MEMÓRIA E RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA: ALGUMAS INTERROGAÇÕES SOCIOLÓGICAS

Texto inédito redigido em 11 de novembro de 2012

Quando falamos em memória é importante que falemos em primeiro lugar de suas condições de possibilidade. Sabemos que não existe história sem memória e podemos, assim, afirmar que a própria história deve ocupar-se das condições de possibilidade da memória. Ao me deparar com a questão da “memória através das religiões de matriz africana”, formulei para mim a pergunta sobre suas condições de possibilidade. Dei-me conta da necessidade de retomar o próprio processo histórico e identificar neste processo mecanismos e estratégias, ideologias e políticas que geraram condições perversas para que as memórias dos afrodescendentes subsistissem e se transmitissem com facilidade. Senti-me impelido a pensar em formular “algumas interrogações sociológicas” neste sentido.

Michael Pollak em artigo escrito em 1992, com o título “Memória e Identidade Social”, ao mesmo tempo em que afirma que as oposições binárias entre memórias dominantes (oficiais) e memórias dominadas (não oficiais) devem ser consideradas algo superado, afirma, também, que devemos estar sempre atentos ao processo de “negociação”. (Pollak, 1992, p.5). O mesmo autor em artigo anterior já deixava clara a sua posição ao afirmar que “um passado que permanece mudo é muitas vezes menos o produto do esquecimento do que de um trabalho de gestão da memória, segundo as possibilidades da comunicação”. (Pollak, 1989, p.14)

As historiografias oficiais são sempre construídas com certa linearidade e ordenamento. (Benjamin, 1992, p.28). Esta linearidade e este ordenamento estão, também, bem expressos no que Pollak (1989, p.9-10) denomina de “enquadramentos da memória”.

Aos enquadramentos da memória, subjazem, no entanto, também importantes estratégias e políticas condutoras da história e definidoras da cultura e estrutura sociais. É este quadro que fez com que, ao ser interrogado sobre a questão “memória e religiões de matriz africana”, aflorassem à minha mente diversas questões, aqui denominadas de “algumas interrogações sociológicas”. Ao entrarmos no mundo da MEMÓRIA através das religiões de matriz africana, é fundamental que explicitemos os principais aspectos envolvidos no monstruoso volume de abafamentos e dominações que pesa sobre esta realidade.

Acostumei-me a agrupar essas interrogações em três níveis, reproduzindo aqui um exercício de reflexão que realizei em coautoria com Adevanir Aparecida Pinheiro, coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – NEABI da nossa Universidade[1]:

O primeiro nível é o de algumas estratégias de esquecimento, que devem ser consideradas vigorosas e bem sucedidas. Trata-se de mecanismos de esquecimento aos quais os negros trazidos para o Brasil foram submetidos. Sem entrar em detalhamentos, uma vez que se trata de matéria de amplo conhecimento comum, vou referir os três mecanismos, por assim dizer, paradigmáticos: 1) O significado da “árvore do esquecimento”, o símbolo central que aponta para a intencionalidade dominante do esquecimento.[2] 2) A imposição de uma nova religião, o catolicismo como a religião oficial reinante. 3) A desestruturação violenta dos laços familiares, misturando clãs e etnias, procurando provocar um total desenraizamento de vínculos culturais e políticos de origem.

O segundo nível está diretamente relacionado com o uso de teorias racistas, com a precípua função de legitimar os empreendimentos de escravização dos negros africanos. Isto deve ser visto como agravante que justificou e acompanhou as estratégias aqui  mencionadas e outras. Para além da busca de legitimar a escravização, essas teorias foram mais longe, patrocinando intelectualmente políticas de branqueamento nacional. Os escritos de José Arthur Conde de Gobineau (década de 60 e 70 do século XIX) foram particularmente marcantes neste sentido. Segundo o mesmo, as raças inferiores (africanas) mesclando-se com outras raças superiores (européias) estariam levando o Brasil a uma degenerescência, sem futuro. Parafraseando o seu pensamento, pode-se dizer que, segundo ele, a vinda de maior número de brancos para o Brasil era uma urgente necessidade e fazia-se também urgente preservar os brancos da contaminação do sangue negro…[3]

O terceiro nível dá conta das políticas de branqueamento da sociedade brasileira, como políticas afirmativas em favor dos imigrantes brancos eurodescendentes, em flagrante descaso com relação aos negros. Essas políticas marcaram o período de processo de abolição da escravatura e o período pós-abolição, evidenciando um processo de “purificação racial” e de “desafricanização” do Brasil.

É com estes três níveis de referência e de agravamento do volume de abafamentos e dominações que pesa sobre a realidade dos afrodescendentes e da memória através das religiões de matriz africana, que eu lanço as minhas “interrogações sociológicas”: 1) Quais as condições de possibilidade de desvendar as densas camadas de abafamento e esquecimento provocado e estrategicamente programado? Qual o papel e incidência das diferentes formas de resistência e sobrevivência conhecidas, apesar – e à revelia – de toda a estratégia do esquecimento e abafamento? Qual o papel da academia com vistas a ajudar a escrever uma história através da qual se desvelem as dívidas culturais e sociais e se faça justiça aos prejudicados e, de certa forma, moralmente destruídos?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. 1992. O narrador. Reflexões sobre a obra de Nikolai Lesskov. In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. [Trad. Maria Amélia Cruz] Lisboa: Relógio D’Água, 235 p.

PINHEIRO, Adevanir Aparecida; FOLLMANN, José Ivo. 2012.Trabalho de Extensão Universitária com Afrodescendentes: refazendo laços e desatando nós. Cadernos de Extensão. Ed.Unisinos, p. …

POLLAK, Michael, 1989. Memória, Esquecimento, Silêncio.Rev. Estudos Históricos, 2 (3): 3-15

POLLAK, Michael,1992. Memória e Identidade Social. Rev. Estudos Históricos, 5 (10): 200-212


[1] Ver artigo publicado recentemente em CADERNOS DE EXTENSÃO, Unisinos, 2012. (Pinheiro e Follmann, 2012, p….a …)

[2] Durante grande parte do período de tráfico dos africanos escravos para o continente americano, e especificamente para o Brasil, eles eram submetidos a um ritual antes de serem embarcados. Era um ritual para esquecerem o seu passado… Eram obrigados a dar voltas em redor de uma árvore, a chamada “árvore do esquecimento”. Ao serem capturados e importados do continente africano para outros países e para o Brasil, eles eram obrigados a fazerem o ritual de esquecimento, ou seja, os homens tinham que dar nove voltas em torno da árvore do esquecimento e as mulheres davam sete voltas. Esta “árvore do esquecimento” continua, depois, se repetindo sob as mais diferentes formas ao longo do processo de escravidão e pós-escravidão…

[3] Ver José Arthur Conde de Gobineau. L’Emigration au Brésil, 1874, in Georges Raeders, 1988. 

INTERPELADAS E INTERPELADOS POR UMA CULTURA AFIRMATIVA

Reflexão feita a partir de uma reunião no Colegiado do PPG de Ciências Sociais, em outubro de 2019.

Falar de raça é urgente e necessário, no Brasil

José Ivo Follmann (06/10/2019)

Contextualização

Na reunião que tivemos, no dia 05/09/2019, esbocei algo sobre o que venho chamando de necessidade de instaurar uma CULTURA AFIRMATIVA em nível de Educação Superior, para que se criem condições efetivas de educação das relações étnico-raciais no Brasil (lei 10639/03 e 11645/08). Eu estava focado especificamente naquilo que consigo entrever como um dos papéis chaves de nosso Programa, sobretudo, em relação a essa temática. Lidar com isso exige, em primeiro lugar, o reconhecimento daquelas e daqueles que provêm de um acumulado histórico de exclusões e invisibilidade. Essas pessoas são os principais sujeitos da temática e têm uma percepção especial e única da mesma. A sua afirmação é chave. Todas/os concordamos e temos consciência disto.

A nossa reunião foi boa e oportuna, apesar de um pouco estrangulada no tempo com relação a algumas demandas que exigiam muito mais aprofundamento. Diversas ideias vieram me acompanhando em minha viagem de retorno a Brasília. Tento colocar algo no papel aqui, para complementar o que apenas me foi possível esboçar. Tivemos muitos outros atravessamentos no diálogo, perfeitamente compreensíveis. Agradeço a uma das colegas que lembrou, no decorrer da reunião, a expressão “Universidade inclusiva”.

Trata-se de uma contribuição simples e coloquial, sem outras pretensões além de querer provocar a continuidade e o aprofundamento de nosso diálogo.

Ações afirmativas

Nós sabemos que as ações afirmativas têm caráter inclusivo e compensatório ou mesmo restaurativo para grupos (pessoas) na sociedade, que foram e estão sendo lesados no acesso pleno aos direitos, devido a discriminações e preconceitos produzidos e reproduzidos pela mesma sociedade.

As ações afirmativas são importantes e necessárias para ajudar a acelerar processos de inclusão, favorecendo a instauração de condições mais condizentes em termos de democracia e justiça na sociedade. É necessário que nós cientistas sociais estejamos muito atentas/os para desvendar necessidades de ações afirmativas, apontando para a potencialização de políticas neste sentido. Ao falar políticas tenho presente um sentido amplo, indo desde políticas internas a instituições específicas até políticas públicas de Estado.

