RELIGION, POLITIQUE ET IDENTITÉ

Tese de Doutorado em Sociologia realizada e aprovada na Université Catholique de Louvain la Neuve, Bélgica, em 1993. Disponibilizada regularmente no acervo de teses, Biblioteca da Universidade. Diversos artigos foram publicados com recortes desta tese, mantida no original francês. Agora, também, disponível para acesso fácil e gratuito como e-book e PDF pela Editora Casa Leiria, 2024.

RE-ENCANTAR A DEMOCRACIA É POSSÍVEL

Publicado em Revista MEB, outubro de 2022.

Não existe democracia sem um real cultura de participação

Introdução

A Revista MEB entrevistou José Ivo Follmann, padre jesuíta e sociólogo, sobre o tema da democracia. A formação do entrevistado, na área da Sociologia, passou pela graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP e doutorado na Université Catholique de Louvain – UCL, Bélgica. Possui também graduação em Filosofia e em Teologia. A sua formação foi complementada por dois cursos de especialização: História contemporânea e Cooperativismo e diversos cursos e estágios de atualização. Tem em seu currículo, cinquenta anos de professor e pesquisador na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, onde foi também Vice-Reitor durante dez anos. A produção intelectual do entrevistado esteve sempre marcada pela atenção ao compromisso social da Universidade e da Igreja, especificamente dos jesuítas, para com a promoção da justiça e na busca por encontrar os melhores caminhos para a incidência junto ao aprimoramento da participação cidadã, a partir dos processos educativos e da organização da sociedade civil. A entrevista está focada no amplo debate que brota na realidade presente com relação ao tema e à prática da democracia. Para Follmann, no meio da perplexidade política que vivemos, uma grande iniciativa, que está sendo bem dinamizada, merece todo destaque. Trata-se da iniciativa de uma rede de organizações, serviços, pastorais sociais e organismos da Igreja, Rede Brasileira de Fé e Política, que está sendo fortalecida e busca priorizar o “encantar a política”, neste ano eleitoral que estamos vivendo. A entrevista, na expressão do entrevistado, se associa nesse movimento. A democracia, em contradição ao seu status de ser a melhor conquista da humanidade em termos de modus vivendi na política, vem sendo muito pervertida e maltratada em termos de concepção e aplicação prática, a ponto de perder grande parte do seu sabor e encanto. As desigualdades sociais, que são históricas e sempre mais escandalosas no Brasil, denunciam o uso perverso da democracia e apelam por seu (re)encantamento. Segundo Follmann, o “(re)encantamento da democracia é possível!”. O entrevistado, além de professor e pesquisador na UNISINOS, está como Diretor do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA (junto ao Centro Cultural de Brasília – CCB), órgão articulador e dinamizador da Rede de Justiça Socioambiental dos Jesuítas no Brasil. A incidência junto às Políticas Públicas é uma das pautas dentro dos esforços em torno da promoção da justiça (social e ambiental) pautados por este organismo. A entrevista foi concedida por escrito para a Revista. Vamos à entrevista:

Revista MEB: Na sua compreensão, qual é a importância do tema da democracia na atualidade e como se manifesta na vida das pessoas e da sociedade?

José Ivo Follmann: Eu me considero alguém movido pela utopia da democracia. Cultivo também uma grande crença de que o Brasil pode tornar-se um exemplo de democracia para o mundo. Feita esta profissão de fé, esperança e amor, quero manifestar a minha total responsabilidade pessoal pelo conteúdo desta entrevista, sempre atento ao imperativo de que o diálogo é o atalho mais apropriado e eficiente na construção da democracia.

Com este cuidado inicial, quero sublinhar que na atualidade o tema da democracia assume uma importância muito especial. Talvez nunca este tema teve tanta atenção como tem hoje. Possivelmente, também, nunca este tema foi tão mal-entendido e mal praticado ou maltratado, como hoje. Um recente manifesto em defesa da democracia, escrito em finais de julho de 2022 pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, chegou a alcançar, até o dia de sua divulgação pública em 11/08/2022, a adesão de 1.000.000 de assinaturas, como um evidente recado ao atual mandatário no governo, devido a posicionamentos reiterados por ele assumidos. A carta mereceu a adesão dos mais diversos grupos na sociedade, inclusive grupos evidentemente antagônicos.

