O PAPEL DO INTELECTUAL NO MUNDO ATUAL

José Ivo Follmann – Aula Inaugural no Mestrado em Educação, 03 de março de 1997

O texto aqui publicado reproduz literalmente a palestra e todo o diáologo e troca de idéias que se seguiram na oportunidade. O conteúdo da palestra foi reproduzido em forma de artigo: O Papel do Intelectual no Mundo Atual. Revista Estudos Leopoldenses, Série Educação, V. 1, N. 1, 1997, p.9-26.

Palavras introdutórias

O tema que a Coordenação e o Colegiado deste Programa de Mestrado me propõe para a aula inaugural deste ano é sem dúvida um tema de grande responsabilidade, dado o grupo de intelectuais que aqui participa, e é também um tema terrivelmente desafiador, se considerarmos o “mundo atual” no qual vivemos. O peso da responsabilidade e a profundidade do desafio, por um lado, se desfazem um pouco quando sei que se trata de um tema no qual todos os participantes desta aula têm muito caminho andado e muitas sinalizações de caminhos a fazer e a andar, tendo consequentemente muito a contribuir, mas eu, por outro lado, estaria sendo irresponsável, como professor e, enquanto tal, intelectual, se o desafio de ajudar a recolher e a organizar estes caminhos andados (passado) e as sinalizações existentes (futuro), não fosse a minha preocupação principal também neste momento (presente).

Em outras palavras, para redizer e complementar estas frases introdutórias, eu não estaria sendo fiel ao tema proposto, se não prestasse atenção ao que está expresso no Ofício, que a Comissão Coordenadora do Mestrado me dirigiu, convidando-me para a presente participação. Diz o Ofício: “Na Reunião do Colegiado resolvemos propor como tema para este primeiro encontro do ano: O papel do intelectual no mundo atual. Acreditamos que, assim, estaremos fomentando a reflexão conjunta em torno de nossa tarefa como Mestrado.”  Sugere-se aqui uma pequena perversão do conceito de “aula inaugural”, com a qual eu concordo plenamente. Uma aula inaugural é, por definição, um discurso de sapiência (oração de sapiência) proferido pelo Reitor, Diretor ou algum Professor na abertura de um Curso. Diga-se: para criar um impacto bom e positivo no grupo… Não é nesta linha que estou pensando, nem a Coordenação e o Colegiado pensam. (Se estivessem com este pensamento certamente teriam procurado outra pessoa para falar…) Minha sugestão quer fazer diretamente juz ao que o Ofício invitatório indica. Assim, a partir de algumas poucas colocações iniciais que me proponho a fazer, de uma maneira suficientemente clara e sobretudo aberta e sem demasiados ordenamentos limitativos e inibitórios, sugiro que entabulemos, na sequência, uma reflexão conjunta sobre o tema. Aliás, não quero estar enganado quando penso que todos aqui estão de acordo que uma aula, mais do que discurso de sapiência, é sempre espaço para a reflexão conjunta, sob a animação de um professor. (Observe-se de passagem que a atividade do professor em sala de aula, neste sentido, é atividade intelectual por excelência: o professor no caso se empenha junto com os alunos em ordenar e reordenar saberes, tendo em vista o que cada integrante do grupo vivencia e presencia no seu cotidiano.)

A temática desta aula é, sem dúvida, de fundamental importância dentro do contexto de um Mestrado em Educação voltado para a Educação Básica. (Se lermos a nova LDB encontraremos muitas justificativas para esta afirmação). O esforço todo que se faz aqui neste Mestrado – se quiserem  corrigir-me ou complementar, por favor, façam-no, antes que eu diga inverdades! – está em fazer deste programa um meio de criação intelectual conjunta ou coletiva profundamente ligada ao processo social que vivemos e que é vivido pelas crianças, pelos jovens e pelos adultos que participam no processo de educação básica. Este Mestrado se pauta por uma determinada concepção de intelectual: não se busca a formação de meros reprodutores do saber bancado por professores bem formados – ou bem “deformados”, se quiserem; todo empenho se volta por oportunizar e fornecer apoios para o trabalho de produtores do saber. O trabalho que é assim oportunizado e apoiado é um trabalho não individual mas coletivo. Isto não é algo óbvio e que se encaminha facilmente mediante um roteiro de boas intenções. Trata-se de um desafio muito grande dentro do meio acadêmico em geral e do meio acadêmico de pós-graduação em particular. O respeito aos saberes dos alunos, o respeito aos saberes acumulados de todo grupo e dos outros em geral, nem sempre é suficientemente exercitado por quem não têve esta oportunidade em sua dura e árdua trajetória de estudos… (Ou então: por quem se vê, no cotidiano acadêmico, submetido a um insano clima de competição – alguns chamam de sadio clima de competição! -, de conquista e preservação de espaços.)

Obviamente não estou trazendo uma proposta “populista”, lembrando a concepção de “intelectual populista” conforme Horácio Gonzalez. Não quero ser “maldito” por tão pouco… Não tenho, no entanto, a menor dúvida de que o intelectual em geral – e o professor, em particular – não sobrevive bem sem algumas boas pitadas de “populismo” e de “provocação da maldição”.[1]

Para meu gosto pessoal, é preferível sem dúvida ser um intelectual maldito por excesso de “populismo” do que sofrer a maldição do intelectual prepotente e inadaptado, que confunde o “ser intelectual” com sofisticação do arquivo pessoal, com acumulação privada de conhecimentos ou com erudição nos saberes.

Do jeito como vão as coisas, ao nível da informatização, o ser intelectual exigiria hoje mais do que acumular e armazenar conhecimentos, saber acessar os mesmos. Na verdade, o ser intelectual tem muito pouco a ver com isto, ou seja: com acúmulo de conhecimentos de dados ou de técnicas de acessamento aos conhecimentos ou com erudição. O ser intelectual tem muito pouco a ver com capacidade e oportunidade de armazenagem.

Aliás não há intelectuais mais malditos numa Universidade do que aqueles que muito armazenaram e pouco são capazes de reconhecer o que está fora de seu armazém. (Nem sempre são tão malditos assim. Às vezes são bem e belamente idolatrados, não sem bafejos de ingenuidade e alienação. Isto faz parte da patologia acadêmica!…)  Hoje os computadores – em concorrência desleal, diga-se de passagem! – estão tomando o lugar destes “intelectuais”.

A rigor, mais uma vez estou introduzindo um pequeno viés de perversão conceitual uma vez que os dicionários da língua portuguêsa colocam o “ser intelectual” como sinônimo de ser portador de grande cultura, de ser dotado de inteligência e de ser prendado de dotes do espírito. Notem bem, eu não estou pregando a não importância de todas estas coisas. São importantes e fundamentais. O perigo está em confundir o ser intelectual com tudo isto, em reduzir o ser intelectual a estes aspectos que são puramente meios instrumentais.

Henry A. Giroux fala amplamente disto e cita palavras de Antonio Gramsci, fazendo uma crítica a esta maneira de ver o fruto da atividade intelectual, como “sinônimo de conhecimento enciclopédico, onde em consequência o homem é visto como um simples depósito no qual se colocam e conservam dados empíricos ou fatos brutos isolados, sendo arquivados posteriormente em seu cérebro como nas colunas de um dicionário de tal forma que, no tempo devido, (o homem) seja capaz de responder a diversos  estímulos do mundo externo. … (Isto) só serve – continua Antonio Gramsci – para criar inadaptados, pessoas que se consideram superiores ao restante da humanidade por ter acumulado na sua memória uma certa quantidade de fatos e datas, que eles exibem, a tempo e fóra do tempo, até o ponto de levantar quase uma barreira entre eles mesmos e os demais”.[2]

Ao reler estas palavras de Antonio Gramsci, não posso deixar hoje de relembrar um fato que aconteceu comigo há alguns dias atrás… No final da tarde, na hora do meu chimarrão à sombra em frente à casa, estava conversando com um conhecido meu, seu Lorineo, morador do Bairro, que, de passagem, aproveitou para puxar uma prosa. Falando do clima, das dificuldades para conseguir trabalho, da vida dos outros, lá pelas tantas eu disse: “Pois é, na segunda-feira próxima eu vou ter que falar uma palestra na UNISINOS sobre “o papel do intelectual no mundo atual”… Lorineo, o que tu dirias se eu te perguntasse, para que servem os intelectuais hoje?”… Ele ficou quieto, terminou o chimarrão pensativo como quem está buscando uma resposta à altura, passou a cuia, enxugou o suor, depois disse (meio desajeitado, meio incomodado com a pergunta inoportuna, imprópria e talvez arrogante): “Olha! A palestra é na UNISINOS? Se eles não sabem, eu vou saber? Vou te dizer uma coisa! Se eu soubesse a metade sobre este assunto, eu até te daria algumas idéias para discutir…” “Como assim?” perguntei. “Ah! é assunto muito complicado! Isto aí é só pra…”, disse ele. Já que eu tinha entrado na conversa, continuei: “Pois, para mim, todos são intelectuais. Não sei porque tu dizes que este assunto está tão longe e está tão fóra do alcance! Por acaso as pessoas não pensam, não se planejam, não se organizam, avaliam a sua vida e a dos outros? Para fazer isto, usa-se a inteligência. Quem usa sua intelegência para organizar sua vida e às vezes também a dos outros é um intelectual. A nossa maneira de viver e pensar é a nossa cultura, o intelectual é quem organiza a cultura. Sempre estamos organizando nossa cultura…” Eu já estava começando a me incomodar por estar misturando a linguagem que preparava mentalmente para a fala de hoje e a linguagem daquele chimarrão com o Lorineo, quando ele quebrou mais uma vez o silêncio e disse com um sorriso denunciador: “É, mas tem muita gente por aí que organiza é a sua “curtura”. De cultura não tem nada! Quando se precisa deles para pensar um pouco no bem dos outros, sempre dizem que não sabem, que isto é para os outros, mais preparados. E quando os outros fazem, tascam o pau em cima!” Eu ri. Fui guardar a cuia e disse: “É verdade! Pois sabes, eu acho que vou falar isto que tu acabas de dizer, nessa palestra!” Ele riu, achando que eu estava de gozação. Depois fiquei refletindo e tive a impressão de não ter entendido todo o alcance daquilo que Lorineo dissera… O fato é que nós dois estávamos brincando com a palavra cultura: enquanto ele se referia à “curtura” dos não cultos, na minha cabeça passavam terríveis maus pensamentos a respeito da “curtura” dos cultos.)

A concepção enciclopédica e de intelectual erudito está de mais a mais condenada a não ter público. Se fôsse uma concepção relevante figuraria talvez na galeria de quadros de intelectuais de Horácio Gonzalez; ele teria incluído, entre seus tipos, o “intelectual enciclopédico” ou “intelectual erudito”. Estes “intelectuais” estão sendo superados pelos cérebros eletrônicos, assim como as máquinas de escrever e as impressoras tomaram o lugar dos amanuenses em outros tempos…

As minhas colocações, repito, apesar de toda ênfase com que as palavras vêm carregadas, não querem investir contra a existência dos grandes sintetizadores do conhecimento humano, dos grandes organizadores da cultura ou dos “grandes intelectuais”. A importância e a necessidade destes intelectuais é indiscutível. Ao longo da história do pensamento e das idéias em nosso século, uma contribuição importante, neste sentido, foi a de Karl Manheim com a sua concepção de “intelectualidade desvinculada”, a “intelligentsia” (“Freischwebende Intelligenz”).[3] Seria uma intelectualidade que consegue pairar acima das influências ideológicas existentes e contribuir para as grandes sínteses válidas para todos os grupos.

Não devo estar muito enganado se disser que estamos próximos aqui da concepção de “grande intelectual” de que fala Antonio Gramsci, tanto na sua forma de “intelectual cosmopolita” quanto na sua forma de “intelectual nacional-popular”. Numa tentativa de sintetizar de uma forma bem suscinta parte da contribuição deste autor, pode-se dizer que o “cosmopolita” é o organizador da cultura humana, – se é possível falar assim! – e o “nacional-popular” é o organizador da cultura de uma nação, de um povo.

Peço desculpas pelo “trançado improvisado” que coloca lado a lado, dois autores, que a rigor são muito diferentes. Faz parte do que estou tentando dizer…

O ser intelectual, no nível aqui expresso, implica no cultivo de espírito livre, não diretamente vinculado a organizações e interesses ideológicos, políticos e econômicos muito determinados. Faz parte da liberdade do ser intelectual, estar aberto ao outro. Karl Manheim fala da importância de se forjar isto com o máximo de frequência possível mediante a aproximação de diferentes pontos de vista. (Devo confessar que sempre tive muitas simpatias por esta contribuição mannheimiana. Apesar dos preconceitos existentes na época, lidei muito com este autor nos meus tempos de estudos de graduação em Ciências Sociais!) A abertura para diversos pontos de vista é fundamental para que seja preservada esta liberdade frente às parcialidades demasiadamente reduzidas, fechadas e ofuscadas. Ser intelectual é ser interdisciplinar.[4]

Aliás o que se denominou nas últimas décadas de “crise de paradigmas” não passa de um colocar definitivamente em xeque as “perspectivas unívocas”, as “explicações fechadas” e as “teorias prontas e incontestáveis”. É sem dúvida um novo tempo de avanço intelectual.

Peço que me permitam um pequeno depoimento pessoal, que servirá inclusive para ajudar a ordenar a reflexão que estou apresentando aqui. Tive pessoalmente a rica oportunidade de ser orientado na elaboração da tese de doutorado, por Jean Remy um sociólogo que se destaca por cultivar a importância de trabalhar simultaneamente diferentes pontos de vista teóricos sem deturpar o que há de genuinamente específico e novo dentro de cada uma das contribuições. Habituei-me a abordar a realidade social, ao mesmo tempo, a partir de uma perspectiva que destaca a “lógica dos movimentos sociais”, de uma perspectiva que destaca a “lógica dos campos de atividade” e de uma perspectiva que destaca a “lógica do sujeito e da dinâmica pessoal”.[5]

Em Busca de um Esquema Analítico

O ser intelectual hoje tem muito a ver com movimentar-se com liberdade no meio da complexidade do mundo atual. Ajudar a humanidade a dar conta da complexidade. Ajudar a humanidade a organizar-se de tal forma que as pessoas não acabem esfaceladas e estraçalhadas. É neste sentido que temos grandes e provocadoras contribuições de Edgar Morin.[6]

Os três recortes teóricos trabalhados em conjunto não pretendem evidentemente dar conta da complexidade da realidade social, mas para mim esta maneira de trabalhar está sendo muito proveitosa para garantir uma certa distância frente a posturas dogmaticamente fechadas. Ao mesmo tempo que ajudam nos estudos sociológicos, são também referências importantes nas atividades de intervenção no processo comunitário e social e contribuem especialmente na própria construção e reconstrução constante da identidade de quem reflete e atua.

Apresentarei aqui os mesmos três recortes, para, num esboço ainda em fase bem tateante, mostrar como esta maneira de trabalhar teoricamente pode ser útil na organização de nossa reflexão sobre os intelectuais e seu papel no mundo atual.

Neste sentido, quero sugerir em seguida algumas notas, mais ou menos arranjadas dentro de cada um dos recortes. As idéias sugeridas não são acabadas e devem ser retomadas, ampliadas e corrigidas, em nossa reflexão conjunta a seguir e sobretudo nos muitos encontros que vocês terão em seus seminários e trabalhos de pesquisa durante o tempo de Mestrado.

1 –

Primeiramente, podemos alinhar algumas idéias sobre o papel dos intelectuais, tendo presente, como referência principal, a existência do conflito central dentro da sociedade, estando em questão a apropriação e gestão de sua historicidade. Trata-se da perspectiva teórica que estuda a sociedade através do estudo dos movimentos sociais que a constituem, ou seja: a categoria movimentos sociais está posta em primeiro plano no trabalho de interpretação. Temos presente particularmente a perspectiva que Alain TOURAINE seleciona em seus estudos da sociedade.  Tem-se aí o papel dos intelectuais sendo organicamente alinhado em função do conflito central referente à auto-produção da sociedade, marcado pela “lógica dos movimentos sociais”.[7]

Pensando a sociedade em seu processo de produção de si mesma, nós podemos apontar basicamente para três grandes motores ou geradores deste processo: o confronto sócio-econômico (de classes) através da luta sindical, o confronto político (de conquista de poder) através da luta partidária, o confronto sócio-cultural (espaço da sociedade civil) através dos mais diferentes movimentos e organizações sociais e culturais. No centro de tudo, estão os intelectuais como os organizadores e dinamizadores deste processo, em suma como os organizadores e dinamizadores da própria sociedade. Entra aí o conceito de “intelectuais orgânicos” de Antonio Gramsci.

Uma das maiores contribuições no debate sobre o intelectual está, sem dúvida, em Antonio Gramsci. Já referimos anteriormente a sua concepção de “grande intelectual” (cosmopolita e nacional-popular). O que mais repercutiu, no entanto, é a sua concepção de “intelectuais orgânicos”, como já foi mencionado também, tanto de um lado os organizadores da ideologia da classe dominante, quanto por outro lado os organizadores da contra-ideologia e dos interesses das classes populares.Isto tanto no nível das classes, como dos agrupamentos políticos e das organizações da sociedade civil em geral.

Em cada organização, agrupamento, partido, classe etc existem aqueles que têm a função de intelectual e que exercem o papel de intelectual.[8] O intelectual, neste sentido “orgânico”, não é mais um puro (desinteressado) pesquisador da verdade. Ele se afigura como agente de interesses sociais definidos. Segundo Antonio Gramsci, o intelectual assim assume o papel de “dirigente orgânico” dedicando-se “ativamente à vida prática como construtor, organizador e persuasor permanente”.[9] Aliás, segundo o autor, todos os que exercem funções organizativas na sociedade estão desempenhando o papel de intelectual.

(Cabe aqui um pequeno comentário, entre parêntesis: Existe uma diferença radical entre a maneira como Vladimir I. Lênin percebe o intelectual e seu papel e a maneira como Antonio Gramsci o percebe. V.I.Lênin tem no todo uma concepção muito mais iluminista de intelectual do que A.Gramsci, o qual, ainda que estando próximo do mesmo na sua concepção de “grandes intelectuais”, ao trabalhar a concepção de “intelectual orgânico” em contraposição a “intelectual tradicional” está introduzindo um diferenciador grande em relação a V.I.Lênin. Para A.Gramsci a rigor a condição de intelectual é definida pelo seu caráter de ser um organizador, um conectivo, assegurador da dominação e da hegemonia entre as classes. Em V.I.Lênin é diferente: o intelectual segundo ele é definido assim pela dimensão analítica superior de que é portador e pela coerência das teorias às quais chegou por meio de estudo.[10])

– 2 –

Este parêntesis comparativo entre V.I.Lênin e A.Gramsci nos introduz em nosso segundo recorte… Se olharmos o papel dos intelectuais sob o ponto de vista dos campos de atividade, outros aspectos estarão realçados em primeiro plano, pois dentro deste ponto de vista teórico temos como referência principal o espaço social onde se realizam a reprodução e a produção da sociedade “distribuídas” pelas diferentes atividades, tendo cada uma sua lógica social própria.