Seria ingênuo, no entanto, pensarmos que as ações afirmativas resultarão em uma sociedade inclusiva pela simples criação, formulação e publicação de políticas e suas regulamentações. Aliás, nem mesmo a sua efetivação na prática, dessas políticas, é garantidora do sucesso. Sendo mais explícito, as ações afirmações, formuladas como políticas, mesmo quando colocadas em prática, não terão automaticamente os efeitos desejados se não forem sustentadas por uma sinergia cultural proativa.

Cultura afirmativa

É no cultivo dessa sinergia cultural proativa que o papel das/os intelectuais e especialmente das/os profissionais da Educação Superior é chave. Aliás “ações afirmativas” são perigosas e podem causar efeitos perversos quando não estiverem revestidas e acompanhadas de uma cultura afirmativa.

O sucesso das ações afirmativas depende disto. Como gerar uma cultura afirmativa? Quais os caminhos para facilitar isto? Já sinalizei para o papel chave da Educação Superior, mas vamos descer ao chão concreto. Fazendo um atalho, eu creio que o caminho principal se desenha sempre que pudermos “povoar” o contexto no qual trabalhamos e vivemos com práticas pedagógicas testemunhais, que evidenciem, no dia-a-dia, posturas afirmativas focadas na correção (desconstrução) de ideologias, preconceitos e vícios constituintes do plano mais profundo do convívio social e da estrutura da sociedade.

Somos muito privilegiadas/os, neste sentido, pelas múltiplas oportunidades de uso do espaço da sala de aula e produção de textos. É um privilégio que suporta também uma imensa responsabilidade, pois pode acontecer que transformemos esses espaços em ambiente de reforço perverso das mesmas ideologias, dos mesmos preconceitos e vícios, revestindo-os de belas e atraentes teorizações. Às vezes, as ricas elaborações teóricas passam a servir de cortina de fumaça, para ocultar o nosso absenteísmo ou omissão por encarar em sério os reais conflitos, que não enxergamos vivamente desenhados e presentes na própria sala. Podemos também ser omissas/os e ausentes, quando as nossas interlocuções no espaço da sala de aula e nos textos que escrevemos ou orientamos, não contribuem para a desconstrução da hegemonia das euro-referências deixando de afirmar as afro-referências e as referências nossas autóctones.

Um conceito que foi muito pautado na reunião é o conceito de racismo estrutural. É um conceito muito oportuno para esta nossa conversa, reflexão e encaminhamentos coletivos. Agradeço à coordenadora da reunião ter lembrado para todas/os isto, com o texto que disponibilizou. É oportuno, sobretudo, para colocar em pauta o que aqui estou chamando de cultura afirmativa. Ou seja: nascemos e vivemos marcados pelo racismo; existe uma espécie de “normalidade racista” nos embebendo em todos os níveis, impregnando nossas mentes e corações. O racismo estrutural, que no Brasil apresenta traços particularmente carregados, necessita de medidas que possam ter impacto estrutural intenso, abrangente, profundo e permanente. Afinal, somos apeladas/os a desconstruir os efeitos dos mais de 350 anos de regime de escravidão negra. Sabemos que são mais de 350 anos, se considerarmos, sobretudo, o processo político e social de não afirmação e de exclusão que se seguiu à abolição. Esta herança maldita, queiramos ou não, habita as mentes e corações da sociedade brasileira. Somos uma sociedade artificial e perversamente branqueada.

Revestir-se de forma consciente e sempre renovada de posturas afirmativas (ou de uma cultura afirmativa) é o que melhor deveria identificar, neste sentido, profissionais que atuam na Educação em Nível Superior e, particularmente, aquelas/es que atuam na Produção de Conhecimento e Formação Acadêmica, em nível de pós-graduação.

Sublinho a expressão “revestir-se de forma consciente e sempre renovada de posturas afirmativas”, porque todas/os somos permanentemente envenenadas/os pelo racismo estrutural, sendo facilmente reprodutoras/es do mesmo, em manifestações de sentimentos, em falas, gestuais, silêncios, posturas e, até, em formas de avaliação de textos.

Ser de cultura afirmativa exige, da educadora e do educador, vigilância permanente. Vigilância, sobretudo, para não sucumbir à solução fácil de se proteger atrás da trincheira das normas e padrões estabelecidos. Muitas injustiças são cometidas exatamente quando os juízes em vez de serem efetivamente juízes, se sentem no dever de “ser justos”, se escondendo na cômoda trincheira do estabelecido na lei… Não se trata de nivelamento por baixo. É questão de procedimento pedagógico diferenciado e afirmativo, alcançando o mesmo nível de exigência.

Na contextualização inicial, referi que lidar com a temática do racismo exige, em primeiro lugar, o reconhecimento daquelas e daqueles, que são as vítimas deste racismo, como sujeitos protagonistas e interlocutores fundamentais. Um Programa como o nosso só fará jus ao seu papel, na medida em que conseguir ter efetivamente o reconhecimento interno e externo, neste aspecto.

Eu até ousaria concluir esta pequena reflexão com uma provocação: será que intelectuais de nosso nível e área de formação que não se empenham ativamente em ajudar a desconstruir o racismo estrutural, não estariam sendo elas/es mesmas/os imputáveis de racistas, por omissão ou absenteísmo?

Questões para aprofundar:

1) Será que não corremos o risco de sermos alvo de desconfiança ou até de deboche, quando a nossa emblemática e tão zelosamente buscada “excelência acadêmica” não vier acompanhada e entranhada numa autêntica cultura afirmativa? Isto é particularmente sério, considerando a nossa área de concentração.

2) Estamos suficientemente confortados com os critérios de avaliação praticados? Até que ponto não somos também vítimas da “ideologia da meritocracia”? Uma cultura inclusiva não deveria fazer com que revíssemos procedimentos de avaliação para colocarmos critérios de mérito efetivamente justos na balança? Podemos estar sendo vítimas de nossas próprias inseguranças ao nos protegermos atrás de critérios “objetivos” instituídos, nos tornando incapazes de enxergar os verdadeiros méritos, desenhados nas trajetórias pessoais de produção do conhecimento das pessoas que são nossas/os orientandas/os e de outras/os profissionais.

3) Precisamos urgentemente, em minha opinião, revisar de forma mais aprofundada algumas das pautas de ação de nosso Programa. É necessário retomar a história do Programa para possíveis correções de rumo em alguns pontos que são chaves na interlocução com a comunidade e as necessárias interfaces para sermos efetivos interlocutores reconhecidos pela excelência e, também, por uma cultura afirmativa (a construir). É necessário que se ganhe em institucionalidade de produção do conhecimento e em protagonismo das instâncias e dos grupos envolvidos, talvez, através de núcleos de pesquisa dinamicamente integrados com sua face de extensão.

Pela história da instituição, em grande parte, os caminhos estão facilitados. Tenho, no entanto, plena certeza que diversas iniciativas poderiam ter sido muito melhor articuladas e potencializadas. Mas, ainda está em tempo. Que a presente “oportunidade da crise” possa ser efetivamente fecunda. É preciso um exercício de cultura afirmativa, encontrando os melhores meios para que todas as instâncias que estão na ponta das interlocuções possíveis em questão, sejam efetivos protagonistas autorais, contando com as interlocuções proativas instituídas no PPG.

4) Vou ser repetitivo, na última questão: Todas/os concordamos com a real existência do racismo estrutural. Temos consciência, também, que a sua persistência na sociedade é muito destruidora do convívio social democrático e justo, prejudicando inclusive as boas condições de produção de conhecimento. Penso, neste sentido, que deveríamos ser zelosos em “povoar” as nossas reflexões e produções científicas com mais referências explícitas a essa questão. Muitas vezes, ao ler teses, dou-me conta de oportunidades de diálogo sobre isto que se deixa passar “em silenciosos vazios”. A vigilância permanente é importante. Em geral a opção por não tocar no tema se baseia num falso protecionismo (para com a orientanda ou o orientando) para não entrar numa temática que exigiria “nova” tese. Às vezes, no entanto, será a única oportunidade na formação desta/e profissional para se deixar interpelar conscientemente por esta temática.

Eu sou, pessoalmente, de opinião que nós deveríamos fazer o esforço, sempre que a oportunidade se oferece, de orientar para que se deixe algo explícito no texto da tese, neste sentido, nem que seja através de nota de roda pé. De uma forma bem singela, eu veria isso como um procedimento interessante e oportuno para o processo educativo de nossas/os orientadas/os, gerando também nelas/es uma cultura afirmativa. É na minha opinião um caminho interessante para a “educação das relações étnico-raciais”.

Apoiando-me na interessante e conhecida contribuição da coordenadora do NEABI, poder-se-ia dizer que uma postura vigilantemente ativa, neste sentido, nos fará contribuir para diminuir a reprodução da “branquidade” e aumentar a produção de “branquitude”, gerando uma sociedade mais sadia nas relações étnico-raciais.

A CATEGORIA DE RAÇA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS: RETOMANDO A MEMÓRIA DE ALGUNS PROCESSOS DE ORDEM POLÍTICA, SOCIAL E CULTURAL NA HISTÓRIA DO BRASIL.

Publicado como artigo na Revista Ciências Sociais Unisinos, em 2013. (Artigo em coautoria com Adevanir Aparecida Pinheiro)

Falar de raça é urgente e necessário, no Brasil.

