Gramsci. Já referimos anteriormente a sua concepção de “grande intelectual” (cosmopolita e nacional-popular). O que mais repercutiu, no entanto, é a sua concepção de “intelectuais orgânicos”, como já foi mencionado também, tanto de um lado os organizadores da ideologia da classe dominante, quanto por outro lado os organizadores da contra-ideologia e dos interesses das classes populares.Isto tanto no nível das classes, como dos agrupamentos políticos e das organizações da sociedade civil em geral.

Em cada organização, agrupamento, partido, classe etc existem aqueles que têm a função de intelectual e que exercem o papel de intelectual.[8] O intelectual, neste sentido “orgânico”, não é mais um puro (desinteressado) pesquisador da verdade. Ele se afigura como agente de interesses sociais definidos. Segundo Antonio Gramsci, o intelectual assim assume o papel de “dirigente orgânico” dedicando-se “ativamente à vida prática como construtor, organizador e persuasor permanente”.[9] Aliás, segundo o autor, todos os que exercem funções organizativas na sociedade estão desempenhando o papel de intelectual.

(Cabe aqui um pequeno comentário, entre parêntesis: Existe uma diferença radical entre a maneira como Vladimir I. Lênin percebe o intelectual e seu papel e a maneira como Antonio Gramsci o percebe. V.I.Lênin tem no todo uma concepção muito mais iluminista de intelectual do que A.Gramsci, o qual, ainda que estando próximo do mesmo na sua concepção de “grandes intelectuais”, ao trabalhar a concepção de “intelectual orgânico” em contraposição a “intelectual tradicional” está introduzindo um diferenciador grande em relação a V.I.Lênin. Para A.Gramsci a rigor a condição de intelectual é definida pelo seu caráter de ser um organizador, um conectivo, assegurador da dominação e da hegemonia entre as classes. Em V.I.Lênin é diferente: o intelectual segundo ele é definido assim pela dimensão analítica superior de que é portador e pela coerência das teorias às quais chegou por meio de estudo.[10])

– 2 –

Este parêntesis comparativo entre V.I.Lênin e A.Gramsci nos introduz em nosso segundo recorte… Se olharmos o papel dos intelectuais sob o ponto de vista dos campos de atividade, outros aspectos estarão realçados em primeiro plano, pois dentro deste ponto de vista teórico temos como referência principal o espaço social onde se realizam a reprodução e a produção da sociedade “distribuídas” pelas diferentes atividades, tendo cada uma sua lógica social própria.

Quando falávamos anteriormente dos três motores impulsionadores dos movimentos sociais, ou seja, os três grandes níveis de confronto dentro da sociedade, já estávamos de certa forma introduzindo a temática dos campos de atividade. Não podemos complexificar muito a nossa análise. No caso concreto de nossa reflexão aqui, certamente interessa mais diretamente que nos voltemos para o campo educacional, pensando sobretudo determinado tipo de intelectual que são os intelectuais presentes no sistema educacional.[11]

Os campos de atividade se constituem na medida em que a sociedade se percebe necessitada de organizar-se em função da produção, do cultivo, da distribuição, da normatização, do consumo de bens com especificidade própria. Em cada campo sempre há os grupos (ou um grupo) que chegam a ser reconhecidos e legitimados como os produtores dos bens e de sua normatização.[12] Estes grupos são sempre vistos como “mais fortes” dentro do campo – e isto assume as mais diversas nuances! – enquanto que os demais permanecem numa situação de ter que conquistar espaço para também terem vez. Estes últimos indivíduos ou grupos sempre deverão ser muito melhores que os primeiros para terem alguma chance… Isto na saúde (medicina), na economia, na religião, na política, na jurisprudência, no esporte, na educação. Quem são os principais “jogadores” neste embate? São os intelectuais, ou melhor: os “intelectuais orgânicos” e os “intelectuais tradicionais”. A referência aqui ao intelectual tradicional faz muito sentido, pois neste embate de campos de atividades, joga forte a própria força da instituição enquanto tal. O intelectual tradicional, no sentido gramsciano do termo, ajuda a conservar e a reproduzir as instituições.

No campo educacional, por exemplo: que tipo de intelectuais encontramos? Quais são os intelectuais, no campo educacional? Poderíamos fazer uma grande lista, que vai desde legisladores do ensino até chefes de serviços de apoio didático para as salas de aulas numa escola. Os professores são os intelectuais que mais diretamente nos interessam aqui. O professor pode ser um simples intelectual executor das suas tarefas – isto é: daquilo que ele entende como suas tarefas! – e garantidor do bom funcionamento de sua escola e, neste sentido, um bom intelectual tradicional e talvez também orgânico dos interesses dominantes. Normalmente estes professores, que são muito úteis para a escola, se olharmos de uma certa perspectiva, não são vistos como intelectuais e nem se percebem como tal. Aliás é bastante comum que professores esqueçam que são intelectuais ou, então, que simplesmente não se assumam como intelectuais!…

Segundo Henry A. Giroux, os professores além de serem intelectuais devem primar por ser “intelectuais transformadores”, e isto em vários níveis de envolvimento: – fazendo do ensino uma prática emancipadora; – contribuindo na criação das escolas como espaços públicos democráticos; – ajudando a recuperar uma comunidade de valores progressistas compartilhados; – fomentando um discurso público comum ligado nos imperativos democráticos da igualdade e da justiça social.[13]

Aliás, deixem que eu introduza aqui uma outra questão, que tem a ver com o que eu estava dizendo acima sobre os grupos ou individuos “mais fortes” etc. dentro dos campos de atividade… Trata-se de algo que pode ser considerado de muita pertinência na reflexão sobre o papel dos intelectuais em geral e o papel dos intelectuais no campo educacional. Trata-se da questão poder, dos grupos de poder. O poder da nomeação. O poder da autorização… O poder do carimbo: “Estou de acordo!”… Vejo-me diariamente na situação ridícula de escrever “estou de acordo!”, quando as coisas estão decididas e bem decididas e não há nada a pôr nem a tirar. Mas o carimbo legitima. O poder da nomeação aliás é algo fantástico para o ser humano. Poder dizer: “Isto é assim! Isto está correto! Isto está errado!” e os outros acreditarem, é muito sedutor… Afinal temos dentro de nós uma vocação criadora e este tipo de coisas pode, erradamente ou não, estar preenchendo este anseio…

“Todo agente social aspira, na medida de seus meios, a este poder de nomear e de constituir o mundo nomeando-o: mexericos, calúnias, maledicências, insultos, elogios, acusações, críticas, polêmicas, louvações são apenas a moeda cotidiana dos atos solenes e coletivos de nomeação, celebrações ou condenações de que se incumbem as autoridades universalmente reconhecidas.”[14]

Dentro de uma outra perspectiva, ou complementando estas colocações, a “nomeação” é importante para a sobrevivência de uma organização ou de um grupo. Existe aliás algo de mágico nisto tudo… Os grupos, as organizações necessitam de pessoas para as quais possam passar plena procuração em determinados momentos. Estas pessoas passam a ser o substituto, porta-voz, com poder pleno de falar em nome do grupo.[15] Quando temos algum tema polêmico, por acaso não tendemos em geral a convidar alguém de confiança (afinado conosco) e que seja, de preferência, autoridade reconhecida (nomeada!), para falar sobre o tema? Ele estará levantando, de certa forma, em nome do grupo, as questões que os integrantes do grupo gostariam de colocar…

– 3 –

Finalmente, o intelectual é visto, em primeiro lugar, como um sujeito. Ele pensa, sente, planeja, ama, odeia, avalia, calcula tem coragem e tem medo. A lógica do sujeito e a dinâmica pessoal devem ser levadas em conta como aspectos fundamentais em nossas reflexões sobre o papel dos intelectuais.[16]

Tudo o que falei acima sobre os intelectuais e o conflito central na produção da sociedade de si mesma e sobre os intelectuais e as lógicas dos campos de atividade, faz parte do cotidiano, mas nele estão implicadas mais coisas. Estão implicados todos os atributos dos sujeitos individuais que acabo de enumerar. São estes atributos que trazem à tona diretamente a questão do cotidiano.

Falar em papel do intelectual no mundo atual sem passar por esta questão do cotidiano seria uma abordagem demasiadamente truncada. Ou o intelectual se faz em interação com a complexidade do seu próprio cotidiano e do cotidiano de seu grupo e de sua organização, ou é um intelectual pela metade… Agnes Heller nos ajuda a refletir nesta linha: “A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico. Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humano-genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao contrário, não há nenhum homem, por mais ‘insubstancial’ que seja, que viva tão-somente na cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente”.[17]

Este fazer-se em interação na complexidade do cotidiano ajuda o desabrochar do ser intelectual, dando-lhe mil oportunidades diárias para colocar entre parêntesis os próprios dogmas e preconceitos. O ser intelectual se faz na medida em que houver esta coragem. A alma do ser intelectual é o amor da verdade acima de tudo. Quem busca a verdade nunca tem medo das outras posições, das outras perspectivas, da multiplicidade do diferente. Ele de preferência busca as outras perspectivas e o diferente, para sentir-se confrontado, para complementar seu ponto de vista, para corrigir seu ponto de vista. A busca sincera do avanço da “verdade científica” não é normalmente um caminho tranquilo e atapetado de rosas… Se há rosas, elas não existem, certamente, sem espinhos!…

Aliás, toda esta questão do envolvimento pessoal, do sofrimento, da necessidade da humildade e da não subserviência para que haja objetividade, traz à baila também uma importante questão ética. O ser humano é um ser complexamente atravessado por forças diferentes e muitas vezes contraditórias. Max Weber, refletindo sobre a vocação do cientista e do político, aponta para duas direções éticas diferenciadas, aparentemente contraditórias na administração desta complexidade que é o ser humano em seu convívio cotidiano interpessoal e profissional com os demais. Trata-se do lado mais de responsabilidade funcional do indivíduo e do lado mais das suas convicões e valores pessoais. Segundo este grande clássico da sociologia alemã, as duas direções éticas são irredutíveis uma à outra. Esta irredutibilidade entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção, no entanto, não quer sinalizar que se possa simplesmente dizer que a ética da convicção é o mesmo que ausência de responsabilidade e que a ética de responsabilidade é o mesmo que ausência de convicção. Pelo contrário, elas na sua complementação mútua vem a constituir o que Max Weber denomina de “homem autêntico”. “A ética da convicção e a ética da responsabilidade não são contraditórias, mas elas se complementam uma à outra e constituem juntas o homem autêntico”.[18] “Segundo Jean Remy, o indivíduo na concepção sociológica weberiana é um indivíduo puxado ou assediado tanto pela intensa racionalidade expressa na ética da responsabilidade, quanto por uma certa dose de irracionalidade expressa na ética da convicção”.[19]

Esta reflexão faz-nos retornar à questão das lógicas dos campos de atividade. Experimento isto muito na minha vida pessoal como engajado diretamente no trabalho pastoral da Igreja, por um lado, e como profissional sociólogo, por outro lado. Aprendi muito do orientador de minha tese de doutorado neste sentido. Ele não se cansava em insistir nos cursos e palestras sobre a importância de cuidar para não confundir ou misturar caóticamente o plano do conhecimento técnico-científico e o plano da fé, mas viver os dois planos de forma autêntica. “Nenhuma religião, dizia ele, subsistiria se os intelectuais que estão à sua frente reduzissem todas as suas decisões a apoios fornecidos pelo conhecimento técnico-científico. Como também nenhum empreendimento técnico-administrativo ou de estratégia política subsistiria se seus intelectuais se deixassem arrastar pelas crenças e convicções religiosas suas ou de outros!”

Desafios a partir do mundo atual

Peço mais uma vez desculpas se as minhas colocações estão um pouco desalinhadas e às vezes carecendo de uma construção mais acurada, isto é devido ao contexto em que o presente texto foi elaborado. Trata-se de uma construção (se quiserem: bricolagem) feita aos pedaços e fragmentos, no meio de infindos espasmos burocráticos dentro da atual função que ocupo na Universidade. Aliás, devo confessar que estou descobrindo, talvez a duras penas, que os ofícios ou cargos administrativos são um lugar específico e tremendamente desafiador para o ser intelectual.

Não quero deixar passar este momento de fala sobre o papel do intelectual num ambiente tão privilegiado como é este do Mestrado em Educação, sem sinalizar dois pontos de suma importância e urgência. Não estou com isto interferindo em nada no planejamento e na responsabilidade da Coordenação e do Colegiado deste Programa, que evidentemente está muito além do que aqui consigo apontar na minha pobre contribuição. Peço licença para lançar, com toda simplicidade, duas pequenas referências a mais para nossa reflexão neste momento.

Em primeiro lugar, creio ser um desafio importante para o nosso ser intelectual, aprofundar a discussão das linhas de pesquisa. E eu destacaria um aspecto de fundamental importância no fazer ciência, que está relacionado com linha de pesquisa: trata-se do trabalho intelectual coletivo, da produção coletiva do saber. É necessário um constante esforço por romper nossos pequenos isolacionismos e nossas construções muito em cima dos interesses pessoais de cada pesquisador. Levar a sério a discussão de linhas de pesquisa, no meu entender, implica em primeiro lugar nisto, neste fazer coletivo. Aliás, talvez seja oportuna a lembrança aqui do depoimento de um grande intelectual, que foi Georg Lukacs. Dizia ele: “Sinto-me na obrigação de destacar que minhas obras não são de modo algum o resultado do feliz êxito de um único indivíduo. Ao contrário, se meus escritos forem estudados à luz de suas origens e de seus efeitos imediatos, tornar-se-á cada vez mais claro que minha atividade teórica jamais foi a atividade de um pensador ‘isolado’, mas sempre foi – e o é cada vez mais – algo dirigido para o estabelecimento de uma linha de pensamento, de uma escola…”[20]

Nós precisamos ser coletivos em nosso fazer ciência, em nosso ser intelectual. É necessário romper o fácil isolacionismo. Precisamos construir escola! Linhas de pesquisa levadas a sério são um caminho para tal.

Um segundo desafio fundamental que não quero deixar de mencionar, apesar de estar com isso obviamente “chovendo no molhado” aqui neste egrégio ambiente, é a importância de, como Mestrado em Educação, aprofundarmos o estudo da nova LDB (Lei e Diretrizes de Base) e darmos assim a nossa contribuição para a comunidade acadêmica da Universidade e para os demais intelectuais do meio educacional na leitura da nova LDB do sistema educacional brasileiro.

O título que foi sugerido para esta aula envolve, além do “papel do intelectuais”, a preocupação com o “mundo atual”, ou seja: qual o papel dos intelectuais no mundo atual? Não posso, por isso, deixar de apontar alguns elementos de reflexão especificamente sobre como vejo o “mundo atual”, antes de abrirmos para nossa reflexão conjunta.

Em primeiro lugar, gostaria de observar que o intelectual é um organizador do “atual” vinculando-o ao “não-mais-atual” e ao “ainda-não-atual”. Em outras palavras, um organizador do presente levando em conta o passado (acumulação teórica e experiência histórica) e voltado para o futuro (visão de futuro).

O que caracteriza o “mundo atual”?  Digo algumas coisas. Trata-se de algumas indicações para a reflexão conjunta que seguirá. Para não me estender demasiadamente e talvez ir diretamente a alguns pontos que interessam mais imediatamente, vou ater-me a aspectos culturais da sociedade brasileira no mundo atual…

A sociedade brasileira vive hoje uma crise cultural muito grande. Em recente documento da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)[21], são apontadas algumas marcas que caracterizam a sociedade brasileira no momento histórico que vivemos. Seus autores colocam estas características como heranças dos desdobramentos da modernidade em nossa sociedade. Segundo o documento, deve-se destacar, a expansão do pluralismo cultural, a inversão paradoxal no avanço tecnológico e a crescente explicitação da falência das promessas da mesma modernidade.

O clássico rompimento entre a cultura e o sistema econômico e político que a modernidade trouxe, abre os caminhos para a diversificação cultural, com maior ou menor intensidade conforme as condições existentes. No Brasil, como em outros países semelhantes, historicamente constituído da convergência forçada de etnias, culturas e religiões diversas, as condições são muito favoráveis para a manifestação de um mosaico cultural extremamente variado.

Se isto, por um lado, é facilmente constatável, também não há como duvidar, por outro lado, que as gritantes contradições dos avanços tecnológicos, colocando lado a lado o incremento de indubitáveis vantagens para a humanidade e o aumento das desigualdades sociais e das discriminações, têm no Brasil de hoje um de seus palcos mais ostensivos.

A par de tudo isto, cresceu nos últimos anos no Brasil, como no Ocidente em geral, a consciência dos limites dos avanços da humanidade, que se elabora na constatação diária da falência das promessas de acesso universal ao bem-estar.

Estes três elementos, que sintetizamos a partir do Documento referido, constituem o substrato básico da crise cultural que se manifesta no Brasil de hoje.  Esta se manifesta sobretudo como crise generalizada de valores e de sentido da vida acompanhada por uma aguda crise de lideranças. Isto vem reforçado se levarmos, por exemplo, em conta as três perspectivas teóricas apontadas anteriormente. Podemos apontar como desafios para os intelectuais, no momento em que vivemos, os seguintes três pontos característicos: 1) dentro da “lógica dos movimentos sociais”, a falta de alternativa global, a queda do “muro de Berlim” continuando a ter seus efeitos; 2) dentro da “lógica dos campos de atividade” a presença de um esfacelamento e fragmentação, com uma infinda multiplicação de campos; 3) dentro da “lógica dos sujeitos” a crescente manifestação da trivialidade e da superficalidade corroem violentamente a dinâmica pessoal dos indivíduos.

Por dentro da crise, assim descrita e analisada, manifestam-se alguns fenômenos de extrema relevância que devem ser registrados aqui. Aqui vou orientar minha colocação apoiando-me mais diretamente em alguns fenômenos específicos, os quais em grande parte são decorrência de tudo isto.[22] Em seguida, levantarei algumas interrogações numa linha de análise e de reflexão sobre o papel dos intelectuais no mundo atual.