Em recente obra de Wilhelm Hofmeister (2021) estão explicitados de forma didática, cinco pilares fundamentais da democracia. Lembrá-los aqui é importante: – Eleições livres e justas; – Governo responsável; – Igualdade de direitos políticos e participação igual de todos os cidadãos; – Respeito pelas liberdades civis e políticas; – Estado de direito e independência do poder judicial. Assumo estes cinco pilares em minha concepção de democracia, mesmo que o espaço aqui não permita considerações específicas a respeito.

A par do fato de alimentar esta crença em relação ao sucesso da democracia no Brasil e cultivar essa utopia com carinho, tenho também a clara percepção de que nada disso terá condições de acontecer, dentro de nossa realidade brasileira, se não forem promovidas, de forma afirmativa e vigilante, condições concretas de participação cidadã e de formação ou educação política para isto. Quase teríamos que sugerir um sexto pilar junto aos cinco pilares aqui mencionados, ou seja: – Garantia permanente de condições concretas e de cultivo da educação política para uma efetiva cultura de participação.

Vale lembrar e repetir que nem todas as pessoas contabilizadas (em 11/08/2022) no 1.000.000 de assinaturas da carta mencionada, se alinham coerentemente em sua prática econômica, social, política e ambiental com os pilares da democracia aqui identificados. Só se tem uma certeza: A adesão à carta reflete um momento em que todo o debate tende a fechar-se sobre uma turbulência, em certo sentido, falseadora, no atual momento pré-eleitoral. O seu lado falseador está na tendência a fechar o horizonte em cima do próprio processo eleitoral, perdendo de vista a substancialidade do regime democrático.

Vivemos em uma sociedade na qual, desde os mais extremos grupos de “direita” até os mais extremos grupos de “esquerda”, – se isto ainda se constitui em uma linguagem pertinente -, usam o discurso da democracia como mote de ação política. Existe, também, um grande segmento que lamenta a existência da “polarização”, colocando-se, pela via do “centro” e do “meio”, como a via boa para o exercício da democracia. Fala-se da “polarização” enquadrando neste clichê, – em minha opinião, erroneamente -, os antagonismos existentes na sociedade, como sendo algo negativo e prejudicial para a democracia. Isto, como se pudesse haver vida política sem a existência de tensões antagônicas permanentes. Ainda mais, dentro de sociedades, como a nossa, que são escandalosamente marcadas pela desigualdade.

Dentro do momento agitado e escancaradamente perturbado que vivemos, a minha resposta à pergunta feita, obviamente, não poderá ser mais do que uma aproximação bastante limitada. Mas, com certeza, estará revestida de amor pela democracia, especificamente pela democracia que proporcione participação cidadã efetiva e a partir das bases, ou dos grupos mais privados dos direitos mais básicos.

Vivemos um clima político, no mínimo, perigoso, porque está eivado de discursos e narrativas que têm um sentido desmobilizador e tremendamente prejudicial à imagem interna e externa do Brasil. É um clima desmobilizador porque não existe o favorecimento de um debate público verdadeiro e que envolva todas as forças da sociedade, focando os problemas reais, tão necessário para a democracia. E, nesta onda toda, existem dois agravantes sérios: o amedrontamento a partir de ameaças explícitas com poderio armado loucamente disseminado pela via de milícias e do narcotráfico e a cilada de uma mistificação perversa pela via religiosa ou “pseudorreligiosa” dos “mercadores da fé”, revestida de um flagrante atentado à laicidade do Estado. Isto contradiz na essencialidade o Estado laico que somos por Constituição. A laicidade é fundamental para o funcionamento da democracia, num país tremendamente plural como o nosso.

Os discursos e narrativas sinalizados se amparam, por vezes, em alertas anacrônicos contra a ameaça comunista, manifestos, retomados e repetidos em diferentes momentos da história. É um “inimigo” sabidamente anacrônico para quem conhece a história e a atualidade brasileiras. Este “inimigo” interno estaria afrontando a democracia e os valores mais caros de nossa sociedade; estaria ávido para cercear a liberdade das religiões e seus valores, bem como a propriedade privada dos bens. Este “inimigo” estaria colocando em risco a democracia, mesmo que a história recente esteja desmentindo isto com todas as evidências.