Quando falávamos anteriormente dos três motores impulsionadores dos movimentos sociais, ou seja, os três grandes níveis de confronto dentro da sociedade, já estávamos de certa forma introduzindo a temática dos campos de atividade. Não podemos complexificar muito a nossa análise. No caso concreto de nossa reflexão aqui, certamente interessa mais diretamente que nos voltemos para o campo educacional, pensando sobretudo determinado tipo de intelectual que são os intelectuais presentes no sistema educacional.[11]

Os campos de atividade se constituem na medida em que a sociedade se percebe necessitada de organizar-se em função da produção, do cultivo, da distribuição, da normatização, do consumo de bens com especificidade própria. Em cada campo sempre há os grupos (ou um grupo) que chegam a ser reconhecidos e legitimados como os produtores dos bens e de sua normatização.[12] Estes grupos são sempre vistos como “mais fortes” dentro do campo – e isto assume as mais diversas nuances! – enquanto que os demais permanecem numa situação de ter que conquistar espaço para também terem vez. Estes últimos indivíduos ou grupos sempre deverão ser muito melhores que os primeiros para terem alguma chance… Isto na saúde (medicina), na economia, na religião, na política, na jurisprudência, no esporte, na educação. Quem são os principais “jogadores” neste embate? São os intelectuais, ou melhor: os “intelectuais orgânicos” e os “intelectuais tradicionais”. A referência aqui ao intelectual tradicional faz muito sentido, pois neste embate de campos de atividades, joga forte a própria força da instituição enquanto tal. O intelectual tradicional, no sentido gramsciano do termo, ajuda a conservar e a reproduzir as instituições.

No campo educacional, por exemplo: que tipo de intelectuais encontramos? Quais são os intelectuais, no campo educacional? Poderíamos fazer uma grande lista, que vai desde legisladores do ensino até chefes de serviços de apoio didático para as salas de aulas numa escola. Os professores são os intelectuais que mais diretamente nos interessam aqui. O professor pode ser um simples intelectual executor das suas tarefas – isto é: daquilo que ele entende como suas tarefas! – e garantidor do bom funcionamento de sua escola e, neste sentido, um bom intelectual tradicional e talvez também orgânico dos interesses dominantes. Normalmente estes professores, que são muito úteis para a escola, se olharmos de uma certa perspectiva, não são vistos como intelectuais e nem se percebem como tal. Aliás é bastante comum que professores esqueçam que são intelectuais ou, então, que simplesmente não se assumam como intelectuais!…

Segundo Henry A. Giroux, os professores além de serem intelectuais devem primar por ser “intelectuais transformadores”, e isto em vários níveis de envolvimento: – fazendo do ensino uma prática emancipadora; – contribuindo na criação das escolas como espaços públicos democráticos; – ajudando a recuperar uma comunidade de valores progressistas compartilhados; – fomentando um discurso público comum ligado nos imperativos democráticos da igualdade e da justiça social.[13]

Aliás, deixem que eu introduza aqui uma outra questão, que tem a ver com o que eu estava dizendo acima sobre os grupos ou individuos “mais fortes” etc. dentro dos campos de atividade… Trata-se de algo que pode ser considerado de muita pertinência na reflexão sobre o papel dos intelectuais em geral e o papel dos intelectuais no campo educacional. Trata-se da questão poder, dos grupos de poder. O poder da nomeação. O poder da autorização… O poder do carimbo: “Estou de acordo!”… Vejo-me diariamente na situação ridícula de escrever “estou de acordo!”, quando as coisas estão decididas e bem decididas e não há nada a pôr nem a tirar. Mas o carimbo legitima. O poder da nomeação aliás é algo fantástico para o ser humano. Poder dizer: “Isto é assim! Isto está correto! Isto está errado!” e os outros acreditarem, é muito sedutor… Afinal temos dentro de nós uma vocação criadora e este tipo de coisas pode, erradamente ou não, estar preenchendo este anseio…

“Todo agente social aspira, na medida de seus meios, a este poder de nomear e de constituir o mundo nomeando-o: mexericos, calúnias, maledicências, insultos, elogios, acusações, críticas, polêmicas, louvações são apenas a moeda cotidiana dos atos solenes e coletivos de nomeação, celebrações ou condenações de que se incumbem as autoridades universalmente reconhecidas.”[14]

Dentro de uma outra perspectiva, ou complementando estas colocações, a “nomeação” é importante para a sobrevivência de uma organização ou de um grupo. Existe aliás algo de mágico nisto tudo… Os grupos, as organizações necessitam de pessoas para as quais possam passar plena procuração em determinados momentos. Estas pessoas passam a ser o substituto, porta-voz, com poder pleno de falar em nome do grupo.[15] Quando temos algum tema polêmico, por acaso não tendemos em geral a convidar alguém de confiança (afinado conosco) e que seja, de preferência, autoridade reconhecida (nomeada!), para falar sobre o tema? Ele estará levantando, de certa forma, em nome do grupo, as questões que os integrantes do grupo gostariam de colocar…

– 3 –

Finalmente, o intelectual é visto, em primeiro lugar, como um sujeito. Ele pensa, sente, planeja, ama, odeia, avalia, calcula tem coragem e tem medo. A lógica do sujeito e a dinâmica pessoal devem ser levadas em conta como aspectos fundamentais em nossas reflexões sobre o papel dos intelectuais.[16]

Tudo o que falei acima sobre os intelectuais e o conflito central na produção da sociedade de si mesma e sobre os intelectuais e as lógicas dos campos de atividade, faz parte do cotidiano, mas nele estão implicadas mais coisas. Estão implicados todos os atributos dos sujeitos individuais que acabo de enumerar. São estes atributos que trazem à tona diretamente a questão do cotidiano.

Falar em papel do intelectual no mundo atual sem passar por esta questão do cotidiano seria uma abordagem demasiadamente truncada. Ou o intelectual se faz em interação com a complexidade do seu próprio cotidiano e do cotidiano de seu grupo e de sua organização, ou é um intelectual pela metade… Agnes Heller nos ajuda a refletir nesta linha: “A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico. Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humano-genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao contrário, não há nenhum homem, por mais ‘insubstancial’ que seja, que viva tão-somente na cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente”.[17]

Este fazer-se em interação na complexidade do cotidiano ajuda o desabrochar do ser intelectual, dando-lhe mil oportunidades diárias para colocar entre parêntesis os próprios dogmas e preconceitos. O ser intelectual se faz na medida em que houver esta coragem. A alma do ser intelectual é o amor da verdade acima de tudo. Quem busca a verdade nunca tem medo das outras posições, das outras perspectivas, da multiplicidade do diferente. Ele de preferência busca as outras perspectivas e o diferente, para sentir-se confrontado, para complementar seu ponto de vista, para corrigir seu ponto de vista. A busca sincera do avanço da “verdade científica” não é normalmente um caminho tranquilo e atapetado de rosas… Se há rosas, elas não existem, certamente, sem espinhos!…

Aliás, toda esta questão do envolvimento pessoal, do sofrimento, da necessidade da humildade e da não subserviência para que haja objetividade, traz à baila também uma importante questão ética. O ser humano é um ser complexamente atravessado por forças diferentes e muitas vezes contraditórias. Max Weber, refletindo sobre a vocação do cientista e do político, aponta para duas direções éticas diferenciadas, aparentemente contraditórias na administração desta complexidade que é o ser humano em seu convívio cotidiano interpessoal e profissional com os demais. Trata-se do lado mais de responsabilidade funcional do indivíduo e do lado mais das suas convicões e valores pessoais. Segundo este grande clássico da sociologia alemã, as duas direções éticas são irredutíveis uma à outra. Esta irredutibilidade entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção, no entanto, não quer sinalizar que se possa simplesmente dizer que a ética da convicção é o mesmo que ausência de responsabilidade e que a ética de responsabilidade é o mesmo que ausência de convicção. Pelo contrário, elas na sua complementação mútua vem a constituir o que Max Weber denomina de “homem autêntico”. “A ética da convicção e a ética da responsabilidade não são contraditórias, mas elas se complementam uma à outra e constituem juntas o homem autêntico”.[18] “Segundo Jean Remy, o indivíduo na concepção sociológica weberiana é um indivíduo puxado ou assediado tanto pela intensa racionalidade expressa na ética da responsabilidade, quanto por uma certa dose de irracionalidade expressa na ética da convicção”.[19]

Esta reflexão faz-nos retornar à questão das lógicas dos campos de atividade. Experimento isto muito na minha vida pessoal como engajado diretamente no trabalho pastoral da Igreja, por um lado, e como profissional sociólogo, por outro lado. Aprendi muito do orientador de minha tese de doutorado neste sentido. Ele não se cansava em insistir nos cursos e palestras sobre a importância de cuidar para não confundir ou misturar caóticamente o plano do conhecimento técnico-científico e o plano da fé, mas viver os dois planos de forma autêntica. “Nenhuma religião, dizia ele, subsistiria se os intelectuais que estão à sua frente reduzissem todas as suas decisões a apoios fornecidos pelo conhecimento técnico-científico. Como também nenhum empreendimento técnico-administrativo ou de estratégia política subsistiria se seus intelectuais se deixassem arrastar pelas crenças e convicções religiosas suas ou de outros!”

Desafios a partir do mundo atual

Peço mais uma vez desculpas se as minhas colocações estão um pouco desalinhadas e às vezes carecendo de uma construção mais acurada, isto é devido ao contexto em que o presente texto foi elaborado. Trata-se de uma construção (se quiserem: bricolagem) feita aos pedaços e fragmentos, no meio de infindos espasmos burocráticos dentro da atual função que ocupo na Universidade. Aliás, devo confessar que estou descobrindo, talvez a duras penas, que os ofícios ou cargos administrativos são um lugar específico e tremendamente desafiador para o ser intelectual.

Não quero deixar passar este momento de fala sobre o papel do intelectual num ambiente tão privilegiado como é este do Mestrado em Educação, sem sinalizar dois pontos de suma importância e urgência. Não estou com isto interferindo em nada no planejamento e na responsabilidade da Coordenação e do Colegiado deste Programa, que evidentemente está muito além do que aqui consigo apontar na minha pobre contribuição. Peço licença para lançar, com toda simplicidade, duas pequenas referências a mais para nossa reflexão neste momento.

Em primeiro lugar, creio ser um desafio importante para o nosso ser intelectual, aprofundar a discussão das linhas de pesquisa. E eu destacaria um aspecto de fundamental importância no fazer ciência, que está relacionado com linha de pesquisa: trata-se do trabalho intelectual coletivo, da produção coletiva do saber. É necessário um constante esforço por romper nossos pequenos isolacionismos e nossas construções muito em cima dos interesses pessoais de cada pesquisador. Levar a sério a discussão de linhas de pesquisa, no meu entender, implica em primeiro lugar nisto, neste fazer coletivo. Aliás, talvez seja oportuna a lembrança aqui do depoimento de um grande intelectual, que foi Georg Lukacs. Dizia ele: “Sinto-me na obrigação de destacar que minhas obras não são de modo algum o resultado do feliz êxito de um único indivíduo. Ao contrário, se meus escritos forem estudados à luz de suas origens e de seus efeitos imediatos, tornar-se-á cada vez mais claro que minha atividade teórica jamais foi a atividade de um pensador ‘isolado’, mas sempre foi – e o é cada vez mais – algo dirigido para o estabelecimento de uma linha de pensamento, de uma escola…”[20]

Nós precisamos ser coletivos em nosso fazer ciência, em nosso ser intelectual. É necessário romper o fácil isolacionismo. Precisamos construir escola! Linhas de pesquisa levadas a sério são um caminho para tal.

Um segundo desafio fundamental que não quero deixar de mencionar, apesar de estar com isso obviamente “chovendo no molhado” aqui neste egrégio ambiente, é a importância de, como Mestrado em Educação, aprofundarmos o estudo da nova LDB (Lei e Diretrizes de Base) e darmos assim a nossa contribuição para a comunidade acadêmica da Universidade e para os demais intelectuais do meio educacional na leitura da nova LDB do sistema educacional brasileiro.

O título que foi sugerido para esta aula envolve, além do “papel do intelectuais”, a preocupação com o “mundo atual”, ou seja: qual o papel dos intelectuais no mundo atual? Não posso, por isso, deixar de apontar alguns elementos de reflexão especificamente sobre como vejo o “mundo atual”, antes de abrirmos para nossa reflexão conjunta.

Em primeiro lugar, gostaria de observar que o intelectual é um organizador do “atual” vinculando-o ao “não-mais-atual” e ao “ainda-não-atual”. Em outras palavras, um organizador do presente levando em conta o passado (acumulação teórica e experiência histórica) e voltado para o futuro (visão de futuro).

O que caracteriza o “mundo atual”?  Digo algumas coisas. Trata-se de algumas indicações para a reflexão conjunta que seguirá. Para não me estender demasiadamente e talvez ir diretamente a alguns pontos que interessam mais imediatamente, vou ater-me a aspectos culturais da sociedade brasileira no mundo atual…

A sociedade brasileira vive hoje uma crise cultural muito grande. Em recente documento da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)[21], são apontadas algumas marcas que caracterizam a sociedade brasileira no momento histórico que vivemos. Seus autores colocam estas características como heranças dos desdobramentos da modernidade em nossa sociedade. Segundo o documento, deve-se destacar, a expansão do pluralismo cultural, a inversão paradoxal no avanço tecnológico e a crescente explicitação da falência das promessas da mesma modernidade.

O clássico rompimento entre a cultura e o sistema econômico e político que a modernidade trouxe, abre os caminhos para a diversificação cultural, com maior ou menor intensidade conforme as condições existentes. No Brasil, como em outros países semelhantes, historicamente constituído da convergência forçada de etnias, culturas e religiões diversas, as condições são muito favoráveis para a manifestação de um mosaico cultural extremamente variado.

Se isto, por um lado, é facilmente constatável, também não há como duvidar, por outro lado, que as gritantes contradições dos avanços tecnológicos, colocando lado a lado o incremento de indubitáveis vantagens para a humanidade e o aumento das desigualdades sociais e das discriminações, têm no Brasil de hoje um de seus palcos mais ostensivos.

A par de tudo isto, cresceu nos últimos anos no Brasil, como no Ocidente em geral, a consciência dos limites dos avanços da humanidade, que se elabora na constatação diária da falência das promessas de acesso universal ao bem-estar.

Estes três elementos, que sintetizamos a partir do Documento referido, constituem o substrato básico da crise cultural que se manifesta no Brasil de hoje.  Esta se manifesta sobretudo como crise generalizada de valores e de sentido da vida acompanhada por uma aguda crise de lideranças. Isto vem reforçado se levarmos, por exemplo, em conta as três perspectivas teóricas apontadas anteriormente. Podemos apontar como desafios para os intelectuais, no momento em que vivemos, os seguintes três pontos característicos: 1) dentro da “lógica dos movimentos sociais”, a falta de alternativa global, a queda do “muro de Berlim” continuando a ter seus efeitos; 2) dentro da “lógica dos campos de atividade” a presença de um esfacelamento e fragmentação, com uma infinda multiplicação de campos; 3) dentro da “lógica dos sujeitos” a crescente manifestação da trivialidade e da superficalidade corroem violentamente a dinâmica pessoal dos indivíduos.

Por dentro da crise, assim descrita e analisada, manifestam-se alguns fenômenos de extrema relevância que devem ser registrados aqui. Aqui vou orientar minha colocação apoiando-me mais diretamente em alguns fenômenos específicos, os quais em grande parte são decorrência de tudo isto.[22] Em seguida, levantarei algumas interrogações numa linha de análise e de reflexão sobre o papel dos intelectuais no mundo atual.

1) É apontado em primeiro lugar o individualismo, em sua forma narcisista mais extrema, onde o indivíduo, na total perda de valores alheios a seus interesses pessoais, se concentra cada vez mais sobre si, descomprometendo-se com o comunitário e com iniciativas que apelem à solidariedade. Isto provoca a crescente perda do sentimento de responsabilidade coletiva e comunitária, onde a atitude do “levar vantagens em tudo” (lei do Gerson) transforma-se no caminho do isolamento das pessoas no seu individualismo narcisista obstruindo todo acesso ao espírito de solidariedade.

2) O imediatismo está diretamente associado a este individualismo, com a preocupação de viver-se intensamente o momento presente, como o difundido nos MCS, menos voltado ao planejamento do amanhã e à cultura da poupança. Tem-se dificuldade em optar por sacrificar o usufruto de um bem agora, em benefício de um bem maior no futuro. Também os valores acumulados do passado, as contribuições teóricas do passado tendem a cair no descaso. Diante de certas instâncias, deve-se cuidar para não colocar na bibliografia obras de autores clássicos com data de publicação muito recuada, pois corre-se o risco de ser propagador de bibliografia desatualizada…

3) Em terceiro lugar, aparece com muito vigor um certo consumismo desenfreado. Enquanto R. Descartes iniciava seu filosofar com o “penso, logo existo”, hoje insinua-se uma nova forma de pensar, agir e afirmar a existência, calcada no consumismo insaciável, onde, mais do que antes, a pessoa é socialmente reconhecida pelo padrão de consumo que consegue ostentar. (Os Shopping Centers podem ser vistos como a materialização de símbolos da cultura reinante).

4) Um quarto fenômeno é definido pelo rápido avanço da informatização e dos meios de comunicação, que aproxima cada vez mais as pessoas, as instituições e as culturas, através das redes eletrônicas e outros sofisticados mecanismos…  Ao lado das múltiplas vantagens deste avanço para a humanidade, deve-se ter presente que nele está também implicado o risco da  exasperação do “efêmero” e do “provisório” prejudicando engajamentos e posicionamentos mais refletidos e amadurecidos. A “aproximação”, da qual se fala, não passa, muitas vezes, de um novo artifício de dominação…

5) Envolvido em tudo isto está o conhecido “pluralismo ético absoluto” colocando, na prática, em xeque a necessidade de “fundamento ético comum”, prolifera de forma vertiginosa. (Nós cristãos prefessamos um “fundamento ético comum” baseado em Jesus Cristo, que veio “para que todos tenham vida e a tenham plenamente!”). Questões eminentemente éticas tendem a ser medidas e apreciadas, neste contexto, ao sabor da “opinião pública”, colocando-se a opinião da maioria como o critério de valor fundamental. (o programa televisivo “Você Decide!” pode ser apontado como o exemplo mais banal disto.) Sabe-se o quanto de falacioso existe nisto, pois a “opinião da maioria” muitas vezes não passa da afirmação da vontade dos que têm maior poder de influência.