1) É apontado em primeiro lugar o individualismo, em sua forma narcisista mais extrema, onde o indivíduo, na total perda de valores alheios a seus interesses pessoais, se concentra cada vez mais sobre si, descomprometendo-se com o comunitário e com iniciativas que apelem à solidariedade. Isto provoca a crescente perda do sentimento de responsabilidade coletiva e comunitária, onde a atitude do “levar vantagens em tudo” (lei do Gerson) transforma-se no caminho do isolamento das pessoas no seu individualismo narcisista obstruindo todo acesso ao espírito de solidariedade.

2) O imediatismo está diretamente associado a este individualismo, com a preocupação de viver-se intensamente o momento presente, como o difundido nos MCS, menos voltado ao planejamento do amanhã e à cultura da poupança. Tem-se dificuldade em optar por sacrificar o usufruto de um bem agora, em benefício de um bem maior no futuro. Também os valores acumulados do passado, as contribuições teóricas do passado tendem a cair no descaso. Diante de certas instâncias, deve-se cuidar para não colocar na bibliografia obras de autores clássicos com data de publicação muito recuada, pois corre-se o risco de ser propagador de bibliografia desatualizada…

3) Em terceiro lugar, aparece com muito vigor um certo consumismo desenfreado. Enquanto R. Descartes iniciava seu filosofar com o “penso, logo existo”, hoje insinua-se uma nova forma de pensar, agir e afirmar a existência, calcada no consumismo insaciável, onde, mais do que antes, a pessoa é socialmente reconhecida pelo padrão de consumo que consegue ostentar. (Os Shopping Centers podem ser vistos como a materialização de símbolos da cultura reinante).

4) Um quarto fenômeno é definido pelo rápido avanço da informatização e dos meios de comunicação, que aproxima cada vez mais as pessoas, as instituições e as culturas, através das redes eletrônicas e outros sofisticados mecanismos…  Ao lado das múltiplas vantagens deste avanço para a humanidade, deve-se ter presente que nele está também implicado o risco da  exasperação do “efêmero” e do “provisório” prejudicando engajamentos e posicionamentos mais refletidos e amadurecidos. A “aproximação”, da qual se fala, não passa, muitas vezes, de um novo artifício de dominação…

5) Envolvido em tudo isto está o conhecido “pluralismo ético absoluto” colocando, na prática, em xeque a necessidade de “fundamento ético comum”, prolifera de forma vertiginosa. (Nós cristãos prefessamos um “fundamento ético comum” baseado em Jesus Cristo, que veio “para que todos tenham vida e a tenham plenamente!”). Questões eminentemente éticas tendem a ser medidas e apreciadas, neste contexto, ao sabor da “opinião pública”, colocando-se a opinião da maioria como o critério de valor fundamental. (o programa televisivo “Você Decide!” pode ser apontado como o exemplo mais banal disto.) Sabe-se o quanto de falacioso existe nisto, pois a “opinião da maioria” muitas vezes não passa da afirmação da vontade dos que têm maior poder de influência.

6) Ainda quanto à ética, a crescente indiferença frente à pobreza e à exclusão social é um dos indicativos mais patentes da crise da mesma. Basta ver a insensibilidade dos poderes públicos, hoje, frente à necessidade de combater as causas da pobreza e da exclusão social. Basta ver, também, a banalidade ou a insensibilidade com que se encara a “convivência” ou a “necessidade” de substituir o homem pela máquina, pelo computador e pelo robô, para manter a competitividade no mercado. Se isto por um lado é verdade, é também amplamente constatado, por outro lado, que a humanidade em geral e a sociedade brasileira em particular, através de diferentes pronunciamentos e iniciativas de pessoas, grupos e organizações preocupados com a ética pública, já demonstrou com vigor a consciência da grave crise ética que nos assola.

7) Destaca-se, sem dúvida, no meio de todos estes fenômenos, o ressurgimento de manifestações religiosas acompanhado do surgimento de uma nova onda de misticismo, que se afirma de diferentes formas, onde, em meio à anomia social reinante, as “forças do além” são buscadas como ancoradouro para a busca de respostas frente às grandes perplexidades e às crises de identidade hoje imperantes. Nesta mesma direção, apesar de operar com referenciais diferentes, constata-se também o surgimento de vários tipos de fundamentalismo religioso, que se manifestam nas diversas tradições e sistemas religiosos mais consolidados.

8) Por fim, estes últimos fenômenos apontam sobretudo para a busca de novas fórmulas místicas, novos caminhos para sair da rota da trivialidade. O quadro religioso se encontra muito diversificado. São múltiplos os caminhos que são diariamente ofertados para um público pouco ou nada preparado para um bom discernimento. Se isto é verdade, é também importante que, no contexto de superficialidade e de trivialidade em que vivemos, se sublinhe a grande riqueza em termos de despertamento para o que há de mais profundamente humano manifestado por estas buscas religiosas multiformes.

Poderíamos apontar uma série de fenômenos a mais, sinalizando características da cultura de nossa sociedade no momento histórico que vivemos. Os aqui listados são no entanto suficientemente reveladores dos desafios propostos para os intelectuais neste momento. Cada um dos fenômenos apontados traz em si desafios específicos. Há criações geniais no meio de tudo isto, colocando radicalmente em xeque velhas fórmulas dentro das quais estamos acostumados a agir e reagir. Há efeitos perversos colocando em risco a própria dignidade do ser humano…

Quando apontei acima para a importância de darmos atenção ao cultivo de linhas de pesquisa e ao aprofundamento da nova LDB, eu o fiz tendo presente tudo isto.

Vou parar por aqui. Não pretendo ter dado uma resposta completa e sistemática à pergunta sobre o “papel dos intelectuais no mundo atual”. O que fiz foi elencar alguns pensamentos como quem está iniciando uma reflexão, que ainda deve tomar corpo… A palavra agora é de vocês. Mais do que disposto a responder perguntas, estou agora ansioso por ouvir complementações, questionamentos, reflexões e indicações de referências.

Troca de idéias

Ático: “Vou dirigir minha questão talvez mais para o padre do que para o sociólogo. Falaste das novas formas de religião e de misticismo e existe uma farta literatura sobre isto… Como trabalhar esta nova questão das novas formas de misticismo e de fundamentalismo, principalmente no meio acadêmico?”

osé Ivo: “Bem, em outros tempos, quando o catolicismo era onipresente no meio intelectual, a Academia convivia com isto… Para falar a verdade eu não tenho uma resposta para a questão que você formula. Se alguém quiser responder, por favor… Trata-se sem dúvida de um desafio muito grande. Um desafio sobretudo para a própria Academia. Eu diria: Em primeiro lugar, é necessário saber levar a sério… A Academia tem muita dificuldade em levar a sério este tipo de coisas. A nossa Academia (brasileira), sobretudo. Aliás temos em geral muita dificuldade em levar a sério aquilo que não se enquadra dentro de nossos parâmetros, do nosso esquema. Em segundo lugar, o levar a sério implica também em saber entabular diálogos e fazer da Academia um espaço de discussão e estudo desta realidade, chamando os agentes destes meios para dentro do espaço acadêmico. Tive neste sentido uma experiência rica na Europa, onde o fenômeno do Islamismo, que por sinal muito assusta a sociedade européia, com freqüência fazia-se tema de discussão acadêmica em Debates, Seminários, Ciclos de Palestras e Cursos, nos quais se via a participação de intelectuais estudiosos deste fenômeno e também militantes ou intelectuais do próprio movimento religioso em questão. Nosso meio acadêmico é um pouco lento nestas coisas… Para responder em poucas palavras à questão – e aí incluo o fenômeno religioso em geral em suas múltiplas formas de expressão hoje -, devo dizer que não se trata de algo que possa ser ignorado! Assim como a Igreja Católica não podia ser ignorada, sobretudo na Idade Média, onde (exagerando um pouco) nada se pensava sem que passasse pelo crivo intelectual desta Igreja…”

Egídio: “Dentro desta questão que o Prof. Ático levanta, eu acho que nós intelectuais deveríamos nos questionar mais profundamente sobre as causas de todos estes fenômenos, sobre o que está causando os fundamentalismos de que fala o professor. Isto não vem por acaso. Inclusive nós temos talvez parte na causação deste fenômeno. Não estamos conseguindo responder àquilo que o povo, as camadas mais necessitadas esperam de nós intelectuais. Não encontrando respostas, apela-se com facilidade ao extraordinário. Nós estamos em geral muito apegados e limitados a certas práticas sem termos condição de perceber o que o povo tem a dizer. O povo também tem algo a dizer, aliás tem muito a dizer… O que este povo espera de nós? Será que nós intelectuais estamos sendo realmente capazes de perceber o que povo espera? Será que somos capazes de interpretar as aspirações do povo? E eu vou mais longe: será que nós professores somos capazes de interpretar as aspirações de nossos alunos? Será que escutamos suficientemente os anseios e as aspirações deles? Evidentemente o diálogo é aí o único caminho. Permitir que o outro pense não é perigoso. Perigoso é não deixar pensar. Perigoso é impor nossa opinião sem saber escutar. Certamente os alunos têm algo a nos dizer sobre a nossa atuação. Todos nós somos intelectuais: alunos e professores. É de se perguntar se o nosso diálogo realmente penetra o nível dos valores que cultivamos e dos valores que necessariamente precisamos criar para podermos atender àquilo que se espera de nós na Educação Básica. Muitas coisas daquilo que nós aprendemos são, sem dúvida, muito boas. São realmente básicas, no sentido de uma base para a ação, mas isto não é ainda a encarnação dentro da realidade. Eu gostaria que a gente pensasse muito nisso. Qual é afinal o nosso compromisso para com a Educação Básica? O que realmente estamos fazendo nestes termos? Estou atualmente levando uma pesquisa no sentido de verificar a adequação entre aquilo que se ensina aos nossos alunos e aquilo que eles precisam para serem professores. É uma pesquisa que está em andamento. Espero que traga dados interessantes para depois trocar mais idéias em cima disto.”

Voz: “Você na sua colocação enfatizou muito a produção coletiva no meio intelectual. Como é que você vê a contribuição individual nesta produção?”

José Ivo: Eu diria que não existe coletivo sem a participação dos indivíduos. Não existe uma identidade coletiva sem que haja identidades individuais a constituindo. A identidade coletiva é uma constante construção feita mediante a participação de individualidades. Um projeto coletivo não subsiste se ele não se coaduna, de alguma forma, com os projetos individuais daqueles que o assumem e fazem parte deste projeto. No trabalho intelectual acontece o mesmo. Quando falo coletivo eu entendo algo assumido em conjunto. Creio que não se deve chamar de trabalho intelectual coletivo aquele que gira todo em torno de um iluminado (ou um guru) sendo os demais seus servidores. O que define o trabalho intelectual coletivo é a participação de todos os indivíduos que estão engajados no projeto, fazendo incidir nele os seus saberes, suas preocupações, seus interesses, sua experiência acumulada… Para que aconteça efetivamente um trabalho intelectual coletivo, deve-se passar por um longo processo inicial de reconhecimento mútuo do próprio grupo.”

Emi: “Em relação ao tema central de sua palestra, eu me coloco a questão se não se deveria pensar que o papel do intelectual no mundo atual é o de tornar acessível a metodologia. O que aliás mais apreciei na sua palestra foi o tornar visível a maneira como construiu esta contribuição aqui. Acredito que o não tornar acessível este caminho talvez seja o maior ponto de distanciamento entre os que conseguem desenvolver as condições de exercício da sua intelectualidade e as pessoas que não têm acesso a este exercício. O senhor, em sua palestra, tornou manifesta e explícita a maneira como construiu a própria ideação a respeito do tema, partilhando conosco os detalhes dos momentos desta construção, onde e como foram buscadas as referências, a referência que fugiu, a contribuição expontânea de pessoas concretas. Para mim, este foi o ponto mais interessante nesta sua exposição. O senhor repartiu com todo este grupo de pessoas a forma peculiar de exercitar o seu ser intelectual. Talvez esteja faltando aos intelectuais em geral esta consciência do privilégio que tiveram e se esquecem de tornar acessível, como o senhor fez, a maneira como constróem as suas contribuições.”

Egídio: “Só talvez para acrescentar mais algo nisto que a Profa. Emi está colocando… O intelectual de fato não vive só de resultados. Seu ser intelectual é um constante processo, no qual há sucessos e fracassos. É muito importante que o caminho percorrido fique explícito. O resultado final pode dar uma idéia muito deformada do vivido anteriormente. Por exemplo, Einstein foi reprovado em Matemática na escola. É importante que sempre voltemos a retomar o nosso caminho. O porquê das pequenas e grandes mudanças de rumo na escolha de nossas temáticas. Se temos viva consciência de nosso caminho feito, seremos também muito mais capazes de ajudar a orientar outros que estão iniciando. Não podemos esquecer que somos seres históricos e que temos todo um caminho percorrido onde se deram fracassos e vitórias. Até é importante que tenha havido fracassos em nossa trajetória. Isto nos torna mais capazes de compreender os demais.”

Clair: “Ouvindo o José Ivo falar, devo dizer que fiquei muito sensibilizada por uma série de coisas. Realmente quando se coloca a questão do papel dos intelectuais no mundo atual, muitas coisas aparecem… Muitas coisas foram passando por mim neste momento. Esta ligação entre o pensar e o sentir que parece estar muito presente nas colocações do José Ivo é para mim algo fundamental. Eu estava lembrando agora de um depoimento da filha do Che-Guevara, numa entrevista, chamando a atenção para um outro lado do ser intelectual que diz respeito a outro tipo de conhecimento, o conhecimento que dói. O ser intelectual está muitas vezes atravessado por coisas que doem, que mexem com o sentimento. Neste depoimento, ela referia uma carta que tinha recebido de seu pai na qual este lhe dizia, que ´enquanto um ser humano sentisse uma dor, nós deveríamos sentir como se esta dor fosse nossa´. Ela via nesta frase o grande legado que o pai dela lhe deixara, ele que tinha dado toda a sua vida e foi morto pelo ideal que defendia. Se contrapormos este depoimento da filha do Che a uma reflexão recente de Margaret Tatcher que diz que não existe sociedade, que só existem indivíduos, que se somam e competem, eu fico me perguntando sobre a posição que devemos assumir para, neste momento tão conturbado do saber intelectual, não abrir mão deste lado tão importante que é a sensibilidade, o sentimento do intelectual…”

José Ivo: “No meio intelectual nós presenciamos muitas situações de descolamento. Muitos intelectuais se auto-alimentam na percepção de si mesmos como se fossem os iluminados que conseguiram chegar a um patamar em que os demais não chegaram e não mostram muito interesse em dar o mapa do tesouro. Acabam pairando acima da realidade, esquecendo-se da própria realidade. Então as observações tanto da Profa. Emi, do Pe. Egídio, como esta sua agora, apontam todas numa mesma direção. Apontam para a necessidade de se pensar o ser intelectual vinculado, conectado com a realidade da qual ele faz parte, na qual ele vive, com o sofrimento, com os sentimentos e com o que de fato acontece no cotidiano das pessoas. Ele só vai poder ser isto, fazer isto na medida em que ele souber trazer para dentro de seu trabalho intelectual o seu ser, os seus sentimentos, a sua paixão, em suma, o seu cotidiano cheio de contradições. E, evidentemente, a história do seu caminho intelectual faz parte disto. Assim como a filha do Che, uma intelectual sendo entrevistada, traz para dentro de sua reflexão todo este seu grande sentimento, ligado ao grande legado do seu pai.”

Ednaldo: “Uma questão muito interessante, que eu gostaria de retomar aqui, é aquela quando você fala que o intelectual deve saber movimentar-se com liberdade dentro da complexidade do mundo atual. Uma pequena dúvida, e isto é um aspecto que também foi apontado, diz respeito a como trabalhar esta liberdade, tendo presente o clima de permanente disputa na afirmação da própria intelectualidade. O intelectual de hoje pode não ser o intelectual de amanhã, tendo em vista os limites de sua liberdade. Toda vez que é cerceada a capacidade de se movimentar está sendo, de certa forma, cerceado o ser intelectual. Para fazer frente a estes cerceamentos e garantir a liberdade, tendo presente os limites que de fato estão sempre aí, o que você colocaria como motor possível, o confronto, o consenso, a solidariedade? Como você vê estes princípios, que são aparentemente contraditórios? Como você trabalha esta questão?”

José Ivo: “Você fala em motor. Eu diria que o grande motor é a humildade. É reconhecer as próprias limitações, ser capaz disto… Também saber perceber as limitações do outro. Não se ajoelhar tão facilmente diante do outro, adorando-o como um deus. O exercício da humildade, que é sobretudo um exercício de justa relação, é fundamental para preservar a liberdade dentro de toda a complexidade que vivemos. Isto aliás tem uma aplicação para dentro do próprio entendimento do fazer ciência, sobretudo em se tratando de ciências humanas. Quando os alunos de sociologia em aula levantam a questão da objetividade científica, costumo colocar a humildade do cientista, em certo sentido como “sinônimo” de objetividade. A humildade é, no limite, a capacidade de reconhecer até onde vão realmente as nossas certezas e deixar também explícito para nós mesmos e para nossos interlocutores qual é nossa opção ideológica. E volto a dizer, isto também implica em não nos ajoelharmos tão facilmente diante das certezas dos outros. Esta é uma postura básica para a liberdade. Não sei se não descaracterizei demasiadamente a sua questão, que me parece ser bem mais ampla.”

Ednaldo: “Está muito difundido na Universidade a afirmação de que se consegue a liberdade através do conhecimento. Quase no final de sua fala você apontava para uma das falências da modernidade que tem exatamente a ver com o conhecimento estimulado neste contexto. Como falar que a liberdade se dá através do conhecimento, se este último é um benefício social muito pouco disponível?”

José Ivo: “Depende do que entendemos por conhecimento, não é? O conhecimento liberta, sim! Nós vemos isto escrito todo dia por aí, em outdoors, em camisetas, em folhetos… Aqui no Campus especialmente! Todo dia nos deparamos com esta frase, como é que é ainda? “Só o conhecimento garante a sua liberdade!” É! Este é o motor de sua questão? De qual conhecimento estamos falando? Será que estamos nos restringindo ao conhecimento que é veiculado e adquirido na Academia? Espera-se que este conhecimento também liberte! Que a pessoa se liberta na medida em que conhece ninguém pode duvidar… Ela se torna mais livre na medida em que ela se conhece melhor, na medida em que conhece os outros e conhece o chão onde pisa. Nesta medida, ela se faz evidentemente mais livre do que numa situação de não conhecimento. Não devemos reduzir conhecimento àquilo que é adquirido na escola, na Universidade. Trata-se de algo muito mais amplo.”