José Ivo Follmann e Adevanir Aparecida Pinheiro (*)

Artigo publicado na Revista Ciências Sociais Unisinos. 49 (1), 2013, pp. 26-29. (O texto reproduz uma reflexão realizada a partir de alguns textos em coautoria com Adevanir Aparecida Pinheiro e apresentada por José Ivo Follmann em uma Mesa Redonda, dialogando com José Carlos dos Anjos).

Introdução

Para entrar neste debate depois da fala de José Carlos dos Anjos, é, em primeiro lugar, necessário que eu diga que concordo com a reflexão e a argumentação dele.(1) O palestrante buscou estabelecer um caminho de compreensão da eclosão da categoria raça em Cabo Verde e da sua eclosão no contexto brasileiro. Trata-se de um caminho bastante provocativo e gerador de avanço na reflexão. Partindo de leituras apuradas da história das relações de raça na Ilha de Santiago, Cabo Verde e de aspectos do processo de relações entre brancos e negros no Brasil, o palestrante destacou, por um lado, que em Cabo Verde a categoria raça eclodiu como “racialidade” diferenciada de parte dos brancos, o que, depois, ao longo do tempo, se tornou insustentável e degenerou, enquanto, por outro lado, no Brasil a categoria raça eclodiu em diversos momentos como reação a um Estado que se caracterizou historicamente por sua ação permanente para desmantelar a ideia de raça e de Brasil como sociedade de raças.

Lamento muito em não poder contar aqui com a presença da coordenadora de nosso NEABI – Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas, – e que comigo coordena pesquisas na temática, pois as reflexões que tenho sobre esta questão são todas construídas em coautoria com ela. Os principais aspectos do que aqui vou falar, reproduzem, de uma forma revisada e ampliada, extratos de textos elaborados e publicados em coautoria com esta professora. Trata-se de pontos que reforçam, complementam a reflexão rica e provocativa do palestrante e, em alguns aspectos, acrescentam elementos diferenciados para uma compreensão mais ampla de seu argumento.

Três mecanismos de esquecimento

Em um artigo recentemente publicado em Cadernos de Extensão VII, com o título “Trabalho de Extensão Universitária com Afrodescendentes: Refazendo Laços e Desatando Nós” (Pinheiro e Follmann, 2012) sublinhamos a importância de se “fazer a memória dos muitos mecanismos de esquecimento aos quais os negros trazidos para o Brasil foram submetidos”. (Pinheiro e Follmann, 2012, p. 106). Talvez, agora, a partir das reflexões pertinentes de José Carlos dos Anjos, possamos alimentar a hipótese de que o Estado brasileiro, enquanto repressor da ideia de sociedade de raças no Brasil, pode ser entendido como um Estado que encontrou nesses mecanismos o seu principal respaldo para conseguir adiar por tanto tempo a verdadeira eclosão de raça neste país.

Entre os mecanismos que lembramos, ocupa referência central, talvez não pela sua frequência, mas pela sua força simbólica, uma das práticas mais explícitas e perversas de alienação conhecidas, que é a imagem da “árvore do esquecimento”. (2)

Mencionamos, também, naquele artigo, por um lado, a imposição de uma nova religião, e, por outro lado, a desestruturação violenta dos laços familiares, misturando clãs e etnias, como outros dois “mecanismos de esquecimento” bastante conhecidos. Existe importante documentação sobre esses dois processos. O que deve ser destacado, aqui, é a função exercida por esses processos no sentido do desmonte e do esquecimento das raízes étnicas, culturais e religiosas dos sujeitos africanos trazidos à força para o Brasil através do tráfico de escravos.

Não se pode, no entanto, dizer que esses mecanismos conseguiram suplantar radicalmente a ideia de raça no Brasil… Mesmo que a categoria raça não tenha eclodido com vigor devido ao contexto de dominação das mentes e do coração, ela nunca deixou de dar mostras de sua fervura potencial.

A “árvore do esquecimento” não deve ser estritamente ligada à ideia de alienação (Follmann, 2012) mesmo que esta fosse a intenção dos traficantes. Era à sombra das árvores que os “Griots” (sábios, contadores de história), especificamente, transmitiam toda robustez dos ensinamentos culturais passando seus valores de geração a geração. Tratava-se de uma referência cultural muito profunda. Pode-se auferir daí que um ritual de esquecimento tenha, em muitos casos, assumido, na dor, o significado de ritual de resistência e reafirmação das raízes culturais, que jamais poderiam ser esquecidas. (3)

Assim como a resistência à violência simbólica representada na “árvore do esquecimento”, também, as tradições religiosas, que a imposição do catolicismo oficial quis apagar, foram conservadas e resistiram, sendo permanente motivo de reavivamento da memória. Os sujeitos africanos, mesmo na situação de escravizados resistiram de forma inteligente, reinventando as suas tradições religiosas sob o disfarce e camuflagem católicos.

Também a fatídica separação das famílias e povos, que foi talvez o sofrimento mais doloroso e que deixou marcas muito pesadas na maioria dos afrodescendentes brasileiros, não conseguiu matar a essência do grande senso de solidariedade e profundo sentir de família daquelas culturas.

Concluíamos naquele escrito que essas considerações nos fazem perceber que, no caso dos negros feitos escravos e submetidos a práticas perversas de alienação, se repete de forma talvez paradigmática o que se conhece em muitas outras situações na história da humanidade: ninguém ou nada consegue aniquilar (ou alienar totalmente) as consciências humanas.

Uso de teorias racistas

Lembramos, em segundo lugar, naquele texto o uso de teorias racistas, com a precípua função de legitimar os empreendimentos de escravização dos negros africanos. Trata-se de um agravante que acompanhou as práticas e os mecanismos aqui mencionados. Para além da busca de legitimar a escravização, essas teorias foram mais longe, patrocinando intelectualmente políticas de branqueamento nacional. Os escritos de José Arthur Conde de Gobineau (década de 60 e 70 do século XIX) foram particularmente marcantes neste sentido. Segundo o mesmo, as raças “inferiores” (africanas) mesclando-se com outras raças “superiores” (européias) estariam levando o Brasil a uma degenerescência, sem futuro. Dentro da lógica de seu pensamento, pode-se dizer que, segundo ele a vinda de maior número de brancos para o Brasil era uma necessidade urgente e fazia-se também urgente preservar os brancos da contaminação do sangue negro… (4)

Políticas de branqueamento

Em terceiro lugar, foram lembradas as políticas de branqueamento da sociedade brasileira, como políticas afirmativas em favor dos imigrantes brancos eurodescendentes, em flagrante descaso com relação aos negros. Essas políticas marcaram o período de processo de abolição da escravatura e o período pós-abolição, evidenciando um processo de “purificação racial” e de “desafricanização” do Brasil.

As políticas de branqueamento, respaldadas nas teorias propaladas pelo Conde de Gobineau, foram sendo, aos poucos, radicalmente contestadas em sua intencionalidade perversa. Destaca-se a lucidez sociológica de Florestan Fernandes, segundo o qual o grande projeto chamado de “ordem social”, pós-abolição da escravatura, pode ser definido como um projeto elaborado por brancos e feito para os brancos. A sociedade brasileira organizou-se na virada do século XIX para o século XX, num formato de reprodução das desigualdades sociais e raciais, negando uma ordem justa e afirmativa para a população dos ex-escravos. A sociedade brasileira cultivou a reprodução do “senso comum de discriminação” e, na esteira de uma perversidade silenciosa, a população negra ficou relegada a uma quase invisibilidade. Quando José Carlos dos Anjos fala do Estado brasileiro como um Estado negador do Brasil como sociedade de raças, está falando, sobretudo, disto, desta invisibilização dos negros.

Florestan Fernandes (1972), avaliando o modo como a sociedade se organizou no período pós-abolição, comentou que:

Não é de se estranhar, (…), que os setores favorecidos pela dinamização do desenvolvimento capitalista voltassem as costas ao drama humano dos descendentes dos ex-escravos e, ainda mais, que ignorassem as implicações negativas da falta de integração da sociedade nacional ao nível das relações raciais. (Fernandes, 1972, p.31)

Em síntese, chamamos a atenção para o fato de que a história brasileira está marcada por um conjunto de práticas ou mecanismos de esquecimento que tentaram subjugar a mente e o coração dos negros africanos que foram escravizados e traficados para o Brasil. Entre estes mecanismos destacamos: o “ritual” da árvore do esquecimento; a imposição de uma nova religião oficial; a desagregação dos grupos de parentesco e das etnias. Referimos também que nunca faltaram resistências de toda ordem a esses mecanismos e práticas. Essas resistências certamente teriam sido mais vigorosas e ágeis, se não tivessem se deparado com a perversidade intelectual das teorias racistas na “justificação” da escravidão e a perversidade política que organizou a sociedade brasileira pós-escravidão de forma a buscar o branqueamento. Estes foram os dois entraves mais complicados, para que as resistências mencionadas pudessem aflorar com mais vigor.

Importância do conceito de “afrodescendentes”

Em outro artigo sobre “Afrodescendentes em São Leopoldo: memória coletiva e processos de identidade”, publicado na Revista Ciências Sociais Unisinos (Follmann e Pinheiro, 2011) lembrávamos que por muito tempo a África foi estudada como um continente de “negros selvagens”. Isto construiu uma concepção muito pejorativa do Continente Africano e é permanentemente reforçado pelas atuais notícias sobre desgraças que acontecem em diferentes países daquele continente, reduzindo a imagem de suas sociedades a um submundo de selvageria que precisa da benevolência e da piedade dos povos civilizados e evoluídos.