6) Ainda quanto à ética, a crescente indiferença frente à pobreza e à exclusão social é um dos indicativos mais patentes da crise da mesma. Basta ver a insensibilidade dos poderes públicos, hoje, frente à necessidade de combater as causas da pobreza e da exclusão social. Basta ver, também, a banalidade ou a insensibilidade com que se encara a “convivência” ou a “necessidade” de substituir o homem pela máquina, pelo computador e pelo robô, para manter a competitividade no mercado. Se isto por um lado é verdade, é também amplamente constatado, por outro lado, que a humanidade em geral e a sociedade brasileira em particular, através de diferentes pronunciamentos e iniciativas de pessoas, grupos e organizações preocupados com a ética pública, já demonstrou com vigor a consciência da grave crise ética que nos assola.

7) Destaca-se, sem dúvida, no meio de todos estes fenômenos, o ressurgimento de manifestações religiosas acompanhado do surgimento de uma nova onda de misticismo, que se afirma de diferentes formas, onde, em meio à anomia social reinante, as “forças do além” são buscadas como ancoradouro para a busca de respostas frente às grandes perplexidades e às crises de identidade hoje imperantes. Nesta mesma direção, apesar de operar com referenciais diferentes, constata-se também o surgimento de vários tipos de fundamentalismo religioso, que se manifestam nas diversas tradições e sistemas religiosos mais consolidados.

8) Por fim, estes últimos fenômenos apontam sobretudo para a busca de novas fórmulas místicas, novos caminhos para sair da rota da trivialidade. O quadro religioso se encontra muito diversificado. São múltiplos os caminhos que são diariamente ofertados para um público pouco ou nada preparado para um bom discernimento. Se isto é verdade, é também importante que, no contexto de superficialidade e de trivialidade em que vivemos, se sublinhe a grande riqueza em termos de despertamento para o que há de mais profundamente humano manifestado por estas buscas religiosas multiformes.

Poderíamos apontar uma série de fenômenos a mais, sinalizando características da cultura de nossa sociedade no momento histórico que vivemos. Os aqui listados são no entanto suficientemente reveladores dos desafios propostos para os intelectuais neste momento. Cada um dos fenômenos apontados traz em si desafios específicos. Há criações geniais no meio de tudo isto, colocando radicalmente em xeque velhas fórmulas dentro das quais estamos acostumados a agir e reagir. Há efeitos perversos colocando em risco a própria dignidade do ser humano…

Quando apontei acima para a importância de darmos atenção ao cultivo de linhas de pesquisa e ao aprofundamento da nova LDB, eu o fiz tendo presente tudo isto.

Vou parar por aqui. Não pretendo ter dado uma resposta completa e sistemática à pergunta sobre o “papel dos intelectuais no mundo atual”. O que fiz foi elencar alguns pensamentos como quem está iniciando uma reflexão, que ainda deve tomar corpo… A palavra agora é de vocês. Mais do que disposto a responder perguntas, estou agora ansioso por ouvir complementações, questionamentos, reflexões e indicações de referências.

Troca de idéias

Ático: “Vou dirigir minha questão talvez mais para o padre do que para o sociólogo. Falaste das novas formas de religião e de misticismo e existe uma farta literatura sobre isto… Como trabalhar esta nova questão das novas formas de misticismo e de fundamentalismo, principalmente no meio acadêmico?”

osé Ivo: “Bem, em outros tempos, quando o catolicismo era onipresente no meio intelectual, a Academia convivia com isto… Para falar a verdade eu não tenho uma resposta para a questão que você formula. Se alguém quiser responder, por favor… Trata-se sem dúvida de um desafio muito grande. Um desafio sobretudo para a própria Academia. Eu diria: Em primeiro lugar, é necessário saber levar a sério… A Academia tem muita dificuldade em levar a sério este tipo de coisas. A nossa Academia (brasileira), sobretudo. Aliás temos em geral muita dificuldade em levar a sério aquilo que não se enquadra dentro de nossos parâmetros, do nosso esquema. Em segundo lugar, o levar a sério implica também em saber entabular diálogos e fazer da Academia um espaço de discussão e estudo desta realidade, chamando os agentes destes meios para dentro do espaço acadêmico. Tive neste sentido uma experiência rica na Europa, onde o fenômeno do Islamismo, que por sinal muito assusta a sociedade européia, com freqüência fazia-se tema de discussão acadêmica em Debates, Seminários, Ciclos de Palestras e Cursos, nos quais se via a participação de intelectuais estudiosos deste fenômeno e também militantes ou intelectuais do próprio movimento religioso em questão. Nosso meio acadêmico é um pouco lento nestas coisas… Para responder em poucas palavras à questão – e aí incluo o fenômeno religioso em geral em suas múltiplas formas de expressão hoje -, devo dizer que não se trata de algo que possa ser ignorado! Assim como a Igreja Católica não podia ser ignorada, sobretudo na Idade Média, onde (exagerando um pouco) nada se pensava sem que passasse pelo crivo intelectual desta Igreja…”

Egídio: “Dentro desta questão que o Prof. Ático levanta, eu acho que nós intelectuais deveríamos nos questionar mais profundamente sobre as causas de todos estes fenômenos, sobre o que está causando os fundamentalismos de que fala o professor. Isto não vem por acaso. Inclusive nós temos talvez parte na causação deste fenômeno. Não estamos conseguindo responder àquilo que o povo, as camadas mais necessitadas esperam de nós intelectuais. Não encontrando respostas, apela-se com facilidade ao extraordinário. Nós estamos em geral muito apegados e limitados a certas práticas sem termos condição de perceber o que o povo tem a dizer. O povo também tem algo a dizer, aliás tem muito a dizer… O que este povo espera de nós? Será que nós intelectuais estamos sendo realmente capazes de perceber o que povo espera? Será que somos capazes de interpretar as aspirações do povo? E eu vou mais longe: será que nós professores somos capazes de interpretar as aspirações de nossos alunos? Será que escutamos suficientemente os anseios e as aspirações deles? Evidentemente o diálogo é aí o único caminho. Permitir que o outro pense não é perigoso. Perigoso é não deixar pensar. Perigoso é impor nossa opinião sem saber escutar. Certamente os alunos têm algo a nos dizer sobre a nossa atuação. Todos nós somos intelectuais: alunos e professores. É de se perguntar se o nosso diálogo realmente penetra o nível dos valores que cultivamos e dos valores que necessariamente precisamos criar para podermos atender àquilo que se espera de nós na Educação Básica. Muitas coisas daquilo que nós aprendemos são, sem dúvida, muito boas. São realmente básicas, no sentido de uma base para a ação, mas isto não é ainda a encarnação dentro da realidade. Eu gostaria que a gente pensasse muito nisso. Qual é afinal o nosso compromisso para com a Educação Básica? O que realmente estamos fazendo nestes termos? Estou atualmente levando uma pesquisa no sentido de verificar a adequação entre aquilo que se ensina aos nossos alunos e aquilo que eles precisam para serem professores. É uma pesquisa que está em andamento. Espero que traga dados interessantes para depois trocar mais idéias em cima disto.”

Voz: “Você na sua colocação enfatizou muito a produção coletiva no meio intelectual. Como é que você vê a contribuição individual nesta produção?”

José Ivo: Eu diria que não existe coletivo sem a participação dos indivíduos. Não existe uma identidade coletiva sem que haja identidades individuais a constituindo. A identidade coletiva é uma constante construção feita mediante a participação de individualidades. Um projeto coletivo não subsiste se ele não se coaduna, de alguma forma, com os projetos individuais daqueles que o assumem e fazem parte deste projeto. No trabalho intelectual acontece o mesmo. Quando falo coletivo eu entendo algo assumido em conjunto. Creio que não se deve chamar de trabalho intelectual coletivo aquele que gira todo em torno de um iluminado (ou um guru) sendo os demais seus servidores. O que define o trabalho intelectual coletivo é a participação de todos os indivíduos que estão engajados no projeto, fazendo incidir nele os seus saberes, suas preocupações, seus interesses, sua experiência acumulada… Para que aconteça efetivamente um trabalho intelectual coletivo, deve-se passar por um longo processo inicial de reconhecimento mútuo do próprio grupo.”

Emi: “Em relação ao tema central de sua palestra, eu me coloco a questão se não se deveria pensar que o papel do intelectual no mundo atual é o de tornar acessível a metodologia. O que aliás mais apreciei na sua palestra foi o tornar visível a maneira como construiu esta contribuição aqui. Acredito que o não tornar acessível este caminho talvez seja o maior ponto de distanciamento entre os que conseguem desenvolver as condições de exercício da sua intelectualidade e as pessoas que não têm acesso a este exercício. O senhor, em sua palestra, tornou manifesta e explícita a maneira como construiu a própria ideação a respeito do tema, partilhando conosco os detalhes dos momentos desta construção, onde e como foram buscadas as referências, a referência que fugiu, a contribuição expontânea de pessoas concretas. Para mim, este foi o ponto mais interessante nesta sua exposição. O senhor repartiu com todo este grupo de pessoas a forma peculiar de exercitar o seu ser intelectual. Talvez esteja faltando aos intelectuais em geral esta consciência do privilégio que tiveram e se esquecem de tornar acessível, como o senhor fez, a maneira como constróem as suas contribuições.”

Egídio: “Só talvez para acrescentar mais algo nisto que a Profa. Emi está colocando… O intelectual de fato não vive só de resultados. Seu ser intelectual é um constante processo, no qual há sucessos e fracassos. É muito importante que o caminho percorrido fique explícito. O resultado final pode dar uma idéia muito deformada do vivido anteriormente. Por exemplo, Einstein foi reprovado em Matemática na escola. É importante que sempre voltemos a retomar o nosso caminho. O porquê das pequenas e grandes mudanças de rumo na escolha de nossas temáticas. Se temos viva consciência de nosso caminho feito, seremos também muito mais capazes de ajudar a orientar outros que estão iniciando. Não podemos esquecer que somos seres históricos e que temos todo um caminho percorrido onde se deram fracassos e vitórias. Até é importante que tenha havido fracassos em nossa trajetória. Isto nos torna mais capazes de compreender os demais.”

Clair: “Ouvindo o José Ivo falar, devo dizer que fiquei muito sensibilizada por uma série de coisas. Realmente quando se coloca a questão do papel dos intelectuais no mundo atual, muitas coisas aparecem… Muitas coisas foram passando por mim neste momento. Esta ligação entre o pensar e o sentir que parece estar muito presente nas colocações do José Ivo é para mim algo fundamental. Eu estava lembrando agora de um depoimento da filha do Che-Guevara, numa entrevista, chamando a atenção para um outro lado do ser intelectual que diz respeito a outro tipo de conhecimento, o conhecimento que dói. O ser intelectual está muitas vezes atravessado por coisas que doem, que mexem com o sentimento. Neste depoimento, ela referia uma carta que tinha recebido de seu pai na qual este lhe dizia, que ´enquanto um ser humano sentisse uma dor, nós deveríamos sentir como se esta dor fosse nossa´. Ela via nesta frase o grande legado que o pai dela lhe deixara, ele que tinha dado toda a sua vida e foi morto pelo ideal que defendia. Se contrapormos este depoimento da filha do Che a uma reflexão recente de Margaret Tatcher que diz que não existe sociedade, que só existem indivíduos, que se somam e competem, eu fico me perguntando sobre a posição que devemos assumir para, neste momento tão conturbado do saber intelectual, não abrir mão deste lado tão importante que é a sensibilidade, o sentimento do intelectual…”

José Ivo: “No meio intelectual nós presenciamos muitas situações de descolamento. Muitos intelectuais se auto-alimentam na percepção de si mesmos como se fossem os iluminados que conseguiram chegar a um patamar em que os demais não chegaram e não mostram muito interesse em dar o mapa do tesouro. Acabam pairando acima da realidade, esquecendo-se da própria realidade. Então as observações tanto da Profa. Emi, do Pe. Egídio, como esta sua agora, apontam todas numa mesma direção. Apontam para a necessidade de se pensar o ser intelectual vinculado, conectado com a realidade da qual ele faz parte, na qual ele vive, com o sofrimento, com os sentimentos e com o que de fato acontece no cotidiano das pessoas. Ele só vai poder ser isto, fazer isto na medida em que ele souber trazer para dentro de seu trabalho intelectual o seu ser, os seus sentimentos, a sua paixão, em suma, o seu cotidiano cheio de contradições. E, evidentemente, a história do seu caminho intelectual faz parte disto. Assim como a filha do Che, uma intelectual sendo entrevistada, traz para dentro de sua reflexão todo este seu grande sentimento, ligado ao grande legado do seu pai.”

Ednaldo: “Uma questão muito interessante, que eu gostaria de retomar aqui, é aquela quando você fala que o intelectual deve saber movimentar-se com liberdade dentro da complexidade do mundo atual. Uma pequena dúvida, e isto é um aspecto que também foi apontado, diz respeito a como trabalhar esta liberdade, tendo presente o clima de permanente disputa na afirmação da própria intelectualidade. O intelectual de hoje pode não ser o intelectual de amanhã, tendo em vista os limites de sua liberdade. Toda vez que é cerceada a capacidade de se movimentar está sendo, de certa forma, cerceado o ser intelectual. Para fazer frente a estes cerceamentos e garantir a liberdade, tendo presente os limites que de fato estão sempre aí, o que você colocaria como motor possível, o confronto, o consenso, a solidariedade? Como você vê estes princípios, que são aparentemente contraditórios? Como você trabalha esta questão?”

José Ivo: “Você fala em motor. Eu diria que o grande motor é a humildade. É reconhecer as próprias limitações, ser capaz disto… Também saber perceber as limitações do outro. Não se ajoelhar tão facilmente diante do outro, adorando-o como um deus. O exercício da humildade, que é sobretudo um exercício de justa relação, é fundamental para preservar a liberdade dentro de toda a complexidade que vivemos. Isto aliás tem uma aplicação para dentro do próprio entendimento do fazer ciência, sobretudo em se tratando de ciências humanas. Quando os alunos de sociologia em aula levantam a questão da objetividade científica, costumo colocar a humildade do cientista, em certo sentido como “sinônimo” de objetividade. A humildade é, no limite, a capacidade de reconhecer até onde vão realmente as nossas certezas e deixar também explícito para nós mesmos e para nossos interlocutores qual é nossa opção ideológica. E volto a dizer, isto também implica em não nos ajoelharmos tão facilmente diante das certezas dos outros. Esta é uma postura básica para a liberdade. Não sei se não descaracterizei demasiadamente a sua questão, que me parece ser bem mais ampla.”

Ednaldo: “Está muito difundido na Universidade a afirmação de que se consegue a liberdade através do conhecimento. Quase no final de sua fala você apontava para uma das falências da modernidade que tem exatamente a ver com o conhecimento estimulado neste contexto. Como falar que a liberdade se dá através do conhecimento, se este último é um benefício social muito pouco disponível?”

José Ivo: “Depende do que entendemos por conhecimento, não é? O conhecimento liberta, sim! Nós vemos isto escrito todo dia por aí, em outdoors, em camisetas, em folhetos… Aqui no Campus especialmente! Todo dia nos deparamos com esta frase, como é que é ainda? “Só o conhecimento garante a sua liberdade!” É! Este é o motor de sua questão? De qual conhecimento estamos falando? Será que estamos nos restringindo ao conhecimento que é veiculado e adquirido na Academia? Espera-se que este conhecimento também liberte! Que a pessoa se liberta na medida em que conhece ninguém pode duvidar… Ela se torna mais livre na medida em que ela se conhece melhor, na medida em que conhece os outros e conhece o chão onde pisa. Nesta medida, ela se faz evidentemente mais livre do que numa situação de não conhecimento. Não devemos reduzir conhecimento àquilo que é adquirido na escola, na Universidade. Trata-se de algo muito mais amplo.”

Laércio: “O conhecimento é um ato de reconhecimento. Contém o desejo que se tem de reconhecer que aquilo que buscamos cabe dentro de determinada positividade. É reconhecimento em relação aos outros significando a dinâmica de uma troca mais profunda. Muito para além de elaboração de conceitos e sistemas conceituais, o conhecimento é sempre um processo de busca. Isto acontece em todas as áreas. Este caminho, este processo, esta busca é muito parecido nas diferentes áreas. Isto não é privilégio de uma área determinada. Trata-se de um processo de relação, atravessado de sentimentos às vezes com contradições. Como toda relação… É importante que esta troca (o conhecimento) seja um ato de amor. O ato de conhecer se faz pleno se ele é um ato de amor. Amar aquilo que a gente faz. O ato de conhecer é dignificado na medida em que ele se reveste desta busca amorosa, que liberta. Quem ama dá esta liberdade a si mesmo. Isto faz romper os mundos estanques e as clausuras disciplinares. Precisamos redescobrir esta relação conosco mesmos e a capacidade de nos sabermos expor frente aos outros. No campo pedagógico isto é fundamental. Não são espaços estanques: adultos, crianças, pensadores, não pensadores… Precisamos movimentar-nos mais livremente nestes espaços. E aí talvez o primeiro passo seja menos ensinar a aprender do que aprender a ensinar.”

José Ivo: “Eu estava ansioso por ouvir um filósofo…”

Gelsa: “Eu gostaria de escutar um pouco mais sobre esta questão da humildade intelectual. Concordo contigo no que falaste. Creio que é uma das coisas mais importantes que devemos exercitar enquanto intelectuais. Esta humildade de reconhecer as limitações (nossas) de cada um de nós e de todos os outros. Como vês a possibilidade do exercício desta humildade na perspectiva da concepção gramsciana de intelectual orgânico…?”

José Ivo: “Acho que Gramsci quando trabalha a questão do intelectual orgânico, está preocupado em pensar o intelectual na sua função na sociedade, para que existe o intelectual e qual a sua importância na sociedade? Para ele o intelectual é realmente importante na medida em que é também dirigente, na medida em que dá sua contribuição como líder na história. Enquanto sujeito da história. Quem entra na história para fazer história, não pode entrar fazendo-se dono da história, porque a história é feita por todos os que nela participam. Quem entra na história para fazer história deve respeitar esta história. O intelectual é orgânico na medida em que é capaz de ouvir quais são efetivamente os interesses do grupo que ele está ajudando a se pensar e a se organizar. Já falei que humildade é reconhecer-se a si mesmo em suas limitações, reconhecendo a sua capacidade própria de dar contribuições, reconhecer o outro em suas limitações e também em suas condições de contribuir. Na prática, no meio intelectual, isto é um desafio tremendo. Eu estou sempre mais escandalizado por aquilo que percebo na Academia. Para mim não tem sentido que o meio Acadêmico, definido como espaço de busca participada e conjunta do conhecimento, vire um meio que abriga querelas de poder em relação ao conhecimento… Tem sentido isto? No entanto a Academia está repleta disto!… Bom, já fiz minha confissão! Vamos ver se outra pessoa quer falar…

Liceu: “Eu venho de uma área diferente – sou da Comunicação! – e uma das questões que eu vivo me colocando é o fato de que há muitos intelectuais que ficam gravitando em certo sentido demasiadamente ao ´redor do próprio umbigo´. Assim eu fico todo cheio de dedos ao entrar neste debate sobre o intelectual. Tenho certo receio que quando a gente começa a refletir e buscar afirmar novas linhas de pesquisa, corre-se o risco de cair no ostracismo. Vejo gente muita boa deixando de investir na busca de coisas novas, deixando de criar coisas que seriam importantes para a sociedade, talvez, mas isto poderia custar-lhes caro dentro do mundo acadêmico. Então há um certo receio. Além disto, o individualismo neste meio e os mundos muito separados são uma limitação muito grande. A interdisciplinaridade é certamente uma saída para romper isto. Eu percebo por exemplo ótimas críticas sobre atividades do meio da Comunicação, em trabalhos na Área de Educação. Os intelectuais da Educação contribuem mais na crítica da Comunicação do que os próprios intelectuais da Comunicação. Como dar força ao trabalho interdisciplinar no meio acadêmico?”