Mas nem tudo é sombra (ou assombração!?) … Existe também uma consciência difusa, sempre mais viva, em relação aos verdadeiros riscos contra a democracia e os valores da sociedade. Esta consciência cresce com vigor e se manifesta amplamente nos termos da carta que mencionei, apesar do espectro contraditório de suas adesões. Cresce o clamor pela manutenção da democracia, clamor este alimentado por narrativas que alertam contra os riscos que o país corre frente a um possível caos gerado em decorrência do desmonte das principais instituições republicanas, inclusive a própria conquista de um processo eleitoral de reconhecida competência, eficiência, e valor técnico em termos de segurança. Dentro do clamor pela democracia cresce, sobretudo, o movimento por um novo encantamento da política. (CNLB, 2022). Este movimento pelo (re)encantamento é cultivado, por um lado, a partir de mobilizações de raízes religiosas, sobretudo entidades vinculadas à CNBB, mas também, de outro lado, por forças diversas organizadas na sociedade civil, que movendo-se pelos mais diferentes interesses se erguem em coro uníssono em defesa da democracia. Me associo a esse movimento do (re)encantamento. É processo que pode fazer com que a nossa sociedade se regenere a partir das bases, se soubermos empregar as estratégias corretas, revisitando e cultivando a democracia em suas raízes.

Mencionei acima um certo viés falseador em todo o debate que está muito agitado. É o viés focado nas eleições, com a sinalização de que o processo eleitoral é o grande decisor da democracia. Trata-se de um foco centrado na “democracia representativa” e que coloca todo valor da representatividade, no evento da eleição… Precisamos reafirmar a consciência de que o tempo principal da democracia é o tempo efetivo da prática política onde se realiza e se pode testar o serviço político do candidato ou da candidata. Eu diria, assim, que, enquanto não conseguirmos reaver uma verdadeira “democracia participativa” e de vigilância permanente sobre a prática e o serviço político dos/das representantes, a própria democracia representativa tenderá a se deteriorar sempre mais e poderá correr riscos sérios, como aliás já está demonstrado de forma ostensiva e escandalosamente recorrente.

Essa não é uma preocupação de hoje. Foi, por exemplo, com essa percepção que os bispos católicos, reunidos na V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, reunidos em 2007, em Aparecida do Norte, Brasil, manifestaram, já na época, através do “Documento de Aparecida” (CELAM, 2008), uma grande preocupação na defesa e afirmação da democracia participativa, ao mesmo tempo em que celebravam os avanços dos processos democráticos. Diziam que, apesar de um certo progresso demonstrado em processos eleitorais, causa preocupação a existência de diversas formas de regressão autoritária por via democrática, que às vezes estão resultando em regimes de corte neopopulista. “Não basta uma democracia puramente formal, fundada em procedimentos eleitorais honestos, mas (…) é necessária uma democracia participativa e baseada na promoção dos direitos humanos e no respeito a eles”. (n. 74) Depois de apontar diversas características da democracia participativa, os avanços positivos e riscos perceptíveis que ela corria, os bispos denunciavam que (…) “esquece-se de que a democracia e a participação política são fruto da formação que se faz somente quando os cidadãos são conscientes de seus direitos fundamentais e de seus deveres correspondentes”. (n. 77, grifo nosso)

Parece que os bispos, há quinze anos, já percebiam a principal fragilidade, ao apontarem a importância da formação. De fato, o que acontece hoje, o que mais aparece visibilizado é a fragilidade em termos de formação política. Isto perpassa todos os níveis ou espaços de presença humana, seja nos processos de produção e veiculação do conhecimento, seja no cuidado para com as instâncias de participação e mobilização social, seja no próprio dia a dia concreto do convívio humano. O Movimento de Educação de Base – MEB tem uma longa história de contribuição para a democracia neste sentido. Talvez estejamos vivendo um momento de extremo apelo para que se reforce essa contribuição. Além da fragilidade na formação política cidadã em geral, não existe uma apuração clara das condições apresentadas pelos candidatos e candidatas em termos de formação/participação política, que deve ser buscada e revelada em todos esses níveis ou espaços vividos.