Já na primeira metade do século passado, Ramos (1946) nos alertava do embuste de tudo isto. Segundo este autor, trata-se de uma invenção europeia para justificar o tráfico e a exploração colonial.

Não queremos voltar à avaliação das justificativas perversas do tráfico escravo e da exploração colonial, que reaparecem continuamente com novas formas. O que interessa ressaltar, aqui, é o quanto isto afetou e afeta diretamente a vida psíquica de milhões de sujeitos, ligados às etnias de afrodescendentes. Foram gerados processos de identidade perversos no seio da população negra. Além de perversos, esses processos continuam sendo mantidos e cultivados no senso comum e na cultura popular, sobretudo, por força das notícias que são reproduzidas sobre o Continente Africano.

Estereótipos misturados com desconhecimento, por um lado, e desatenção histórica misturada com medo, por outro lado, geram muita confusão e sofrimento. São confusões e sofrimentos reproduzidos também pelos silêncios da academia. É contra os silêncios da academia, ou os falsos conhecimentos da mesma, que a Lei 10639/2003, se insurgiu e trouxe novo direcionamento em resposta a toda uma viva eclosão da categoria raça pelo viés de movimentos negros sempre mais visíveis e fortalecidos ao longo das últimas três décadas no Brasil.

Dentro do contexto estudado, o conceito de “afrodescendentes” dá conta do que normalmente se entende por “afro-brasileiros”, destacando-se, no entanto, as raízes históricas africanas e a consciência de descender de culturas provenientes de um continente, portador de um processo histórico e cultural muito rico e pouco conhecido ou, até, esquecido ocultado. Este nosso argumento se vê reforçado, sobretudo, pelo grande significado da Conferência Mundial de Durban em 2001 , (5) na qual a internacionalidade da afrodescendência foi evidenciada como uma realidade muito mais ampla que a afro-brasilidade.

Visa-se com este conceito ajudar a romper o processo desencadeado pela “árvore do esquecimento” e outros mecanismos e práticas de alienação e esquecimento. Já vimos como, junto a cada um dos mecanismos ou práticas que referimos, foram identificáveis importantes estratégias de resistência e como essas resistências foram retardadas tanto pelas teorias racistas como pelas políticas afirmativas do branqueamento. O termo afrodescendente revela uma tomada de posição afirmativa para refazer um elo da história que foi escondido. Ao se dizer afrodescendente se aguça a curiosidade por saber de suas origens e se multiplicam as interrogações sobre os “porquês” do esquecimento… Ao se dizer afrodescendente, abre-se um horizonte de interrogações e de buscas que visam reconstruir o fio da história, que, por muito tempo, foi considerada perdida, mas que revive na memória que não se apagou. O conceito de “afrodescendentes” ajuda a eclosão da categoria raça. No senso comum reina uma terminologia que em grande parte nasceu embebida nos mecanismos e práticas de esquecimento e alienação. O conceito de “afrobrasileiros” não apresenta a força heurística de “afrodescendentes”, pois sugere, implicitamente, uma história construída no horizonte do mito da “democracia racial” brasileira.

Importância da emergência da categoria raça

A tríplice referência ou o tríplice horizonte (tenebroso) iluminador, apontado acima, nos leva, também, a acolher a importância do conceito de raça, como um conceito político e gerador de conhecimento. Falar em raça negra frente à raça branca tem um poder mobilizador muito grande, inclusive para a geração de um conhecimento efetivo que consiga fazer justiça frente aos desmandos históricos que são conhecidos.

Já é página virada na história a polêmica em torno das diferentes raças humanas em termos genéticos. Existe só uma raça humana e é muito provável que a humanidade tenha as suas raízes históricas mais antigas nas áreas que hoje são conhecidas como continente africano.

Aliás, quando se fala raça, parece que se visualiza exclusivamente a raça negra. Talvez se tenha que voltar à pergunta sobre a “raça branca”… Trata-se de uma chave invertida com relação ao que lembrou José Carlos dos Anjos em sua fala sobre a realidade da Ilha de Santiago, Cabo Verde, onde a eclosão raça se deu pelo viés da raça branca. É uma questão embaraçosa e que gera normalmente perplexidades, além do profundo silêncio que gera nos sujeitos de raça branca. É talvez tão ou mais embaraçosa que a questão que pergunta pelos “projetos dos afrodescendentes”… Não existe raça branca, assim como não existe raça negra! Contudo, não devemos esquecer que a raça branca se impôs como hegemônica no mundo ocidental afirmando (politicamente) a inferioridade das outras raças. É necessário que a questão do embotamento da consciência branca eurodescendente (e eurocêntrica) seja trazida ao centro do debate.

Trata-se de uma consciência que permanece, muitas vezes, algemada no seu senso de superioridade. São inúmeros os aspectos históricos relacionados a isso, que, no entanto, mereceram pouca atenção no contexto social e acadêmico brasileiros. Esses aspectos são muitas vezes camuflados para não mostrar ou evidenciar as fragilidades e as vergonhas da parte da população sempre (auto) considerada superior. (Pinheiro, 2011)

Referências bibliográficas:

FERNANDES, Florestan. O Negro no Mundo dos Brancos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1972.

FOLLMANN, José Ivo. Processos e identidade versus processos de alienação. Rev. Identidades!. 2012.

FOLLMANN, José Ivo; PINHEIRO, Adevanir Ap.. Afrodescendentes em São Leopoldo: memória coletiva e processos de identidade. Ciências Sociais Unisinos. N. 47(2), 2011, p. 141-152.

PINHEIRO, Adevanir Aparecida. Identidade Étnico-Racial e Universidade: A dinâmica da visibilidade da temática afrodescendente e as implicações eurodescendentes, em três instituições de ensino superior no sul do País. São Leopoldo: Tese Doutorado em Ciências Sociais, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2011. 375p.

PINHEIRO, Adevanir Ap.; FOLLMANN, José Ivo. Trabalho de Extensão Universitária com Afrodescendentes: Refazendo Laços e Desatando Nós. Cadernos de Extensão VII. Ed. Unisinos, 2012, pp. 105-112.

RAMOS, Arthur. As Culturas Negras no Mundo Novo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946 (2ª ed. ampliada).

Autores:

(*) José Ivo Follmann: Sociólogo. Jesuíta. Doutor em Sociologia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Unisinos. Assessor do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – Neabi, Unisinos

(*) Adevanir Aparecida Pinheiro: Assistente Social, Doutora em Ciências Sociais. Professora de Graduação na Unisinos. Coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – Neabi, Unisinos. (A redação final revista e ampliada do presente texto, mesmo mantido na forma de interlocação pessoal do painelista, foi retomada em coautoria com a Profa. Dra Adevanir Aparecida Pinheiro em coerência ao fato de grande parte do que foi apresentado no painel esteve baseado também em textos precedentes escritos em coautoria com a mesma.)

Notas:

1.Na palestra, o Prof. Dr. José Carlos dos Anjos explicitou com detalhes o argumento de que na Ilha de Santiago, Cabo Verde, a eclosão da categoria raça se dá pelo viés da afirmação da elite branca portuguesa, na esteira do Estado Imperialista Português, mas esta categoria implode com o tempo, por degenerescência. Ou seja, a categoria raça eclode pelo discurso e prática afirmativa do Estado para distinguir o branco e posteriormente implode apesar da persistência da elite em afirmar a branquidade. No Brasil o Estado se empenha em reprimir a ideia de sermos uma sociedade de raças, mas a categoria raça eclode, pela mão do movimento negro. Não só eclode, em diversos momentos, mas persiste e insiste, à revelia das ações do Estado.

2. Durante grande parte do período de tráfico dos africanos escravos para o continente americano, e especificamente para o Brasil, eles eram submetidos a um ritual antes de serem embarcados. Era um ritual para esquecerem o seu passado… Eram obrigados a dar voltas em redor de uma árvore, a chamada “árvore do esquecimento”. Ao serem capturados e importados do continente africano para outros países e para o Brasil, eles eram obrigados a fazerem o ritual de esquecimento, ou seja, os homens tinham que dar nove voltas em torno da árvore do esquecimento e as mulheres davam sete voltas. Esta “árvore do esquecimento” continua, depois, se repetindo sob as mais diferentes formas ao longo do processo de escravidão e pós-escravidão…

3. A árvore do “Baobá ou embondeiro” significava para os africanos o lugar do conhecimento e contos das histórias dos antepassados, passando de geração em geração. Os traficantes de escravos ao se darem conta da importância disso para os escravos, determinavam a prática do apagamento da memória e identidade. O “baobá ou embondeiro” passou assim também a ser conhecido como a “árvore do esquecimento”. OS GRIOTS. Disponível em http://minhavidanaafrica.blogspot.com.br/2009/12/blog-post.html (Acessado em 10 de maio de 2012).

4. Ver José Arthur Conde de Gobineau. L’Emigration au Brésil, 1874, in Georges Raeders, 1988.

5. Conferência Mundial contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a intolerência asociada, que se organizou em Durban na África do Sul em setembro 2001.