José Ivo: “Creio que é nisto que reside exatamente uma das funções da existência de linhas de pesquisa. A linha de pesquisa, pode-se dizer, força os grupos na Academia a saírem de si e forçar a própria Academia a sair de si. Ela não deveria também estar desvinculada de um verdadeiro serviço à coletividade. As linhas de pesquisa deveriam, no meu entender, nascer sempre de um debate mais amplo, na própria sociedade. Elas não deveriam resultar simplesmente de uma decisão interna de um grupo dentro da Academia, que como por decreto, a partir de suas preferências diz: ´nossas linhas de pesquisa são estas!…´ A pergunta sempre deve ser: “o que se espera, na sociedade, deste programa ou deste grupo da Academia?”

Rute: “Trata-se de uma questão fundamental e muito desafiadora. Não se pode esquecer que na própria definição de linha de pesquisa ainda continuam pairando dúvidas. Há muitas divergências neste campo.”

Emi: “Concordo com o Prof. José Ivo na importância em se investir realmente na discussão e no afinamento das linhas de pesquisa e um dos pressupostos básicos que fundamenta uma linha de pesquisa é exatamente a importância e a urgência para a própria sociedade. Creio que podemos ser otimistas com relação ao grupo que aqui se encontra, que aliás está sendo sempre mais numeroso. Temos certamente boas chances de romper sempre mais a assim chamada ´solidão da Academia´. Num grupo como este, voltado para a Educação Básica, aumenta por si só – por sua própria definição! – a responsabilidade coletiva por não deixar prosperar linhas de pesquisa que conduzam a um distanciamento das necessidades prementes da sociedade neste campo da educação.”

Rute: “O nosso programa de Mestrado define-se por uma redefinição permanente de sua própria proposta. Quer ser um programa constantemente atento. É o que está definido já em nossa proposta inicial. Isto reflete uma preocupação justamente alinhada com o que está aqui sendo colocado…”

Ednaldo: “Você insistiu em duas frentes imediatas importantes para a ação. Por um lado, você aponta para a importância da produção coletiva, colocando o cultivo das linhas de pesquisa como meio para isto. Você até fala na importância de constituir-se escola, enquanto trabalho intelectual coletivo. Por outro lado,  você aponta para a importância de se dar uma atenção especial à nova LDB, quando se sabe que esta LDB, que aí está, é exatamente fruto de um atropelo da produção coletiva. Foi negado todo um processo de elaboração coletiva, para se optar pela produção individual de um iluminado. Como você explica esta contradição aparente nas suas duas propostas?”

José Ivo: “Eu estou falando da LDB que está aí. Não vejo uma contradição tão grande entre as duas propostas que faço…”

Ednaldo: “Minha questão se dirige mais no sentido de perguntar sobre a legitimidade de uma lei destas, quando se sabe que os trabalhadores da educação tinham todo uma proposta trabalhada com muito empenho e participação. Esta proposta foi de fato desconsiderada e substituída simplesmente pela de um iluminado… Qual a legitimidade desta lei, tendo em vista que os trabalhadores da educação não se sentem sujeitos da produção desta lei. Não estou nem dizendo que a lei que está aí não seja boa, que não tenha boas contribuições. Que elas existem não tem dúvida. Existe, no entanto, uma questão anterior, que é a questão da legitimidade. Como trabalhar esta questão agora? Há um resultado de produção coletiva, que foi desconsiderado, mas se acredita e insiste em que a produção intelectual deve ser coletiva inclusive em cima desta LDB…”

José Ivo: “Está sendo previsto pelo Centro de Ciências Humanas, por sugestão da própria Pró-Reitora de Ensino e Pesquisa, um seminário interno sobre a nova LDB já em meados do mês de abril. Já temos um Grupo de Trabalho constituído para a sua preparação. Creio que será um fórum importante para aprofundarmos estas questões, não tanto para discutir um processo que foi frustrado, mas para trabalharmos em cima do texto da lei que aí está e darmos a nossa contribuição em seu processo de implantação.”

Emi: “Este será certamente um espaço mais adequado para discutirmos o texto da LDB e as importantes contribuições que ela nos traz. Independente da maneira como se deu seu processo, a LDB tem uma grande qualidade, que é a de não forçar a comunidade acadêmica a nada. Ela oportuniza a discussão e a construção continuada. Toda lei e sobretudo esta, na forma como está expressa, exige uma hermenêutica da própria comunidade que vai executá-la. Entendo que, entre todos os méritos que a nova LDB possa ter, deve-se destacar este de ser um espaço extremamente aberto. Embora possa haver discordâncias em relação à maneira como foi selecionado o texto que acabou sendo o aprovado, deve-se reconhecer como principal ponto positivo exatamente a qualidade do texto aprovado enquanto um texto que não obstrui e não impede a continuação da construção coletiva. É o que devemos fazer. Vamos ter através deste seminário a oportunidade de construir a maneira como a UNISINOS se posiciona dentro desta nova ordem.”

Rute: “Não tendo mais pessoas inscritas para fazer uso da palavra, quero agradecer ao Prof. José Ivo pelas instigantes interrogações que ele conseguiu fazer desencadear em cada um de nós. Que isto seja o início de uma reflexão que se transforme também constantemente em ação. Que nosso trabalho intelectual não seja simplesmente um ato solitário, mas sim solidário. Esta foi uma das mensagens. Que nosso trabalho intelectual não seja trabalho simplesmente submisso a atos de fé dirigidos por dogmas que impomos e que nos deixamos impor. Esta, parece-me, foi uma outra mensagem importante. Que o trabalho intelectual seja sempre um trabalho onde o exercício da liberdade e da responsabilidade tenha espaço pleno e nunca seja abortado de saída.”

As referências bibliográficas usadas podem se encontradas no artigo publicado


NOTAS:

[1] Horácio GONZALEZ, em seu livrinho O que são intelectuais (São Paulo: Ed.Brasiliense, 1984) nos convida a um passeio no meio intelectual e faz descortinar uma ampla galeria de intelectuais, passando por sete quadros característicos e diferenciados: começa pelo quadro do “intelectual maldito”, para, em seguida, mostrar o quadro do “intelectual precursor”, em terceiro lugar fala do “intelectual revolucionário”, depois fala do “intelectual populista”, para, por fim, fazer uma abordagem clara e bem sintetizada sobre o “intelectual cosmopolita”, o “intelectual orgânico” e o “intelectual do círculo do poder”. São os sete tipos de intelectual que este autor nos apresenta, nesta sua rica contribuição  para a coleção Primeiros Passos. Não pretendo dar conta, em minha exposição, de todos estes tipos.

[2] Henry A. GIROUX. Los Professores como Intelectuales: Hacia una Pedagogía Crítica del Aprendizaje. Barcelona – Buenos Aires – México: Ed.Paidós/MEC, 1990, p.255-256

[3] Karl MANNHEIM. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Ed.Zahar, 1976.

[4] Observação: “ser interdisciplinar”, estar aberto à outra perspectiva, não significa permanecer equidistante, como em cima do muro. Aliás, diga-se de passagem, por mais elevada que seja a torre de um intelectual, ela sempre será uma torre inclinada – para usar a imagem empregada por alguém – e poder-se-ia acrescentar “ela sempre projetará a sua sombra protetora para um lado”. Karl MANNHEIM fala da “ideologia” e da “utopia”. A contribuição de Antonio GRAMSCI com o conceito de “intelectuais orgânicos” é, no meu entender, mais útil.

[5] Ver José Ivo FOLLMANN. Religion, Politique et Identité. DISSERTATION DOCTORALE. Bélgique, Louvain-La-Neuve, Université Catholique de Louvain, 1993.

[6] Ver em C. ATIAS e J.L.LE MOIGNE. Échange avec Edgar Morin: Science et Conscience de la Complexité. Aix-en-Provence: Libr.de l´Université, 1984.

[7] Alain TOURAINE. Le Retour de l´Acteur: Essai de Sociologie. Paris: Ed.Fayard, 1984. Alain TOURAINE.La Parole et le Sang: Politique et Société en Amérique Latine. Paris: Ed.Odile Jacob, 1988.

[8] Os intelectuais, a rigor, não formam uma classe, grupo ou organização independente, mas cada classe, grupo ou organização tem os seus intelectuais. (Ver “Cartas do Cárcere” de Antonio GRAMSCI, em Christiane BUCI-GLUCKSMANN. Gramsci e o Estado: Por uma Teoria Materialista da Filosofia. Rio de Janeiro: Ed.Paz e Terra, 1980, p.71)

[9] Antonio GRAMSCI fala do partido político, mas isto é estensível às demais organizações. Ver em Tom BOTTOMORE. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Ed.Zahar, 1988, p.167.

[10] Ver Horácio GONZALEZ. O que são Intelectuais. São Paulo: Ed.Brasiliense, 1984, p.96.

[11] Pierre BOURDIEU. “Genèse et Structure du Champ Religieux”, Revue Française de Sociologie, n.XII, 1971. Pierre BOURDIEU. Questions de Sociologie. Paris: Édition de Minuit, 1980.

[12] “Cada grupo social, nascendo sobre o terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo e organicamente, um ou mais grupos de intelectuais que dão homogeneidade e consciência da própria função, não só no campo econômico, mas também no campo social e político”. (Antonio GRAMSCI. Obras Escolhidas. Vol.II. Lisboa: Ed.Estampa, 1974, p.190).

[13]  … “Ao contrário dos intelectuais hegemônicos ou acomodatícios, cujo trabalho se desenvolve sob a ordem de quem detém o poder e cujas intuições críticas se mantém a serviço do status quo, os intelectuais transformadores assumem a sério a primazia da ética e da política em seu compromisso crítico com os estudantes, as autoridades e a comunidade correspondente. Estes últimos trabalham incansavelmente, dedicados a fazer avançar a democracia e a realizar a qualidade da vida humana.” (Henry GIROUX, op.cit., p.20) O grande desafio que sempre fica: “Como podem os educadores elaborar um projeto pedagógico que legitime uma forma crítica de praxis intelectual?” (Henry GIROUX, op.cit., p.14; ver também Henry GIROUX, op.cit. p.175 ss.)

[14] Pierre BOURDIEU. A Economia das Trocas Linguísticas. São Paulo: EDUSP, 1996, p.81-82.

[15] Ver Pierre BOURDIEU, idem, p.83.

[16] Ver Guy BAJOIT. Pour une Sociologie Relationnelle. Paris: PUF, 1992. Guy BAJOIT. Les Jeunes dans la Compétition et la Mutation Culturelle. Louvain-La-Neuve: Recherche UCL/FOPES, 1993. Ver também Jean REMY, L. VOYE et E. SERVAIS. Produire et Reproduire: Une Sociologie de la Vie Cotidienne (2 vol.). Bruxelles: De Boeck Université, 1991. Jean REMY, “Religion, Rationalité et Mobilisation Affective”, Rev. Social Compass, n.2-3, 1984.

[17] Agnes HELLER. O Cotidiano e a História. São Paulo: Ed.Paz e Terra, 1970, p.17.

[18] Max WEBER. Le Savant et le Politique. Paris: Plon, 1959, p.199.

[19] Ver José Ivo FOLLMANN. Religion, Politique et Identité, cit. p. 233-234 (referindo Jean REMY. “L’affectif et l’irrationnel: question au rationalisme. Durkheim et Weber: deux réponses différentes”, TEXTO DE COLÓQUIO, s/d., p.7.)

[20] Georg LUKACS, in Agnes HELLER.O Cotidiano e a História. (Pref.), São Paulo: Ed.Paz e Terra, 1970, p.X

[21] CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, 1995-1998. Documentos da CNBB, 54,  1996, n.139 ss.

[22] Os aspectos aqui apresentados reproduzem texto recente de elaboração coletiva, no qual trabalhei junto com José Odelso SCHNEIDER (autor principal da primeira redação) e outros. (Ver “Marco Situacional” do Planejamento Apostólico da Província Brasil Meridional da Companhia de Jesus, 1997)

PROFETAS DA JUSTIÇA E RECONCILIAÇÃO

Este texto teve a sua primeira publicação em agosto de 2019.

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

Este texto foi escrito para a Revista do Colégio Medianeira, Curitiba, PR, dirigida à comunidade educativa daquela instituição.

P. José Ivo Follmann sj
Secretário para a Justiça Socioambiental
Província dos Jesuitas do Brasil
(agosto de 2019)

Há algum tempo, em uma das redes sociais na qual costumo me comunicar, alguém postou a mensagem de uma senhora trabalhadora vinculada a uma cooperativa de reciclagem de lixo. Na mensagem ela fazia um apelo veemente, acompanhado de uma recomendação muito justa: uma verdadeira lição de justiça socioambiental para nós.

Depois de se apresentar, ela (aquela trabalhadora) pedia para que fôssemos mais atentos em facilitar a coleta seletiva dos lixos. As palavras dela foram um misto de agradecimento pela separação da “matéria prima” do trabalho de quem faz disso a sua profissão, e de estímulo para ampliarmos a nossa contribuição no combate à contaminação, à poluição e ao estrago que vem castigando e destruindo a nossa mãe terra. As palavras dela foram, também, um lembrete delicado para ajudarmos a melhorar as condições de trabalho das pessoas envolvidas nessas frentes.

Na fala suave e decidida daquela mulher, – uma senhora negra cujo olhar sofrido não escondia um forte brilho repleto de sabedoria e liderança -, suas palavras foram finalizadas com uma recomendação muito oportuna, repleta de profundo senso de humanidade.

Ela dizia: “Quando separam as caixinhas de leite vazias e garrafas vazias de yougurtes ou coisas parecidas, procurem, por favor, passar uma água, deixando, depois, os frascos abertos no lixo. Isto ajuda muito para nossos narizes. Isto torna o nosso trabalho menos insalubre. Vocês não imaginam os cheiros que às vezes temos que suportar em nosso trabalho. É um pedido! Não custa”!

Confesso que aquela fala ressoa em mim até hoje. Aprendi e agradeço! Sempre que vou descartar algum frasco de leite, garrafas de yougurtes ou embalagens parecidas, me lembro de quem estará lá na outra ponta recolhendo aquela “matéria prima” para o seu trabalho.

Em minha função de Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil, tenho viajado bastante e frequentado muitos aeroportos. Um dia, no espaço de um banheiro de aeroporto, a atitude de um senhor de idade – “senhor da bengala” – me chamou a atenção. Ele era bastante idoso. As suas limitações físicas eram visíveis. Apesar de trêmulo, ele manejava com destreza a bengala, na qual se apoiava. Chamou-me a atenção que ele, no meio da correria e do tumulto dos que entravam e saíam, naquele recinto, serviu-se da bengala para juntar os pedaços de papel no chão; pedaços de papel que outros, na pressa e no desleixo, descuidadamente, haviam largado ao redor da lixeira. Na sequência, com cuidado e certa dificuldade, ele se inclinou diversas vezes, para com uma das mãos, – a que estava livre da bengala -, colocar os papéis no recipiente do lixo, sem se perturbar com os transeuntes.

Observei com atenção os movimentos daquele senhor da bengala. Terminada a sua ação, que parecia um evidente hábito rotineiro, ele encostou a bengala, pegou o papel, lavou tranquilamente as suas mãos, as enxugou e colocou o papel, cuidadosamente, na lixeira. Depois, armando-se de novo com a bengala, caminhou para a porta, tranquilo, sem se fazer notar. “Que exemplo de delicadeza humana”, pensei comigo. “Preocupar-se em deixar o ambiente limpo para os outros…” “Quem não se sente bem, quando encontra um ambiente desses, limpo e asseado, sem o horror do desleixo e dos papéis espalhados pelo chão”? Tornei-me um fiel seguidor desse “senhor da bengala”, anônimo, discreto, fisicamente frágil, mas tremendamente robusto em humanidade.

Se queremos falar em justiça e reconciliação, precisamos começar pelas pequenas coisas do dia-a-dia. O cuidado da “nossa casa comum”, é, em primeiro lugar, o cuidado de quem frequenta ou trabalha nessa “casa”. Saber importar-se com as outras pessoas, com o seu bem-estar. Hoje, sempre que entro em algum banheiro bem cuidado e limpo, sem papéis espalhados no chão, lembro-me do “senhor da bengala”. Também me dou conta que existem gestores/as que têm sensibilidade e se preocupam para que as pessoas que usam os ambientes que estão sob sua responsabilidade não se sintam agredidas em sua dignidade. Escalam para tal zeladorias permanentes e atentas. A boa gestão pede este cuidado.

Fazer gestão com justiça é cuidar da dignidade humana. Praticamos a justiça, como gestores e gestoras, quando as tomadas de decisão, em todas as instâncias de nossos empreendimentos, estão revestidas de sensibilidade e humanidade. Trata-se da atenção permanente de garantir que as pessoas se sintam bem e respeitadas em sua dignidade. Nada melhor para o ser humano do que poder frequentar ambientes limpos e acolhedores. Isto ajuda a cultivar a própria dignidade.

Falando em “ambientes limpos e acolhedores”, fico escandalizado, com a mente e o coração perturbados, sempre quando me deparo com cenas em que os nossos irmãos e irmãs estão jogados nas calçadas das ruas ou “residindo” em ambientes sórdidos, amontoados em barracos, rodeados de esgoto e lixo, imundos, como se eles fossem o próprio lixo da humanidade. São vidas humanas desfiguradas, no meio da imundície, que clamam por justiça! Elas clamam para que não sejamos insensíveis e não consideremos estas cenas como normal e como algo que não tem solução. Elas clamam para que não repitamos o mantra horrível: “Infelizmente é assim mesmo; não dá para fazer nada”, como se isto fosse uma espécie de destino fatal dos “deserdados da sorte” ou “descartados do mundo”.

O número desses “deserdados” e “descartados” vem-se multiplicando nos últimos anos. É um escândalo! É uma interrogação inquieta com relação aos nossos sistemas econômicos, políticos e sociais. Como reverter essa calamidade? Como calar a ignorância cínica, que pensa, diz e age como se isto devesse ser assim mesmo? Como calar essa ignorância cínica que habita, também, dentro de nós? Muitas vezes, a perversidade nos leva ao extremo de jogar a culpa de tudo nas próprias vítimas. Pobre humanidade! A que extremo estamos reduzidos? “Sempre foi assim…”

Há um caminho possível para além destes cinismos acomodados e inoperantes. Levar a sério a dignidade humana deve interpelar, de forma permanente, a todos/as nós, e, sobretudo, as pessoas responsáveis pela tomada de decisão com relação aos destinos dos recursos e dos bens dos quais a humanidade dispõe.