Laércio: “O conhecimento é um ato de reconhecimento. Contém o desejo que se tem de reconhecer que aquilo que buscamos cabe dentro de determinada positividade. É reconhecimento em relação aos outros significando a dinâmica de uma troca mais profunda. Muito para além de elaboração de conceitos e sistemas conceituais, o conhecimento é sempre um processo de busca. Isto acontece em todas as áreas. Este caminho, este processo, esta busca é muito parecido nas diferentes áreas. Isto não é privilégio de uma área determinada. Trata-se de um processo de relação, atravessado de sentimentos às vezes com contradições. Como toda relação… É importante que esta troca (o conhecimento) seja um ato de amor. O ato de conhecer se faz pleno se ele é um ato de amor. Amar aquilo que a gente faz. O ato de conhecer é dignificado na medida em que ele se reveste desta busca amorosa, que liberta. Quem ama dá esta liberdade a si mesmo. Isto faz romper os mundos estanques e as clausuras disciplinares. Precisamos redescobrir esta relação conosco mesmos e a capacidade de nos sabermos expor frente aos outros. No campo pedagógico isto é fundamental. Não são espaços estanques: adultos, crianças, pensadores, não pensadores… Precisamos movimentar-nos mais livremente nestes espaços. E aí talvez o primeiro passo seja menos ensinar a aprender do que aprender a ensinar.”

José Ivo: “Eu estava ansioso por ouvir um filósofo…”

Gelsa: “Eu gostaria de escutar um pouco mais sobre esta questão da humildade intelectual. Concordo contigo no que falaste. Creio que é uma das coisas mais importantes que devemos exercitar enquanto intelectuais. Esta humildade de reconhecer as limitações (nossas) de cada um de nós e de todos os outros. Como vês a possibilidade do exercício desta humildade na perspectiva da concepção gramsciana de intelectual orgânico…?”

José Ivo: “Acho que Gramsci quando trabalha a questão do intelectual orgânico, está preocupado em pensar o intelectual na sua função na sociedade, para que existe o intelectual e qual a sua importância na sociedade? Para ele o intelectual é realmente importante na medida em que é também dirigente, na medida em que dá sua contribuição como líder na história. Enquanto sujeito da história. Quem entra na história para fazer história, não pode entrar fazendo-se dono da história, porque a história é feita por todos os que nela participam. Quem entra na história para fazer história deve respeitar esta história. O intelectual é orgânico na medida em que é capaz de ouvir quais são efetivamente os interesses do grupo que ele está ajudando a se pensar e a se organizar. Já falei que humildade é reconhecer-se a si mesmo em suas limitações, reconhecendo a sua capacidade própria de dar contribuições, reconhecer o outro em suas limitações e também em suas condições de contribuir. Na prática, no meio intelectual, isto é um desafio tremendo. Eu estou sempre mais escandalizado por aquilo que percebo na Academia. Para mim não tem sentido que o meio Acadêmico, definido como espaço de busca participada e conjunta do conhecimento, vire um meio que abriga querelas de poder em relação ao conhecimento… Tem sentido isto? No entanto a Academia está repleta disto!… Bom, já fiz minha confissão! Vamos ver se outra pessoa quer falar…

Liceu: “Eu venho de uma área diferente – sou da Comunicação! – e uma das questões que eu vivo me colocando é o fato de que há muitos intelectuais que ficam gravitando em certo sentido demasiadamente ao ´redor do próprio umbigo´. Assim eu fico todo cheio de dedos ao entrar neste debate sobre o intelectual. Tenho certo receio que quando a gente começa a refletir e buscar afirmar novas linhas de pesquisa, corre-se o risco de cair no ostracismo. Vejo gente muita boa deixando de investir na busca de coisas novas, deixando de criar coisas que seriam importantes para a sociedade, talvez, mas isto poderia custar-lhes caro dentro do mundo acadêmico. Então há um certo receio. Além disto, o individualismo neste meio e os mundos muito separados são uma limitação muito grande. A interdisciplinaridade é certamente uma saída para romper isto. Eu percebo por exemplo ótimas críticas sobre atividades do meio da Comunicação, em trabalhos na Área de Educação. Os intelectuais da Educação contribuem mais na crítica da Comunicação do que os próprios intelectuais da Comunicação. Como dar força ao trabalho interdisciplinar no meio acadêmico?”

José Ivo: “Creio que é nisto que reside exatamente uma das funções da existência de linhas de pesquisa. A linha de pesquisa, pode-se dizer, força os grupos na Academia a saírem de si e forçar a própria Academia a sair de si. Ela não deveria também estar desvinculada de um verdadeiro serviço à coletividade. As linhas de pesquisa deveriam, no meu entender, nascer sempre de um debate mais amplo, na própria sociedade. Elas não deveriam resultar simplesmente de uma decisão interna de um grupo dentro da Academia, que como por decreto, a partir de suas preferências diz: ´nossas linhas de pesquisa são estas!…´ A pergunta sempre deve ser: “o que se espera, na sociedade, deste programa ou deste grupo da Academia?”

Rute: “Trata-se de uma questão fundamental e muito desafiadora. Não se pode esquecer que na própria definição de linha de pesquisa ainda continuam pairando dúvidas. Há muitas divergências neste campo.”

Emi: “Concordo com o Prof. José Ivo na importância em se investir realmente na discussão e no afinamento das linhas de pesquisa e um dos pressupostos básicos que fundamenta uma linha de pesquisa é exatamente a importância e a urgência para a própria sociedade. Creio que podemos ser otimistas com relação ao grupo que aqui se encontra, que aliás está sendo sempre mais numeroso. Temos certamente boas chances de romper sempre mais a assim chamada ´solidão da Academia´. Num grupo como este, voltado para a Educação Básica, aumenta por si só – por sua própria definição! – a responsabilidade coletiva por não deixar prosperar linhas de pesquisa que conduzam a um distanciamento das necessidades prementes da sociedade neste campo da educação.”

Rute: “O nosso programa de Mestrado define-se por uma redefinição permanente de sua própria proposta. Quer ser um programa constantemente atento. É o que está definido já em nossa proposta inicial. Isto reflete uma preocupação justamente alinhada com o que está aqui sendo colocado…”

Ednaldo: “Você insistiu em duas frentes imediatas importantes para a ação. Por um lado, você aponta para a importância da produção coletiva, colocando o cultivo das linhas de pesquisa como meio para isto. Você até fala na importância de constituir-se escola, enquanto trabalho intelectual coletivo. Por outro lado,  você aponta para a importância de se dar uma atenção especial à nova LDB, quando se sabe que esta LDB, que aí está, é exatamente fruto de um atropelo da produção coletiva. Foi negado todo um processo de elaboração coletiva, para se optar pela produção individual de um iluminado. Como você explica esta contradição aparente nas suas duas propostas?”

José Ivo: “Eu estou falando da LDB que está aí. Não vejo uma contradição tão grande entre as duas propostas que faço…”

Ednaldo: “Minha questão se dirige mais no sentido de perguntar sobre a legitimidade de uma lei destas, quando se sabe que os trabalhadores da educação tinham todo uma proposta trabalhada com muito empenho e participação. Esta proposta foi de fato desconsiderada e substituída simplesmente pela de um iluminado… Qual a legitimidade desta lei, tendo em vista que os trabalhadores da educação não se sentem sujeitos da produção desta lei. Não estou nem dizendo que a lei que está aí não seja boa, que não tenha boas contribuições. Que elas existem não tem dúvida. Existe, no entanto, uma questão anterior, que é a questão da legitimidade. Como trabalhar esta questão agora? Há um resultado de produção coletiva, que foi desconsiderado, mas se acredita e insiste em que a produção intelectual deve ser coletiva inclusive em cima desta LDB…”

José Ivo: “Está sendo previsto pelo Centro de Ciências Humanas, por sugestão da própria Pró-Reitora de Ensino e Pesquisa, um seminário interno sobre a nova LDB já em meados do mês de abril. Já temos um Grupo de Trabalho constituído para a sua preparação. Creio que será um fórum importante para aprofundarmos estas questões, não tanto para discutir um processo que foi frustrado, mas para trabalharmos em cima do texto da lei que aí está e darmos a nossa contribuição em seu processo de implantação.”

Emi: “Este será certamente um espaço mais adequado para discutirmos o texto da LDB e as importantes contribuições que ela nos traz. Independente da maneira como se deu seu processo, a LDB tem uma grande qualidade, que é a de não forçar a comunidade acadêmica a nada. Ela oportuniza a discussão e a construção continuada. Toda lei e sobretudo esta, na forma como está expressa, exige uma hermenêutica da própria comunidade que vai executá-la. Entendo que, entre todos os méritos que a nova LDB possa ter, deve-se destacar este de ser um espaço extremamente aberto. Embora possa haver discordâncias em relação à maneira como foi selecionado o texto que acabou sendo o aprovado, deve-se reconhecer como principal ponto positivo exatamente a qualidade do texto aprovado enquanto um texto que não obstrui e não impede a continuação da construção coletiva. É o que devemos fazer. Vamos ter através deste seminário a oportunidade de construir a maneira como a UNISINOS se posiciona dentro desta nova ordem.”

Rute: “Não tendo mais pessoas inscritas para fazer uso da palavra, quero agradecer ao Prof. José Ivo pelas instigantes interrogações que ele conseguiu fazer desencadear em cada um de nós. Que isto seja o início de uma reflexão que se transforme também constantemente em ação. Que nosso trabalho intelectual não seja simplesmente um ato solitário, mas sim solidário. Esta foi uma das mensagens. Que nosso trabalho intelectual não seja trabalho simplesmente submisso a atos de fé dirigidos por dogmas que impomos e que nos deixamos impor. Esta, parece-me, foi uma outra mensagem importante. Que o trabalho intelectual seja sempre um trabalho onde o exercício da liberdade e da responsabilidade tenha espaço pleno e nunca seja abortado de saída.”

As referências bibliográficas usadas podem se encontradas no artigo publicado


NOTAS:

[1] Horácio GONZALEZ, em seu livrinho O que são intelectuais (São Paulo: Ed.Brasiliense, 1984) nos convida a um passeio no meio intelectual e faz descortinar uma ampla galeria de intelectuais, passando por sete quadros característicos e diferenciados: começa pelo quadro do “intelectual maldito”, para, em seguida, mostrar o quadro do “intelectual precursor”, em terceiro lugar fala do “intelectual revolucionário”, depois fala do “intelectual populista”, para, por fim, fazer uma abordagem clara e bem sintetizada sobre o “intelectual cosmopolita”, o “intelectual orgânico” e o “intelectual do círculo do poder”. São os sete tipos de intelectual que este autor nos apresenta, nesta sua rica contribuição  para a coleção Primeiros Passos. Não pretendo dar conta, em minha exposição, de todos estes tipos.

[2] Henry A. GIROUX. Los Professores como Intelectuales: Hacia una Pedagogía Crítica del Aprendizaje. Barcelona – Buenos Aires – México: Ed.Paidós/MEC, 1990, p.255-256

[3] Karl MANNHEIM. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed.Zahar, 1976.

[4] Observação: “ser interdisciplinar”, estar aberto à outra perspectiva, não significa permanecer equidistante, como em cima do muro. Aliás, diga-se de passagem, por mais elevada que seja a torre de um intelectual, ela sempre será uma torre inclinada – para usar a imagem empregada por alguém – e poder-se-ia acrescentar “ela sempre projetará a sua sombra protetora para um lado”. Karl MANNHEIM fala da “ideologia” e da “utopia”. A contribuição de Antonio GRAMSCI com o conceito de “intelectuais orgânicos” é, no meu entender, mais útil.

[5] Ver José Ivo FOLLMANN. Religion, Politique et Identité. DISSERTATION DOCTORALE. Bélgique, Louvain-La-Neuve, Université Catholique de Louvain, 1993.

[6] Ver em C. ATIAS e J.L.LE MOIGNE. Échange avec Edgar Morin: Science et Conscience de la Complexité. Aix-en-Provence: Libr.de l´Université, 1984.

[7] Alain TOURAINE. Le Retour de l´Acteur: Essai de Sociologie. Paris: Ed.Fayard, 1984. Alain TOURAINE.La Parole et le Sang: Politique et Société en Amérique Latine. Paris: Ed.Odile Jacob, 1988.

[8] Os intelectuais, a rigor, não formam uma classe, grupo ou organização independente, mas cada classe, grupo ou organização tem os seus intelectuais. (Ver “Cartas do Cárcere” de Antonio GRAMSCI, em Christiane BUCI-GLUCKSMANN. Gramsci e o Estado: Por uma Teoria Materialista da Filosofia. Rio de Janeiro: Ed.Paz e Terra, 1980, p.71)

[9] Antonio GRAMSCI fala do partido político, mas isto é estensível às demais organizações. Ver em Tom BOTTOMORE. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Ed.Zahar, 1988, p.167.

[10] Ver Horácio GONZALEZ. O que são Intelectuais. São Paulo: Ed.Brasiliense, 1984, p.96.

[11] Pierre BOURDIEU. “Genèse et Structure du Champ Religieux”, Revue Française de Sociologie, n.XII, 1971. Pierre BOURDIEU. Questions de Sociologie. Paris: Édition de Minuit, 1980.

[12] “Cada grupo social, nascendo sobre o terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo e organicamente, um ou mais grupos de intelectuais que dão homogeneidade e consciência da própria função, não só no campo econômico, mas também no campo social e político”. (Antonio GRAMSCI. Obras Escolhidas. Vol.II. Lisboa: Ed.Estampa, 1974, p.190).

[13]  … “Ao contrário dos intelectuais hegemônicos ou acomodatícios, cujo trabalho se desenvolve sob a ordem de quem detém o poder e cujas intuições críticas se mantém a serviço do status quo, os intelectuais transformadores assumem a sério a primazia da ética e da política em seu compromisso crítico com os estudantes, as autoridades e a comunidade correspondente. Estes últimos trabalham incansavelmente, dedicados a fazer avançar a democracia e a realizar a qualidade da vida humana.” (Henry GIROUX, op.cit., p.20) O grande desafio que sempre fica: “Como podem os educadores elaborar um projeto pedagógico que legitime uma forma crítica de praxis intelectual?” (Henry GIROUX, op.cit., p.14; ver também Henry GIROUX, op.cit. p.175 ss.)

[14] Pierre BOURDIEU. A Economia das Trocas Linguísticas. São Paulo: EDUSP, 1996, p.81-82.

[15] Ver Pierre BOURDIEU, idem, p.83.

[16] Ver Guy BAJOIT. Pour une Sociologie Relationnelle. Paris: PUF, 1992. Guy BAJOIT. Les Jeunes dans la Compétition et la Mutation Culturelle. Louvain-La-Neuve: Recherche UCL/FOPES, 1993. Ver também Jean REMY, L. VOYE et E. SERVAIS. Produire et Reproduire: Une Sociologie de la Vie Cotidienne (2 vol.). Bruxelles: De Boeck Université, 1991. Jean REMY, “Religion, Rationalité et Mobilisation Affective”, Rev. Social Compass, n.2-3, 1984.

[17] Agnes HELLER. O Cotidiano e a História. São Paulo: Ed.Paz e Terra, 1970, p.17.

[18] Max WEBER. Le Savant et le Politique. Paris: Plon, 1959, p.199.

[19] Ver José Ivo FOLLMANN. Religion, Politique et Identité, cit. p. 233-234 (referindo Jean REMY. “L’affectif et l’irrationnel: question au rationalisme. Durkheim et Weber: deux réponses différentes”, TEXTO DE COLÓQUIO, s/d., p.7.)

[20] Georg LUKACS, in Agnes HELLER.O Cotidiano e a História. (Pref.), São Paulo: Ed.Paz e Terra, 1970, p.X

[21] CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, 1995-1998. Documentos da CNBB, 54,  1996, n.139 ss.

[22] Os aspectos aqui apresentados reproduzem texto recente de elaboração coletiva, no qual trabalhei junto com José Odelso SCHNEIDER (autor principal da primeira redação) e outros. (Ver “Marco Situacional” do Planejamento Apostólico da Província Brasil Meridional da Companhia de Jesus, 1997)

PASTORAL DA UNIVERSIDADE: UMA COMPREENSÃO SOCIOLÓGICA

José Ivo Follmann sj

(Sacerdote Jesuíta, Doutor em Sociologia pela Université Catholique de Louvain, Bélgica, Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas (Mestrado e Doutorado) da UNISINOS, Coordenador do Programa Gestando do Diálogo Inter-Religioso e o Ecumenismo – GDIREC, do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e Diretor do Centro de Ciências Humanas da UNISINOS. (UNISINOS, junho de 2003)


Foi-me solicitado fazer uma leitura sociológica dos Relatórios da Pastoral da Universidade apresentados pelas equipes das diversas Instituições de Ensino Superior da Região Sul. Agradeço o convite e peço desculpas se não consigo atender plenamente àquilo que os organizadores imaginavam, ao solicitar uma avaliação a partir de uma “compreensão sociológica”.

Antes de iniciar a minha “leitura” propriamente, tomo a liberdade de fazer três observações introdutórias:

  • A sensação que eu tenho, (e isto se repete todas as vezes que participo em reuniões ou encontros como este), é que o bom desses momentos é o grande enriquecimento mútuo que eles proporcionam. Independente das construções conjuntas e coletivas que intentamos ensaiar, a oportunidade de podermos nos escutar mutuamente já tem o seu valor em si.
  • Alguém falou, no início do encontro, da importância de se fazer permanentemente releituras hermenêuticas, no sentido de avançarmos na compreensão contextuada de nossa prática. Eu entendo que, aqui, estamos fazendo, efetivamente, uma releitura hermanêutica coletiva. Sinto-me muito bem com isso.
  • Não me senti muito à vontade, no entanto, ao receber o convite para prestar uma “assessoria sociológica” com a informação de que haveria, além desta, mais uma assessoria pedagógica, uma assessoria filosófica e uma assessoria teológica. O seccionamento do conhecimento que esse tipo de encaminhamento sugere, apesar de não ser a intenção da equipe organizadora, é algo muito complicado. Por isso entendi o convite como sendo o convite para uma reunião na qual haveria a presença de um sociólogo, de uma pedagoga, de um filósofo e de um teólogo que, juntos, prestariam uma assessoria… É isto? Aliás nem sei se ainda sou capaz de assessorias sociológicas… O certo é que, o que aqui estou colocando, não deve ser considerado como simplesmente sociológico, pois os meus questionamentos e as minhas percepções colocam-se, em muitos momentos, além ou aquém da sociologia, se este tipo de “localização” ainda faz sentido…

Dito isto, vou apresentar a minha “leitura” dividida em quatro grandes pontos ou quatro grandes aproximações:

  1. Em uma primeira aproximação ampla, a partir da observação dos relatórios das atividades pastorais das três Universidades aqui presentes, devo destacar os seguintes aspectos:
  • Busca de um envolvimento nos grandes debates da sociedade hoje;
  • Realização de reflexões envolvendo o debate fé e cultura;
  • Empenho por prestar serviços de assistência social e de acolhimento;
  • Visibilidade de serviços litúrgicos e sacramentais.