NEGROS E BRANCOS NO BRASIL: TRÊS PONTOS DE REFLEXÃO.

Artigo publicado na Revista Identidade!, em 2011. O texto foi elaborado em coautoria com Adevanir Aparecida Pinheiro.

Falar de raça é urgente e necessário, no Brasil

Artigo publicado em coautoria em 2011 pela Revista IDENTIDADE! e disponível em: http://www.est.edu.br/periodicos/index.php/identidade

Adevanir Aparecida Pinheiro (*)
José Ivo Follmann (**)

RESUMO

O artigo pretende ser uma provocação para a reflexão, pontuando três aspectos de fundamental relevância para ajudar a balizar a Educação das Relações Étnico-Raciais no Brasil: o medo do desconhecido, a ação afirmativa e a questão do branco. No final os autores arrematam apontando para o exemplo perverso da Europa xenofóbica.

No Brasil, por muito tempo, tentou-se resolver o futuro das relações étnico-raciais através do esquecimento. Hoje, finalmente, com muita lucidez, vivemos políticas que colocam em primeiro plano a memória. Não se trata da memória oficial, mas da memória que, por muito tempo, foi cultivada e conseguiu sobreviver nos subterrâneos da nossa história.

A história do Brasil escamoteou e continua a escamotear o longo período de quase quatro séculos de escravidão de milhões de africanos negros, fazendo com que a negritude, a branquitude (e branquidade) e a relação entre negros e brancos, sejam questões falseadas e insuficientemente resolvidas. Deve-se ter presente, sobretudo, que até hoje não se conseguiu dar conta de fazer a narrativa completa das implicações sociais envolvidas na forma como foi realizada a abolição da escravatura e as políticas afirmativas com relação à população de imigrantes brancos, em que esse processo esteve envolvido.

Carecemos, no Brasil, de educação para lidar de maneira justa e lúcida com as conseqüências disso na sociedade e cultura. Isto é tão verdade que foi necessário reformular (formular melhor) a Lei 9.394 (Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 1996) através da Lei 10.639 (2003) no que diz respeito especificamente às temáticas da história e cultura dos afrodescendentes e sua obrigatoriedade nas instituições de ensino. (1)

Eliane Cavalleiro, em escrito publicado em Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais, do Ministério da Educação (2006), na condição, então, de Coordenadora Geral de Diversidade e Inclusão Educacional, afirma: os 118 anos que nos separam da Lei Áurea não foram suficientes para resolver uma série de problemas decorrentes das dinâmicas discriminatórias forjadas ao longo dos quatro séculos de regime escravocrata. Ainda hoje, permanece na ordem do dia a luta pela participação de negros e negras nos espaços da sociedade brasileira, e pelo respeito à humanidade dessas mulheres e homens, reprodutores e produtores de cultura. (BRASIL, MEC-SECAD, 2006, p.14-15)

O patrimônio histórico e cultural trazido pelos africanos negros é tão vigoroso, que conseguiu sobreviver e representar um incomparável e marcante legado para a sociedade brasileira. No mesmo texto aqui citado, a autora assim se expressa: Nas formas individuais e coletivas, em senzalas, quilombos, terreiros, irmandades, a identidade do povo negro foi assegurada como patrimônio da educação dos afro-brasileiros. Apesar das precárias condições de sobrevivência que a população negra enfrentou e ainda enfrenta, a relação com a ancestralidade e a religiosidade africanas e com os valores nelas representados, assim como a reprodução de um senso de coletividade, por exemplo, possibilitaram a dinamicidade da cultura e do processo de resistência das diversas comunidades afro-brasileiras. (BRASIL, MEC-SECAD, 2006, p.14)

A ausência da temática dos afrodescendentes negros nas escolas, em todos os níveis, continua sendo gritante, no Brasil. O desconhecimento com relação à África, sua história e cultura, chega a ser escandaloso, quando sabemos quão rica e genuína é a sua contribuição e a de seus filhos e filhas na construção do Brasil e da brasilidade. E, sobretudo, quando sabemos quão duras foram as condições de exploração, exclusão e agressão à dignidade humana, em que se deu essa rica e genuína contribuição.

O medo do desconhecido

Como primeiro ponto de reflexão, retomamos uma inspiração encontrada em Carlos Rodrigues Brandão. Este autor, em um de seus livros no qual retratou a história de Paulo Freire (O Menino que Lia o Mundo), destacou que esse menino que lia o mundo, aprendeu a perder o medo porque começou a entender as coisas e o mundo. Nós em geral temos medo frente ao que não entendemos. Quando não se entende de determinado assunto, tem-se muito medo de entabular conversa sobre o mesmo.

Talvez possamos dizer que a temática dos afrodescendentes negros no Brasil está muito ausente nas escolas porque existe um grande desconhecimento em torno da mesma. Muitos professores e professoras têm medo de abordar o assunto.
Às vezes se ouve falar que tocar nesse tema pode acender as brasas que estão mortas debaixo das cinzas da história, despertando indesejados conflitos raciais. Trata-se do medo associado ao desconhecimento, pois, no caso específico da temática dos afrodescendentes negros, no Brasil, gera menos conflito proporcionar o conhecimento, do que sonegar o conhecimento.

O campo religioso pode ser considerado uma referência exemplar neste sentido. Os ressentimentos e conflitos tendem a crescer na medida em que imperam a desinformação e o desconhecimento mútuos. Ao contrário, a harmonia, o convívio fraternal, o respeito e o diálogo começam a vigorar na medida em que cresce o conhecimento de par a par. No desconhecimento as religiões tendem a se demonizar mutuamente e a afirmar a superioridade de sua proposta e missão com relação às demais.

Hoje estamos longe do tempo em que o padre católico batizava os escravos africanos negros, dando-lhes a “identidade” de católicos, ato contínuo à ordem do comprador dos mesmos que mandava marcar com o ferro em brasa (o selo da posse) as suas novas mercadorias, como peças de trabalho. Apesar dessa sistemática violência, a cultura religiosa dos afrodescendentes persistiu em sua riqueza e diversidade. Hoje em dia se pode conversar honesta e tranquilamente sobre isto. Podemos presenciar diversas situações de diálogo e reconhecimento mútuos envolvendo lideranças católicas e lideranças de religiões de matriz africana junto com representantes de diversas outras denominações e confissões religiosas para desenvolver propostas comuns.

Um Grupo Inter-religioso de Diálogo que existe na UNISINOS, dentro do Programa Gestando o Diálogo Inter-religioso e o Ecumenismo – GDIREC é um testemunho vivo disto… Foi exatamente a partir de desejos expressos neste Grupo que foi desenvolvido com mais atenção o trabalho de inclusão dos sujeitos afrodescendentes e da proposta de Educação das Relações Étnico-Raciais na Universidade. Este Grupo havia levado a sério a necessidade de superar os medos internos que nele subsistiam, partindo para a busca de um maior conhecimento e reconhecimento mútuos.

A importância da ação afirmativa

Como segundo ponto de reflexão, fazemos um convite para olharmos de frente a grave questão ideológica, no Brasil, o falseamento, o mito da democracia racial, os esquecimentos e obstruções da memória, que fazem das escolas e dos professores, veiculadores e reprodutores de explicações fáceis ou de “não explicações”, ajudando a sonegar sutilmente as raízes dos processos de identidade dos afrodescendentes negros em nossa sociedade.

É necessário propor, também em sala de aula, com honestidade, o debate público sobre a questão da grande dívida social que o Brasil tem com relação aos afrodescendentes negros que constituem em torno de 50% da população brasileira.

Trata-se da metade da nossa sociedade cujos ancestrais foram vítimas de um dos mais longos períodos de escravidão conhecidos na história humana: quase quatro séculos de escravidão de africanos negros no Brasil. Para sermos mais precisos é necessário lembrar que segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, através do Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2011), temos no Brasil 50,7% de autodeclarados pretos e pardos (ou seja, negros, como normalmente é consenso nas classificações mais usuais); no Rio Grande do Sul temos 16,1% de autodeclarados pretos e pardos (ou seja, negros) e em São Leopoldo temos 13,7% de autodeclarados pretos e pardos (ou seja, negros). Normalmente a discriminação tende a ser mais sentida, mesmo que invisível, naqueles contextos em que o percentual de afrodescendentes, por uma série de fatores históricos, é mais baixo. É exatamente nestes contextos que o esforço das ações afirmativas deve ser mais lúcido e vigoroso.

Não faz sentido trabalhar a temática dos afrodescendentes negros no Brasil em sala de aula, se persistir a gritante ausência dos mesmos afrodescendentes nas Universidades. Às vezes são feitas comparações com a situação racial nos Estados Unidos, onde a política afirmativa teve a sua época e hoje já está superada. É importante sabermos que, naquele país, os afrodescendentes negros representam 12,6% da população e, depois de um esforço lúcido e vigoroso em termos de políticas afirmativas, hoje são numerosos os que já conseguiram posições de destaque na sociedade.

As políticas de ação afirmativa são necessárias para recuperar as enormes desvantagens sofridas por um segmento da sociedade com relação a outro, mas elas nunca devem significar abrir mão da exigência no preparo técnico e na qualidade. Devem significar formas criativas e inovadoras de proporcionar acesso ao preparo técnico e à qualificação.