Só os exemplos aqui relatados já deveriam ser suficientemente mobilizadores para nos fazer acordar e chamar à responsabilidade. Para nós que somos cristãos ou para quem, seguindo o cristianismo ou não, atua em uma organização dirigida pela Companhia de Jesus, tudo isto fala com redobrado vigor porque somos orientados a nos colocarmos na perspectiva da reconciliação como caminho da justiça. Para a Companhia de Jesus e para quem orienta a sua vida religiosa pelo cristianismo, Jesus Cristo é o caminho da reconciliação de tudo, ou seja, da reconciliação consigo mesmo/a, com as outras pessoas em sociedade, com os dons da criação e com Deus. Por um caminho ou outro, somos convidados/as a assumir a participação na ação de reconciliação em todos os níveis. Este é um caminho de construção da justiça.

No Estatuto da Província dos Jesuítas do Brasil, recentemente aprovado, consta que uma das competências do Secretário para a Justiça Socioambiental é a de “promover a consciência da justiça socioambiental na Província em coerência com o paradigma da Ecologia Integral e da Teologia da Reconciliação” (Estatuto da Província, Art. 27, & 7-a).

O paradigma da Ecologia Integral, introduzido pelo Papa Francisco em sua Carta Encíclica Laudato Sí (2015), baseando-se no princípio da relacionalidade de tudo em nossa “casa comum”, é uma chave que ajuda a pensar a promoção da justiça, como um processo de reconciliação, em todas as dimensões. “Tudo está interligado, nesta casa comum”, diz uma das canções que acompanha o movimento do Sínodo para a Amazônia, em realização de outubro de 2017 a outubro de 2019. É o que chamamos de justiça socioambiental, amparada na Ecologia Integral e na Reconciliação. Trata do trabalho pela justiça, no qual as injustiças sociais e injustiças ambientais aparecem profundamente interligadas. Não temos como fazer justiça social sem justiça ambiental e não temos como fazer justiça ambiental sem justiça social.

No meio da perversidade humana e estrutural, que nos assola, o “senhor da bengala”, a senhora da cooperativa de reciclagem de lixo e gestores e gestoras que, em suas decisões, colocam a atenção primeira na dignidade humana e no ambiente digno de vida, são profetas da justiça socioambiental: profetas da justiça e da reconciliação de todas as pessoas e de todas as coisas.

EDUCAÇÃO CATÓLICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: UMA HISTÓRIA DE INTERROGAÇÕES PARA PRÁTICAS EM SALA DE AULA

Publicado como capítulo em livro no Chile ‘EDUCACIÓN CATÓLICA EN LATINOAMÉRICA: UN PROYECTO EN MARCHA’ em 2019

Uma das formas de produção do conhecimento acontece no próprio processo de educação

José Ivo Follmann (janeiro de 2019)

Introdução

Tomei como ponto de partida, na redação deste capítulo, uma vivência pessoal em sala de aula em uma instituição católica de elite, em nível de educação básica, no ano de 1970, quando por causa do uso de determinados materiais didáticos fui motivo de convocação de “reunião de pais e mestres”, gerando um diálogo ideológico de certa forma constrangedor.

Ancorada, em seu início, na narrativa pontual biográfica, a redação do capítulo transita por diversos caminhos e atalhos, atenta aos impactos sociais, culturais e educacionais, em contextos em permanente mudança e de fortes debates ideológicos, a partir, sobretudo, da década de 1960, cujos ecos nos acompanham até hoje. São pontuadas também três outras atenções especiais: A organização nacional da educação católica em um contexto de forte competividade de mercado; A educação católica em um contexto de diversificação religiosa acelerada conjugada com a afirmação sempre maior da laicidade na sociedade; E, por fim, um recente debate sobre as formas mais apropriadas de práticas de inclusão socioeducativa de entidades educacionais católicas e similares. O capítulo é concluído por “notas não conclusivas” sinalizando algumas provocações para avançar no processo de reflexão sobre as práticas de sala de aula na educação católica.

  1. A Segunda Metade do Século XX: uma contexto de grandes mudanças

Vou iniciar com o relato de um evento pessoal. Em 1970 eu lecionava em uma escola católica jesuíta, conhecida como sendo de elite, no sul do Brasil. A disciplina era “Cultura religiosa”. Fui orientado a utilizar, em sala de aula, um material didático muito em voga e bem adequado ao novo momento que a igreja católica vivia a partir do Concílio Vaticano II e do engajamento social cristão no contexto desafiador que o Brasil e toda América Latina estavam vivendo. As aulas tinham grande sucesso, contando com boa adesão e participação dos estudantes de sétima série do ensino fundamental. No entanto, um dia fui surpreendido com a convocação da direção do colégio para uma reunião com um grupo de pais. O assunto era: a orientação ideológica dos materiais usados em sala de aula. (1) Naquele material eram explicitados, de forma bastante equilibrada e dentro do alcance da faixa etária dos estudantes, aspectos da realidade social e cultural, que na opinião dos pais não estariam sendo adequados. Eu era um jovem principiante, no meio caminho de minha formação jesuítica, na época estudante de Ciências Sociais, na Universidade Federal local. Me vi no constrangimento de ter que explicar para alguns daqueles pais que a logomarca da Sono-Viso do Brasil, (2) que estilizava um S e um V não tinha nada a ver com Foice e Martelo e que a estrela de Belém (guia dos Reis Magos) que aparecia em uma imagem não tinha nada a ver com eventuais estrelas presentes em bandeiras de países comunistas. Me senti tremendamente provocado por aqueles constrangimentos totalmente inesperados. Foi, com certeza, um grande aprendizado.

Sem ficar preso ao anedótico desta narrativa, creio que ela é tremendamente simbólica, refletindo todo um contexto que se vivia, sobretudo, a partir da segunda metade do século XX, mais precisamente as reviravoltas políticas, culturais e sociais, a partir da década de 1960. Foi um contexto que deixou marcas profundas tanto para a sociedade como para a igreja católica e diversas outras igrejas cristãs e, consequentemente, para a educação católica e cristã. Segundo Danilo R. Streck e Aldino L. Segala (2007: 165), “Uma nova forma de ser igreja implicava na crença de que uma outra sociedade era possível; a sociedade onde todas as pessoas pudessem ter pão suficiente e a sede de justiça pudesse estar saciada”. (3)

No mesmo artigo é feita menção especial ao papel importante exercido pelo Concílio Vaticano II e sua repercussão intensa na igreja católica na América Latina. Este último aspecto aparece como o ponto fulcral na grande virada acontecida, nesse contexto, em termos teológicos e pedagógicos, que é o foco do texto dos autores.

Paulo Freire proclamava que a educação promovida pelas igrejas devia ser concebida e realizada com raízes na história e cultura do povo. Segundo ele, “o papel educacional das igrejas não pode ser entendido como alheio às condições da realidade concreta na qual elas estão presentes”. (Freire, 1977, p.105, apud Streck e Segala, 2007, p.165)
Alguns documentos do episcopado, na época, foram de grande importância, destacando-se, sobretudo, os documentos da Conferência Episcopal Latinoamericana – CELAM, do encontro de Medellin, Colômbia, em 1968 e de Puebla, México, em 1979. (4)

Pontos de destaque, no texto de Streck e Segala (2007), são, também, as comunidades eclesiais de base – CEBs e a educação popular. Foi um período extremamente fértil, particularmente em termos de atividades relacionadas com a educação popular, fora do sistema formal de ensino, em grande parte lideradas pela igreja. A par disto, grandes debates eram vividos dentro do sistema formal, haja visto o grande evento em Buga, Colombia, 1967 um ano antes da conhecida do encontro dos bispos em Medellín, 1968.

A ideia de libertação e educação libertadora, proclamada e aprofundada em Buga, Colômbia, foi assumida no documento de Medellín, Colômbia. As principais características dessa educação foram retomadas, posteriormente, no documento de Puebla (1979), que as sintetiza em três pontos: – criar no ser humano espaço para a boa nova cristã; – impulsionar o exercício da função crítica inerente à educação verdadeira; – e promover o educando como sujeito do desenvolvimento próprio e dos outros. Em suma: – educação para humanizar; – educação para a justiça; – educação para o serviço.

A educação católica no Brasil tinha uma grande presença no Ensino Médio. Oscar Beozzo (1993: 69) relata que, no final da década de 1950, no Brasil, 80% dos estudantes deste nível eram de instituições católicas de educação. O acesso era mais favorecido às classes média e alta, devido às anuidades elevadas. Por um lado, grandes tensões ideológicas internas eram vividas gerando conflitos no âmbito da gestão e das práticas em sala de aula. Por outro lado, também estavam sendo travados debates sobre a democratização do ensino, apontando inclusive para a importância de se destinar recursos públicos para as iniciativas educacionais privadas.

O direcionamento, no entanto, foi bem outro. Houve um grande incremento na rede pública de educação e as escolas privadas foram gradualmente excluídas do acesso a subsídios públicos. Impossibilitadas de acolher estudantes da população mais pobre, a crise ideológica que já estava instalada, tendeu a crescer nas instituições católicas. A nova forma de ser escola, que vinha na carona da nova forma de ser igreja, parecia ter-se tornado um discurso longínquo, em um quadro onde a sobrevivência das escolas e de suas práticas em sala de aula necessitavam estar ajustadas ao horizonte de consumo das elites dominantes.

A crise ideológica nas escolas foi acompanhada por duas outras crises. Em primeiro lugar estava a própria crise na vida religiosa consagrada, com uma diminuição significativa do número de vocações para este estado de vida. Em segundo lugar, pesou também forte a política estatal de investir maiores recursos, por um lado, nas escolas públicas, e de facultar, por outro lado, a possibilidade do surgimento de um mercado voraz de empreendimentos privados de ensino, pautados no negócio e no lucro.

Estes últimos dois aspectos trouxeram em seu bojo um agravamento sem precedentes para as condições de sustentabilidade econômico-financeira das escolas católicas e outras escolas confessionais e comunitárias. Paradoxalmente estas instituições são as que mais estão focadas no serviço público à sociedade. Como agravante do paradoxo, talvez se possa dizer que o poder de intimidação das famílias pagantes, neste contexto, passa a ser ainda mais rigoroso com relação às práticas em sala de aula.

  1. Educação Católica no Brasil: Organização nacional e competitividade.

O século XXI iniciou com um cenário totalmente desfavorável à sustentabilidade econômico-financeira de instituições católicas de educação e outras iniciativas educativas similares. Segundo Manoel Alves (2006), este cenário tornou visível, também, as fragilidades de gestão interna da maioria dessas instituições. Para o autor, isto não era algo notável em tempos favoráveis e sem concorrências, mas mudanças radicais aconteceram e o contexto se tornou desfavorável, sobretudo, ao longo das últimas duas décadas do século XX.

No entender do mesmo autor, não faz mais sentido buscar explicações externas ou esperar a melhoria das condições externas. Em termos de ensino católico é necessário investir forte na liderança interna, pois “só se tem possibilidade de prosperar se o negócio educacional pelo qual ele responde, for eficazmente gerido”. (Alves, 2006: 130). Parece que as instituições de educação católica foram muito lentas em se adequar ao novo momento vivido pela humanidade que é a “sociedade do conhecimento”.

Para fazer face a estes grandes desafios a educação católica no Brasil deu passos importantes em termos de organização nacional. Finalmente de 2007 instaurou-se definitivamente o processo de instituição oficial da Associação Nacional da Educação Católica – ANEC, superando a situação de evidente desarticulação anterior. (5) Esta entidade de representação nacional única da educação católica no Brasil, caracteriza-se dentro de três eixos principais: – representação política e defesa dos interesses das associadas; – assessoria às associadas; – apoio na gestão das instituições.

“Como representante única e legítima da educação católica no Brasil, a ANEC é referência no importante papel de prestação de serviços a centenas de associadas e milhares de unidades de ensino, assim como promotora de eventos educacionais para o aperfeiçoamento da educação e da gestão. Ao todo, são praticamente 400 Mantenedoras católicas associadas, cerca de 2 mil escolas, 90 instituições de Ensino Superior e 100 obras sociais. A ANEC está presente em todos os estados da Federação, representa 2,2 milhões de alunos e 100 mil professores e funcionários”. (6)

A crise, que constituía a reviravolta teológica e pedagógica vivida pela igreja católica, somada à drástica redução do quadro de religiosos/as consagrados/as e à mudança radical no contexto de espaços para a educação católica e de outras confissões, não é tudo o que deve ser observado de fundamental. Sinalizou-se acima o desafio da articulação de forças em nível nacional para criação de amparo e sinergia comuns e, dentro da frenética corrida da inovação tecnológica e pedagógica nas salas de aula e nos espaços educativos como um todo, não sucumbir à perda dos valores centrais que movem a educação católica.

No entanto, é também necessário que nosso olhar se volva para as transformações radicais vividas dentro da própria esfera religiosa brasileira, a sua acelerada diversificação e a drástica diminuição relativa da presença católica. O Estado Brasileiro veio dando passos de amadurecimento em sua laicidade e a sua relação se dá com a esfera religiosa como um todo, mais do que com os interesses desta ou daquela religião. Neste sentido busco, na sequência, trazer alguns elementos para ajudar a avançar nesta discussão.

2. A Diversificação da Esfera Religiosa Brasileira e a Laicidade do Estado.

A esfera religiosa brasileira sofreu, ao longo das últimas décadas, um processo muito acelerado de inflexão nas forças: de um Brasil predominantemente católico está-se caminhando para um Brasil onde a força do segmento evangélico pentecostal e neopentecostal e a diversificação religiosa em geral, tendem a conquistar espaços sempre maiores.

Em termos de diversificação na esfera religiosa os dados oficiais consolidados em nível nacional são fornecidos pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, de 1940 a 2010. Neste período o quadro estatístico dá conta da queda numérica sensível daqueles que se declaram católicos e do aumento acelerado, daqueles que se declaram evangélicos, bem como aumento grande daqueles que se declaram “sem religião”, incluindo, neste último grupo, os descrentes ou ateus. Constata-se também a multiplicação do número de religiões que se somam no quadro das “outras religiões”.

Tudo indica que em 2020 a população católica no Brasil estará abaixo de 50%. (7) A explosão da diversidade religiosa, que assistimos no Brasil contemporâneo, por si só, não gera espírito pluralista ou de convívio democrático. Ao contrário, muitas vezes, também, são geradas radicalizações fundamentalistas. Tem-se, assim, um movimento duplo contraditório gerado pela diversificação: crescimento do espírito de convívio democrático pluralista, de um lado, e aumento de radicalizações fundamentalistas, de outro. Da mesma forma é perceptível um duplo movimento em nível de Estado: ao mesmo tempo em que são constatáveis movimentos de amadurecimento da laicidade no sentido de garantir o direito à diversidade e pluralidade de expressão religiosa de todos, existem, também, movimentos de busca de vantagens eleitorais contando com o apoio desta ou daquela confissão religiosa.

O conhecimento exerce papel importante no processo de identidade religiosa. O que falta muito na sociedade brasileira é conhecimento com relação ao mundo das religiões e das religiosidades. Hoje este “mundo” se ampliou muito no Brasil devido, também, a uma presença mais visível, mesmo que estatisticamente muito reduzidas, de vertentes islâmicas, judaicas, budistas e outras tradições religiosas históricas fortes e milenarmente consolidadas. Um componente fundamental nos processos de identidade religiosa é a relação sadia com o outro, com o diferente. Pode-se dizer que o diálogo inter-religioso é a nossa tábua de salvação.

É de consenso que cabe ao Estado laico criar as condições para que se eduquem as consciências religiosas em sua diversidade e seu reconhecimento mútuo. Acreditamos, também, como afirmamos acima, que uma laicidade maduramente vivida e administrada pelo Estado é condição para que a esfera religiosa possa exercer o seu papel na construção da sociedade democrática.

Mencionei acima a instalação do Estado laico, dentro do mesmo processo proclamação da República. Já se passaram 125 anos desde a primeira Constituição Republicana, que foi em 1891, e a laicidade do Estado ainda está longe de uma consolidação amadurecida. A história do século XX e também da primeira década do século XXI está repleta de exemplos que trazem à luz do dia o “fantasma” do catolicismo como religião oficial. Isto foi, sobretudo, acentuado durante todo o longo período do governo Vargas, mas que de certa forma retornou durante o governo Lula. (8)

No Brasil, este tempo histórico da laicidade do Estado presenciou dois fenômenos complementares: A forte carga de preconceitos e perseguições (repressões) às religiões de matriz africana e outras, que, comumente, foram desclassificadas enquanto religião, não aceitáveis pela racionalidade cristã acidental (Monteiro, 2009); O crescente aumento das igrejas evangélicas pentecostais e, na sequência, as neopentecostais, ao longo da segunda metade do século XX, acompanhadas de um forte trabalho de lobby político e de oposição à influência católica.

A contaminação religiosa do Estado laico no Brasil não é muito diferente de outros países, porque, de fato, não se conhecem exemplos concretos de total isenção ou neutralidade do Estado frente às diferentes religiões. (Mariano, 2005). O que devemos ter muito claro é que tudo isto repercute, sobretudo, no sentido da educação católica, passando pelo desafio do “fazer educativo” como serviço público, da necessária participação na cultura do diálogo com as outras religiões e o esforço renovado de cultivo dos espaços próprios de cultivo dos processos de identidade católica ao mesmo tempo em que se deve contribuir para preservar o exercício da função laica do Estado.

3. Diálogos Recentes sobre Práticas de Inclusão Sócio-Educativa.

Historicamente a legislação brasileira facultava às instituições católicas de educação e outras similares, contempladas pela lei da filantropia, o destino para práticas sociais de 20% do volume total da receita correspondente a isenção de tributações oficiais. Muitas instituições praticavam bolsas de estudo destinadas à população economicamente mais vulnerável. A legislação a este respeito sofreu permanentes inovações. A partir de 2012, no entanto, a legislação enrijeceu, obrigando as instituições educativas a realizarem a relação de uma bolsa de estudos para cada cinco alunos pagantes. Afirmou-se claramente o controle do Ministério da Educação com relação a estas práticas.

A novidade, apesar de conter um fator agressivo de limitação da autonomia das instituições, oportunizou que fosse gerado um ambiente fecundo de soluções que fossem suficientemente seguras, tanto para a sustentabilidade econômico-financeira, quanto para a ampliação da efetivação dos valores da educação católica e de outras entidades símiles. Como venho lidando com a discussão das entidades filantrópicas, o novo ambiente criado muito me mobilizou e iniciei a esboçar uma pesquisa de opinião junto a gestores de instituições católicas de educação. A questão da pesquisa: qual a eficácia educacional segundo os valores das instituições católicas de educação, da realização das bolsas exigidas por lei dentro das próprias instituições ou em instituições criadas, à parte, em contextos sociais mais vulneráveis.