O que perpassa tudo é falta de informação, é informação distorcida, é falseamento da informação (“fake-News”), é desencanto; são mobilizações vazias mediante “militâncias estéreis”, através de likes inócuas; são narrativas falsas de amedrontamento e de demonização do próprio confronto sadio de ideias; é a quase incapacidade de entabular bons diálogos ou debates e confrontos sadios de ideias opostas. Em suma, é ausência de boa formação. É preciso que se possa restabelecer o confronto de ideias, que seja verdadeiro, não focado simplesmente em querelas e tagarelices do “ser” ou “não ser a favor” disto ou daquilo, mas focado no como nos posicionamos e que propostas se tem para diminuir as desigualdades sociais e na busca da garantia do acesso de todas e todos a uma vida digna, ou seja, condições de vida acima da “linha da dignidade”. A formação para a democracia só será consistente se souber ultrapassar o nível das informações superficiais e pouco interessantes sobre como funcionam os sistemas democráticos e seus belos artifícios de poder. A formação para a democracia será consistente se focar os necessários mecanismos participativos na sociedade e as propostas verdadeiramente focadas nas condições de superação necessária das desigualdades sociais escandalosas e do acesso pleno às condições de vida que respeitem a dignidade de todas e todos.

Revista MEB: Você tem acompanhado o processo democrático brasileiro por décadas. Como você avalia a tendência mundial de polarização e fechamento dos espaços democráticos?

José Ivo Follmann: A pergunta pode gerar uma expectativa falsa… É preciso que eu diga inicialmente a partir de que lugar eu falo. Não sou da área da Ciência Política. Sou sociólogo e padre jesuíta. Estou manifestando as minhas percepções a partir das referências que eu consegui construir em minha trajetória, dividida ou atravessada, desde minha juventude, tanto por elaborações de estudos sociológicos como por práticas engajadas na promoção da justiça. Nessa minha lide intelectual, como sociólogo engajado, sempre fui guiado pelo sopro do espírito cristão buscando coerência com minha opção de religioso cristão ligado à Companhia de Jesus, conhecida como a Ordem dos Jesuítas, na Igreja católica. A Ordem dos Jesuítas está presente em quase todos os países do mundo, convivendo, sobrevivendo ou sofrendo perseguições, nas situações políticas mais diversas encontradas e desencontradas.

Talvez se possa dizer que a história brasileira nos oferece um exemplo muito particular, quando se fala nas grandes polarizações que acontecem no mundo. Vou tomar a liberdade de repetir aqui uma frase que cunhei em epígrafe no livro (coletânea) sobre “Políticas Públicas – Debates Sociológicos Pontuais” organizado conjuntamente com Carlos Alfredo Gadea e Luiz Felipe Lacerda (2019). A frase é a seguinte: “O momento que vivemos hoje no Brasil nos faz voltar, mais do que nunca, para a triste herança que pesa de um passado de uma sociedade elitista e excludente, que ainda não conseguiu fazer as pazes consigo mesma e muito menos conseguiu amadurecer para um verdadeiro espírito republicano e prática da democracia”. Da mesma obra destaco ainda outra frase do primeiro capítulo, em coautoria com Luiz Felipe Lacerda:

Sabemos pela história da república no Brasil, quanto o “interesse da maioria” ou a “vontade da maioria” são quase “peças de ficção”. Isto é válido para os primeiros anos da república quando o Brasil viveu uma de suas páginas de maior negação dos direitos de ampla porção da sociedade recém liberta do estado de escravidão, e sobretudo, para os dias de hoje, quando o país é vítima de uma mega submissão do Estado aos interesses de uma minoria nacional e internacional dominante. (in FOLLMANN; GADEA; LACERDA, 2019, p.22-23)

Todos sabemos que o Estado é um conjunto complexo de instituições organizadas para o bom funcionamento de uma Nação. Ao menos é o que está idealizado no conceito… No Estado republicano que nos identifica oficialmente desde a Proclamação da República em 1889, precisamos distinguir entre, por um lado, os princípios e instituições republicanas e, por outro lado, os processos efetivamente democráticos. Quando as instâncias republicanas são fortalecidas, transparentes e maduras, os processos democráticos têm melhores condições de serem dinamizados e qualificados. A fragilização e a redução republicana, identificada corretamente como desmonte das instituições públicas, tendem a gerar mecanismos distorcidos e descontrolados nos processos democráticos. O resultado é o silenciamento. Esta é uma ambientação favorável para os paradoxos e manejos autoritários, em nome da própria democracia, tão conhecidos hoje.

Eu diria que o foco de nossa atenção não deve ser o receio da explicitação dos antagonismos, mesmo que sejam fortes e polarizados, mas devemos dar atenção às manifestações daquilo que se pode considerar uma tendência ao aumento da violência e da brutalização no convívio humano. É algo que vem sendo alimentado por toda uma cultura da violência e da morte, em geral concentrada em grupos de extrema direita. Há um recrudescimento da violência misógina, dos racismos, dos machismos, da homofobia e de atitudes aporofóbicas (ódio a pobre). Quem pensa nisso quando fala do risco da polarização, está correto. Pois essa é uma tendência capitaneada por forças que querem impor uma narrativa unilateral sem permitir debate.  