A questão dos brancos

Somos facilmente vítimas de um jogo secreto que desvia a atenção do verdadeiro foco. Segundo Pinheiro, que em sua tese de doutoramento (Pinheiro, 2011) discutiu o conceito de “branquidade”, distinguindo-o de “branquitude”,(2) fala-se sempre em “questão do negro” ou “questão do índio”, quando de fato é uma “questão do branco”, em primeira instância… Se os estudos das relações étnico-raciais não tiverem um olhar atento para esse jogo secreto, continuando focados apenas nas etnias historicamente inferiorizadas, eles poderão ser novamente “um tiro no próprio pé”. Estaremos correndo o risco de redobrar as mesmas escamoteações históricas já conhecidas no Brasil.

Este é o terceiro ponto de reflexão: um convite a que nos associemos à linha de reflexão, que traz ao centro do debate a questão do embotamento da consciência branca eurocêntrica. É uma consciência que permanece, muitas vezes, algemada no seu (auto)senso de superioridade. São inúmeros os aspectos históricos relacionados a isto, aos quais se deu pouca atenção no contexto social e acadêmico brasileiro. Esses aspectos muitas vezes são camuflados para não mostrar ou evidenciar as fragilidades e as vergonhas da parte da população sempre (auto)considerada superior.

Como já apontamos no início deste texto, o Brasil, até hoje, não conseguiu dar conta de fazer a narrativa completa das implicações sociais envolvidas na forma como foi realizada a abolição da escravatura e as políticas afirmativas com relação à população de imigrantes brancos, em que esse processo esteve envolvido. Deve-se destacar que políticas afirmativas, que teriam sido humana e racionalmente necessárias, foram sonegadas à população dos afrodescendentes, no período pós-abolição da escravatura. E mais: os grupos que costumam assumir atitudes de “escândalo” ou de desacordo frente às políticas afirmativas com relação aos afrodescendentes, que hoje estão sendo colocadas em pauta, mesmo que isto aconteça de uma forma tímida e com muita dificuldade, em alguns contextos, talvez nem conheçam as políticas afirmativas executadas naquela época com relação aos brancos acolhidos em nosso país… Ou se têm conhecimento delas, pouco se importam, porque, afinal de contas, tudo isso estava pautado para garantir o “branqueamento” da sociedade brasileira…

As raízes históricas disto são profundas e é necessário cavar muito para chegar e elas e arrancá-las. Um dos caminhos que vislumbramos é o de assumir a causa do outro. Em um recente texto (abril 2006), elaborado por uma equipe internacional e intercultural de jesuítas sob a coordenação do Secretariado de Justiça Social da Ordem dos Jesuítas (Companhia de Jesus), que circulou no meio dessa Ordem durante a preparação da 35ª Congregação Geral (Órgão Máximo de Governo da Ordem dos Jesuítas), havia, entre outras, a seguinte recomendação: é recomendável que cada jesuíta se empenhe em defender ao menos uma cultura, que não seja a sua! Esta formulação não entrou em nenhum texto oficial, mas é com certeza altamente inspiradora. Trata-se de uma ótima fórmula para um branco romper as algemas de seu embotamento racial, colocando-se na efetiva defesa do negro e fazendo de sua prática cotidiana uma “prática afirmativa” deste outro tão espezinhado em nossa história.

Para concluir: um pensamento a partir da Europa…

Talvez hoje o grande pecado da Europa seja o de não fazer nada pela África!, clamou um dia alguém. Todos nós sabemos que a Europa é rica, graças, em grande parte, a tudo o que conseguiu conquistar e saquear de outros continentes, entre os quais está, sobretudo, a África. Essas conquistas e esses saques não foram algo pacífico… Um rápido passeio pelo continente europeu nos faz lembrar diversos dos seus principais países, envolvidos, em outros tempos, em ações clamorosas contra o patrimônio dos povos africanos e contra a sua dignidade. São muitos os relatos registrados e que sempre voltam à tona em conversas espontâneas, lembrando saques, espoliações, depredações, atrocidades e mortandades no Congo, Kênia, Namíbia, Senegal, África do Sul, Costa do Marfim, Angola, Rodésia, Moçambique e outros países. Ao ouvir tudo isso, ficamos horrorizados ao vermos as notícias sobre uma Europa, que se dá ao direito e ao luxo de repelir, com violência, pobres e famigerados africanos, amontoados em precárias embarcações, tentando entrar pela costa sul, na desesperada busca da sobrevivência.

Se a Europa fosse conseqüente e coerente com suas próprias políticas de direitos humanos, teria que acolher de braços abertos aos africanos e, de joelhos, suplicar o seu perdão, oferecendo-lhes com solicitude compartilhar algo de tudo aquilo que lhes foi tirado. Trata-se de uma mensagem anônima distribuída eletrônicamente. No corpo da mesma mensagem, está mencionado Frederico Mayor Zaragoza, com a sentença seguinte: Não é com o esquecimento que se resolverá o futuro. É com a memória!

Inspiramo-nos nesta observação com relação à Europa xenofóbica para, também, dizer: Não é com o esquecimento do passado que o Brasil construirá o seu futuro. É com a memória!

Notas:

  1. Mais tarde, esta reformulação da LDB foi ampliada pela Lei 11.645 (2008), incluindo também mais explicitamente a história e a cultura dos povos indígenas, no mesmo sentido.
  2. Pinheiro (2011) estabeleceu importante distinção entre branquitude e branquidade: a primeira (branquitude) referindo-se aos brancos que demonstram uma atitude clara negativa ou positiva com relação aos negros; a segunda (branquidade) referindo-se aos brancos, que às vezes são em grande número, que simplesmente ignoram a questão da relação racial como algo inexistente, ou seja, trata-se de algo totalmente bloqueado ou obstruído. A autora se baseia em Maria Aparecida Bento (2002) em Vron Ware (2004) e outros.

Referências bibliográficas:

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BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Paulo Freire, o menino que lia o mundo: uma história de pessoas, de letras e de palavras. SP.: UNESP, 2005.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações e ações para educação das relações étnico-raciais. Brasília: SECAD, 2006.
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico de 2010. IBGE. HTTP://www.ibge.gov.br/home/estatistica/população/conseo2010 (acesso 15/12/2011)
CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
. Racismo e antirracismo na educação: repensando nossa escola. 3. ed. São Paulo: Selo Negro, 2001. CHAGAS, Corrêa das. Negro: uma identidade em construção: dificuldades e possibilidades. RJ. Petrópolis: Vozes, 1996. CRUZ, Levy. Roger Bastide e a Pesquisa da Unesco em São Paulo: introdução a uma crítica. Estudos de Sociologia, Pernambuco, v. 12, n. 2, p. 69-95. 2006. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classe. 3. ed. São Paulo: Ática, 1978. v. 1. . Debate Imperialismo e globalização. In: BENOIT, A. H. R. Sobre a crítica (dialética) de O Capital. Revista Crítica Marxista, São Paulo, v. 1, n. 3, p. 14-44, 1996.
__. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1972.
IANNI, Octávio. O Brasil negro. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2009.
PINHEIRO, Adevanir Aparecida; FOLLMANN, José Ivo. Afrodescendentes em São Leopoldo: retalhos de uma história dominada. Caderno IHU, São Leopoldo, ano 7, n. 30, 2009.
PINHEIRO, Adevanir Aparecida; FOLLMANN, José Ivo. Afrodescendentes em São Leopoldo: memória coletiva e processos de identidades. Revista Ciências Sociais Unisinos. N. 47(2): 143-154, maio/agosto de 2011.
PINHEIRO, Adevanir Aparecida. Identidade Étnico-Racial e Universidade: a dinâmica da visibilidade da temática afrodescendente e as implicações eurodescendentes, em três instituições de ensino superior no sul do País. (TESE DE DOUTORAMENTO). São Leopoldo: Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNISINOS, 2011.
WARE, Vron et al. Branquidade: identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

(*) Assistente Social; Dra. Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – NEABI; Professora da UNISINOS.
(**) Padre Jesuíta, Dr. Sociologia pela Université Catholique de Louvain La Neuve, Bélgica; Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNISINOS.

ÁFRICA – PREFERÊNCIA APOSTÓLICA DA COMPANHIA DE JESUS (JESUÍTAS): UM OLHAR JESUÍTA SOBRE A ÁFRICA BRASILEIRA.

Artigo publicado na Revista Jesuítas, em 2009.

Falar de raça é urgente e necessário, no Brasil

Observação: O artigo se refere às Preferências Apostólicas da Companhia de Jesus em vigor até 2018. Para o período de 2019 a 2029, a Companhia de Jesus optou por quatro preferências: Aprofundamento dos Exercícios Espirituais (prática do discernimento); Os pobres e desamparados; A juventude; O cuidado da casa comum.)

José Ivo Follmann sj (*)

(Artigo publicado na Revista Jesuítas, dezembro de 2009)

Introdução
De alguns tempos para cá, o meu fascínio pelos povos africanos veio crescendo. Trata-se de um aprendizado. Inicialmente aprendi a respeitar e a reconhecer os negros afrodescendentes, no convívio paroquial na Vila Duque em São Leopoldo, RS. Também durante o meu tempo de mestrado em São Paulo, residindo na Zona Leste daquela grande cidade, vi mais de perto a força e a vitalidade da metade negra do Brasil. Na Bélgica, durante meu doutorado, conheci muitos africanos de diferentes países, alguns deles jesuítas, dos quais aprendi muito. Mas quem me faz cultivar o fascínio ao extremo são os líderes de religiões de matriz africana, que participam do Grupo Interreligioso de Diálogo, criado em 2002, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo/RS. A singeleza e a sinceridade com que estes líderes – às vezes, sem mesmo serem afrodescendentes – se referem à mãe África, recitando orações e invocações aos Orixás, nas línguas originárias, sempre me fascinaram.