Considerando estes quatro aspectos, uns mais presentes numa realidade, outros mais presentes nas outras, podemos estabelecer interessantes perfis comparativos das três maneiras de fazer e pensar a Pastoral da Universidade, das Instituições aqui presentes. É um exercício que podemos fazer em conjunto.

  • Em segundo lugar, sinto-me convidado a fazer algumas aproximações de semelhança entre as atividades de pastoral nas três Instituições, que, na minha percepção, são semelhanças claramente evidentes:

2.1) As três Instituições mostram uma linha de atividade comum, que poderíamos denominar “encontros de espiritualidade”. Enquanto na UNISINOS se fala em Exercícios Espirituais de Santo Inácio, como “Retiros na Vida” e outros; na UCPel temos o assim chamado “Maná” e outras formas; na PUC-RS existem os retiros de pastoral e os retiros de aprofundamento.

2.2) A questão do diálogo inter-religioso e da abertura ao diverso está também muito presente nas três Instituições: enquanto na UNISINOS existe um programa bastante consolidado denominado “Programa Gestando o Diálogo Inter-Religioso e o Ecumenismo” (GDIREC); na PUC-RS existem diferentes iniciativas neste sentido, destacando-se o Projeto Alfa/Omega e o Projeto Meditação Oriental; também na UCPel essa preocupação não está ausente.

2.3) Chamou muito a nossa atenção o fato de as três Instituições se envolverem com projetos de gerar amplos debates sobre a teologia hoje ou a vida de fé hoje. Enquanto a UNISINOS está preparando um grande evento internacional, pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a realizar-se em maio de 2004, com o título: “Simpósio Internacional sobre Teologia e Universidade: Novos Desafios para o Século XXI”, a UCPel está com um evento previsto para setembro deste ano, com o título: “II Simpósio Transdisciplinar Ciência e Deus no Mundo Atual”. Isto tudo está em profunda consonância com as “semanas de reflexão” que a PUC-RS promove com os seus professores colocando na pauta a discussão sobre “fé e ciência”.

  • Um terceiro ponto, que eu gostaria de destacar aqui, diz respeito ao cerne do que está em questão neste Encontro… Trata-se da equação Universidade (substantivo) católica (adjetivo), que alguém mencionava bem no início deste nosso Encontro. É, sem dúvida, uma chave fundamental para uma boa compreensão da Pastoral da Universidade ou da idéia de uma Universidade em Pastoral. Às vezes parece que se recai no velho vício medieval de querer como que atrelar o ser universidade ao ser católico, ou seja, busca-se inverter a equação…

3.1) Temos que levar a sério o desafio de ser efetivamente Universidades e excelentemente Universidades, com tudo o que isto envolve em termos de seriedade acadêmica e de compromisso público. Por falar em compromisso público, é oportuno lembrar que, mesmo que as nossas Universidades sejam de iniciativa e gestão privada, elas atuam de fato num campo que é de serviço público. Nós temos que prestar contas à sociedade pela seriedade desta nossa participação no serviço público.

3.2) Temos que levar a sério o desafio de ser efetivamente Universidade católica, assumindo a confessionalidade como adjetivo e não como mero complemento anexo. Ou seja, a orientação cristã, que consubstancia essa confessionalidade, deve ser inerente ao “que fazer” universitário, ajudando a garantir a seriedade acadêmica e o compromisso público. Devemos constantemente buscar responder à questão: por que, para nós cristãos, faz sentido e é importante o empreendimento universitário, enquanto realização da seriedade acadêmica e prestação desse serviço público à sociedade.

  • E, assim, aprofundando esta linha de reflexão, chego ao meu quarto ponto, com um convite para olharmos para o objetivo que a Pastoral da Universidade no âmbito da ABESC se propõe: “Construção de um sujeito histórico comprometido político, cultural e profissionalmente com a mudança da realidade social, a partir de valores e princípios cristãos”. Quero sugerir o seguinte caminho de reflexão, inspirando-me em um texto do Planejamento Estratégico da Associação das Universidades Jesuítas da América Latina (2001-2005), com a formulação de três perguntas:

4.1) Em nosso “que fazer” universitário, a primeira pergunta sempre deve ser: Que sociedade queremos? Destacando-se que as Universidades existem, como eu disse acima, como um serviço público à sociedade. Não podemos perder isso de vista. Quem se envolve nesse serviço deve, em primeiro lugar, prestar contas à sociedade. Nunca no entanto devemos esquecer que o ideal de sociedade de uma Universidade católica e de orientação cristã, é baseado nos princípios da justiça evangélica.

4.2) Uma segunda pergunta naturalmente se seguirá: Que sujeitos formar para essa sociedade que queremos? Destacando-se que, hoje, mais do que nunca, os estudantes necessitam que sejam cultivados, neles, valores que os chamem a serem sujeitos capazes de assumir responsavelmente a construção da sociedade. Eles necessitam, para tal, vivenciar, em nosso meio, uma efetiva formação integral.

4.3) E a terceira pergunta, consequentemente, nos fará voltar o nosso olhar para as Universidades enquanto tal: Que Universidade para formar esses sujeitos? Destacando-se a necessária atenção a três aspectos: a clara explicitação de nossa identidade cristã; a permanente avaliação e atenção à qualidade acadêmica de nossas Universidades; a um redobrado empenho por uma ação sempre mais partilhada, em rede, das Universidades católicas e de orientação cristã.

Seguindo essas perguntas e procurando respondê-las nesta ordem, teremos certamente um bom caminho para darmos conta da pergunta central, que move este encontro: A Pastoral em nossas Universidades está adequadamente estruturada e orientada de forma coerente em suas ações?

Em síntese, devemos desdobrar esta pergunta central, em três grandes perguntas: a) a nossa orientação cristã exige que tipo de sociedade, ou seja: como é uma sociedade, que queremos, coerente com os princípios cristãos? b) que sujeitos nós devemos formar em nossas Universidades, que tenham condições de protagonizar este tipo de sociedade? c) como devem ser e agir as nossas Universidades para que efetivamente proporcionem a formação deste tipo de sujeitos?

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Esses são os quatro pontos que eu tinha a sugerir, neste início de conversa para a nossa “assessoria sociológica”… Sintetizando: primeiro apontei alguns aspectos a destacar para estabelecer um perfil comparativo entre as três Instituições; em seguida identifiquei três importantes convergências por mim percebidas; em terceiro lugar retomei a equação Universidade (substantivo) e católica (adjetivo); e, por último, recordei o objetivo da Pastoral da Universidade no âmbito da ABESC, para sugerir um caminho de reflexão.

Antes de concluir queria, no entanto, ainda sublinhar algo que entendo de fundamental importância, apoiando-me na fala da Professora Flávia, que me precedeu: Se levarmos a sério a constatação de que a maior parte de nossa aprendizagem não se dá pelo sentido da audição, mas por outros sentidos, é, sem dúvida, urgente que os ambientes de nossas Universidades e as suas estruturas, sejam efetivamente coerentes com aquilo que é pregado. Ou seja, os ambientes e as estruturas fazem parte da Pastoral da Universidade ou da, assim chamada, “Universidade em Pastoral”.

A IMPORTÂNCIA DO DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO E O FUTURO DO MUNDO DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES

Pe. José Ivo Follmann sj, 15/09/2002

Palestra proferida em Encontro dos Ex-colegas do Colégio Santo Inácio, Salvador do Sul.

“Alarga o espaço da tua tenda, estende as cortinas das tuas moradas (…), alonga as cordas, reforça as estacas” (Isaías, 54,2).

O Diálogo inter-religioso é, sem dúvida, um dos temas mais instigantes e que porta uma profunda incidência no presente e no futuro da humanidade. Já passou o tempo em que falar de religiões e de religiosidades era considerado coisa do passado ou coisa de gerações vencidas e de contextos sócio-culturais anacrônicos. O mundo continua habitado pelo religioso. Mudou a “forma de habitar”, e o “habitante” assumiu novas formas, mas ele continua presente e muito visivelmente presente.

Não é a minha intenção fazer aqui uma leitura histórica das mudanças no “mundo das religiões e das religiosidades” ao longo dos tempos, mas é importante que a nossa reflexão tenha presente em seu horizonte, por um lado, a distinção entre os “tempos pré-modernos”, os “tempos modernos” e os “tempos pós-modernos” no que diz respeito ao “mundo das religiões e das religiosidades” e, por outro lado, a mistura e simultaneidade desses três “tempos”, constatável em grande parte das manifestações desse “mundo das religiões e das religiosidades” em nossos dias.

A abordagem que eu me proponho a fazer é sociológica (talvez de uma Sociologia mais militante do que acadêmica), procurando apontar algumas notas sugestivas para um roteiro de reflexão, cuja complementação e efetivação compete, a rigor, a cada um dos leitores e das leitoras, dentro da medida de seus conhecimentos pessoais, de suas percepções e, também, de sua vivência religiosa.

Enquanto contribuição para o nosso encontro de ex-alunos do Colégio Santo Inácio, Kappesberg, o texto se justifica, não só pela atualidade do assunto, mas, sobretudo, porque a Missão da Companhia de Jesus, hoje, tem no diálogo inter-religioso um de seus pilares centrais e traz uma muito significativa contribuição para uma nova compreensão deste diálogo ao situá-lo de forma integrada com o serviço da fé, a promoção da justiça e o diálogo entre as culturas.

Colocado este horizonte de leitura, vamos ao nosso tema: “a importância do diálogo inter-religioso e o futuro do mundo das religiões e das religiosidades”.

Os grandes desafios vividos pela humanidade em sua paradoxal “homogeneização e diversificação”, neste início de um novo século e de um novo milênio, lançam interrogações específicas para a compreensão do “mundo das religiões e das religiosidades”. A contribuição da Sociologia (ao lado de outras Ciências Humanas) faz-se importante na medida em que ajuda a contextualizar esse fenômeno, fornecendo, também, chaves para a sua interpretação e para a ação concreta visando o presente e o futuro.

Nunca se falou tanto em diálogo inter-religioso e nunca a humanidade foi tão interrogada sobre as guerras religiosas. Nunca também o “mundo das religiões e das religiosidades” mostrou tanta complexidade. Nunca as suas semelhanças e as suas diferenças foram tão conhecidas.

O enorme debate gerado a partir do atentado ao World Trade Center (WTC), nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, aguçou radicalmente esta temática. A religião e os fundamentalismos religiosos tornaram-se matéria de divulgação diária em grande parte dos meios de comunicação. Muitos espaços, normalmente fechados para a divulgação de assuntos ligados à religião, abriram-se para esse debate, oportunizando, inclusive, preciosas e importantes reflexões de estudiosos das religiões, bem como, manifestações muitas vezes esclarecedoras de renomados líderes religiosos. Isto foi perceptível, inclusive, ainda neste ano, no entorno da memória do primeiro aniversário daquele impactante acontecimento.

O presente texto é construído de uma maneira muito simples, em três momentos, tendo presente três grandes centralidades de referência, com as quais procuro trabalhar em minhas abordagens sociológicas, que podem ser expressas aqui, da seguinte forma: 1) “as religiões e as religiosidades em sua significação social”, 2) “o campo religioso propriamente dito” e 3) “as implicações da dinâmica pessoal dos sujeitos religiosos”.

1) Voltando o nosso olhar para “as religiões e as religiosidades em sua significação social” colocamos a questão da mútua repercussão no processo social como um todo e a existência ou não de diálogo inter-religioso. As religiões e as religiosidades são vistas em sua participação na construção do todo, ou seja, a atenção do estudioso ou do observador volta-se para o grande processo social, que pode ser definido como a produção da sociedade por ela mesma, e as religiões e as religiosidades, como participantes ativas (produtoras) e passivas (produzidas) dentro deste processo. Pelo lado da participação ativa, pode-se dizer, por exemplo, que o diálogo inter-religioso é, sobretudo, escola de cidadania e que os integrismos e fundamentalismos são fonte de destruição social e de guerra. Como também, por outro lado, o contexto social, cultural e político repercute, em geral, diretamente nos modos de ser do “mundo das religiões e das religiosidades”. Hoje, segundo alguns analistas, existe um processo de “DES-moralização” das religiões, na medida em que entram no mesmo jogo de mercado imposto pelo contexto. Somente a existência de uma boa cultura de diálogo inter-religioso poderá “RE-moralizar” as religiões, ajudando-as a preservarem as suas missões fundamentais. A “promoção da justiça” nas sociedades, certamente, estará facilitada na medida da existência deste verdadeiro diálogo.

2) O nosso segundo olhar volta-se para “o campo religioso propriamente dito”. Talvez aí estejamos frente a um dos aspectos mais sérios a ser considerado. Estou falando diretamente dos conflitos internos ao próprio campo religioso. Trata-se do nível institucional e inter-institucional. O campo religioso é considerado como um dos campos mais contaminados pela disputa institucional, mesmo que isto seja muitas vezes bastante invisível. Isto torna-se facilmente compreensível, quando levamos em consideração que se trata de confronto de “convicções”. Segundo Paul RICOEUR (1995, p. 183) “não admitimos facilmente que aqueles que não pensam como nós tenham o mesmo direito, que temos, de professar suas convicções porque, pensamos, isso seria dar um direito igual à verdade e ao erro”. Muralhas institucionais são criadas para proteger a “verdade” do “erro”. Enquanto essas muralhas não forem transformadas em paredes com muitas janelas e portas, as religiões estarão longe de se ajudarem mutuamente a encontrar as suas identidades e as suas fecundas e fecundantes diferenças. O campo religioso permanecerá, hoje e no futuro, um campo de grande significação social e cultural, na medida em que não precisarmos identificar em primeiro plano a sua marca conflitual característica, mas a sua busca de diálogo. O campo religioso poderá ser testemunho de diálogo cultural e, por que não, testemunho de democracia.

3) O terceiro olhar que quero apontar (para nossa reflexão) refere-se à própria vivência pessoal da fé, enquanto tal. Estamos aqui referindo-nos ao nível mais profundo, que é o nível da própria prática religiosa, da vivência de fé. Em alguns contextos é bastante visível, hoje, a existência de instituições religiosas ou religiões preocupadas quase que exclusivamente com a vinculação e fidelização das pessoas às suas propostas institucionais. O empenho por ajudar as pessoas a despertarem efetivamente para uma fé sólida e comprometida fica, nestes casos, em segundo plano, quando não totalmente ausente. Ou então, se olharmos pelo lado dos próprios sujeitos individuais, é comum constatarmos a existência de práticas religiosas repetitivas e vazias, contribuindo unicamente para a sobrevivência institucional, quando não voltadas basicamente para a satisfação social ou atendimento a carências psicológicas imediatas. Esta constatação não pode ocultar, no entanto, a existência (crescente!, segundo alguns) de práticas de uma fé constantemente alimentada e cultivada dentro das perspectivas de adesão e convicção pessoais. Seria importante podermos testar a hipótese de que, hoje, nas religiões instituídas, em geral, a prática de adesão pessoal passa a ganhar terreno sobre a prática de rotina ou de conveniência social e institucional. De todas as formas, uma coisa é certa: é na busca do cultivo autêntico da fé, independente da orientação ou vínculo religioso, que encontramos os melhores elementos para uma maior substanciação e fundamentação do sujeito cultural e cidadão que somos.

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Como podem perceber, coloquei três grandes frentes de desafios para a nossa reflexão sobre o diálogo inter-religioso. São desafios que aparecem, de uma forma ou outra, nas mais diferentes abordagens sobre a temática: 1) A responsabilidade cidadã dos que vivem uma religiosidade ou integram uma religião, no sentido de serem efetivamente forças de agregação social e não de desagregação social, sendo protagonistas de promoção da justiça e de uma cultura de paz e diálogo e não de uma cultura de guerra e discórdia. 2) A responsabilidade institucional das religiões pelo cultivo de uma cultura de diálogo profundo entre elas para somarem forças e não desperdiçarem as suas forças em divisões e mútuos combates ou medos sem sentido. 3) E, sobretudo, nos dias de hoje, a responsabilidade dos que desenvolvem uma religiosidade ou dos integrantes das religiões, de cultivarem profundamente os seus valores e a sua fé dentro de um mundo e de uma humanidade tremendamente esvaziada de sentidos.

Por falar em cultivar os valores e a fé, deve-se lembrar aqui que muitas vezes se pensa que o diálogo inter-religioso ou o ecumenismo não passam de mecanismos para unificar artificialmente e matar a diversidade. Isto certamente seria um grande risco, caso não houvesse um autêntico processo de diálogo, mediado por um perfeito casamento entre humildade, convicção religiosa e abertura à verdade. O diálogo só existe quando se fala de igual para igual. É importante que se perca os medos e que aconteça a aproximação. Só assim, no conjunto, se terá mais força. É importante que a identidade de cada um seja preservada e reforçada, mas é também importante que haja uma grande aproximação uns dos outros, pois assim haverá mais oportunidades de se desfazerem os medos mútuos e uma maior percepção de que o outro não é tão perigoso como sempre o imaginamos. Isto também ajudará a que se percebam os diferentes “tempos” do “mundo das religiões e das religiosidades”, os quais se misturam, às vezes, num mesmo indivíduo ou grupo, onde traços de “pré-modernidade”, de “modernidade” e de “pós-modernidade” sobrepõem-se. Esses diferentes “tempos” devem ser reconhecidos e respeitados.

O “mundo das religiões e das religiosidades”, na sua rica diversidade, faz sentido no presente e no futuro, na medida em que, além de sua inequívoca vocação de proporcionar as religações com o Transcendente, o ser e o agir da humanidade puderem encontrar nele, e em seu multicolorido harmonioso, fonte de paz e de inspiração para o diálogo e para a justiça.

A Terra de Santa Cruz, 500 anos depois…*

– Palavras de apresentação do Caderno –


* O artigo é uma recomposição de aspectos presentes de forma dispersa em quatro artigos anteriores “O Mundo das Religiões na Terra de Santa Cruz” (Jornal Adunisinos, n.19, agosto, 2000),  “Igreja e Missão na Cidade” (Rev. Renovação, 1997),  “O Mundo das Religiões e da Religiosidade; novos desafios para o diálogo inter-religioso” (Re. Notícias Jesuítas, 2000), “O Mundo das Religiões no Município de Cachoeirinha” (Cadernos de CEDOPE, n. 14, 2000).

José Ivo Follmann

(Doutor em Sociologia, Padre Jesuíta, Diretor do Centro de Ciências Humanas)

O Texto:

Tendo sido solicitado pelo Jornal da Associação dos Docentes da UNISINOS, para fazer uma breve reflexão sobre os “500 anos de Brasil, sob o ponto de vista da evolução do fenômeno religioso”, eu escrevi o seguinte:

“No dia 1º de maio de 1500 ergueu-se na praia de Porto Seguro, Bahia, uma grande cruz de madeira e nossa terra foi denominada de “Terra de Santa Cruz”. A colonização portuguesa do Brasil deu-se sob o signo da “cristandade”, isto é, “unidade dos povos e países cristãos em torno de interesses religiosos e políticos comuns, sob a hegemonia da Igreja católica”. (DEL PRIORE, 1994, p. 7)

O Brasil normalmente foi e é conhecido como um “grande país católico” ou o “grande país católico”. Esta característica, que trazemos de nossa história, tem a ver diretamente com o empreendimento colonizador português, parte de uma fantástica política civilizatória onde interesses econômicos, políticos e religiosos caminhavam juntos. “Acreditava-se estar promovendo o verdadeiro bem das regiões colonizadas. O catolicismo era uma espécie de motivação presente na ação do Estado português. Colonizar e evangelizar eram encarados conjuntamente”. (MACEDO, 1989, p. 30)

Mas este “grande país católico” não é de fato tão católico assim. Ele é mesmo um “grande cadinho religioso” quando não uma “grande bricolagem” … Por um lado, isto tem muito a ver com o próprio processo de colonização ou de evangelização católica sob o signo da colonização. Este processo deu-se em grande medida sob o signo da dominação, gerando um forte caldo represado de cultura de resistência. Por outro lado, tem a ver também com o fato de que mais do que nos outros campos, no campo religioso, o ser humano manifesta-se como agente ativo na construção da realidade simbólica, a partir de sua experiência pessoal e social. Assim, as diferentes situações vividas geram constantemente formas novas de apropriação das crenças e práticas religiosas na busca de respostas às necessidades espirituais e materiais.

Os 500 anos de Brasil, desde o início da colonização portuguesa, foram 500 anos processados sob o signo paradoxal da destruição e da construção religiosa. A dominação colonial dentro do projeto de “cristandade” desrespeitou, às vezes, até ao aniquilamento total, outras culturas e tradições religiosas. O nosso colega professor Attico Chassot desafia-nos, constantemente, a tentarmos lembrar (inutilmente!) o nome de algum de nossos antepassados “brasileiros” de antes da chegada dos portugueses… Nós, hoje, 500 anos depois, nos perguntamos sobre o que sabemos das religiões dos povos que aqui viveram e que, aos frangalhos, sobrevivem… Muito pouco! Esta é a nossa resposta. Além de nossas frases prontas, aprendidas nas escolas e revestidas de preconceitos de superioridade colonial, muito pouco sabemos. Grandes esforços são feitos hoje para reconstruir algo a partir dos fragmentos que ficaram.

Semelhantemente ao que se deu com os povos indígenas, as religiões cultivadas pelos milhões de negros, trazidos escravos da África, foram cruelmente anuladas, tendo que sobreviver na clandestinidade. Hoje exultamos: “Bendita clandestinidade!”

A história, aliás, é pródiga em ensinar-nos que o ser humano não se deixa aprisionar, nem mesmo pelas civilizações mais poderosas. Neste nosso Brasil, 500 anos depois do início da colonização portuguesa, crenças antigas e tradicionais dos povos indígenas reencontram a sua legitimidade e, mais do que nunca, as religiões de raízes africanas passam a ter visibilidade na sociedade.

Hoje ainda se ouve de vez em quando alguém dizer que a religião oficial do Brasil é a católica… Isto, obviamente, não é verdade! O Brasil deixou de ser um país oficialmente católico em 1889, com a separação entre Estado e Igreja. Foi uma das muitas coisas boas da República! A partir desse ato de separação entre o Estado e a Igreja, abriu-se o espaço para a liberdade de expressão religiosa. As Igrejas Evangélicas, já presentes em grande parte acompanhando levas de imigrantes, ou então por iniciativas missionárias heróicas, passaram a ter a sua presença legitimada, apesar dos grandes esforços que a Igreja Católica fazia para estabelecer limites legais a isto. O meio evangélico hoje, 500 anos depois da declaração do Brasil como país católico, apresenta em geral um grande dinamismo, destacando-se em especial a sua vertente pentecostal. Esta vertente demonstra uma crescente expansão, sobretudo, através da versão neo-pentecostal. Ao lado do forte esquema de pertença e de fidelidade doutrinal, bem disciplinado, nas Igrejas pentecostais mais antigas, como as Igrejas Assembléia de Deus, a Congregação Cristã do Brasil e outras, pode-se observar de mais a mais o fenômeno da oferta e procura da “cura divina” e atenção às necessidades imediatas mais diversas, que se acentua particularmente através de Igrejas mais recentes, como a Igreja Universal do Reino de Deus e outras, que passaram a ser conhecidas como neo-pentecostalismo.

A expansão religiosa não foi só por fora da Igreja Católica. Ela aconteceu, também, de forma crescente e intensa por fora dos horizontes do cristianismo como um todo. É neste sentido, por exemplo, fortemente característico do Brasil o meio “mediúnico” ou “de possessão”, composto pelo Espiritismo Kardecista e, de modo especial, pelas religiões de raízes africanas, sobretudo o Candomblé sob todas as suas formas e expressões. Neste meio destaca-se, ainda, a Umbanda, uma religião tipicamente brasileira. Trata-se de uma religião criada durante os anos 1920 e está fortemente marcada por tradições africanas, pela tradição “mediúnica” do Espiritismo Kardecista (de Allan Kardec) e pela tradição católica. Encontram-se nela, também, influências religiosas indígenas entre outras.” (Jornal Adunisinos, agosto, 2000, p.4)

Perpassando estes três grandes agrupamentos (católicos, evangélicos e “mediúnicos”) a marca do “minima catolica” (como diz Helcion Ribeiro) continua dando o tom na complexa realidade religiosa brasileira. Muitas vezes em aulas de “sociologia das religiões” fiz o exercício com o grupo de alunos, buscando construir com eles (e a partir do imaginário e da percepção deles), as diferentes formas de “viver religião” no Brasil de hoje, classificando em agrupamentos. É bem sugestivo o quadro que resulta de diferentes sínteses sucessivas feitas a partir deste repetido exercício:

FORMAS DE “VIVER RELIGIÃO” HOJE, NO BRASIL (em ordem de importância numérica; um esboço)
Católicos só “de nome” sem prática religiosa pública;Católicos cumpridores de algumas exigências religiosas públicas mínimas;Católicos cumpridores regulares das exigências formais do catolicismo;Seguidores de práticas mediúnicas, sejam afro-brasileiras ou kardecistas (confessando-se também católicos ou não);Pertencentes a Igrejas ou movimentos pentecostais ou neo-pentecostais;Ligados a movimentos organizados catolicos (RCC, ECC, etc);Pertencentes a Igrejas protestantes históricas;Católicos engajados em pastorais sociais e/ou integrantes de CEBs;Pertencentes a inúmeros outros agrupamentos e organizações com ligaçao ou não a sistemas religiosos mais amplos;Cultivadores de vivência religiosa pessoal/privada;Ateus ou não-crentes declarados.
Fonte: Exercício de grupos de alunos em sala de aula (Aulas de “Sociologia das Religiões”), publicado em “Igreja e Missão na Cidade”, Rev. Renovação, 1997)

Muito para além desta classificação, fruto do imaginário e da percepção de observadores jovens, o cadastro dos locais de culto religioso e templos que estamos realizando na Região Metropolitana de Porto Alegre e do qual o presente Caderno visa dar conta dos dados do Município de Esteio, nos alerta, no entanto para um outro fenômeno, que é o grande percentual de pessoas que de fato não freqüentam regularmente qualquer religião. Trata-se de um pouco menos de 70% da população.

Infelizmente, não temos dados sobre o comportamento religioso ou não destas pessoas em sua vivência no dia a dia. Sabemos que, por herança histórica, a maioria desses têm uma ligação mais ou menos tênue com a Igreja Católica Apostólica Romana.

Seriam esses quase 70% representados totalmente por “não-religiosos” ou “pouco-religiosos”? Certamente não. Muitos indícios nos levam a supor que um grande número daqueles que, mesmo sem estarem em celebrações, sessões, missas ou cultos religiosos coletivos com freqüência semanal, desenvolvem, com maior ou menor intensidade, práticas religiosas diversas ligadas ao imaginário católico herdado e outras práticas em sua maioria de caráter mágico, místico ou esotérico.

Isto coloca um desafio novo muito grande para o que nós denominamos de “diálogo inter-religioso”. Talvez seja mais desafiador do que com práticas com identidade definida. Hoje quando falamos em diálogo inter-religioso esta realidade certamente deve estar presente.

Para além do cultivo das identidades, é urgente que toda esta energia boa vivenciada nas diferentes formas de “viver religioso” sob a marca da “Terra da Santa Cruz”, que se encontra muitas vezes dispersa, seja mais e mais canalizada num grande projeto, já não mais sob o signo de uma “cristandade” dominadora e excludente, mas sob o signo da dignidade humana por uma sociedade sem exclusões.

Bibliografia:

ANTONIAZZI, A. Bigarrure Religieuse du Brésil. Rév. ÉTUDES, t. 374,  n. 2, 1991.

DEL PRIORE, M. Religião e religiosidade no Brasil colonial. São Paulo : Ática, 1994.

FOLLMANN, J. I. e outros. O mundo das religiões no município de Cachoeirinha, Cadernos CEDOPE, Série Religiões e Sociedade, n. 14, 1999

MACEDO, C. M. Imagem do eterno: religiões no Brasil. São Paulo : Ática, 1989.

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Ao longo do processo de mapeamento e do cadastro, com o contato com diferentes opiniões de lideranças religiosas e estudiosos, por um lado, e por motivos de ordem prática imediata, por outro lado, já foi estabelecida nova “composição” ou categorização, que está sendo utilizada no atual momento de organização de nosso banco de dados e da análise destes dados. As letras em destaque no quadro abaixo são  identificações de referência a serem usadas nos textos, para facilitar a leitura e compreensão dos dados.

QUADRO GERAL DE CATEGORIZAÇÃO DAS RELIGIÕES

   H = igrejas evangélicas históricas

   P = igrejas e grupos evangélicos pentecostais e

         neo-pentecostais;

 C = catolicismo, igreja católica apostólica romana

   A = religiões afro-brasileiras e umbanda;

   K = espiritismo kardecista

   D = diversas, outras.

Na medida em que tivermos reações e questionamentos de pessoas e grupos interessados, as nossas delimitações se tornarão certamente sempre mais adequadas à realidade e sempre mais práticas, assim se espera.

Em nossos textos no presente Caderno, fazendo sempre que necessário referência à respectiva letra de identificação, seguiremos normalmente os seguintes “agrupamentos” ou “conjuntos” de religiões.

QUADRO SINTÉTICO DE CATEGORIZAÇÃO DAS RELIGIÕES

Evangélicos; Igrejas evangélicas históricas; pentecostais e neo-pentecostaisCatolicismo; Igreja católica apostólica romana“Mediúnicas” ou “de possessão”; Religiões afro-brasileiras; Umbanda e Espiritismo kardecistaDiversas outras religiões e agrupamentos religiosos
 (H); (P)(C)(A); (K)(D)

Observação:

Os comentários a partir das entrevistas complementares apresentados abaixo são comentários em vista à construção de hipóteses e em nenhum momento têm a pretensão tirar alguma conclusão ou generalização a respeito de alguma das religiões em questão. A amostra dos entrevistados não é cientificamente representativa, mas por se tratarem de pessoas diretamente envolvidas com o cotidiano de sua religião, a consideramos suficiente para as finalidades deste trabalho.

O “Mundo das Religiões” nesta Terra de Santa Cruz

(Um olhar sobre o desenvolvimento do campo religioso no Brasil, 500 anos depois do início da colonização portuguesa)

Palestra proferida em Evento Sociopastoral de Lageado, no ano 2000.

J. Ivo Follmann

(Doutor em Sociologia, Padre Jesuíta,

Diretor do Centro de Ciências Humanas)

No dia 1º de maio de 1500 ergueu-se na praia de Porto Seguro, Bahia, uma grande cruz de madeira e esta terra foi chamada de “Terra de Santa Cruz”. A colonização portuguesa de nosso país deu-se sob o signo da “cristandade”, isto é: “unidade dos povos e países cristãos em torno de interesses religiosos e políticos comuns, sob a hegemonia da Igreja católica”. (DEL PRIORE, 1994: 7)

O Brasil normalmente foi e é conhecido como o “grande país católico”. Este predomínio católico historicamente presente no Brasil tem a ver diretamente com o empreendimento colonizador português. Tratava-se de uma fantástica política civilizatória onde interesses econômicos, políticos e religiosos caminhavam juntos. “Acreditava-se estar promovendo o verdadeiro bem das regiões colonizadas. O catolicismo era uma espécie de motivação presente na ação do Estado português. Colonizar e evangelizar eram encarados conjuntamente”. (MACEDO, 1989: 30)

Mas este “grande país católico” não é de fato tão católico assim. Ele é mesmo um “país de grandes contrastes”… Contrastes em todos os sentidos, contrastes grandes também no plano religioso. Isto certamente tem muito a ver com o próprio processo de colonização, ou de evangelização católica, sob o signo da colonização. Trata-se de um processo que se deu em  grande medida sob o signo da dominação, gerando um forte caldo represado de cultura de resistência. Tem, no entanto, também a ver com o fato de que mais do que nos outros campos, no campo religioso o ser humano se manifesta como agente ativo na construção da realidade simbólica, a partir de sua experiência social vivida. Assim as diferentes situações sociais vividas geram constantemente formas novas de apropriação das crenças e práticas religiosas na busca de resposta às necessidades espirituais e materiais.

Os 500 anos de Brasil, desde o início da colonização portuguesa, foram 500 anos de destruição e de construção religiosa. A dominação colonial sob o signo da cristandade desrespeitou, às vezes até o aniquilamento total, outras culturas e tradições religiosas. Nosso colega, o Prof. Attico Chassot constantemente nos desafia a dizermos o nome de algum de nossos antepassados “brasileiros” de antes da chegada dos portugueses… Nós nos perguntamos: o que sabemos das religiões dos povos que viveram e que aos frangalhos sobrevivem? Muito pouco! Esta é a nossa resposta. Além de nossas frases prontas aprendidas nas escolas e revestidas de preconceitos de superioridade colonial, muito pouco sabemos. Grandes esforços são feitos hoje para reconstruir algo a paritr dos fragmentos que ficaram.

Semelhantemente ao que se deu com os povos indígenas, as religiões cultivadas pelos milhões de negros trazidos escravos da África foram cruelmente anuladas, tendo que sobreviver na clandestinidade. Bendita clandestinidade!

A história, aliás, é pródiga em nos ensinar que o ser humano não se deixa aprisionar, nem mesmo pelas civilizações mais poderosas. Neste nosso Brasil, 500 anos depois do início da colonização portuguesa, crenças antigas e tradicionais de nossos povos indígenas reencontram a sua legitimidade e mais do que nunca as religiões de raízes africanas passam a ter visibilidade na sociedade.

Hoje ainda se ouve de vez em quando alguém dizer que a religião oficial do Brasil é a católica… Isto não é verdade. O Brasil deixou de ser um país oficialmente católico em 1889, com a separação entre Estado e Igreja. Foi uma das coisas boas da República. A partir deste ato de separação entre o Estado e a Igreja, abriu-se o espaço para a liberdade de expressão religiosa. As Igrejas evangélicas passaram a ter a sua presença legitimada, apesar dos grandes esforços que a Igreja católica fez no início da República por estabelecer limites legais a isto. O meio evangélico hoje, 500 anos depois da declaração do Brasil como país católico, apresenta em geral um grande dinamismo, destacando-se sobretudo em sua vertente pentecostal. Esta vertente demonstra uma crescente expansão, sobretudo através da versão neo-pentecostal. Ao lado de um forte esquema de pertença e de fidelidade doutrinal, bem disciplinado, nas Igrejas pentecostais mais antigas, como as Igrejas Assembléia de Deus, a Congregação Cristã do Brasil e outras, pode-se observar um fenômeno de oferta e procura da “cura divina” e atenção às necessidades imediatas mais diversas, que se acentua cada vez mais, particularmente através de Igrejas mais recentes, como a Igreja Universal do Reino de Deus e outras, que passaram a ser conhecidas como neo-pentecostalismo.

A expansão religiosa não foi só por fora da Igreja católica. Ela se deu de forma intensa e crescente por fora dos horizontes do cristianismo como um todo. É, neste sentido, por exemplo, fortemente característico do Brasil o meio “mediúnico” ou “de possessão”, composto pelo Espiritismo kardecista e, de modo especial, pelas religiões de raízes africanas, sobretudo o Candomblé sob todas as suas formas e expressões. As estatísticas dos recenseamentos indicam um número relativamente limitado de adeptos, pois trata-se de formas complementares ou substitutivas ao que é proposto na religião católica. Neste meio pode-se destacar a Umbanda, como sendo uma religião tipicamente brasileira. Trata-se de uma religião criada durante os anos 1920 e ela está fortemente marcada por tradições africanas, pela tradição “mediúnica” do espiritismo kardecista (de Allan Kardec) e pela tradição católica. Encontram-se nela, também, influências religiosas indígenas e outras. Ela se define pelo exercício da caridade e volta-se muito para a questão da cura: uma cura ao mesmo tempo psíquica, social e cósmica. “A Umbanda é, para seus adeptos, muito mais satisfatória que a medicina, que só se ocupa do corpo, e aquelas religiões, que se ocupam só da alma”, como me disse uma Mãe de Santo. Em recente pesquisa que realizamos no município de Cachoeirinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre, desenha-se de forma exemplar um quadro religioso que talvez possa ser generalizável para muitas situações. Trata-se de um município urbano onde sempre predominou a Igreja católica, enquanto tradição religiosa. O município tem um total de 120.000 habitantes, sendo que destes, 37.000 freqüentam algum culto, sessão, missa ou celebração religiosa semanalmente. Isto representa um pouco mais de 32% da população. No entanto, se observarmos o número total de pessoas que freqüentam, isto é as 37.000), veremos que se destacam os adeptos das Igrejas pentecostais e neo-pentecostais. Dos freqüentadores religiosos semanais, 48% são do meio pentecostal ou neo-pentecostal. O meio católico soma 31%. Na seqüência temos o conjunto das Igrejas Evangélicas históricas  com 10%, as Religiões de raízes africanas e as de Umbanda com 4,3 %, em seu conjunto, as Espíritas kardecistas com 3,4% e outras diversas com 1,9 %. (Note bem: estes percentuais são calculados em referência ao total dos 37.000 freqüentadores semanais de cultos, sessões, missa ou celebrações religiosas.)

COMENTÁRIOS PARA O DEBATE SOBRE O TEXTO:

“A MORTE MÁGICA DA ÉTICA PROTESTANTE”

Parrticipação em painel de debate sobre “a morte mágica da ética protestante”, compondo mesa de debate com Prof. Dr. Oneide Bobsin, na Escola Superior de Teologia – EST, São Leopoldo, em setembro de 2000.

J. Ivo Follmann

(06 de setembro de 2000)

Não sou especialista em pentecostalismo, muito menos em neopentecostalismo e em Igreja Universal do Reino de Deus, mas a sociologia das religiões, que é meu campo de ocupação principal há muitos anos ajuda-me a entender que o tema aqui abordado pelo Prof. Oneide Bobsin é um dos temas mais relevantes e problemáticos que hoje se impõe para os cientistas das religiões no Brasil.

Entendo que o meu papel aqui é o de levantar questões que possam jogar algumas perguntas a mais em nosso debate, além das perguntas que o próprio conferencista em sua exposição já soube provocar.

Vou ater-me, assim, a dois comentários que poderão despertar (eu o espero) algumas interrogações a mais:

  • Num primeiro comentário, terei como referência três olhares teóricos como usualmente venho trabalhando nas minhas pesquisas: a partir da produção da historicidade, a partir dos campos de atividades e a partir do sujeito;
  • Num segundo comentário, farei um pequeno contraponto de complementação a partir de alguns dados da pesquisa sobre locais de culto religioso e templos na Região Metropolitana de Porto Alegre.
  1. Comentário um:
  1. (Perspectiva da produção da historicidade) Concordo plenamente com o Prof. Bobsin quando diz que a miséria, o abandono, a doença, o desespero, o desemprego, a violência e a corrupção em todos os níveis desenham-nos um quadro propício e um terreno fértil para os exorcismos e as promessas de prosperidade. Se tomarmos esta realidade religiosa dentro da perspectiva de produção da historicidade, isto é, se tivermos como referência principal em nossa análise a existência do conflito central dentro da sociedade, estando em questão a apropriação e gestão de sua historicidade (utilizo aqui a concepção de historicidade de Alain Touraine), devemos perguntar-nos a serviço de que atores, a serviço de quem ou de que forças na sociedade estão efetivamente esses exorcismos e essas promessas de prosperidade? Qual é a função da “nomeação diabólica” da realidade, para utilizar a expressão sugerida pelo conferencista? Trata-se de uma desqualificação alienadora. É o radical oposto da “nomeação simbólica” onde a mediação religiosa, muitas vezes (por exemplo, nas CEBs), tende a revestir miséria, abandono, doença etc. de força libertadora. Estamos, portanto, claramente frente ao embate entre a função alienadora da religião e a sua função desalienadora ou libertadora. (Uso o conceito de alienação trabalhado por Peter Berger.)

No caso do avanço pentecostal e, sobretudo, neopentecostal (e do movimento carismático em suas diferentes expressões), dá-se em geral uma afirmação da função alienadora. Trata-se de uma hipótese de fácil comprovação. O viés principal é o socorro imediato (no caso neopentecostal, sobretudo) frente às precariedades do cotidiano. O exemplo mais flagrante é a saúde. Enquanto o povo busca os “milagres de Deus”, a história vai sendo construída contra este mesmo povo por aqueles que se apropriaram da historicidade e se consideram seus gestores exclusivos.

  1. (Perspectiva dos campos de atividade) Em segundo lugar, quero mencionar o que o palestrante denomina, já no início da exposição, de “fronteiras dissolventes” ou “fronteiras porosas”. De fato, essa porosidade ou diluição de fronteiras sempre foi mais forte no meio popular. Aqui eu gostaria de olhar esta mesma realidade religiosa comentada pelo palestrante desde uma outra perspectiva sociológica muito conhecida, que é a dos campos de atividade. A construção, que Pierre Bourdieu faz do campo religioso, é contribuição  importante e constitui-se em instrumento apto para a compreensão dos mecanismos internos às atividades religiosas. Segundo ele, a constituição de um campo religioso leva normalmente a uma “monopolização da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas religiosos”. Aqueles que dominam um campo ou subcampo têm os meios de o fazer funcionar em seu próprio proveito, isto é, em proveito de seus interesses. A indefinição de fronteiras coloca em risco esse domínio, mas é também uma forma de resistência da parte dos dominados. Quem exerce o domínio sabe em geral lidar com isso a seu favor, isto é, para garantir a força das fronteiras. Quem tem interesse pela definição de fronteiras são os que dominam no campo ou subcampo, ou seja, os seus “donos”. Eu me pergunto se os “donos” do subcampo pentecostal (ou melhor: neopentecostal) se esta não é a principal função da ritualização extremada do exorcismo, transformando a porosidade de fronteira em violento processo de culpabilização e de dependência psicológica. Eu até diria que, em outros tempos, e por muito tempo, foi nisto que residiu em parte o sucesso de público da Igreja Católica Apostólica Romana.

Talvez caiba acrescentar aqui uma observação a mais: O campo religioso no Brasil foi sempre, caracteristicamente e, talvez se possa dizer, demasiadamente, de domínio absoluto católico. A atual fragmentação do campo religioso, o surgimento de diferentes subcampos, alguns com extremo vigor, tem também, sem dúvida, um efeito salutar na Igreja Católica e outras Igrejas Cristãs Históricas, no sentido de gerar uma desacomodação em muitos aspectos e uma certa redinamização.

  1. (Perspectiva do sujeito) Uma outra questão a ser posta é: Não estaria o neopentecostalismo, através de seu aguerrido combate, mediante a ritualização do exorcismo etc, fortalecendo a umbanda, pelo efeito inverso? O “tornar-se igual ao inimigo para combatê-lo” pode certamente levar ao efeito imediato esperado, mas também pode levar, a longo prazo, a uma espécie de desmoralização daquele que ataca e a um fortalecimento e ressignificação das representações e práticas daqueles que são combatidos. Para isto, trago presente a profunda capacidade de resistência silenciosa acumulada na alma brasileira ao longo de séculos. Aqui eu gostaria de entrar com um terceiro olhar sociológico, a partir da perspectiva do sujeito. Segundo Guy Bajoit “os indivíduos selecionam (adotam ou rejeitam) os sentidos culturais (as idéias, as representações, as normas, as opiniões, os valores, os princípios) em função das necessidades da gestão de si mesmos.”  Olhando sob este ponto de vista, alcançamos mais facilmente o que está mais profundamente entranhado nos sujeitos que constituem a sociedade: a sua cultura. Falamos, portanto, da “gestão de si mesmo” de um povo marcado indelevelmente por aquilo que é o povo brasileiro em sua grande maioria: carne da carne de pretos e índios supliciados e mão possessa, que os supliciou, como diz o texto que o conferencista recolheu de Darci Ribeiro. A sociedade brasileira é constituída da gente sofrida que somos e da gente insensível e brutal, que também somos, como diz o mesmo autor. Sofridos e insensíveis, eu diria que sim, mas profundamente orgulhosos de nossa alegre inventividade e profundamente ciosos de nossos santos e nossos deuses.  Eu me arriscaria a dizer: A alma brasileira não é uma alma sujeitável a racionalidades instituídas, nem mesmo se são racionalidades religiosas, quando impostas de cima para baixo… Uma alma, eu diria, curtida num longo processo contraditório de dominação, cujo sujeito tem uma profunda sede de afirmação.

Neste contexto, “gestão de si mesmo” não lembra tanto uma busca libertária pós-moderna, mas tem muito mais a ver com a revanche de uma alma secularmente machucada e tripudiada por todo tipo de poder, entre eles o religioso. Pergunto até quando vai durar a intermediação neopentecostal desta revanche. Talvez o Prof. Bobsin tenha razão ao arriscar o palpite de que a Umbanda tenderá a sair por cima…

A alma brasileira é religiosa e muito religiosa. O sujeito brasileiro é portador de uma religiosidade acumulada ao longo de séculos. É um sujeito mais pronto para sintonizar com propostas revestidas de apelos sagrados, do que com propostas revestidas da racionalidade moderna secularizada.

  • Comentário dois:
  • (Alguns dados de pesquisa em realização) Além deste arrolamento de hipóteses e provocações bastante soltas, quero fazer ainda um pequeno comentário considerando dados recentes de uma pesquisa, ou seja, um cadastro de locais de culto religioso e templos, que estamos realizando na Região Metropolitana de Porto Alegre nos últimos anos. Creio que alguns dados colhidos nesta pesquisa podem ajudar-nos neste momento de reflexão…
  • (Novos locais de culto e templos nas últimas duas décadas) Se olharmos especificamente para dois municípios da nossa vizinhança, cujas totalizações já existem em nosso banco de dados (Cachoeirinha e Esteio), notaremos um fortíssimo incremento no número de locais de culto religioso e templos, tanto no meio pentecostal e neopentecostal quanto no meio das religiões afro e de umbanda, durante as últimas duas décadas, sobretudo durante a última década, conforme o quadro 1 abaixo:

 

Quadro 1

RELIGIÕES E INCREMENTO DE LOCAIS DE CULTO E TEMPLOS NO PERÍODO DE 1980-1999, EM CACHOEIRINHA E ESTEIO (RMPA, RS)

(Observação: o total de locais de culto e templos, em dezembro de 1999, em Cachoeirinha era de 165 e em Esteio era de 118)

RELIGIÕESCACHOEIRINHAESTEIOTOTAL
1980-891990-991980-891990-99
Pentecostais e Neopentecostal13451032100
Evangélicas Históricas352010
Católica729422
Afro e Umbanda73271561
Kardecista13105
Diversas11013
TOTAL32882952201
Fonte: CEDOPE & GDIREC, Unisinos, dezembro de 1999

 Vemos por este quadro que em Cachoeirinha, do total de 32 novos locais inaugurados na década de oitenta, 7 são de religiões afro ou umbanda e 13 de pentecostais ou neopentecostais (note-se que neste período também são inaugurados no mesmo município 7 templos católicos). No mesmo município, na década de noventa, do total de 88 novos locais, 32 são de religiões afro ou umbanda e 45 de pentecostais ou neopentecostais (neste período são inaugurados 2 templos católicos novos).

Se olharmos para o município de Esteio, temos que do total  de 29 novos locais de culto religioso e templos inaugurados na década de oitenta, 7 são de religiões afro ou umbanda, 10 são pentecostais ou neopentecostais (e 9 são católicos). No mesmo município de Esteio, na década de noventa, foram inaugurados 52 locais de culto religioso e templos, dos quais 15 são de religiões afro ou umbanda e  32 de pentecostais ou neopentecostais (e 4  são católicos).

  • (Número de freqüentadores por semana…) Um dado muito interessante que temos a partir do cadastro é o que diz respeito ao número de freqüentadores por semana em cada local de culto religioso ou templo (talvez se trate dos fiéis mais identificados com a rotina de sua instituição religiosa e que se consideram mais profundamente vinculados e membros efetivos). Vejamos no quadro 2 abaixo:

Quadro 2

RELIGIÕES E FREQÜÊNCIA SEMANAL EM LOCAIS DE CULTO E TEMPLOS, MUNICÍPIOS DE CACHOEIRINHA E ESTEIO (RMPA, RS)

RELIGIÕESCACHOEIRINHAESTEIO
Pentecostais e Neopentecostais48,4%44,1%
Evangélicas Históricas10,2%6,9%
Católica31,9%31,4%
Afro e Umbanda4,2%10,7%
Espiritismo Kardecista3,4%4,3%
Diversas1,9%2,6%
FREQ. SEMANAL (TOTAL)36.162                  (30,1%)29.764               (37,2%)
POPUL.MUNICIP. (TOTAL)(120.000)(80.000)
Fonte: CEDOPE & GDIREC, UNISINOS, dezembro de 1999

O município de Cachoeirinha conta hoje com  uma população de 120.000 habitantes. Deste total, o número dos que freqüentam algum local de culto ou templo por semana é de 36.162 (ou seja: 30,1% da população).  Se tomarmos estes 36.162 freqüentadores semanais, 48,4% deles são pentecostais ou neopentecostais.  

Quanto ao município de Esteio, a sua população hoje é de 80.000 habitantes. Deste total, 29.764 freqüentam algum local de culto religioso ou templo por semana (ou seja: 37,2% da população).  Se tomarmos este total de freqüentadores semanais, 44,1% são pentecostais ou neopentecostais.

  • (Algumas questões…) Infelizmente não temos ainda o dado para uma comparação histórica. Certamente dentro de dez anos poderemos fazer isto e poderemos, inclusive, verificar algumas das hipóteses que aqui estão sendo discutidas. Continuarão os pentecostais e neopentecostais crescendo no mesmo ritmo? Haverá uma retomada católica e das evangélicas históricas pelo viés dos movimentos carismáticos em contextos sócio-econômicos de periferia? Haverá um crescimento mais acelerado em nível das religiões de raízes africanas e de umbanda? Ou estes subcampos dentro do campo religioso tenderão sempre a diluir as suas fronteiras, levando a afirmar uma religiosidade administrada em nível pessoal sem interferências institucionais muito claras, sobretudo, marcas institucionais forjadas na dominação…

MEMÓRIA E RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA: ALGUMAS INTERROGAÇÕES SOCIOLÓGICAS

Texto inédito redigido em 11 de novembro de 2012

Quando falamos em memória é importante que falemos em primeiro lugar de suas condições de possibilidade. Sabemos que não existe história sem memória e podemos, assim, afirmar que a própria história deve ocupar-se das condições de possibilidade da memória. Ao me deparar com a questão da “memória através das religiões de matriz africana”, formulei para mim a pergunta sobre suas condições de possibilidade. Dei-me conta da necessidade de retomar o próprio processo histórico e identificar neste processo mecanismos e estratégias, ideologias e políticas que geraram condições perversas para que as memórias dos afrodescendentes subsistissem e se transmitissem com facilidade. Senti-me impelido a pensar em formular “algumas interrogações sociológicas” neste sentido.

Michael Pollak em artigo escrito em 1992, com o título “Memória e Identidade Social”, ao mesmo tempo em que afirma que as oposições binárias entre memórias dominantes (oficiais) e memórias dominadas (não oficiais) devem ser consideradas algo superado, afirma, também, que devemos estar sempre atentos ao processo de “negociação”. (Pollak, 1992, p.5). O mesmo autor em artigo anterior já deixava clara a sua posição ao afirmar que “um passado que permanece mudo é muitas vezes menos o produto do esquecimento do que de um trabalho de gestão da memória, segundo as possibilidades da comunicação”. (Pollak, 1989, p.14)

As historiografias oficiais são sempre construídas com certa linearidade e ordenamento. (Benjamin, 1992, p.28). Esta linearidade e este ordenamento estão, também, bem expressos no que Pollak (1989, p.9-10) denomina de “enquadramentos da memória”.

Aos enquadramentos da memória, subjazem, no entanto, também importantes estratégias e políticas condutoras da história e definidoras da cultura e estrutura sociais. É este quadro que fez com que, ao ser interrogado sobre a questão “memória e religiões de matriz africana”, aflorassem à minha mente diversas questões, aqui denominadas de “algumas interrogações sociológicas”. Ao entrarmos no mundo da MEMÓRIA através das religiões de matriz africana, é fundamental que explicitemos os principais aspectos envolvidos no monstruoso volume de abafamentos e dominações que pesa sobre esta realidade.

Acostumei-me a agrupar essas interrogações em três níveis, reproduzindo aqui um exercício de reflexão que realizei em coautoria com Adevanir Aparecida Pinheiro, coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – NEABI da nossa Universidade[1]:

O primeiro nível é o de algumas estratégias de esquecimento, que devem ser consideradas vigorosas e bem sucedidas. Trata-se de mecanismos de esquecimento aos quais os negros trazidos para o Brasil foram submetidos. Sem entrar em detalhamentos, uma vez que se trata de matéria de amplo conhecimento comum, vou referir os três mecanismos, por assim dizer, paradigmáticos: 1) O significado da “árvore do esquecimento”, o símbolo central que aponta para a intencionalidade dominante do esquecimento.[2] 2) A imposição de uma nova religião, o catolicismo como a religião oficial reinante. 3) A desestruturação violenta dos laços familiares, misturando clãs e etnias, procurando provocar um total desenraizamento de vínculos culturais e políticos de origem.

O segundo nível está diretamente relacionado com o uso de teorias racistas, com a precípua função de legitimar os empreendimentos de escravização dos negros africanos. Isto deve ser visto como agravante que justificou e acompanhou as estratégias aqui  mencionadas e outras. Para além da busca de legitimar a escravização, essas teorias foram mais longe, patrocinando intelectualmente políticas de branqueamento nacional. Os escritos de José Arthur Conde de Gobineau (década de 60 e 70 do século XIX) foram particularmente marcantes neste sentido. Segundo o mesmo, as raças inferiores (africanas) mesclando-se com outras raças superiores (européias) estariam levando o Brasil a uma degenerescência, sem futuro. Parafraseando o seu pensamento, pode-se dizer que, segundo ele, a vinda de maior número de brancos para o Brasil era uma urgente necessidade e fazia-se também urgente preservar os brancos da contaminação do sangue negro…[3]

O terceiro nível dá conta das políticas de branqueamento da sociedade brasileira, como políticas afirmativas em favor dos imigrantes brancos eurodescendentes, em flagrante descaso com relação aos negros. Essas políticas marcaram o período de processo de abolição da escravatura e o período pós-abolição, evidenciando um processo de “purificação racial” e de “desafricanização” do Brasil.

É com estes três níveis de referência e de agravamento do volume de abafamentos e dominações que pesa sobre a realidade dos afrodescendentes e da memória através das religiões de matriz africana, que eu lanço as minhas “interrogações sociológicas”: 1) Quais as condições de possibilidade de desvendar as densas camadas de abafamento e esquecimento provocado e estrategicamente programado? Qual o papel e incidência das diferentes formas de resistência e sobrevivência conhecidas, apesar – e à revelia – de toda a estratégia do esquecimento e abafamento? Qual o papel da academia com vistas a ajudar a escrever uma história através da qual se desvelem as dívidas culturais e sociais e se faça justiça aos prejudicados e, de certa forma, moralmente destruídos?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. 1992. O narrador. Reflexões sobre a obra de Nikolai Lesskov. In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. [Trad. Maria Amélia Cruz] Lisboa: Relógio D’Água, 235 p.

PINHEIRO, Adevanir Aparecida; FOLLMANN, José Ivo. 2012.Trabalho de Extensão Universitária com Afrodescendentes: refazendo laços e desatando nós. Cadernos de Extensão. Ed.Unisinos, p. …

POLLAK, Michael, 1989. Memória, Esquecimento, Silêncio.Rev. Estudos Históricos, 2 (3): 3-15

POLLAK, Michael,1992. Memória e Identidade Social. Rev. Estudos Históricos, 5 (10): 200-212


[1] Ver artigo publicado recentemente em CADERNOS DE EXTENSÃO, Unisinos, 2012. (Pinheiro e Follmann, 2012, p….a …)

[2] Durante grande parte do período de tráfico dos africanos escravos para o continente americano, e especificamente para o Brasil, eles eram submetidos a um ritual antes de serem embarcados. Era um ritual para esquecerem o seu passado… Eram obrigados a dar voltas em redor de uma árvore, a chamada “árvore do esquecimento”. Ao serem capturados e importados do continente africano para outros países e para o Brasil, eles eram obrigados a fazerem o ritual de esquecimento, ou seja, os homens tinham que dar nove voltas em torno da árvore do esquecimento e as mulheres davam sete voltas. Esta “árvore do esquecimento” continua, depois, se repetindo sob as mais diferentes formas ao longo do processo de escravidão e pós-escravidão…

[3] Ver José Arthur Conde de Gobineau. L’Emigration au Brésil, 1874, in Georges Raeders, 1988. 

RELIGION, POLITIQUE ET IDENTITÉ

Tese de Doutorado em Sociologia realizada e aprovada na Université Catholique de Louvain la Neuve, Bélgica, em 1993. Disponibilizada regularmente no acervo de teses, Biblioteca da Universidade. Diversos artigos foram publicados com recortes desta tese, mantida no original francês. Agora, também, disponível para acesso fácil e gratuito como e-book e PDF pela Editora Casa Leiria, 2024.

PREFÁCIO AO LIVRO ‘PRODUÇÃO DA SOCIEDADE’ DE ALAIN TOURAINE

(Edição revista e corrigida, Paris: Éditions du Seuil, 1993 – 1ª edição 1973)
Prefácio da segunda edição revisada, escrito pelo próprio autor.
(Tradução: José Ivo Follmann, setembro de 2003)

TOURAINE, Alain. Production de la Société. Paris: Éditions du Seuil, 1993

Prefácio da Edição Revisada 1993 (tradução para o português, por José Ivo Follmann)

Faz mais de vinte anos que este livro foi escrito. Ao relê-lo para a necessária depuração de coisas superadas em preparação a esta nova edição, eu o reconheço ao mesmo tempo tão próximo e tão distante que, colocado em comparação com o Crítica de Modernidade que acabo de concluir, me ponho a buscar aquilo que faz a unidade de minha vida intelectual através de seu movimento e talvez de suas mudanças.

Produção da Sociedade foi iniciado em Montreal em 1966 e concluído no início de 1973, em Châtenay Malabry, perto de Paris. Nele também trabalhei em Santiago do Chile e em Los Angeles. Ele pertence ao final do período da industrialização e da modernização, mas também a uma época de grandes conturbações sociais e políticas, de algumas das quais participei pessoalmente, como o movimento de maio de 1968 na França e o fim da Unidade popular e da democracia no Chile. Ele foi concluído em plena ruptura com o otimismo da reconstrução pós-guerra, quando triunfava uma visão puramente crítica das sociedades industriais e em que, paralelamente, as formas extremas, excessivas, da teoria da dependência recusavam, na América Latina, todas as possibilidades de mobilização popular e de reforma política.

Este livro, como todos aqueles que definem uma visão geral da sociedade, deve ser compreendido como interpretação de uma sociedade real e suas mudanças e como um combate contra outras interpretações, bem como um esforço de construção teórica. O seu título indica bastante claramente a sua linha geral: a sociedade – e não somente a sociedade moderna –, ela mesma, se produz, a partir de modelos culturais – o modelo de conhecimento, modelo de acumulação e modelo ético – que são, eles mesmos, ligados a um estado da produção e mais precisamente a um nível de historicidade, isto é, de capacidade de produção da sociedade por ela mesma. Esta interdependência do estado da produção e do trabalho, de um lado, e dos modelos de representação do mundo e do sujeito, de outro lado, é a ideia sobre a qual repousa este livro. É neste sentido que ele pertence evidentemente ao que se pode chamar de pensamento moderno, no qual a condição histórica dos seres humanos é afirmada.

Sua concepção de modernidade não é nem materialista nem idealista pois, se ela associa os modelos culturais e as formas de organização social a um estado da produção, está mostrando também que a organização social é comandada pela representação que os seres humanos fazem de sua própria criatividade em cada nível de modernização econômica e técnica. Esta concepção não define a modernidade pela secularização, mas pela substituição de um sujeito divino, projetado de fora da experiência humana, por um sujeito humano. A sociedade moderna é, antes de tudo, aquela onde o sujeito humano não se define mais por uma elaboração racional em acordo com as leis do universo, mas pela sua própria liberdade e pela sua responsabilidade com relação a si mesmo.

Esta orientação geral torna-se mais clara ainda quando se compreende que este livro combatia em duas frentes, às quais se junta hoje uma terceira. Menos diretamente, mas também tão claramente como Sociologia da Ação, escrito dez anos mais cedo, Produção da Sociedade combate primeiro contra a sociologia funcionalista que se pode chamar também clássica e da qual, durante meus anos de formação, Talcott Parsons, cujos cursos eu havia seguido em Harvard, era o representante mais criativo e mais influente. Para esta sociologia clássica que extrai as suas origens da filosofia política, de Maquiavel a Rousseau, o critério do bem e do mal é a função positiva e negativa de um ator ou de uma situação para a integração da sociedade. Proposição que toma uma forma particular nas sociedades modernas: é boa a conduta que aumenta a racionalidade do funcionamento da sociedade, má ou patológica aquela que atrapalha a obra da racionalização sobre a qual repousa a sociedade moderna. Hoje eu compreendo melhor do que em 1968 o interesse desta sociologia da modernidade e da racionalização que protege eficazmente contra os riscos dramáticos do voluntarismo revolucionário que expandiu regimes totalitários sobre a maior parte da Europa: é mais fácil definir o bem pela razão que pelo espírito de um povo, de uma comunidade ou de uma Igreja; mas eu me mantenho tão em oposição como então à ideia de que valores gerais fazem originar, se diferenciando, normas sociais. Ao contrário, eu acredito que entre as orientações culturais e a organização social estão localizadas as relações de dominação que são inseparáveis da orientação da historicidade, de seus instrumentos e de seus resultados. O que opõe a minha demarche à da escola funcionalista é a afirmação de que a produção da sociedade por ela mesma se realiza através de um conflito central, de sorte que a modernidade está sempre dividida entre adversários dos quais um não é guiado somente pela razão nem o outro somente pela tradição ou pela paixão.

Produção da Sociedade combate essa sociologia funcionalista cuja influência estivera diretamente ligada na Europa ao sucesso dos “trinta gloriosos” e ao triunfo da paz americana; mas ela se opõe também a um pensamento que iria conquistar uma verdadeira hegemonia depois de 1968, sobretudo na França e na América latina, e que constitui o oposto, mas também o complemento ao pensamento funcionalista. Para este pensamento, herdeiro de Nietzsche através de obras tão diversas como Althusser, Poulantzas e Foucault, seu desenvolvimento e influência maiores, a vida social não é senão o discurso da dominação, e o grande movimento de subjetivação, que define nossa modernidade individualista, não é senão a ilusão que disfarça a penetração do poder nos espíritos e nos corpos. Poder-se-ia falar aqui do funcionalismo crítico, já que é a lógica do sistema social que comanda e não a dos atores engajados nos valores culturais ao mesmo tempo que nas relações sociais conflitivas. Esta sociologia puramente crítica tinha uma fraca capacidade descritiva, para além dos estudos clássicos sobre a desigualdade social que não tinha tido necessidade deste quadro ideológico para se desenvolver, e de fato ela destruiu as pesquisas sociológicas mais do que as reorientou. Mas ela tinha fortes razões ideológicas para se expandir. A primeira, a mais positiva, era a de rejeitar o humanismo revolucionário que tinha alimentado os totalitarismos, desde o Arbeit macht frei – o trabalho liberta – inscrito pelos Nazistas na fachada do campo de Auschwitz até o pequeno livro vermelho de Mao, passando pelas declarações de Stalin sobre “o homem, o capital mais precioso”. A caça ao sujeito que devia tomar as formas mais arbitrárias durante os anos setenta e ter as consequências mais dramáticas nutrindo na América latina as guerrilhas fadadas ao fracasso, tinha no início uma função ideológica anti estalinista particularmente saudável num país como a França onde tantos intelectuais, mesmo depois de 1953, 1956 e 1968, permaneciam na dependência da ideologia comunista. A segunda, mais inquietante, correspondia a uma dissociação acelerada entre os intelectuais e o conjunto da sociedade. Enquanto a Europa, a partir dos anos sessenta, estava penetrada pela sociedade de consumo, criada bem mais cedo nos Estados Unidos, e que o liberalismo substituía o voluntarismo, os intelectuais, perdendo o seu papel crítico e reformador, se refugiavam numa contracultura definida pela ruptura – e não pelo conflito – com as orientações dominantes da sociedade. Tendência que estava já visível na escola de Frankfurt, mais animada pela nostalgia da razão objetiva e do Ser que pela análise do afundamento da Alemanha dentro do nazismo, mais antimoderno que capaz de separar a modernidade de suas perversões. O que reduziu durante um tempo a sociologia a um discurso somente crítico, a uma filosofia social de mais a mais afastada das mudanças observáveis e que parou de interessar, quando começou o grande movimento, real este, de destruição e de decomposição do sistema soviético. Contra esta filosofia social dominada pela nostalgia do passado, eu teria desejado que as práticas sociais impusessem na França e nos países vizinhos uma resposta para a qual o meu pensamento teria dado uma interpretação teórica. Esta é a razão para a qual eu me interessei de perto pelo movimento estudantil, americano e sobretudo francês, que devia conduzir o levante de maio 68 e em seguida ao que eu chamei de novos movimentos sociais, os movimentos de mulheres, as lutas regionais ou antinucleares, ao mesmo tempo em que eu reexaminava o movimento operário que eu havia já analisado em A Consciência Operária (1966). Um pouco mais tarde, talvez porque eu havia feito meus inícios de sociólogo na Hungria, que eu havia seguido com paixão a revolução húngara e o outubro polonês de 1956, depois a primavera de Praga em 1968, eu consagrei um estudo aprofundado ao Solidariedade cuja ação preparava e anunciava a queda do sistema soviético na Europa. Durante dez anos, com a ajuda de François Dubet, Michel Wieviorka e, no começo, Zsuzsa Hegedus, eu me consagrei a elaborar e a aplicar um novo método de pesquisa, a intervenção sociológica, para estudar estes movimentos sociais e históricos. Mas no início dos anos oitenta, eu devo reconhecer, não era nem a minha posição nem a dos meus adversários estruturo-marxistas que correspondia melhor ao espírito da época. Por tudo triunfou o liberalismo e o pensamento crítico se radicalizou ou se marginalizou num pós-modernismo que tinha as mesmas qualidades que a teoria crítica das gerações precedentes e um distanciamento ainda maior dos problemas sociais concretos.

Estes caminhos (rodeios) históricos me levaram a um retorno sobre mim mesmo, tornado mais doloroso pela doença e depois a morte de minha mulher que me havia feito viver em sua abertura aos outros e por sua arte de viver. Eu me perguntava mais diretamente que antes como separar todas as visões redutoras da sociedade: como se proteger de um lado do culto da sociedade e da vontade geral, que tinham também tantas vezes, de Rousseau ao leninismo, preparado os Terrores, exercidos em nome da razão e até da liberdade, e como separar, de outro lado, a imagem de uma sociedade inteiramente manipulada, super vigiada, máquina de reproduzir desigualdades e poderes, imagem tão estranha atribuída a uma sociedade, contudo em incessante transformação. Herbert Marcuse e Michel Foucault pensaram que dentro da sociedade moderna o poder cessa de estar no cume da organização social para se expandir por tudo, de sorte que as categorias das práticas do dia a dia dentro de uma sociedade são portadoras de repressão omnipresente, impõem a integração e a conformidade, organizam uma mobilização geral tanto mais eficaz quanto mais conseguir seduzir os homens em vez de somente lhes impor disciplina. Esta ideia é inaceitável: eu recuso a ideia que as categorias do poder se confundam inteiramente com aquelas da prática, que não exista mais questões em torno das quais adversários sociais disputam. Contrariamente eu afirmo com todo empenho em Produção da Sociedade, que existem em cada sociedade questões culturais comuns que formam um sistema de ação histórica, das quais se disputam o controle social pelas classes sociais definidas por seu papel de dominação ou de subordinação. Michel Foucault, me parece, esteve dividido, durante a última parte de sua vida, entre duas posições: às vezes ele tendia a ver em toda a organização social um sistema de super vigilância e de punição, o que o conduzia a não acreditar mais na existência de atores da mudança social e a se juntar a Marcuse que não acreditava na revolta dos excluídos;  mas por vezes, ao contrário, porque havia sido nutrido na tradição europeia de conflitos históricos, ele percebia a resistência e a revolta dos oprimidos e acreditava então na existência de possíveis atores. Quanto a mim que tinha descoberto a realidade social depois da Libertação, quando o movimento operário e os movimentos de libertação nacional agitavam as sociedades industriais e derrubavam os antigos impérios coloniais, eu não tinha nenhuma razão para renunciar à ideia de um conflito central, ideia essa que eu havia recebido da tradição social e intelectual do século XIX. O que me inquietava era sobretudo que este conflito podia conduzir à sua própria repressão, que a classe operária tinha sido demasiadas vezes representada e substituída por seus intelectuais orgânicos que, em nome do povo, da sociedade e da razão, impunham o seu poder não só às minorias dominantes, mas também à própria maioria. Me ficou sempre mais claro que o único fundamento sólido, inexpugnável, do conflito social e assim dos movimentos sociais de oposição era a defesa do indivíduo. Eu carregava com decisão esta ideia comigo, pois eu tinha sido formado em meus estudos por um pensamento liberal hostil ao poder e respeitador da liberdade de consciência acima de tudo. A Declaração dos direitos do homem e do cidadão estava há muito tempo afixada em meu gabinete de trabalho. Mas há uma outra tradição, que exerceu grande impacto em mim, a do cristianismo em que fui educado em que aprendi, de maneira definitiva, a jamais confundir o espiritual com o temporal. Sensibilizou-me sobretudo a ação da Vicaria da Solidariedade, os padres das periferias do Chile e inspiração cristã do Solidariedade, como os testemunhos, religiosos ou não, dos dissidentes russos, pelo muito de sacrifício e de revolta aceitos em nome da liberdade da pessoa humana e que estão no oposto do fundamentalismo religioso que defende o apoderamento total de uma Igreja e de um poder político sobre o indivíduo. Enfim e sobretudo, durante a sua longa doença, eu compreendi que Adriana, distinguida por nenhum título ou obra, era o mais humano dos seres humanos que eu havia encontrado, porque ela tratava os outros e a ela mesma como pessoa, ou como prefiro dizer hoje: como sujeito. Eu jamais cedi ao moralismo atrás do qual se esconde o conformismo social; ao contrário, eu aprendi a reconhecer nos movimentos sociais a defesa do direito de cada um, indivíduo ou grupo social, a escolher e a construir a sua existência, ao mesmo tempo a defender, se quiser, a herança cultural – língua, crenças, mas também criações es esperanças – daqueles dos quais ele se sente descendente. Até que eu identifico por completo o tema do sujeito e do movimento social, porque, desde os movimentos de cidadania e o movimento operário até os movimentos de libertação nacional e o movimento de mulheres, é bem o direito de ser sujeito, de não estar submisso a regras impostas ou a uma consciência alienada, que todos defendem.

Este é o caminho que eu percorri. Afastei-me de Produção da Sociedade, ou fui deixado próximo deste livro? A primeira alternativa aparece de cara; no entanto, eu escolhi a segunda alternativa, não sem reconhecer as mudanças advindas em vinte anos dentro de meu pensamento e de minha sensibilidade, melhor que modificação de meu olhar, o deslocamento do mesmo.

Posso eu hoje em dia dar tanta importância que ontem à construção dos conjuntos societais definidos em termos históricos, desses “sistemas de ação histórica” que correspondem aos modos de produção dos marxistas, tendo sido construído de maneira bem diferente? Cremos nós ainda hoje em dia na sucessão desses tipos societais ou das etapas históricas?  Nós rejeitamos em todo caso a ideia de uma evolução linear, de um progresso contínuo elevando a humanidade, para mais conhecimento, mais recursos técnicos, na direção de maior abundância e mais liberdade. Como se uma sociedade não estivesse definida senão pela sua capacidade de destruir a tradição e de se transformar. Nós conhecemos demasiados recuos ou voltas para trás, recaídas na barbárie, de orgulhos totalitários, de crises econômicas duráveis e fracassos do desenvolvimento econômico para aceitar ainda essa escatologia otimista do progresso. Existem, no entanto, duas maneiras de combater esta filosofia da história. A primeira, a que eu adoto em Produção da Sociedade e à qual permaneci fiel, consiste – sem rejeitar a ideia de progresso que defini como empreendimento crescente da sociedade sobre ela mesma, como a sua historicidade cada vez maior – em colocar o acento na estrutura de cada conjunto societal e, portanto, sobre os problemas específicos de cada um deles, o que substitui o evolucionismo pela análise comparativa dos tipos societais. A segunda é mais radical; ela substitui a ideia de progresso pela ideia de mudança, eliminando todo finalismo da evolução, salvo para reconhecer a complexidade crescente dos sistemas sociais e dos mercados. Muitos adotam hoje essa imagem neoliberal da mudança e, em lugar de compreender as condutas por sua pertença a um tipo de sociedade, têm a tendência de analisá-las como a busca racional de lucro (interesse) ou, mais frequentemente, como a gestão de recursos e de limites organizacionais ou, ainda, como parte de uma política, isto é: de um monitoramento das mudanças sociais. Contra este neoliberalismo hoje dominante, eu sustento particularmente que entramos – que já estamos bastante dentro – numa sociedade pós-industrial que eu chamo programada, definida antes de mais nada pelo lugar central que nelas ocupam as indústrias culturais – educação, saúde, informação -, e que é tão superficial não enxergar a sociedade de consumo dentro da vida social presente, como o seria não ver o reino da mercadoria nos tempos da revolução industrial.

É verdade que em 1973 a minha análise da sociedade pós-industrial se mantinha demasiado prudente, como ela fora nos meus livros precedentes: O Movimento de Maio ou o Comunismo Utópico (1968) e A Sociedade Pós-Industrial (1969). Sob as influências de sociólogos e economistas das grandes organizações e em particular de J. K. Galbraith, eu a definia então sobretudo pelo poder tecnocrático das grandes empresas privadas ou públicas e dos Estados considerados como organizações; é a imposição de um poder em nome da técnica que me impressionava sobretudo. É porque eu dei tanta importância à revolta dos estudantes contra o sistema universitário, o que correspondia também à preparação do movimento de maio em Nanterre no Departamento de Sociologia cuja direção eu assumia, o qual conhecera uma primeira greve no outono de 1967 e onde Daniel Cohn-Bendit defendia, com um talento e uma generosidade remarcáveis, ideias antiautoritárias, dirigidas tanto contra o sistema comunista como contra as instituições francesas. De fato, essa crítica anti tecnocrática, real e ativa, foi um momento de transição. Da mesma maneira que alguns anos mais tarde, o movimento antinuclear, ele também de orientação anti tecnocrática em sua componente mais avançada, como o demonstramos com F. Dubet, M. Wieviorka et Z. Hegedus em A Profecia Antinuclear em 1980, se decompôs rapidamente – não somente na França – para fazer surgir a ecologia política onde a crítica cultural anti industrialista avança sobre a crítica social.

É somente nos anos oitenta, quando o modelo de sociedade de consumo se impôs praticamente sem resistência à maior parte do mundo, que eu compreendi o lugar central que ali ocupava o temor justificado frente a um poder exercido sobre a produção e a difusão dos bens culturais, mais ainda que sobre a dos bens materiais. Hoje em dia, os problemas que levantam as maiores paixões são claramente aqueles que estão ligados ao poder da medicina, à destruição do meio-ambiente, à submissão dos programas de televisão a critérios comerciais, à ruptura entre escola ou universidade e a criação cultural ou a formação de projetos pessoais. A cultura tornou-se uma questão política: os defensores da sociedade de consumo como os seus contestatários falam uns e outros em nome do individualismo, mas os primeiros definem o indivíduo como um consumidor, os segundos como um sujeito construindo e defendendo a sua própria capacidade de ser um ator livre e responsável.

Esta formulação dos problemas da sociedade programada não é ela tão lenta e difícil com o foi, há um século e meio atrás, a descoberta dos da sociedade industrial? É esta analogia que me fez definir o movimento de maio como um comunismo utópico, mas ela é ainda mais útil hoje em dia, quando os novos movimentos sociais, intermediários entre a sociedade industrial e a sociedade programada, desapareceram e quando se formam os novos movimentos de opinião – que adquiram no caso da ecologia uma expressão política – os quais deslocaram o debate político do campo da propriedade e da organização do trabalho para o das indústrias culturais. Nos dois casos, industrial e pós-industrial, o que ficou por muito tempo oculto é a relação de dominação que se pode chamar de relação de classes. Em revanche, o que deve ser de toda forma eliminado – mas que nunca esteve presente no meu pensamento – é a ideia que certas forças sociais são portadoras do sentido da história, devendo então assumi-lo objetivamente. É por isso que eu cessei progressivamente de falar de classes sociais e substituí esse conceito pelo de movimento social, definido como a ação conflitual de um ator dirigente ou popular pelo controle social dos modelos e dos recursos de uma sociedade, isto é, de sua historicidade. No momento em que as classes sociais se definiam por uma herança cultural mais do que por um papel na produção, quando elas estavam separadas por barreiras difíceis ou impossíveis de passar, era normal que os contestatários chamassem à ação, à produção, contra a reprodução dos privilégios. Mas quando a produção, o consumo e as comunicações de massa quebram as velhas hierarquias sociais, quando o dinheiro se torna a medida de quase tudo, o que não elimina os mecanismos de dominação, mas somente os transforma, a contestação chama não mais à economia, mas à personalidade e à cultura, o que restitui vida a pertenças e particularismos que há pouco tempo pareciam não oporem ao progresso outra coisa que a resistência passiva das tradições. É porque o materialismo das antigas reivindicações pré-industriais e mesmo industriais é substituído pelo apelo à identidade, à liberdade e à comunidade também. É porque a ideia de classe social se dissolve, enquanto inversamente é reforçada a de movimento social. Certamente, classes e movimentos devem ficar associados pois um movimento social não é qualquer tipo de ação coletiva, não se reduz em particular a uma crise do sistema de tratamento dos conflitos. Ele coloca em jogo as relações de dominação e, portanto, as orientações culturais das sociedades. Mas é necessário opor movimento social e luta de classes, expressão que não incorporei em meu vocabulário porque ela reenvia a uma necessidade histórica, a leis do desenvolvimento da sociedade, cuja existência eu não reconheço. Produção da Sociedade se situa ainda dentro de uma concepção histórica herdada do século XIX, mas coloca em ação as ideias de historicidade, de modelo ético, isto é: de representação do sujeito, e de movimento social que não cessaram de receber reforços em meus livros posteriores. Na realidade, desde Sociologia da Ação e A Consciência Operária até os dias de hoje, eu não parei de dar um lugar central ao movimento social concebido como um ator histórico, isto é, como defensor do sujeito pessoal e coletivo contra os sistemas de dominação e de gestão. Desde meus primeiros estudos mostrei que o sindicalismo, longe de ter nascido da revolta do proletariado explorado, tinha se tornado um movimento social quando ele defendera a autonomia dos trabalhadores sobretudo qualificados, face à organização do trabalho, e eu falei, para defini-la, de consciência operária antes que luta de classes. O que me afasta de meu livro de 1973, é que ele identificou de forma demasiadamente completa o sujeito com a sua obra criadora e consequentemente à sua produção. Eu creio certamente ainda que essa ligação do sujeito à criação das obras é indispensável e que, se a gente o rejeita, toca-se rapidamente na exaltação de um povo e de uma comunidade e no culto do poder totalitário que ela traz nela mesma. Mas o declínio da sociedade industrial nos tornou também mais sensíveis à alienação do sujeito humano na burocracia, no poder dos Estados e das empresas, no discurso sobre a integração social e na própria exaltação da modernidade. Encontro-me hoje tão sensível ao “desengajamento” do sujeito como aos seus engajamentos, tanto à defesa da liberdade pessoal quanto à responsabilidade social. Sinto, no entanto, ainda mais uma vez, com mais força a permanência de meus temas fundamentais do que as modificações advindas em sua formulação, sem evidentemente subestimar as transformações que se fizeram necessárias pelo prodigioso revertério de situações, de ideias e de sensibilidades que vivemos nos últimos vinte anos. Nós saímos da sociedade industrial durante esse período confuso, mas decisivo que foi aberto em 1969 e que foi concluído em 1989, ano que permanecerá marcado como ano do fim das revoluções e das sociedades nascidas de sua crença na razão histórica. Eu acompanhei de perto esta grande passagem da sociedade industrial, capitalista ou socialista, para um outro tipo de sociedade, como no início do século XIX, nós tínhamos entrado num tipo de sociedade em ruptura com o (tipo) que nos havia dominado desde a Renascença até às revoluções inglesa, americana e francesa. No momento em que eu escrevia Produção da Sociedade, eu tive que opor-me ao materialismo histórico e ao seu determinismo econômico. Hoje em dia, eu recuso com todas as forças o neoliberalismo e a dissolução de todas as estruturas dentro da mudança. Contra o primeiro adversário eu insistia no ator social e na defesa de sua liberdade; contra o segundo eu lembro a existência de relações sociais de dominação inseparáveis dos conjuntos societais, das quais eles constituem uma das estruturas principais. Mas, esses dois combates foram e são travados em nome da mesma concepção de relações do indivíduo e da sociedade. Produção da Sociedade pertence à sociedade industrial de cuja criação acelerada após a Libertação eu gostei, mas, em seu quadro cultural e social, esse livro já buscava compreender as relações entre a produção da sociedade e a libertação do sujeito,  rejeitando ao mesmo tempo a ideia de um sujeito puramente interior, que não poderia se libertar senão como artista que rejeita os limites e as tentações da sociedade burguesa, e  a ideia oposta de um sujeito puramente histórico, identificado com seus trabalhos.

Hoje, ao republicar este livro, eu quero marcar antes de tudo a minha adesão à ideia da historicidade e minha oposição às ideologias que reduzem a vida social a um mercado. Já está mais do que em tempo que redefinamos os enjeux (questões: o que está em jogo) e os atores sociais de nossa sociedade; é urgente que interpretemos a sociedade de consumo não como um bazar, mas como um campo de novas relações de dominação e novas contestações. Eu só me inquieto (me interrogo) pela nossa capacidade de criar as ideias, os movimentos sociais e as formas de intervenção política que devem preencher o que era o conjunto múltiplo que constituiu a esquerda durante a sociedade industrial, o movimento operário e as ideias socialistas, hoje ultrapassados por outros modelos culturais e outros problemas sociais.

O que mais ameaça a humanidade (o mundo) hoje é a dissociação completa entre o mundo objetivo do lucro (do interesse) ou do mercado e o mundo subjetivo das crenças e das comunidades. Eu abordei muito mais diretamente esses problemas na terceira parte de Crítica da Modernidade, mas o Produção da Sociedade, dentro de seu rigor, e mesmo de sua rigidez, é uma chamada vigorosa e necessária a um dever maior da sociologia: compreender os conjuntos históricos, que não são somente situações, que são dramas vividos inventados e interpretados por atores. Tenho receio que nossas velhas terras, sobrecarregadas de história achem demasiado pesado para elas a tarefa de inventar o seu futuro e que elas se contentem em consumir a sociedade na falta de poder produzi-la, substituindo a oposição dos dominantes e dos dominados pela (oposição) da classe média e dos marginais, que suscita uma indignação moral, mas não leva a nenhuma ação de transformação social. Nós sofremos muito por causa das ideologias conquistadoras; não sofremos hoje o mesmo tanto por causa da boa consciência moralizadora e humanitária e de sua generosidade que não mexe em nenhum privilégio e assegura um sono sem pesadelos? Produção da Sociedade foi escrito nas suas partes essenciais logo depois da primeira grande derrocada da sociedade industrial no maio de 68. Um pouco depois, a economia em atraso, nesse caso, em relação às ideias, o fim do sistema monetário internacional, as crises do petrolíferas, o declínio das indústrias tradicionais e o ascenso de novas potências industriais constituíram a Europa e os Estados Unidos – afundados, depois na França, no Vietnam – num período vivido como crise. É então que se acelerou a decomposição do pensamento social, que se passou, em alguns anos, do radicalismo ideológico a um pós-modernismo em ruptura com a história. Breve interregno, rapidamente substituído pelo rápido empurrão de todos os países ocidentais na direção do liberalismo econômico, a limitação do Estado-providência, o recuo ou desaparecimento do movimento operário, até o desabamento do sistema soviético, simbolizado pela queda do muro de Berlim em 1989, marca a vitória aparentemente absoluta do modelo liberal que identifica a democracia a um mercado político aberto e de fato um atributo da livre economia. Não houve ainda tempo, depois deste período de liquidação dos projetos voluntaristas da industrialização, de a sociedade pós-industrial ou programada tomar pé no continente e de nos darmos conta de que a nossa história desde vinte anos foi a de deriva misturada com descobertas, tão incerta quanto a navegação de Cristóvão Colombo, há quinhentos anos, mas que nos fez atravessar o oceano que separa o velho mundo, o da sociedade industrial, do novo mundo, o da sociedade programada. Produção da Sociedade é um farol sobre a costa do continente industrial do qual nos afastamos; vinte anos depois, venho de erguer um outro farol sobre a costa do continente pós-industrial, mas, quando olho na direção do velho farol, reconheço nele a mesma mensagem que no novo. Necessitamos hoje em dia, tanto de imaginar um futuro, quanto de nos lembrar de um passado, para escapar das ilusões e dos delírios de um presente sem rumos e sem sustentos. Produção da Sociedade não só nos informa sobre o que foi a sociedade industrial; ele nos lembra também o que é um pensamento da história e, portanto, o que é um ator histórico, livre e responsável de sua vida pessoal e da vida coletiva.

Mas é verdade que nós não podemos abordar o novo continente com um espírito de conquista. Há muito tempo não acreditamos mais que a força de nossas técnicas crie abundância, liberdade e justiça. Nosso temor está na destruição que toda a produção traz consigo. Às vezes até pensamos que é preciso chegar de novo ao equilíbrio depois de alguns séculos de progresso. Ilusão perigosa e egoísta, porque essa parada no crescimento não serviria senão aos ricos e não deteria os desgastes do progresso. Mas nós aprendemos a não mais confiar cegamente no desenvolvimento das “forças produtivas”, a compreender as tensões e às vezes as contradições entre a organização social racionalizada e a liberdade ou a criatividade individuais e coletivas. É esta inquietude, são estes atormentamentos que faltam no Produção da Sociedade, que está ainda demasiadamente carregado pela confiança no trabalho, na produção, na modernização acelerada da época industrial.

Eu não quis modificar esse livro escrito no final da primeira metade de minha vida intelectual; contentei-me em torná-lo mais leve, suprimindo as análises que não se tinham revelado fecundas, ou que eu mesmo não tinha tido ocasião de desenvolver. Mas se eu tivesse querido modificar este livro, eu o teria tornado sobretudo mais inquieto, não no sentido cético, não no sentido pós-moderno ou pós-histórico, mas mais sensível às imensas zonas de sombra de dentro das quais se volve o olhar hodierno atraído pelas luzes do consumo. O leitor, no entanto, se ele for atento, encontrará mais sombra e mais protesto em Produção da Sociedade que não o deixem prever algumas fórmulas que parecem emprestadas ao otimismo evolucionista do século XIX. Eu recordo: esse livro nasceu do movimento de maio de 1968 mais do que da grande modernização dos anos cinquenta e sessenta. Mas o essencial a meu ver hoje é o de ver constituir-se, para lá da crise do otimismo ocidental, como para além do esgotamento de um pensamento puramente crítico, e contra as ilusões da sociedade de consumo, novos enjeux (questões: o que está em jogo) e novos atores sociais. Quando eu falei da sociedade pós-industrial desde o final dos anos sessenta, em termos bem diferentes dos de Daniel Bell, muitos consideraram que se tratava de sociologia-ficção. Hoje, nós estamos dentro da sociedade programada e consequentemente nós temos urgentíssima necessidade de categorias que permitam a análise desse novo tipo societal. A sociologia perde a sua razão de ser se ela cessa de compreender a história. Ela foi sempre, desde a sua pré-história, desde Tocqueville e Marx e mais ainda seus grandes fundadores, Durkheim e Weber, uma reflexão, ao mesmo tempo inquieta e confiante, sobre a modernidade. Eu compreendo que em plena crise da historicidade ela se tenha totalmente voltada sobre o estudo de um ator desorientado, privado de sentido, dentro de uma situação onde desaparecia toda a correspondência entre o ator  e o sistema, e dimensiono perfeitamente a importância da obra de Ervin Goffmann, mas considero como mais importante ainda reencontrar o sentido de uma experiência histórica que se transformou tão rapidamente que os antigos instrumentos de descrição e análise parecem ter perdido  toda utilidade. O que impõe restabelecer a comparação com a consciência histórica passada, não para fazê-la reviver, mas para tomá-la como modelo de análise ao mesmo tempo que para libertar-se dela historicamente. Se eu republico, hoje Produção da Sociedade, é para chamar para a reconstrução de uma sociologia do ator histórico sobre o novo continente onde atracamos (abordamos) e onde nós devemos o mais depressa possível aprender a nos orientar, a organizar nossa vida coletiva e a limitar o mais possível as desigualdades e as injustiças que acompanham as grandes descobertas.