O discurso intransigente e violento em um ambiente de fragilização e desmonte do próprio Estado de Direito, ou seja, das instituições republicanas, torna-se algo muito perigoso. Neste clima tende a se impor uma concepção de democracia “sem lei”, ou, melhor, democracia da lei do mais forte. O Brasil está sendo uma espécie de tipo exemplar nisso, hoje… Seria uma “democracia” que necessita de armas nas mãos das chamadas “pessoas de bem”, para garantirem a sua liberdade contra os indesejados. (ver GHIRALDELLI, 2021). Tudo isto exigiria uma longa análise, mas o espaço aqui não permite. O agravante de tudo isto, aqui no Brasil, é a nossa longa história de dominação e submissão internas das maiorias e de submissão do próprio aparelho do Estado. As forças de dominação e exploração se concentram em poderosos grupos econômicos. Vivemos tempos de perversão da democracia, abrigando formatos tremendamente autoritários, misóginos, excludentes… Me insurjo contra esta “exemplaridade perversa” que vem se colando ao Brasil e gostaria de reforçar o coro daqueles, muitíssimo mais numerosos, mas talvez demasiadamente calados, que acreditam e professam a utopia do Brasil como exemplar para a democracia participativa.

Efetivamente, a única vacina eficaz para curar o Brasil do risco da violência e do ódio é a democracia participativa. (ver GHIRALDELLI, 2021). Existe no ar um grande apelo à responsabilidade de cada cidadão e cada cidadã e, sobretudo, as entidades e organizações que lidam diretamente com educação não podem ficar só no discurso da defesa da democracia e seus valores, mas devem formar, nas suas práticas e promoções internas e externas, para a cultura democrática. O cultivo da diversidade é fundamental em um ambiente educativo, que se defina como espaço de formação para a democracia. Este cultivo é gerador de cultura democrática. O cultivo da diversidade é incompatível com discursos e práticas misóginos, racistas, machistas, aporofóbicos e homofóbicos em seus espaços. O trabalho de educação de inspiração cristã, só faz sentido, dentro do contexto que nos marca, enquanto testemunhas de participação, de transparência e de cultivo da dignidade humana.

A versão democrática que rompe o peso histórico da dominação e da submissão é muito recente, aliás só teve alguns períodos relativamente curtos de respiro vital. Talvez se possa dizer que acompanhou o próprio processo histórico do Movimento de Educação de Base – MEB. Vivemos novamente um momento de sérios riscos de que a tragédia de uma “democracia” desfigurada pela dominação e submissão possa levar o Brasil a uma derrota definitiva do sentido cidadão contra a submissão alienada.

O que de fato impera é o tremendo distanciamento entre o “mundo dos políticos” e o “mundo da sociedade civil”. Isto toma feições mais graves na medida em que se perde a capilaridade de instâncias intermediárias de participação da população e, também, na medida em que se corrói a vitalidade das organizações populares autônomas e dos movimentos populares. O próprio Estado precisa ser permanentemente nutrido por esta capilaridade participativa, com o risco de, na ausência disto, perder totalmente a sua característica de Estado democrático de Direito, garantidor do bem comum. A vida da sociedade em todas as suas manifestações precisa recuperar a sua dimensão política, reforçando-se a capilaridade da construção democrática dos destinos da Nação.

Revista MEB: Segundo vários pensadores, como por exemplo Gramsci, na sociedade democrática as forças que a compõe são antagônicas e estão em constante conflito. Como você vê os Movimentos Populares de hoje na luta pela consolidação da democracia?

José Ivo Follmann: No meu entender o principal combustível da vida política são os conflitos e os antagonismos, e, talvez, mais do que isto, saber lidar com os conflitos e os antagonismos. As sociedades democráticas sobrevivem e se qualificam na medida em que sabem deixar-se renovar no confronto de ideias e da criatividade. Anotei no início que o diálogo é o melhor atalho para a democracia. É através do diálogo que se busca criar soluções novas a partir, em geral, de situações antagônicas e conflitivas.

Vou iniciar a resposta a esta pergunta, com uma referência ao Papa Francisco em um de seus encontros com líderes dos movimentos populares. Ele insistia na importância do papel desses movimentos. Estar atentos a eles “implica superar ‘a ideia das políticas sociais concebidas como uma prática para os pobres. Dar atenção a eles implica atitude de agir com os pobres, reforçando algo que é dos pobres”. E ele acrescentava: “a democracia atrofia-se, torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade, vai-se desencarnando, porque deixa fora o povo em sua luta diária pela dignidade, na construção de seu destino”. (PAPA FRANCISCO, 2020 – FT, n.169; 2016). Isto sempre envolve saber lidar com o conflito de interesses.

Infelizmente as organizações e movimentos populares, no Brasil, que já viveram momentos importantes de dinamização, vêm, sempre de novo, sofrendo reveses das mais diferentes origens. O maior peso, em tudo isso, já mencionamos ao referir o peso estrutural de dominação histórica, é o comportamento das elites econômicas, que com raríssimas exceções, sempre foram exclusivistas e intolerantes, não permitindo que a sociedade civil se fortalecesse, muito menos as organizações e movimentos populares.

A história recente, no entanto, nos mostra que as coisas são muito mais complicadas e de difícil apreensão do que este esquema dicotômico, que coloca as elites econômicas como o grande vilão. Haja visto que o maior partido originário, em grande parte, das organizações e movimentos populares, quando ascendeu ao poder acabou contribuindo para o esvaziamento do vigor das organizações e movimentos, devido a um equívoco de atrelamento ao Estado de muitas lideranças e iniciativas, que antes tinham protagonismo próprio. O esvaziamento no vigor não se deu, no entanto, só por este atrelamento equivocado. A ausência de uma persistência na formação ou educação popular e no cultivo das práticas de base, que sempre tinham sido o grande combustível da fortaleza e capilaridade popular foi, a curto e médio prazos, algo que feriu de morte as organizações e movimentos populares, cujos integrantes se tornaram presas fáceis de outras forças.

Deveríamos, talvez, dizer que o problema maior não é a existência de conflitos e antagonismos, mas sim o abafamento e esvaziamento deles, fazendo a alma humana se atrofiar em sua vocação histórica. No entanto, alguns testemunhos ou sinais importantes de expressão viva de resistência permaneceram e são sementes de revigoramento. Entre muitos outros, estão mais vivos na minha memória, dois exemplos paradigmáticos:

Um movimento muito expressivo e típico em sua importância e alcance é o Acampamento Terra Livre – ATL, que neste ano de 2022 já atingiu a sua 18ª edição. Desde 2004, já tendo assumido formatos e endereços diferentes, tendo como referência, geralmente, o mês de abril, em Brasília, DF, é considerado a maior Assembleia dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil. Esses eventos, ao longo de todo esse período sempre resultaram em uma leitura atualizada e posicionamento renovado do movimento em relação aos governos que se sucederam ao longo de todos esses anos. Trata-se de uma força viva, que não esmorece em declarar a sua presença, ao longo de todo este tempo. Talvez, deva ser considerado um sinal de democracia, que resiste. A pauta de suas reivindicações foi sendo atualizada e aperfeiçoada. É uma pauta inovadora, que traz, inclusive, para dentro de debate democrático, a questão revolucionária dos direitos da natureza.

São também muitas as manifestações pontuais, congregando normalmente um número significativo de representações de organizações e movimentos populares. Vou focar-me em um evento mais recente. No dia 16 de julho de 2022 ocorreu na Catedral da Sé, São Paulo, um grande ato ecumênico e interreligioso celebrando o testemunho do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips, que foram brutalmente assassinados devido à sua fidelidade na luta com e pelos povos indígenas e pela proteção ambiental. Eventos semelhantes se multiplicaram em muitos outros contextos em todo o território nacional. Na ocasião, com a catedral paulistana lotada e a presença de uma grande diversidade de lideranças religiosas e militantes de diferentes organizações e movimentos representativos da sociedade civil, o Bispo Dom Pedro Luiz Stringhini, em nome do Regional Sul I da CNBB (Conferência dos Bispos do Brasil), proferiu as seguintes palavras, lembrando a celebração do funeral de Vladimir Herzog, vítima da ditadura militar, há quase cinquenta anos: “Em 1975 estava aqui Dom Paulo Evaristo Arns e ao lado dele estava o Rabino Sobel. Naquele momento anunciaram que a ditadura iria acabar e que a democracia iria chegar! E ela chegou!!! Hoje, estamos aqui, no mesmo local, para dizer que a democracia não vai embora! Haverá eleições e haverá democracia!”

Tomo a liberdade de reproduzir aqui um trecho da breve fala de Dom Pedro Luiz Stringhini, dada a sua expressividade e contundência:

No Brasil chamam a atenção e causam indignação, a escalada da violência contra os povos indígenas e tradicionais, fruto do descaso oficial e do desmonte de políticas públicas e de preservação do meio ambiente, nossa casa comum. Estamos aqui também unidos para que esses órgãos voltem a funcionar. A adoção de uma política econômica que não leva em conta o sofrimento dos pobres fez voltar a fome e o desemprego; o discurso de ódio e a apologia às armas fez crescer a violência; sabemos que a segurança vem da educação de qualidade, através dos livros, não das armas. (…) É hora de se mobilizar, se necessário indo às ruas para defender a democracia e as eleições. O Brasil, todos, todos unidos, movimentos populares, igrejas, grupos religiosos, forças políticas progressistas, enfim, toda a sociedade civil, para que a civilização vença a barbárie. O Brasil é um país de beleza, de alegria, de canto e de poesia, de fé e de religiosidade, de trabalho e de dignidade. É preciso sonhar, reconstruir o nosso país, vislumbrando um horizonte mais belo e mais feliz para todos os brasileiros. Pela democracia, pela justiça social e pela paz. (STRINGHINI, 2022)

Na esteira das últimas palavras desta manifestação de Dom Pedro Stringhini, quero registrar um outro movimento que vem tendo repercussão bastante intensiva e extensiva. É o movimento, que já referi acima, de passagem. Trata-se do movimento “Encantar a Política”. Comecei as minhas respostas a esta entrevista fazendo a minha confissão, dizendo-me movido pela utopia da democracia e pela crença de que o Brasil pode tornar-se um exemplo de democracia para o mundo. Continuo considerando isto uma grande profissão de fé, esperança e de amor. Para mim, (re)encantar a política é possível! (Re)encantar a democracia é possível!

O movimento “Encantar a Política” é liderado pelo Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB, Centro Nacional de Fé e Política “Dom Helder Câmara” e a Rede Brasileira de Fé e Política e organizações atentas para a necessária transformação na cultura política brasileira. O movimento está profundamente inspirado e apoiado no Ensino Social da Igreja, especialmente na orientação trazida pelo Papa Francisco, em sua encíclica social Fratelli Tutti (FT), 2020. O Papa Francisco convoca para uma renovação profunda na Igreja, chamando para o protagonismo do todas/os. Assim também, na sociedade civil, exige-se nas instituições democráticas uma dedicação cidadã urgente e qualificada. Nenhum cristão pode, segundo a orientação do Papa Francisco, permanecer alheio à tarefa de contribuir para que a vida política reencontre o seu valor e o seu encanto. É preciso que contribuamos para sanar nossas frágeis democracias e sermos protagonistas da reinvenção da vida política, regenerando as instâncias representativas de origem popular. Quando o foco principal não é colocado nas instâncias representativas de origem popular, corre-se sérios riscos de reproduzir práticas populistas antidemocráticas.

Além deste foco no (re)encanto da vida política e da democracia, faz-se necessário que nos coloquemos no espelho de nossas práticas cidadãs e de nossas possibilidades de incidir concretamente, repetindo para nós uma pergunta que sempre permanece: Em que e como podemos nós, indivíduos e nós, organização, contribuir e avançar concretamente? Respondendo a esta pergunta, eu gostaria de concluir, talvez como provocação para o diálogo, com a indicação de que, tanto em nível pessoal como em nível institucional, sempre nos é oferecido um grande “leque de oportunidades” para exercermos a nossa incidência, enquanto sujeitos de transformação. Inspirado em um documento da Província dos Jesuítas do Brasil, eu gosto de distinguir, neste leque de oportunidades, três níveis ou “lugares estratégicos” de exercício da incidência: o nível da produção e difusão do conhecimento; o nível da atuação cidadã (participação direta) dentro das instituições, movimentos e forças de decisão; o nível testemunhal pelo próprio jeito de ser e agir do dia a dia. (JESUÍTAS BRASIL, 2021). A democracia participativa necessita ser reavivada afirmativamente em cada um destes três níveis ou “lugares estratégicos”. Destaque-se, sobretudo, as instituições e movimentos voltados diretamente para a educação em todos os âmbitos e formatos. Talvez se deva dizer que ao contribuir para o (re)encantamento da democracia, a própria educação também passe ou deva passar por um “(re)encantamento da educação”. É o que está sinalizado no próprio Pacto Educativo Global, liderado pelo Papa Francisco.

É necessário que em cada um destes níveis ou “lugares estratégicos”, se recupere a atenção e o cuidado: – em relação às pessoas, no radical reconhecimento de sua dignidade; – em relação ao sentido do bem comum e o correto tratamento dos bens na ordem econômica e social; – em relação à vida em sociedade, na recuperação permanente e afirmativa da harmonia e do diálogo, alimentando a fraternidade universal (amizade social); – e, em relação à vida em todas as suas expressões na natureza que mesmo sofrendo com crescentes agressões, nos envolve e nos presenteia cotidianamente com os seus dons.

Nunca nos esqueçamos que: “O mundo existe para todos, porque todos nós, seres humanos, nascemos nesta terra com a mesma dignidade. (…) Temos o dever de garantir que cada pessoa viva com dignidade e disponha de adequadas oportunidades para seu desenvolvimento integral”. (PAPA FRANCISCO, 2020 – FT, n. 118). Podemos exercer este dever, permanentemente, em qualquer um dos três níveis ou “lugares estratégicos” aqui apontados.

Considerações finais do entrevistado

Em minha palavra de conclusão eu gostaria de fazer um pequeno alerta. Trata-se da relação religião e política. Somos um Estado laico, assim definido na Constituição. A laicidade do Estado é fundamental para que se possa cultivar uma democracia sadia. Mas existem problemas muito sérios de entendimento e de prática neste campo.

Nós somos uma sociedade que se formou dentro de uma grande diversidade cultural e, especificamente, diversidade religiosa. Com uma história longa de represamento ou ocultação desta diversidade, por termos sido marcados, durante séculos, pelo monopólio religioso de parte da religião oficial, que era a Igreja católica romana, deu-se um grande processo de diversificação, a partir de inícios do Estado republicano. Essa diversificação aumentou de forma explosiva nas últimas décadas.

A explosão da diversidade religiosa, que assistimos no Brasil contemporâneo, por si só, não gera espírito pluralista ou espírito de convívio democrático. Ao contrário, muitas vezes, pode descambar em radicalizações fundamentalistas. Paradoxalmente, tem-se um movimento duplo contraditório gerado pela diversificação: crescimento do espírito de convívio democrático pluralista, de um lado, e aumento de radicalizações fundamentalistas, de outro. Assim como, também, é perceptível um duplo movimento em nível político e governamental: ao mesmo tempo em que são constatáveis movimentos sérios de amadurecimento da laicidade no sentido de garantir o direito à diversidade e pluralidade de expressão religiosa de todos, existem, também, os movimentos de busca de vantagens eleitorais contando com o apoio desta ou daquela confissão religiosa.

Uma constatação recente diz respeito a um casamento perfeito entre intencionalidades políticas que pervertem ostensivamente o princípio da laicidade, e lideranças religiosas oportunistas, que ignoram este princípio, deixando-se mover pelos ranços de práticas “confessionais” na política, no mínimo equivocadas. É um caminho ostensivo de destruição da democracia, a duas mãos. O (re)encantamento da política e da democracia certamente terá que passar, também, por uma “educação para as relações religiosas”, ou, amplamente, pelo incentivo e prática do diálogo inter-religioso.

Para concluir, além deste pequeno alerta referente à questão polêmica da relação entre religião e política, quero sublinhar: – a importância radical da democracia para uma vida em sociedade, que possa ser efetivamente extensiva para todas/os; – a urgência de nos apropriarmos de boas análises históricas e sociológicas da sociedade brasileira no sentido de desvendar as estruturas ocultas que nos marcam; – a valorização dos conflitos e antagonismos como ingredientes que proporcionam oxigenação da vida política e na democracia, pela mediação do diálogo.

O (re)encantamento da política e da democracia não pode ser um convite a falsas harmonias, mas um salto decidido para dentro da realidade conflitiva e antagônica de buscas de caminhos para que ninguém na sociedade seja mantido abaixo da linha da dignidade humana. A prática da justiça é condição primeira para (re)encantar a democracia.

Referências

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