O meu fascínio cresceu na minha brevíssima estada em Moçambique, em julho de 2009, a convite do Regional Jesuíta, para ajudar em oito dias de Exercícios Espirituais junto a meus companheiros jesuítas, tendo como referência a 35ª Congregação Geral. O grupo do retiro estava constituído por 48 jesuítas, dos quais 37 moçambicanos, 5 portugueses e 6 vindos do Brasil. Fiquei muito feliz ao encontrar companheiros de diferentes províncias do Brasil, e senti-me muito desafiado, sobretudo, frente aos moçambicanos…

Entre os retirantes estava o P. Francisco Almenar sj, meu amigo Paco, e lembrei-me de textos de Notícias que ele enviara, depois de sua chegada ao Moçambique. Em abril de 2008, ele citara algumas frases de sua primeira fala pública em uma celebração, sete dias depois de chegar para abraçar a nova missão em terras de África: Sinto-me como uma criança de sete dias. Como uma criança, preciso que vocês me ensinem a falar como vocês falam, a rezar como vocês rezam, a viver como vocês vivem e a cantar como vocês cantam. Três meses depois, em julho de 2008, num belo hino de louvor ao Senhor, o mesmo Paco assim se expressava: Eu te louvo, Senhor, porque o povo moçambicano é, antes de tudo, um fervilhar de vida, de movimento, de capacidade de resposta e iniciativas ante os colossais obstáculos interpostos pela história…

A humanidade precisa voltar a ser criança para descobrir a África. Não escrevo re-descobrir, porque os primeiros encontros de Europeus com Africanos foram envoltos em intenções de dominação e espoliação e pouco caso se fez por realmente descobrir os povos, a sua história e a sua cultura. Os povos africanos são povos que sobrevivem na alegria, mesmo que carregando muita dor. Uma dor profunda acumulada por diversas dominações coloniais, em suas diferentes formas e origens. Mas, sobretudo, a dor da desagregação, vítimas de administrações coloniais desastradas e que foram concluídas de uma forma desrespeitosa e irresponsável.

Ao iniciar este texto, junto minhas palavras às do meu amigo Paco, prosseguindo na sua prece de louvor: Eu te louvo, Senhor, porque a humanidade está reencontrando a África! Porque a Companhia de Jesus está ajudando a humanidade a reencontrar-se com a África! Porque nós brasileiros nos reencontramos conosco mesmos, reencontrando a nossa metade africana!

A exultação de louvor não é só porque nós brasileiros estamos tomando maior consciência de que a metade de nossa população é negra. Isto é verdade e é fundamental para que se faça justiça à nossa história, mas é importante, sobretudo, lembrar que na África reside o berço da humanidade. O teólogo Hans Küng, em seu vídeo documentário, Religiões do Mundo – Religiões Tribais, em meio às suas reflexões sobre a contribuição dos povos africanos e suas religiões, afirma: “ainda que sejamos muito diferentes, dado as características raciais, todos temos presumivelmente uma origem africana comum. Por baixo da pele, somos todos africanos”.

O presente artigo está focado nesta questão de fundo. Partindo da forte constatação de que o Brasil, em termos numéricos de população, é o segundo país mais negro do mundo, e do vivo chamado da Companhia de Jesus, colocando a África entre as grandes preferências apostólicas nos dias de hoje, recordo, inicialmente, por um lado, a complexidade e a riqueza multicultural representadas no continente africano, e, por outro lado, a imensa e impagável dívida que países de outros continentes, sobretudo do continente europeu, contraíram para com os povos africanos, devido à terrível e desumana dominação e espoliação exercida ao longo da história. O Brasil, mesmo que por motivos diversos dos países europeus, é também grande devedor da África. Além de devedor da África, o Brasil carrega dentro de si, a marca histórica de quase quatro séculos de escravidão, e, a exemplo da maneira perversa como os países europeus “concluíram” as suas dominações coloniais no continente africano, o modo de fazer a “abolição da escravatura”, tremendamente desrespeitoso e carregado de irresponsabilidade administrativa e humana. Neste sentido, o artigo é concluído com um duplo desafio para os jesuítas brasileiros, pois a África está situada no continente africano, mas também está entre nós.


A Companhia de Jesus convoca


A 35ª Congregação Geral, em seu Decreto 3, n.39, reafirmou alguns “pontos de atenção especial” para o apostolado atual da Companhia de Jesus e entre estes pontos ou estas preferências apostólicas está o continente africano. Falando da África como preferência apostólica, o texto diz o seguinte: Conscientes das diferenças culturais, sociais e econômicas, na África e Madagascar, mas conscientes também das grandes oportunidades, desafios e da variedade dos trabalhos apostólicos, reconhecemos a responsabilidade da Companhia na apresentação de uma visão mais integral e humana deste continente. Além disso, todos os jesuítas são convidados a uma maior solidariedade com um apoio efetivo à missão da Companhia de inculturar a fé e de promover mais justiça nesse continente.

Para nós jesuítas brasileiros, a convocação da Companhia de Jesus, para que se assuma a África entre as preferências apostólicas, soa, ao mesmo tempo, como um convite familiar e como um chamado desafiador. O fato numérico de sermos o segundo país mais negro do mundo, ao mesmo tempo em que nos traz à memória lados trágicos de nossa história, nos chama à responsabilidade histórica com os povos africanos, como nossos povos irmãos de sangue. O Brasil pode ser considerado, em parte, uma grande diáspora africana, e, assim, podemos dizer que a África também é aqui. Para a Companhia de Jesus no Brasil, o chamado mundial para uma atenção preferencial pelos povos africanos, soa como um chamado de dupla dimensão. Ou seja, a nossa melhor forma de nos voltarmos para o continente africano, é a de dedicarmos mais a nossa atenção aos afrodescendentes negros em nossa sociedade e sermos facilitadores da recuperação de sua memória e raízes culturais.

Para tal, é necessário, num primeiro momento, que nos afastemos de uma visão simplista que tende a encarar o continente africano como se tivesse uma única identidade ou uma só cultura africana… A África é um conjunto de muitos povos, culturas e línguas. Trata-se de um continente muito complexo, em termos de tradições culturais. Só no país Moçambique, que trago à memória, por uma questão de circunstâncias pessoais já referidas, conhece-se mais de 50 línguas ou dialetos diferentes, revelando uma grande diversidade, apesar de apresentarem uma matriz cultural originária única, que é a matriz banto. A diversidade africana está presente também no Brasil.


Desafio para a Europa


Talvez hoje o grande pecado da Europa seja o de não fazer nada pela África!, clamou um dia alguém. Todos nós sabemos que a Europa é rica, graças, em grande parte, a tudo o que conseguiu conquistar e saquear de outros continentes, entre os quais está, sobretudo, a África. Essas conquistas e esses saques não foram algo pacífico… Um rápido passeio pelo continente europeu nos faz lembrar diversos dos seus principais países, envolvidos, em outros tempos, em ações clamorosas contra o patrimônio dos povos africanos e contra a sua dignidade. São muitos os relatos registrados e que sempre voltam à tona em conversas espontâneas, lembrando saques, espoliações, depredações, atrocidades e mortandades no Congo, Kênia, Namíbia, Senegal, África do Sul, Costa do Marfim, Angola, Rodésia, Moçambique e outros países. Ao ouvir tudo isso, ficamos horrorizados ao vermos as notícias sobre uma Europa, que se dá ao direito e ao luxo de repelir, com violência, pobres e famigerados africanos, amontoados em precárias embarcações, tentando entrar pela costa sul, na desesperada busca da sobrevivência.

Se a Europa fosse conseqüente e coerente com suas próprias políticas de direitos humanos, teria que acolher de braços abertos aos africanos e, de joelhos, suplicar o seu perdão, oferecendo-lhes com solicitude compartilhar algo de tudo aquilo que lhes foi tirado. Li isto, um dia, em uma mensagem distribuída eletrônicamente. No corpo da mesma mensagem, estava mencionado Federico Mayor Zaragoza, com a sentença seguinte: Não é com o esquecimento que se resolverá o futuro. É com a memória!


Desafio para o Brasil: três pontos de reflexão

Os três pontos que vou apresentar aqui retomam o que está desenvolvido num breve texto em co-autoria com a Prof. MS Adevanir Aparecida Pinheiro, Notas sobre a temática dos afrodescendentes negros na escola (Primeiro Fórum de Pedagogia, Unisinos, setembro de 2008).

No Brasil, por muito tempo, tentou-se resolver o futuro das relações étnicorraciais através do esquecimento. Hoje, finalmente, com muita lucidez, vivemos políticas que colocam em primeiro plano a memória.

A história do Brasil escamoteou e continua a escamotear o longo período de quase quatro séculos de escravidão de milhões de africanos negros, fazendo com que a negritude, a branquitude e a relação entre negros e brancos, sejam questões falseadas e insuficientemente resolvidas.