É sabido que, com os novos movimentos da legislação, algumas instituições passaram a praticar modalidades diversas de realização das bolsas para poderem atender ao mesmo tempo às exigências legais sem perder o foco nos seus valores institucionais e, também, garantir a viabilidade econômico-financeira.

A partir de uma simples pergunta dirigida a gestores de educação básica em instituições católicas, sobre vantagens e limitações das diferentes modalidades, foram colhidas algumas contribuições importantes, que ajudam a avançar na reflexão:

Existe uma forte convergência na afirmação de que “não é o administrativo que deve fundamentar as opções pedagógicas”, pois “números podem camuflar rostos”. Deve ser “opção pensada como política pedagógica”. Existe, no entanto, a percepção de que na prática, apesar de as instituições alegarem a fidelidade à missão como motivação central, muitas vezes pesam implicitamente outros argumentos, inclusive ligados a não causar prejuízo ao conforto das famílias pagantes, preservando suas presumidas expectativas.

O modelo de praticar bolsas internas à própria instituição que atende público pagante, parece não ser rejeitado sempre que viável, até afirmado que seria o modelo “mais próximo do melhor”. Pois constitui-se, segundo opinião de alguns, em um dos elementos que contribui para que a qualidade da educação também seja equidade na educação. Isto estaria “agregando valor social e intelectual”, pois “aprendemos mais com o outro, estando juntos, do que oportunizando que apenas um contexto se desenvolva isoladamente”. Há quem lembra que devemos evitar estar contribuindo para o “confinamento das periferias” e promover a prática da troca, pois é muito importante para os que vem da periferia “se perceberem enquanto seres inteligentes e iguais a todos os demais”. Ademais, “a convivência do público pagante com o público bolsista gera um mútuo crescimento e mostra concretamente para a comunidade o trabalho social que a escola desenvolve”.

Privar as instituições de público pagante da presença de bolsistas provindos de meios sociais mais vulneráveis, estaria ajudando a reforçar a já “carência e déficit de diversidade” que marca estas escolas em geral. Estas “correm o risco de serem instituições de alunos ‘perfeitos’, ou seja, brancos, (…) de uma mesma classe econômica”, quando os alunos ‘problema’ são “eliminados já no processo de seleção”. A “riqueza do convívio na diversidade” é “um importante elemento para a educação integral”.

A prática de destinar os recursos para instituições externas, e não aplicar dentro da própria instituição, “a longo prazo, favorece a dimensão administrativa, mas pedagogicamente segrega a sociedade afirmando o que o sistema prega”. A reprodução de escolas especiais para a elite e escolas de formadoras de servidores dos que dominam. Trata-se de um alerta muito repetido: “Existem vantagens de grande impacto social, mas também aparecem perigos de segregar”. No entanto também apresentam uma importante convergência de opiniões favoráveis, sobretudo ressaltando o seu impacto social nas comunidades locais. “Possibilitar oportunidades a populações necessitadas”, “dar oportunidade a populações de áreas de carência sócio econômica”, “fortalecer a comunidade local” são expressões associadas à importância de uma “política pedagógica intensa”, (…) “inserida na comunidade com proposta sócio política e educativa parra além dos seus muros, trabalhando as famílias mais de perto.

Alguns mencionam também o argumento financeiro, no sentido da oportunidade de fazer mais com menos, pois os custos para manter bolsista em instituições de maior porte são muito maiores do que os custos em uma escola de menor porte e torna-se possível beneficiar um público muito maior. Neste argumento subjaz também a ideia de que, para garantir a manutenção dos índices de avaliação da instituição, seria necessário um investimento muito grande nos alunos bolsistas, de difícil praticabilidade econômico-financeira.

A convergência que predominam nos gestores ouvidos é de que as duas opções são importantes. Se reconhece que a opção por fazer as bolsas na própria instituição de público pagante é a opção mais complexa. Seria fundamental mantê-la, sempre que viável, não excluindo, no entanto, a opção por efetivar bolsas em instituições nos meios populares mais vulneráveis. “Ambas as proposições de oferta de bolsas de estudo são legítimas e agregam para a construção de um país com mais justiça social, garantindo o acesso a uma educação de qualidade, que forme integralmente o sujeito”.

O ideal seria que a própria instituição de público pagante pudesse ter uma interação com uma comunidade carente na circunvizinhança. O distanciamento geográfico facilmente estará associado ao enfraquecimento dos “laços sociais e agravando o processo de elitização da instituição” de público pagante.

Todas estas questões estão em pauta num rico debate e que demanda aprofundamento. Envolve, sobretudo, a questão das práticas pedagógicas em sala de aula para grupos diversificados socio culturalmente ou não. Trata-se de um desafio tremendo para instituições que tem no centro de sua missão, a fraternidade, ou seja, a inclusão e a equidade.

Notas não Conclusivas

O grande desafio das instituições católicas de educação e todas as demais que estejam alinhadas a propósitos similares, está em encontrar e preparar professores/as que efetivamente tenham condições de dar conta da criação de um ambiente em sala de aula, suficientemente adequado às inovações tecnológicas reinantes e às exigências sempre mais desafiadoras de lidar com a diversidade ou ao menos, de provocar a radical rejeição à cultura elitista e excludente.

No que diz respeito à confessionalidade das instituições é necessário sublinhar o desafio do diálogo inter-religioso é sem dúvida uma pauta importante e cultivada em muitas instituições. Este diálogo é uma grande escola de aprendizagem. Ele só se faz possível se aqueles que dialogam entre si sabem cultivar sinceramente os seus próprios processos de identidade religiosa e cultivarem ao mesmo tempo um grande reconhecimento dos processos de identidade religiosa dos outros. Neste o apelo e desafio apresenta uma face dupla: 1) proporcionar condições efetivas para um real ambiente de educação para as relações inter-religiosas harmônicas e de reconhecimento mútuo; 2) proporcionar condições efetivas para um real ambiente que possibilite o crescimento no processo de identidade católica para todos os que buscam esta orientação.

A confessionalidade também deve ser vista em relação ao Estado laico? Talvez o melhor caminho seja levar efetivamente a sério a própria expressão “educação católica”: Educação é o substantivo e católica é o adjetivo. A educação não é um meio de proselitismo da própria religião, mas sim é um serviço público de preparação de profissionais e cidadãos para a sociedade. A educação é católica não por usar o nome católico como marca impressa na tradição, mas enquanto este serviço público é iluminado por princípios, valores e práticas cristãos professados pela igreja católica.

Por fim, mas não em último lugar, está o grande desafio da compatibilidade entre sustentabilidade econômico financeira e um efetivo trabalho de inclusão socioeducativa. Isto passa pela busca de sólida organização de apoio nacional, que proporcione sinergia nos esforços comuns pela boa gestão e inovações tecnológicas, como também passa pelo aprendizado mútuo a conjunto a partir das melhores práticas em sala de aula tanto em nível tecnológico quanto em nível de avanços pedagógicos no lidar com a diversidade e com os impactos de uma cultura hegemônica perversamente excludente.

Notas:

  1. Tratava-se de uma produção inovadora em termos de catequese. As chamadas FICHAS CATEQUÉTICAS organizadas sob a coordenação do especialista na área Ir. Antonio Cechin (da Congregação dos Irmãos Maristas). O próprio Ir. Antonio em uma de suas últimas entrevistas em vida, se refere a este material: “As fichas catequéticas foram o fato divisor de águas de minha vida que pode ser separada em duas partes inteiramente diferentes uma da outra. Autores que fomos do sonho maior de minha irmã Matilde e meu, concretizado nessas fichas desencadeadoras de uma Catequese Nova e Libertadora, o continente latino-americano se transformou em nosso calvário mais dolorido”. O Ir. Antonio relata a surpresa e o espanto pessoal que teria tido em 1969, ao ver o Coronel Jarbas Passarinho, Ministro da Educação, brandindo na televisão estas fichas catequéticas e vociferando tratar-se de material altamente subversivo destinado à lavagem cerebral dos pré-adolescentes para o comunismo. “… referia-se aos colégios católicos como os principais disseminadores dessas ideias…”. http://www.ihu.unisinos.br/?id=516685 (acesso: 08/07/2018).
  2. Entidade contratada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, para a primeira impressão daquele material.
  3. O esquema de base de presente texto reproduz a mesma lógica de outra publicação recente, com o título “Brazil, Catholic religion and education: challenges and prospects” (Follmann, 2017), na qual tive a oportunidade de sintetizar na primeira parte a contribuição do Streck e Segala (2007), aqui referida. Retomo aqui algumas passagens do artigo de 2017, com a novidade, por um lado, da reflexão sobre os impactos na e da sala de aula e, por outro lado, do acréscimo do recente debate sobre as formas mais apropriadas de práticas de inclusão socioeducativa.
  4. O documento que, hoje, melhor expressa toda a trajetória e avanços vividos em termos de igreja na América Latina nas últimas décadas e sua situação atual é o documento de Aparecida do Norte, Brasil, em 2007. Ver neste sentido Jaci de Fátima Candiotto. A Educação Cristã na atual Cultura a partir do Documento de Aparecida. XI Congresso Nacional de Educação – EDUCERE, 2013, PUC-PR.
  5. Em 30/10/2007, aconteceu incorporação da ABESC – Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas e da ANAMEC – Associação Nacional de Mantenedoras das Escolas Católicas, na AEC – Associação de Educação Católica, que passou a denominar-se Associação Nacional da Educação Católica do Brasil – ANEC, em funcionamento, com este nome, a partir de 2008. Deu-se a partir daquele ano um processo de ajustes desta, superando-se em definitivo a situação desarticulada de três instâncias, como vinha sendo anteriormente. O seu estatuto social data de 25 de setembro de 2012.
  6. http://www.curtanaeducacao.org.br/realizacao/anec/ (Acesso 09/07/2018).
  7. Pesquisa do Instituto Data-Folha de julho de 2018, São Paulo, Brasil mostra 51% católicos e 33% evangélicos. Além da explosão visível do número de evangélicos, outros aspectos devem ser considerados, pois subsistem controvérsias em relação às metodologias de pesquisa, podendo a diversidade ser ainda maior devido à multiplicação de “dupla identidade religiosa”, misturando segmentos de matriz africana e das práticas espíritas com a “fachada” externa católica.
  8. O que sempre mais pesou para estas “recaídas” são os “espaços consideráveis nas áreas da saúde, educação, lazer e cultura” (Mariano, 2001, p. 146) que a igreja católica continuava e continua ocupando. Um evento recentíssimo foi particularmente perturbador na evolução harmônica das relações do Estado laico com a esfera religiosa no Brasil. Trata-se do Acordo entre o Estado Brasileiro e a Santa Sé assinado em 2008. Foi um acordo bilateral solenemente assinado em 13 de novembro de 2008 entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao estatuto jurídico da igreja católica no Brasil, onde os signatários foram o Presidente Luiz Ignácio Lula da Silva e o Papa Bento XVI. Trata-se de um Acordo muito polêmico e gerou grandes perturbações no avanço de uma compreensão harmônica da função do Estado laico. Em resposta a este Acordo foi gestada a Lei Geral das Religiões apresentada em 2009, por um Deputado Federal, Pastor da Igreja Universal do Reino de Deus (Igreja Neopentecostal). O teor principal desta Lei é tornar o conteúdo do Acordo em questão, extensivo às outras denominações religiosas. Segundo a pesquisadora Fischmann (2009) trata-se de uma “tentativa de corrigir um erro incorrigível”.

Referências Bibliográficas

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Beozzo, J. O. (1993). A Igreja no Brasil. In J. O. Beozzo (Ed.), A Igreja Latino-americana às vésperas do Concílio: História do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo, Brazil: Paulinas.

CELAM (1968). Os cristãos e a Universidade (Seminário de Peritos e Encontro Episcopal, Buga, 1967). Perópolis, Brazil: Vozes.

CELAM (2007). Documento de Aparecida: Texto Conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo, Brazil: Paulus.

Fischmann, R. (2009). Acordo contra a Cidadania. Disponível em: ˂http://silncioerudoasatiraemdenisdiderot.blogspot.com.br/2009/06/enviado-por-roseli-fischmann.html˃. Acesso em 03/03/16.

Follmann, J.I. (2017). Brazil, Catholic religion and education: challenges and prospects. International Studies in Catholic Education. Routledge – Taylor &Francis Group, 9:1, 77-88. http://dx.doi.org/10.1080/19422539.2017.1286912

Mafra, M. C. (2002) Na Posse da Palavra: religião, conversão e liberdade pessoal em dois contextos nacionais. Lisboa, Portugal: Imprensa de Ciências Sociais.

Mariano, R. (2005). Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. São Paulo, Brazil: Edições Loyola (2ª ed.).

Streck, D. R.; Segala, A. L. (2007). A theological-pedagogical turning point in Latin America: a new way of being school in Brazil, in G.R.Grace and J.O’Keefe (Eds.), International Handbook of Catholic Education – Challenges for School Systems in the 21st Century. Vol.2, Dordrecht, The Netherlands: Springer, 2007.

O PAPEL DO INTELECTUAL: 22 ANOS DEPOIS…

Publicado em livro do PPG de Educação “Os 25 Anos do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos: Trajetórias e Perspectivas” em 2019

Uma das formas de produção do conhecimento acontece no próprio processo de educação

José Ivo Follmann

Introdução

Em março de 1997 fui convidado para proferir uma “aula inaugural” no Curso de Mestrado em Educação. O Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos estava ensaiando os primeiros passos, em seu terceiro ano. Na época, a palestra “O Papel do Intelectual no Mundo Atual: Uma Reflexão com Educadores”, representou um desafio muito grande. Via-me como um “estranho no ninho”, um sociólogo no meio de especialistas em educação. Encarei o desafio e creio que consegui atender a expectativa. A palestra foi reproduzida em forma de artigo na Série Educação da Revista Estudos Leopoldenses. (1)

Agora, o mesmo Programa de Pós-Graduação me surpreendeu ainda mais com o convite para escrever “O Papel do Intelectual: 22 Anos Depois…”, integrando a presente publicação comemorativa. Sem dúvida, o desafio encarado em 1997, assume, nos dias de hoje, contornos mais estimulantes. Frente a um Programa que se tornou referência em produção de conhecimento dentro do campo da educação, tenho todas as razões para continuar me considerando um “estranho no ninho”, em uma reflexão com educadores dentro deste tema. Com certeza, cresci na percepção e consciência dos meus limites. No entanto, ao reler o texto de 22 anos atrás, fiquei, em um primeiro momento, surpreso por sua curiosa pertinência para os dias de hoje. A saída mais cômoda e fácil seria a sua “reedição”, com algumas adequações e ampliações. Escolhi, porém, talvez por “audácia irresponsável”, um caminho mais difícil, o de fazer um novo texto, reproduzindo, inicialmente, uma síntese de algumas contribuições do escrito e fala de 1997. A “audácia irresponsável” se deve, sobretudo, ao fato de formular um texto que extrapola da competência sociológica, partindo para um paradigma decididamente transdisciplinar, no qual se mesclam percepções sociológicas e depoimento testemunhal, temperados com sonhos, valores e convicções vivenciados no meu dia a dia.

Os caminhos que trilhei de 1997 até hoje, justificam essa decisão mais difícil e mais estimuladora. Escrevo a partir de um lugar de múltiplas referências, como professor e pesquisador em sociologia (2) , como gestor em instituição de educação superior (3), como integrante assessor de atividades de educação das relações étnico-raciais na Universidade (4) , como integrante articulador de grupo inter-religioso de diálogo (5) , como articulador de promoção da justiça socioambiental da congregação religiosa dos jesuítas no Brasil, tendo como referência o paradigma da “ecologia integral” (6), e, obviamente, como religioso sacerdote católico jesuíta. Algumas temáticas me mobilizaram ao longo desses anos: a própria prática transdisciplinar, as relações étnico-raciais, o diálogo inter-religioso, o processo da sociedade brasileira e, sobretudo, a relação da universidade com a sociedade. São temáticas que ajudaram na “composição do lugar” para a elaboração do presente texto.

Dentro do contexto de explícitas manifestações de recuo obscurantista, que presenciamos no momento atual, senti-me impelido a referir a minha reflexão a dois motes fundamentais: o primeiro é o grande avanço que a humanidade teve com a declaração universal dos Direitos Humanos, feita pela Organização das Nações Unidas – ONU, em 1948, como uma espécie de pacto da verdade humana contra o obscurantismo; e o segundo, é o testemunho do Papa Francisco, nos dias de hoje, conclamando-nos profeticamente a não ficarmos mais insensíveis/indiferentes frente ao risco que a humanidade está correndo, de se afundar no obscurantismo e na desumanização.

O texto está estruturado no formato de cinco pequenos subtítulos, na sequência da presente introdução, constituindo o corpo da reflexão proposta: 1) A retomada sintética de contribuições de 1997; 2) O saber cosmopolita e o papel da universidade; 3) A descolonização das mentes; 4) O Brasil, uma intelectualidade de brancos? 5) A linha da dignidade e os intelectuais. A conclusão leva o título de: “Palavras para (não) concluir”…

Os dois motes fundamentais do texto, acima referidos, trazem em seu bojo a minha crença pessoal com relação ao papel dos/das intelectuais – me refiro aos/às intelectuais das universidades -, como portadores/as de condições privilegiadas para despertar e crescer na sensibilidade, cultivando a dignidade do ser humano e combatendo todas as formas de indiferença e insensibilidade em referência às situações de ausência ou obstrução a condições de vida com dignidade. “Condições privilegiadas”, para mim, sempre soou e soa como dever! O texto deve ser lido nesta perspectiva, ou seja: de defender a importância dos/as intelectuais na defesa do pacto com a verdade humana. Lembremos que aquele pacto de 1948 (declaração universal dos Direitos Humanos) não foi um pacto de sangue, mas um pacto que nasceu do escândalo frente ao inominável derramamento de sangue de que a (des) humanidade tinha sido capaz.

1) Retomada sintética de contribuições de 1997

Em 1997, iniciei o texto referindo que ser intelectual é ajudar a recolher e organizar, por um lado, os caminhos andados no passado e, por outro, as sinalizações existentes em vista do futuro, tendo os pés, o coração e a cabeça muito responsavelmente assentados no presente como preocupação principal. Foi o que orientou basicamente o debate realizado na sequência daquela fala/aula inaugural. Sinalizei que isto pode assumir os mais diversos teores. Apontei, de passagem, a classificação sugestiva feita por Horácio Gonzalez, em sua obra O que são intelectuais (1984).

As sinalizações iniciais do texto, ou melhor, daquela fala, foram temperadas com pitadas de crítica ao que chamei de “patologia acadêmica”. Associando-me a Henry A. Giroux (1990) e Antonio Gramsci (1974), evidenciei minha posição de total desacordo com certas práticas acadêmicas que acabam formando gente inadaptada, “pessoas que se consideram superiores ao restante da humanidade” pelo simples fato de serem vistos/as e se fazerem ver como “intelectuais”. Ressaltei a importância da organicidade social da produção intelectual. Ser intelectual significa ser criador/a e organizador/a da cultura. Mesmo que, a rigor, todo ser humano contribui para tal, o foco naquele texto estava nos/as intelectuais do mundo acadêmico, os/as quais têm uma vocação especial de serviço à cultura e sociedade. Este foco continua sendo, também, a preocupação central do presente texto.

Complementei aquela fala de entrada com a narrativa de uma “conversa de chimarrão” com um morador da vila popular onde eu residia, na época. O meu interlocutor dissera que, no meio onde ele morava, em vez de cultura, o que mais existia era “curtura”… “De cultura não tem nada”. Ele se referia à facilidade com que as pessoas se esquivavam de dar opinião quando perguntadas sobre determinados trabalhos na comunidade, dizendo não estarem preparadas, mas “quando outros tomam a iniciativa e fazem algo, eles tascam o pau em cima”.

Comentei, no meu texto, o quanto aqueles comentários do meu interlocutor popular haviam despertado em mim maus pensamentos a respeito da “curtura” das pessoas cultas. Eu pensava, é claro, nos/as intelectuais da academia, que muitas vezes são “enciclopédias ambulantes” em sua área, mas dificilmente assumem o risco de dar uma opinião quando estão envolvidos diferentes interesses políticos ou sociais. É sempre mais cômodo, permanecer num nível não imputável e de superioridade preservada.

Naquele meu comentário não cheguei a explicitar isto. Apenas enunciei genericamente esses “terríveis maus pensamentos”. Preferi fazer uma breve menção à ideia explicitada por Karl Mannheim (1976), da “freischwende Intelligenz” (inteligência sem vínculos ou amarras). Ressaltava que ser intelectual, nesse sentido, implicava no “cultivo de espírito livre, não diretamente vinculado a organizações e interesses ideológicos, políticos e econômicos muito determinados”. Essa postura é importante, mas estou tendendo sempre mais a pensar que é uma postura inócua ou, talvez, melhor, inoportuna. Pois, no afã de se preservar, o intelectual acaba sendo uma presa fácil dos interesses dominantes.

O corpo principal do texto de 1997 reproduziu aspectos de minha tese doutoral de sociologia, na qual eu havia introduzido um esquema teórico a partir de uma tríplice perspectiva com Alain Touraine (1984), Pierre Bourdieu (1971), Guy Bajoit (1992) e outros, trabalhando simultaneamente a “lógica dos movimentos sociais”, a “lógica dos campos de atividade” e a “lógica do sujeito e da dinâmica pessoal”.

Trata-se, obviamente, de uma simplificação, pois a complexidade não é fácil de enquadrar. Sempre percebi, no entanto, um grande poder heurístico nesse modo simplificado de tratar a questão, pois ao tratar do nível da “lógica do sujeito e da dinâmica pessoal” no cotidiano, fica evidenciado que as lógicas do conflito central na autoprodução societária e as lógicas dos campos de atividades, dão corpo e substância à grande parte deste cotidiano que é movido por sujeitos com suas luzes e sombras pessoais, suas liberdades e seus preconceitos, suas intuições e seus dogmas. O mesmo exercício podemos fazer com os outros dois “níveis” ou “recortes”. Prestar atenção particular à tríplice perspectiva, procurando entender às três lógicas próprias, nos fornece uma chave sociológica muito consistente.

Na sequência, tomando como referência Edgar Morin (2002), destaquei que o ser intelectual tem muito a ver com movimentar-se com liberdade no meio da complexidade do mundo atual; ajudar a humanidade a dar conta da complexidade; ajudar a humanidade a organizar-se, de tal forma que as pessoas não acabem esfaceladas e estraçalhadas.

Nos últimos parágrafos do corpo principal do texto de 1997, referi dois breves lembretes conclusivos. Num primeiro, inspirado em Agnes Heller (1970), sublinhei que o fazer-se em interação na complexidade do cotidiano ajuda o desabrochar do ser intelectual, dando-lhe mil oportunidades diárias para colocar entre parênteses os próprios dogmas e preconceitos. O ser intelectual se faz na medida em que houver esta coragem.

Num segundo lembrete, inspirado em Max Weber (1959), referi a importância de distinguir entre as responsabilidades funcionais dos intelectuais e as suas convicções e valores pessoais. Isto envolve duas “direções éticas” – a da responsabilidade e a da convicção -, irredutíveis, mas que devem ser, sábia e organicamente, integradas. Segundo o meu orientador da tese doutoral Jean Remy (1984), – de saudosa memória, grande admirador e seguidor de Max Weber -, o indivíduo, na concepção sociológica weberiana, é um indivíduo puxado ou assediado tanto pela intensa racionalidade expressa na ética da responsabilidade, quanto por uma certa dose de responsabilidade expressa na ética da convicção. Em uma sessão de orientação, na época, o Prof. Jean Remy me marcou profundamente, com as seguintes palavras: “Nenhuma religião subsistiria se os que estão à sua frente reduzissem todas as suas decisões a apoios fornecidos pelo conhecimento técnico-científico. Como também nenhum empreendimento técnico-administrativo ou de estratégia política subsistiria se os que estão à sua frente se deixassem arrastar pelas crenças e convicções religiosas suas ou dos outros”.

O texto de 1997 ainda sinalizou diversos fenômenos como características da cultura de nossa sociedade, considerados reveladores dos desafios propostos para os/as intelectuais de nossa história e foi concluído com uma rica e fecunda troca de ideias com os/as professores/as e mestrandos/as presentes.

2) O saber cosmopolita e o papel da universidade

Muitas vozes já se levantaram ao longo da história de academia brasileira denunciando os limites inerentes às categorias e métodos cultivados nessa academia. Trata-se de uma academia euro-referente em sua constituição inicial, evoluindo posteriormente para uma referência norte-americana. Suas categorias e métodos são demasiado redutores e limitados para darem conta da complexidade revelada na sociedade brasileira. E, com um agravante: esta complexidade sofria e sofre de um viés colonialista e racista, jogando a academia na vala fácil da reprodução deste viés. A expressão mais patente disso era e é que, por exemplo, negros/as, mesmo quando bem formados/as na academia, continuavam e continuam sendo vistos/as e tratados/as como problema e objeto de pesquisa, e não como protagonistas, sujeitos de produção do conhecimento. (7)

Existe um vigoroso despertar em relação aos limites do mundo acadêmico acompanhados de forte crise epistemológica. Talvez quem melhor conseguiu pautar esta questão tenha sido o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2002; 2007), internacionalmente conhecido e aceito. Trata-se de alguém que nos ajuda a refletir sobre a incapacidade que herdamos para gerar um presente e um futuro condizentes com o que a humanidade espera. Nossas categorias e nossos métodos são insuficientes para dar conta da complexidade da experiência humana. Já não se tem segurança para dar respostas categóricas. (8)

Mais do que uma época de mudanças, estamos vivendo uma mudança de época. Esta assertiva tornou-se um verdadeiro “mantra” repetido ao longo das últimas décadas, a partir das reflexões de Ilya Prigogine (2002) a respeito da ciência cujos paradigmas clássicos atingiram os seus limites exigindo nova visão de ciência e de realidade. Outros pensadores e outras pensadoras fizeram coro a essas constatações. Se estivesse amparando a minha reflexão na filosofia, teria que colocar, sem dúvida, em primeiro plano o filósofo brasileiro P. Henrique de Lima Vaz. No entanto, como a referência de base é a sociologia, devo destacar o português Sousa Santos, aqui referido, que muito transita no Brasil. No pensamento dele fica clara a atenção à mudança de época em termos de epistemologia. Este sociólogo é certeiro ao propor que estamos passando da razão indolente característica do paradigma da ciência moderna, para a razão cosmopolita característica do paradigma emergente.

Ou seja, aquilo que se supunha que estaria sempre mais sob nosso controle e comando, parece tornar-se de mais a mais, um “mundo em descontrole”. A repetição cômoda (indolente) da lógica disciplinar não dá conta da explosão da novidade emergente. Existe uma “linha abissal” entre a reprodução acadêmica cômoda e redutora e a necessária interlocução entre os diversos saberes. O autor nos propõe uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências e fala da importância do trabalho de tradução.

De uma forma, talvez caricatural, ouso ensaiar que Sousa Santos, quando fala das ausências, se refere a todos aqueles “mundos” que foram tornados invisíveis pelo processo civilizatório colonialista. Quando fala das emergências, se refere às múltiplas resistências, iniciativas e criações que foram ignoradas no passado ou não mereceram o registro que lhes era devido ou que despontam e se afirmam nas sociedades em ebulição que vivemos. Quando fala em tradução, se refere ao esforço de romper com a estreiteza epistemológica, lançando pontes de diálogo fecundo entre os saberes “disciplinados” e “não disciplinados”.

Este autor consagrou a concepção de “ecologia dos saberes” (9), apontando para o significado profundo daquilo que outros denominam de “transdisciplinaridade” (10) ou “teoria da complexidade” (11) . A sua reflexão conduz a uma crítica radical ao modo de ser da academia, em geral, quando se fecha sobre si, não deixando fluir por dentro dela a vida da sociedade em sua complexidade, ou seja, quando deixa de ter sintonia e compromisso com os problemas, os movimentos e as expectativas da sociedade. Ele também sinalizou uma postura crítica certeira contra as práticas de extensão da universidade, quando estas não repercutem na própria vida e modo de produzir conhecimento da mesma. Ficou consagrada uma frase dele, em epígrafe na apresentação do texto do Plano Nacional de Extensão:
Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino. (12)

Mudando de registro, mas sem sair do foco, quero fazer três menções, que considero oportunas e relevantes, para encerrar o presente item: Em primeiro lugar, a contribuição de Jabier Gorostiaga sj, um economista jesuíta, que conheci quando ele atuava como secretário executivo no Planejamento Estratégico da Associação das Universidades Jesuítas de América Latina – AUSJAL. Ele liderou, nos inícios dos anos 2.000, o processo de planejamento em pauta, no contexto do qual foram formuladas três perguntas-chave: – Que tipo de sociedades queremos? – Que sujeitos precisamos para que essa sociedade aconteça? – Como devem ser nossas universidades, em vista disso? (13) Estas perguntas ficaram registradas profundamente no meu horizonte. Cultivei um grande apreço por Gorostiaga e a maneira concreta como ele e os demais envolvidos no Planejamento da AUSJAL se empenharam em aplicar para a América Latina as orientações para a educação da Companhia de Jesus. Trata-se de uma educação cujo fim não está nela mesma, mas no serviço à sociedade, na construção de uma sociedade inclusiva e justa onde o centro de tudo está no ser humano e sua dignidade. Isto exige que o nosso foco como intelectuais envolvidos/as em universidade, nesse contexto, seja o ser humano e sua dignidade.

Em segundo lugar, de forma complementar, jogando-nos de cara na realidade brasileira, as importantes provocações dos textos e falas do sociólogo Jessé Souza (2015; 2017; 2018a,b), talvez o sociólogo mais em evidência nos últimos anos no Brasil, quando ele faz uma crítica consistente à universidade brasileira, atrelada em grande parte, de forma geral não consciente, à reprodução do modelo de educação e de produção do conhecimento, alinhado ao serviço de uma perspectiva de desenvolvimento que constrói um Brasil insensível, de 20% da população de “gente bem”, sem gerar mecanismos efetivos de inclusão dos demais 80% submetidos/as às mais diversas formas de privação e de exclusão. Segundo o autor:
Pelo menos 90% do que se passa por científico nas ciências sociais e costuma ser ensinado nas universidades não passa de mera confirmação de um conjunto de preconceitos que visa eternizar a dominação social de uns poucos sobre muitos. (SOUZA, 2018b, p.11)

O mesmo autor, em termos que caracterizo como “denúncia profética”, nos fornece um comentário complementar, afirmando ainda que:

O essencial é constatar o papel do conhecimento como um capital tão importante para o funcionamento do capitalismo quanto o próprio capital econômico. O próprio dinamismo econômico do capitalismo advém de seu aproveitamento sistemático da ciência e do conhecimento nos meios de produção”. (SOUZA, 2018b, p.69-70)

Em terceiro lugar, ao falar em “gente bem” e falando da intelectualidade das universidades, cabe uma nota e uma interrogação a respeito da meritocracia hipócrita, da qual o mesmo autor fala repetidamente em suas obras. Existe, na sociedade brasileira, uma cultura de classificação e hierarquização intelectual por méritos curriculares, baseada em indicadores, imputados como universais. Estes mecanismos, embora possam ser, sem dúvida, impulsionadores de “produção acadêmica”, apresentam aspectos questionáveis. Uma revisão nessa prática se faz urgente, caso o país queira livrar-se dos seus próprios vícios estruturais geradores de desigualdade e exclusão porque a chamada meritocracia está aí para premiar os já premiados e, sobretudo, legitimar a distinção dos premiados. Assim, vantagens e privilégios herdados de berço, em geral sem esforço, acabam sendo revestidos e mascarados como “méritos”. Quem não herda as vantagens e privilégios de berço tem a sua trajetória intelectual prejudicada de raiz.

Que sociedade queremos? Uma sociedade que exclui a maioria de sua população das condições de vida digna, ou uma sociedade onde todos/as tenham chances e condições de vida digna? Uma sociedade onde os indivíduos possam exercer os seus dons naturais, independente das condições de herança? Quais os apelos que devemos dirigir aos/às intelectuais que consubstanciam a vida das universidades brasileiras? Que critérios além dos existentes, devem ser considerados na classificação e hierarquização da intelectualidade na sociedade?

3) A descolonização das mentes (14)

O Papa Francisco, em um de seus gestos, alguns meses depois de assumir como bispo de Roma e líder máximo da Igreja Católica, visitou, em 08 de julho de 2013, a ilha siciliana de Lampedusa, local que testemunhava a tragédia cotidiana de grupos de africanos, buscando desesperadamente entrar em território europeu. “Vivemos em uma globalização da indiferença”, clamou o Papa. Com palavras duras contra a insensibilidade humana que impera, o Papa orou, dizendo: “Peçamos ao Senhor que nos dê a graça de chorar por nossa indiferença, pela crueldade que existe no mundo, dentro de nós e naqueles que, no anonimato, tomam decisões socioeconômicas, a nível mundial, que levam a dramas como este”. (15)

A palavra chave no combate à insensibilidade e indiferença é o reconhecimento. A insensibilidade e a indiferença com relação ao outro e à outra só são superadas com atitude decidida de reconhecimento deste/a outro/a em sua dignidade. Inspirados no Papa Francisco, talvez devamos dizer que a epidemia mais forte, vivida pela humanidade, hoje, é a insensibilidade/indiferença frente às condições indignas vividas por segmentos sempre mais amplos da população mundial. A falta do reconhecimento concreto dos sujeitos desses segmentos clama por nossa responsabilidade. Clama pela responsabilidade das universidades e dos/as intelectuais que as consubstanciam. É algo que não pode ficar fora dos indicadores de avaliação de um/a intelectual em nossos dias.

Trata-se de um apelo desafiador para os/as intelectuais das universidades brasileiras uma vez que é conhecido que o Brasil vem gerando uma das desigualdades sociais mais iníquas e escandalosas. Devemos perguntar-nos: Como lidar com este apelo, quando sabemos que somos vítimas de mecanismos e vícios, que, de forma perversa, facilitam o trânsito da insensibilidade e da indiferença irresponsáveis? Talvez entre esses mecanismos e vícios o mais tremendo e fatal seja a estreiteza hipócrita da já referida meritocracia, na forma como é praticada em nossa sociedade, às vezes não conseguindo disfarçar o próprio racismo que ainda impera nesta sociedade. Ou, talvez, sejamos presas fáceis das soluções hipócritas e interesseiras tanto de “direita” como de “esquerda”?

A mentalidade colonial permanece muito acesa em grande parte dos âmbitos de nossa sociedade, que leva a marca de uma elite branca que se cega em seus privilégios e “méritos”. Continuamos tendo sinais vivos do racismo colonial hipócrita e mal disfarçado no Brasil, sempre que prestamos atenção aos grupos marginalizados de negros, indígenas e outros, que seguem sendo empurrados para as classes inferiores da sociedade, assim como o foram ao longo de todo processo histórico. Este processo foi e continua sendo um processo de branqueamento. Descolonizar as mentes embranquecidas da sociedade brasileira, é, sem dúvida, um dos primeiros desafios do/a intelectual nas universidades de nossa sociedade.

Um dos motes mais vigorosos nas reflexões de Petronilha Beatriz Gonçalves da Silva sobre a Educação das Relações Étnico-raciais – ERER é a importância e urgência da “descolonização das mentes”. (16) Podemos dizer, talvez, sem receio, que na medida em que o Brasil souber levar a sério o processo de educação das relações étnico-raciais tal como está prevista na Lei de Diretrizes e Bases – LDB (1996), através de instituição da lei complementar 10.639/2003 e 11.645/2008, a sociedade brasileira não será mais a mesma. Os/as intelectuais estarão libertos/as dos constrangimentos mesquinhos no convívio com falseamentos e embustes, no que diz respeito aos preconceitos e discriminações étnico-raciais e outros, ainda profundamente presentes na mente e no coração da maioria.

4) Brasil, uma intelectualidade de brancos?

Segundo Jessé Souza, vivemos em uma sociedade que conseguiu trazer até nossos dias com muito sucesso e praticamente intacta a marca ideológica da estrutura escravocrata, gestada ao longo dos quase quatro séculos. É a estrutura mental de uma sociedade dividida entre “senhores” e “escravos”, entre cidadãos/ãs e não cidadãos/ãs, entre os que “naturalmente” merecem ser incluídos/as e os que “naturalmente” são excluídos/as. Esta estrutura mental transita tranquila, acobertada e dissimulada pela ideologia perversa de um povo alegre e pacífico e pelo mito da “democracia racial”. Nem mesmo a violência que desponta por todos os lados, parece alertar suficientemente para o desafiante embuste ideológico que caracteriza a sociedade de classes, que é o Brasil, e que marca todo processo vivido por nossa sociedade. As classes dominantes no Brasil efetivamente tiveram sucesso na sua elaboração ideológica. Isto se deu, sobretudo, porque a intelectualidade brasileira pendeu para o reforço dessa ideologia de reprodução colonial. (17)

Este autor faz críticas severas ao papel das universidades e dos/as intelectuais, dentro delas, por não terem contribuído suficientemente para romper esse esquema. Pelo contrário, como já foi referido anteriormente, serviram de reforço e reprodução do mesmo. Ele dirige as suas críticas a diversos autores de renome na história da sociologia brasileira (18) , cujas contribuições, às vezes geniais, acabaram reforçando mais a reprodução da estrutura de dominação do que a instauração de processos de transformação e superação da herança colonial.

As críticas de Jessé Souza são consistentes, sobretudo, quando demonstram a perversidade de ideias veiculadas na academia, na mídia falada e escrita, na política e na sociedade em geral, reproduzindo ou usando de forma simplificada e caricatural concepções elaboradas, dentro do meio acadêmico. As críticas incidem, sobretudo, no descuido intelectual com relação à estrutura de desigualdade social, gerada pela ganância desmedida da elite econômica brasileira, mas também incidem na forma, ingênua ou não, de acobertar ou dissimular esta mesma estrutura.

Somos uma sociedade cuja história veio sendo sistematicamente falseada e reproduzida, onde a mentalidade em geral tende a permanecer desgraçadamente obtusa e colonizada. Somos uma sociedade na qual a questão racial habita no cerne da questão social. No entanto, é necessário estarmos atentos: em geral, quando se fala da marca racial dentro das relações de classe a atenção se volta para a população negra, como objetos de análise. A professora Adevanir Aparecida Pinheiro (2018), mesmo reconhecendo o importante mérito de Jessé Souza, pela forma genial de pensar o Brasil, destacando os quatro séculos de estruturação da sociedade brasileira sob a marca da escravidão, ensaia uma crítica ao autor, retomando o argumento de que:
O problema é que quando se fala dessa marca racial, normal-mente toda carga de reflexão é colocada para o lado dos negros e pouco se fala dos brancos. Às vezes parece que na cabeça dos intelectuais, o problema racial existe porque existem os negros, quando é exatamente o contrário. É fundamental que a nossa atenção de estudo se volte para os brancos. (PINHEIRO, 2018, p. 170)

Mesmo que Jessé Souza não dê vazão para este tipo de postura, pois inclusive distingue entre “racismo racial”, “racismo de classe” e “racismo cultural”, ele se exime da oportunidade de denunciar com veemência o risco do “esquecimento”, mais uma vez, do racismo de brancos/as contra negros/as na sociedade que persiste forte, inclusive no meio acadêmico. Ele perde a oportunidade de colocar em evidência a mente colonizada do/a branco/a. É necessário que as mentes sejam descolonizadas. É necessário ampliar o estudo da “branquidade”. É necessário que as cabeças dos/as intelectuais sejam descolonizadas.

Os três eixos temáticos centrais de Jessé Souza (2017) em sua sociologia da sociedade brasileira, são: a marca da escravidão na sociedade; a força da perspectiva economicista na percepção das classes; e o racismo cultural na atualidade. Pinheiro (2018), atenta a esses três eixos do autor, registrou ter ficado intrigada com o fato de não ter tido respostas suficientes à questão do “branco na sociedade”:

A história da sociedade brasileira foi marcada profundamente em sua identidade por todo um conjunto de políticas de branqueamento que foram se sucedendo até nossos dias. O Brasil acabou se concebendo como uma sociedade branca. Ou, então, mestiça, com uma radical referência branca europeia. Como se explica isto, quando estatisticamente a maioria dos brasileiros tem em suas veias correndo o sangue africano? O que fez com que a branquidade tomasse conta da alma brasileira? Por que a intelectualidade brasileira não se insurge contra isto? Até parece que a própria academia tem pacto firmado com as elites brancas. Jessé Souza nos conduz muito bem para este horizonte de interrogações, mas acaba ficando a meio caminho neste ponto. (PINHEIRO, 2018, p. 177)

Segundo a autora, que faz uma distinção muito didática entre “branquidade” e “branquitude”,(19) é urgente que as mentes brancas sejam libertadas de sua branquidade. Talvez o sociólogo pudesse completar a sua obra avançando para um quarto eixo de atenção, além dos três eixos que são os direcionadores da mesma. Este quarto eixo poderia ser algo como: o branco brasileiro e a branca brasileira, quem são como se comportam? (PINHEIRO, 2018, p.178). No mesmo sentido este quarto eixo ajudaria também a aprofundar como este ser e este comportamento do branco brasileiro e da branca brasileira repercutem na mente e no coração dos negros e das negras e dos povos indígenas em nossa sociedade? (20)

Como descolonizar as mentes embranquecidas? Para abreviar, como já fiz em outros textos, vou trazer um registro para a reflexão que pode parecer estranho, mas tem vigor estratégico: Em um documento elaborado por uma equipe internacional e intercultural de jesuítas, sob a coordenação do Secretariado de Justiça Social da Companhia de Jesus, que circulou, a partir de fevereiro de 2006, no meio dos jesuítas em vista da preparação da 35ª Congregação Geral (Parlamento Superior dos Jesuítas), encontravam-se, entre outras, as seguintes recomendações: – “é recomendável que cada jesuíta se empenhe em defender ao menos uma cultura, que não seja a sua” (…); – “é recomendável que cada jesuíta se empenhe em estudar a fundo uma religião que não seja a sua” .(21)

Isto não está formulado assim em nenhum texto oficial. Trata-se, no entanto, de recomendações inspiradoras e que fazem parte do espírito da Companhia de Jesus. É uma ótima fórmula, por exemplo, para um/a branco/a romper as algemas de seu embotamento racial, colocando-se na efetiva defesa da população negra (ou indígena), tomando atitude e fazendo de sua prática cotidiana uma ‘prática afirmativa’ destes/as outros/as tão espezinhados/as em nossa história; ou, então, para um/a católico/a tomar conhecimento da profundidade das concepções teológicas das religiões de matriz africana ou outras, para conhecê-las, antes de julgar a partir de informações preconceituosas e carregadas de medo. Para se perder os preconceitos e o medo é necessário conhecer. Ninguém pode reconhecer a outrem quando nem sequer conhece. O conhecimento do outro e da outra, não como objeto de nosso estudo, mas como sujeito que se dá a conhecer, é um caminho infalível para descolonizar as nossas mentes e nossos corações. (22)

5) A “linha da dignidade” e os/as intelectuais.

Este subtítulo é uma provocação para o/a intelectual na educação. Mas é, especialmente, uma provocação dirigida àqueles/as que lidam com a chamada “pedagogia inaciana” ou “pedagogia inspirada na espiritualidade inaciana” e àqueles/as que lidam com “educação popular”, quando se quer pensar e propor um processo educacional condizente com as classes populares em nossa sociedade.

Inspirado em Charles Taylor (1979) e suas reflexões sobre a dignidade, Jessé Souza concebe a “linha da dignidade” na sociedade brasileira, como uma divisão, mais ou menos definida na sociedade, entre aqueles/as que são a “gente bem”, os cidadãos e cidadãs que usufruem com maior ou menor facilidade as condições de uma vida digna em sociedade, e aqueles/as que se encontram privados/as dessas condições e sobrevivem em condições não dignas do ser humano: a “ralé” brasileira como o autor afirma, sem dar a esta expressão conotação pejorativa ou ofensiva. O que está em questão é o ser humano em sua dignidade.

Constatei, ao longo de meu aprendizado, que existem importantes e oportunas aproximações que podem ser feitas entre a pedagogia inerente à espiritualidade inaciana e a proposta do educador brasileiro Paulo Freire (2000), pai da educação popular no Brasil.

As duas propostas centram a sua preocupação na existência do ser humano no mundo e sua vocação de se tornar mais humano. Ambas propõem uma ação educativa libertadora, buscando possibilitar a humanização do ser humano e do mundo. A humanização é a grande tarefa apontada nas duas propostas. Ou seja, tanto a espiritualidade inaciana, quanto a educação popular freireana trazem, inerentes à sua proposta, a dignidade da pessoa humana. Ambas propostas denunciam a perversidade da “linha da dignidade”, acima referida, as suas causas perversas e apontam caminhos de superação da mesma.

Existem evidentes restrições a serem feitas nesta comparação uma vez que os dois nomes em pauta viveram com concepções teóricas e visões de mundo muito diferentes, distantes, no tempo, mais de quatro séculos e em contextos culturais muito diversos. O fundador dos jesuítas viveu no século XVI e, obviamente, não tinha condições de ter a mesma análise da sociedade (análise de classes) que Paulo Freire teve, no século XX. O próprio conceito de educação popular, tal como o conhecemos, está obviamente vinculado à educação dos sujeitos das “classes populares”.

O que nos interessa, na comparação feita, é a concepção de pessoa do/a educando/a e o modo como o/a educador/a se relaciona com esta pessoa. A espiritualidade inaciana nos fornece chaves importantes no cultivo permanente da coerência evangélica, apontando para a importância radical da vigilância para não entrarmos em contradição entre o nosso modo de ser e o nosso modo de fazer. No paradigma pedagógico freireano, o nosso ser e o nosso fazer devem estar harmonicamente integrados, como ponto fundamental de uma metodologia imbuída de solidariedade concreta com os pobres.

Ou seja, tanto para inacianos/as como para freireanos/as, não cabe um trabalho sobre pobres ou para pobres; é necessário que isto passe pela nossa radical solidariedade com os sujeitos pobres. Para ambos é importante a vigilância com relação a isto. A busca do magis inaciano ou do ser mais freireano é um princípio de permanente de desacomodação, sem comprometer a coerência evangélica e a integração harmônica entre o ser e o fazer.

Tanto na pedagogia inspirada na espiritualidade inaciana, quanto na pedagogia de perspectiva freireana, destaca-se a centralidade da pessoa humana no processo educativo e de todo processo de planejamento da ação. Ou seja, a centralidade da dignidade humana é o mote supremo do trabalho intelectual na educação.

Eu trouxe este breve encarte, estabelecendo um paralelo entre a pedagogia inspirada no paradigma inaciano e a pedagogia inspirada no paradigma freireano, para lançar uma questão mais ampla: “o que esperar dos/as intelectuais nas universidades no confronto com a linha da dignidade”? Sugiro que, assim como Santo Inácio e Paulo Freire – em situações e soluções totalmente distintas -, tiveram como mote supremo a dignidade humana, assim também o mote supremo do trabalho intelectual deveria ser a superação da linha da dignidade.

Nos tempos de risco obscurantista em que vivemos, mais do que nunca precisamos estar alertas para a superação da chamada linha da dignidade. Concluo com o nosso ponto de partida, na reafirmação das conquistas que a humanidade veio realizando, sobretudo, depois dos escândalos das guerras mundiais e da crença pessoal de que os/as intelectuais têm as melhores condições para estar livres dos embrutecimentos e despertar para a sensibilidade humana e o rompimento com a insensibilidade/indiferença frente às condições não dignas de seres humanos.

Palavras para (não) concluir. (23)

Um dia, em uma palestra para estudantes e professores/as de Direito, fiz referência à passagem da Sagrada Escritura, que trata da breve narrativa intitulada “o jovem rico”. A frase que eu queria relembrar era: “Como é difícil um rico entrar no Reino dos Céus”! Trata-se de uma narrativa conhecida. O que está registrado é que os discípulos reagiram escandalizados, frente ao Mestre, dizendo: “Mas, então, Mestre, quem poderá se salvar”? Ou seja: Como assim? Até agora sempre nos foi ensinado o contrário. Foi-nos ensinado que os ricos são abençoados… Jesus conclui: “Para os homens isto parece impossível, mas para Deus tudo é possível”. Eu concluía minha reflexão, depois da leitura do texto, dizendo: Ser rico, no sentido bíblico, significa ser insensível e indiferente frente à sorte dos outros. Deus não é insensível/indiferente para com os seres humanos. Para nós, também, tudo será possível na medida em que não formos insensíveis/indiferentes para com os outros.

No paradigma pedagógico inaciano, do qual alguns aspectos foram lembrados anteriormente, são conhecidos cinco passos (ou momentos) fundamentais: – o estar atento ao contexto; – o reviver as experiências; – o aprofundamento na reflexão; – a ação coerente com os passos precedentes; – a avaliação de todo o procedimento.

Dentro do tema aqui em pauta, chamo a atenção para os três primeiros passos ou momentos, ou seja: Em primeiro lugar, a tradição inaciana nos ensina que devemos ter sempre uma grande atenção ao contexto. Em segundo lugar, não se trata de um contexto simplesmente externo ou visto – friamente -, de fora, mas de um contexto com vida. Contexto no qual a vida é experimentada concretamente, com suas alegrias, sofrimentos, esperanças e angústias. Precisamos estar atentos aos sentimentos envolvidos e à capacidade de “com-paixão”. Em terceiro lugar, o ato de reviver pessoalmente – saborear internamente – as experiências, nos dá as bases necessárias para que a nossa reflexão – a aplicação dos nossos conhecimentos teóricos – seja realmente um momento que leve em conta radicalmente o ser humano envolvido, dando-nos maiores garantias de acertarmos na ação. Uma reflexão, por mais competente que seja em termos de conhecimento da legislação e de sua formalidade processual, pode levar a tremendos limites, se não estiver ancorada neste mergulho experiencial no contexto.

O meu pensamento retornou à reflexão bíblica apontada inicialmente, inquirindo: O que é ser rico? O texto sagrado aponta claramente em outra passagem – O Rico Epulão – associando o “ser rico” à insensibilidade e às indiferenças frente ao sofrimento e à desgraça alheia. Para não corrermos o risco da insensibilidade/indiferença para com os seres humanos, como intelectuais, é necessário que a formação nos proporcione condições de enxergar para além dos estreitos limites disciplinares. A ecologia dos saberes, a prática transdisciplinar e o pensamento complexo são uma chave importante para tal. Isto, no entanto, só será completo se, por dentro de tudo, fluir o reconhecimento do outro como sujeito com dignidade e a postura ética de valorização do ser humano enquanto tal.

A rigor, quem for atento à pessoa humana, à dignidade da pessoa humana, quem for radicalmente voltado ao valor da vida humana, sempre irá para além das compreensões disciplinares, dos posicionamentos teóricos, dos posicionamentos ideológicos de “direita” ou de “esquerda” e dos rumores do cotidiano. O/a intelectual não se reduzirá a ser mais ou menos transgressor/a disciplinar, a ser mais ou menos habilidoso/a em transitar entre as diferentes disciplinas e posicionamentos teóricos, a ser mais ou menos malabarista do cotidiano. Sairá, também, da vala comum da meritocracia hipócrita. A sua verdade (a ser buscada) é a dignidade humana, na superação de todos os obscurantismos e negações desta dignidade.

A sua prática sempre levará a transcender as suas aptidões e malabarismos, para buscar uma ancoragem firme em valores éticos de respeito à dignidade humana e o sincero empenho em construir sociedade onde todos e todas possam viver com dignidade. Tenho a certeza de que no entender da maioria que lê o presente texto, é nisto que reside o ser intelectual de verdade, porque é ser humano de verdade, que honra o pacto com a verdade humana.

Notas:

  1. Revista Estudos Leopoldenses, Série Educação, V. 1, N. 1, 1997, p.9-26
  2. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Linha de Pesquisa: Identidades e Sociabilidades, UNISINOS. (A partir de 1999).
  3. Diretor do Centro de Ciências Humanas (1998-2003), Diretor de Ação Social da Universidade (2004-2007), Vice-Reitor da Universidade (2007-2017).
  4. Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas – NEABI (Coordenado pela Profa. Dra Adevanir Aparecida Pinheiro). (A partir de 2008)
  5. Grupo Inter-religioso de Diálogo – GIRD (hoje integrando o NEABI). (A partir de 2002)
  6. Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA, da Província dos Jesuítas do Brasil. (A partir de2016)
  7. Um exemplo bastante evidente foi o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, um renomado sociólogo a partir da década de 1950, com muitas obras publicadas, mas que sofreu um certo processo que “misteriosamente” o tornou bastante invisível, com dificuldade de acesso ao “convívio dos eleitos” na academia branca, talvez vítima da “patologia social do branco” sobre a qual ele tem importantes reflexões.
  8. Talvez tenhamos que acrescentar, com Jessé Souza (2015, 2017, 2018a, 2018b), que nossas categorias e métodos não ajudam suficientemente para nos livrar da marca do longo período de escravidão que pesa na mente e estrutura de nossa sociedade.
  9. Como que sugerindo que os intelectuais são os organizadores de todos os saberes (não só os disciplinados) da mesma casa comum…
  10. Para Basarab Nicolescu, “a transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica (…) diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina”. (NICOLESCU, 2000, p.15)
  11. Edgar Morin é a referência na teoria da complexidade. Um destaque didático pode ser dado à obra ‘os setes saberes necessários à educação do futuro’ (MORIN, 2002).
  12. Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e SESu / MEC. Plano Nacional de Extensão. (Edição Atualizada, 2000/2001).
  13. AUSJAL. Plan Estratégico de la Asociación de las Universidades Jesuítas de América Latina – AUSJAL 2000-2005. Caracas, Venezuela, 2000.
  14. Este ítem, nos primeiros três parágrafos, transcreve partes adaptadas de FOLLMANN (2014).
  15. Homilia do Papa Francisco na visita a Lampedusa: http://papa.cancaonova.com/homilia-do-papa-na-missa-em-lampedusa-08072013/ .
  16. Conferência proferida no Encontro de Formação Docente na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, em 2013. A Prof. Dra. Petronilha B. Gonçalves da Silva é uma das principais referências na elaboração e condução da política da Educação das Relações Étnico-raciais no Brasil – ERER.
  17. Este parágrafo é transcrição literal adaptada de excerto de capítulo do próprio autor publicado em Follmann (2018).
  18. Os principais alvos de crítica do autor são: Gilberto Freyre (1987), Sérgio Buarque de Holanda (1993), Roberto Da Matta (1986), Raymundo Faoro (2012) e outros.
  19. …a distinção entre “branquidade” e “branquitude”, ou seja, para uma percepção mais próxima da realidade vivida pelos/as brancos/as na sociedade, temos, ao menos, duas grandes categorias: aqueles/as que são branquidade e que não estão nem aí com a questão racial, vivem como se ela não existisse, não têm o mínimo de consideração com os diferentes, isto é, a única consideração que têm é o desprezo. Há aqueles/as que são branquitude, que reconhecem o problema, reconhecem o diferente e assumem atitude frente à questão. (PINHEIRO, 2018, p. 170-171)
  20. Segundo Souza (2018b, p.74) existe um sadismo e perversidade das classes privilegiadas, na herança escravocrata, intocada no seu “núcleo patológico”. Poderíamos estabelecer uma ponte com a “patologia social do branco” de Guerreiro Ramos?… Jessé Souza é recorrente em chamar a atenção para o “racismo de classes” contra os pobres, de todas as cores, se bem que a grande concentração nesse meio, ele lembra sempre, é de negros/as…
  21. SJS-SJ. Globalizacion y Marginación: Nuestra Respuesta Apostolica Global. Roma: Companhia de Jesus-Secretariado para la Justicia Social, fevereiro, 2006.
  22. A experiência pessoal em um Grupo Inter-religioso de Diálogo, a partir de 2002, fez com que eu tivesse uma percepção nítida de que o diálogo inter-religioso é um verdadeiro laboratório transdisciplinar. Como sociólogo das religiões, tenho a certeza de que se trata de um dos caminhos mais fecundos nas ciências da religião. (A experiência referida foi no quadro do Programa Gestando o Diálogo Inter-religioso e o Ecumenismo – GDIREC, UNISINOS).
  23. Este texto (in)conclusivo retoma excertos de publicação Follmann (2015) em livro organizado por Sandra Martini e Bárbara Costa.

Referências

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