Carecemos, no Brasil, de educação para lidar de maneira justa e lúcida com as conseqüências disso na sociedade e cultura. Isto é tão verdade que foi necessário formular a Lei 10.639 (2003) e legislações subseqüentes como complementações esclarecedoras da Lei 9.394 (Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 1996) no que diz respeito especificamente às temáticas da história e cultura dos afrodescendentes e sua obrigatoriedade nas instituições de ensino. Mais tarde, pela Lei 11.645 (2008) foram incluídas a história e a cultura dos povos indígenas.

Eliane Cavalleiro, em escrito publicado em Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais, do Ministério da Educação (2006), na condição de Coordenadora Geral de Diversidade e Inclusão Educacional, afirma: os 118 anos que nos separam da Lei Áurea não foram suficientes para resolver uma série de problemas decorrentes das dinâmicas discriminatórias forjadas ao longo dos quatro séculos de regime escravocrata. Ainda hoje, permanece na ordem do dia a luta pela participação de negros e negras nos espaços da sociedade brasileira, e pelo respeito à humanidade dessas mulheres e homens, reprodutores e produtores de cultura.

O patrimônio histórico e cultural trazido pelos africanos negros é tão vigoroso, que conseguiu sobreviver e representar um incomparável e marcante legado para a sociedade brasileira. No mesmo texto aqui citado, a autora assim se expressa: Nas formas individuais e coletivas, em senzalas, quilombos, terreiros, irmandades, a identidade do povo negro foi assegurada como patrimônio da educação dos afro-brasileiros. Apesar das precárias condições de sobrevivência que a população negra enfrentou e ainda enfrenta, a relação com a ancestralidade e a religiosidade africanas e com os valores nelas representados, assim como a reprodução de um senso de coletividade, por exemplo, possibilitaram a dinamicidade da cultura e do processo de resistência das diversas comunidades afro-brasileiras.

A ausência da temática dos afrodescendentes negros nas escolas, em todos os níveis, continua sendo gritante, no Brasil. O desconhecimento com relação à África, sua história e cultura, chega a ser escandaloso, quando sabemos quão rica e genuína é a sua contribuição e a de seus filhos e filhas na construção do Brasil e da brasilidade. Trago aqui, nesta singela abordagem sobre a África, como preferência apostólica da Companhia de Jesus, três pontos de reflexão que devem mobilizar a nós jesuítas do Brasil, em primeiro plano…


O medo do desconhecido

Como primeiro ponto de reflexão, retomo uma inspiração encontrada em Carlos Rodrigues Brandão. Este autor, em um de seus livros no qual retratou a história de Paulo Freire “A história do menino que lia o mundo” (2002), destacou que esse menino que lia o mundo, aprendeu a perder o medo porque começou a entender as coisas e o mundo. Nós em geral temos medo frente ao que não entendemos. Quando não se entende de determinado assunto, tem-se muito medo de entabular conversa sobre o mesmo. Talvez possamos dizer que a temática dos afrodescendentes negros no Brasil está muito ausente nas escolas porque existe um grande desconhecimento em torno da mesma. Muitos professores e professoras têm medo de abordar o assunto.

Às vezes se ouve falar que tocar nesse tema pode acender as brasas que estão mortas debaixo das cinzas da história, despertando indesejados conflitos raciais. Trata-se do medo associado ao desconhecimento, pois, no caso específico da temática dos afrodescendentes negros, no Brasil, gera menos conflito proporcionar o conhecimento, do que sonegar o conhecimento.

O campo religioso pode ser considerado uma referência exemplar neste sentido. Os ressentimentos e conflitos tendem a crescer na medida em que imperam a desinformação e o desconhecimento mútuos. Ao contrário, a harmonia, o convívio fraternal, o respeito e o diálogo começam a vigorar na medida em que cresce o conhecimento de par a par. No desconhecimento as religiões tendem a se demonizar mutuamente e a afirmar a superioridade de sua proposta e missão com relação às demais.

Hoje estamos longe do tempo em que o padre católico batizava os escravos africanos negros, dando-lhes a identidade de católicos, ato contínuo à ordem do comprador dos mesmos que mandava marcar com o ferro em brasa (o selo da posse) as suas novas mercadorias, como peças de trabalho. Apesar dessa sistemática violência, a cultura religiosa dos afrodescendentes persistiu em sua riqueza e diversidade. Hoje em dia se pode conversar honesta e tranquilamente sobre isto. Podemos presenciar diversas situações de diálogo e reconhecimento mútuos envolvendo lideranças católicas e lideranças de religiões de matriz africana junto com representantes de diversas outras denominações e confissões religiosas para desenvolver propostas comuns.


A importância da ação afirmativa

Como segundo ponto de reflexão, faço um convite para olharmos de frente a grave questão ideológica, no Brasil, do falseamento, do mito da democracia racial, do esquecimento e do escamotear, que faz das escolas e dos professores veiculadores e reprodutores das explicações fáceis ou das “não explicações”, ajudando a sonegar sutilmente as raízes da identidade dos afrodescendentes negros em nossa sociedade.

É necessário propor, também em sala de aula, com honestidade, o debate público sobre a questão da grande dívida social que o Brasil tem com relação aos afrodescendentes negros que constituem em torno de 50% da população brasileira. Trata-se da metade da nossa sociedade cujos ancestrais foram vítimas de um dos mais longos períodos de escravidão conhecidos na história humana: quase quatro séculos de escravidão de africanos negros no Brasil.

Não faz sentido trabalhar a temática dos afrodescendentes negros no Brasil em sala de aula, se persistir a gritante ausência dos mesmos afrodescendentes nas Universidades. Às vezes são feitas comparações com a situação racial nos Estados Unidos, onde a política afirmativa teve a sua época e hoje já está superada. É importante sabermos que, naquele país, os afrodescendentes negros só representam 12,6% da população e são numerosos os que já conseguiram posições de destaque na sociedade.

As políticas de ação afirmativa são necessárias para recuperar as enormes desvantagens sofridas por um segmento da sociedade com relação a outro, mas elas nunca devem significar abrir mão da exigência no preparo técnico e na qualidade. Devem significar formas criativas e inovadoras de proporcionar acesso ao preparo técnico e à qualificação.


A questão dos brancos

Somos facilmente vítimas de um jogo secreto que desvia a atenção do verdadeiro foco. Segundo a Prof. MS Adevanir Aparecida Pinheiro, que em sua tese de doutoramento está discutindo o conceito de “branquidade”, fala-se sempre em “questão do negro” ou “questão do índio”, quando de fato é uma “questão do branco”, em primeira instância… Se os estudos das relações étnicorraciais não tiverem um olhar atento para esse jogo secreto, continuando focados apenas nas etnias historicamente inferiorizadas, eles poderão ser novamente “um tiro no próprio pé”. Estaremos correndo o risco de redobrar as mesmas escamoteações históricas já conhecidas no Brasil.

Este é o terceiro ponto de reflexão: um convite a que nos associemos à linha de reflexão, que traz ao centro do debate a questão do embotamento da consciência branca eurocêntrica. É uma consciência que permanece, muitas vezes, algemada no seu senso de superioridade. São inúmeros os aspectos históricos relacionados a isto, aos quais se deu pouca atenção no contexto social e acadêmico brasileiro. Esses aspectos muitas vezes são camuflados para não mostrar ou evidenciar as fragilidades e as vergonhas da parte da população sempre (auto-)considerada superior.

As raízes históricas disto são profundas e é necessário cavar muito para chegar e elas e arrancá-las. Um dos caminhos que vislumbramos é o de assumir a causa do outro. Em um recente texto (abril 2006), elaborado por uma equipe internacional e intercultural de jesuítas sob a coordenação do Secretariado de Justiça Social da Companhia de Jesus, que circulou no meio dos jesuítas durante a preparação da 35ª CG, já referida, havia a seguinte recomendação: é recomendável que cada jesuíta se empenhe em defender ao menos uma cultura, que não seja a sua! Esta formulação não entrou em nenhum texto oficial, mas é com certeza altamente inspiradora e faz parte do espírito da Companhia de Jesus. Trata-se de uma ótima fórmula para um branco romper as algemas de seu embotamento racial, colocando-se na efetiva defesa do negro e fazendo de sua prática cotidiana uma “prática afirmativa” deste outro tão espezinhado em nossa história.


Como jesuíta brasileiro: uma provocação

Talvez o mesmo sentimento pulse no coração de muitos companheiros jesuítas no Brasil… Para mim, o grande chamado da Companhia de Jesus, que coloca a ‘África como preferência apostólica’, tem um forte e duplo sentido: se, por um lado, temos a obrigação de ajudar a levar de volta para a África ao menos um pouco de toda inteligência e força humana que foi de lá arrancada para ajudar a construir, à força, o nosso país, somos, por outro lado, convocados a engajar-nos radicalmente no processo de reeducação das relações étnicorraciais em nosso país, contribuindo para que os afrodescendentes negros em nossa sociedade, nesta nossa diáspora africana, possam reconstituir a sua dignidade e suas raízes históricas e culturais.

Se, no passado, de certa forma, nós fomos coniventes com o tráfico de escravos e com a escravidão, que no presente, saibamos ser profetas da reeducação das relações étnicorraciais no Brasil e ativos defensores da reconstituição da dignidade do continente africano, no concerto mundial.

AUTOR:(*) Sacerdote jesuíta. Professor do programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil.