EU CREIO NO TEU AMOR. (ORAÇÃO ESCRITA EM 1980)

Pe José Ivo Follmann sj (30/09/1980)

ORAÇÃO POR MIM ESCRITA AO LONGO DE MINHA EXPERIÊNCIA PESSOAL REALIZADA NA ÚLTIMA ETAPA DE FORMAÇÃO JESUÍTA – CHAMADA “TERCEIRA PROVAÇÃO”, PRIMEIRO EM ITAICI, SP, CONCLUINDO DEPOIS NO INTERIOR DO ESTADO DE CEARÁ, NA DIOCESE DE CRATEÚS.

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De dentro do coração da humanidade, eu ouço o palpitar da vida;

Vida que treme e teme, cansada, parada;

Vida que busca e luta, irrequieta, esperançosa;

Vida que se derrama vitoriosa;

Vida que é eterna, que nos foi doada!

Eu creio na vida, Senhor!

Sim, eu creio, Senhor, porque creio no teu Amor;

Princípio e fonte de toda a vida;

Amor radicalmente pessoal, para com cada homem e mulher, jovem e criança.

Eu creio neste teu amor, porque:

  • O teu Filho o manifestou de forma plena em sua Encarnação, fazendo-se vida dentro de nossa história de pecado até à ignomínia da Cruz;
  • O teu Espírito impele a muitos homens e mulheres, muitas vezes num total anonimato, a derramarem as suas vidas, em comunhão com teu Filho, no serviço aos irmãos;
  • Em toda parte, o anúncio da verdadeira vida e a denúncia de tudo o que destrói a vida, irrompe de dentro dos mais sofridos, humilhados, discriminados e injustiçados da sociedade;
  • De outra forma, eu não compreenderia a minha história onde o teu Rosto e a tua Voz sempre me acolhem em eterna e carinhosa Misericórdia, quando a noite da negação da vida e do amor, nas infidelidades e covardias, cega, oprime e desconcerta.

Por isso eu me prostro em humilde adoração diante deste Mistério Divino e Humano e, digo, do meio de tudo o que me envolve: Faça-se em mim segundo o teu Amor!

Quero colocar tudo o que sou a serviço dos homens e mulheres, jovens e crianças da minha frágil história, dentro da Igreja, na Companhia de Jesus. Ilumina o meu caminho, na fidelidade radical ao teu Amor!

Que o teu Espírito me faça compreender sempre melhor a radicalidade do caminho da Cruz, iniciado por teu Filho no abrigo de ovelhas em Belém e na oficina em Nazaré.

  • Que de ninguém eu desrespeite a dignidade e a todos ajude a despertar para a liberdade;
  • Que de ninguém eu me julgue superior e a todos trate de forma igual;
  • Que de nada eu me escravize e saiba utilizar tudo na medida certa.

Aceita-me como companheiro do teu Filho. Que do lado d’Ele eu aprenda sempre mais a dar a vida:

  • Ao amar e saber ser amado;
  • Ao acolher e saber ser acolhido;
  • Ao criticar e saber ser criticado;
  • Ao ajudar e saber pedir ajuda;
  • Ao perdoar e saber pedir perdão.

Livra-me de todas as formas de autossuficiência e de riqueza; que todos os passos da minha vida estejam marcados pelo serviço e pela partilha com os irmãos; que uma sadia austeridade marque a minha constante solidariedade com os empobrecidos e humilhados desta terra.

Dá-me, Senhor, o dom da salvação! Que eu sempre viva unido a ti, Pai, assim como teu Filho, em Espírito e Verdade. Que a fidelidade radical do teu Filho fecunde de vida e libertação minhas pobres palavras, gestos e todo meu ser.

Que a minha história nunca se desgarre da história dos meus irmãos, mas, sob a luz do teu Espírito, seja um esforço permanente de ajudar a compreender e a viver tudo num mesmo movimento global e regenerador.

Que tudo em mim se oriente no sentido de incentivar todos os trabalhos e iniciativas, que, em suas mais diferentes expressões religiosas, culturais e sociais, se preocupam pela dignidade e liberdade das pessoas.

Que a causa do teu Filho, seja o meu viver! Assim seja!

Bem sabes, Senhor, que este é um caminho difícil para mim, infiel e covarde criatura; por isso, só uma coisa eu te peço: dá-me o teu Amor e a tua Graça, para que eu nunca me esqueça do exemplo de fidelidade das pessoas que me inspiram e animam de modo especial, e, também, nunca mais tenha a coragem de desviar os olhos ou me esconder dos mais empobrecidos e humilhados.

O ENSINO SOCIAL DO PAPA FRANCISCO E A ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO

(Pequeno artigo escrito para a Revista CASA COMUM)

Pe José Ivo Follmann sj (29/06/2023)

Muitas vezes já se ouviu formulações com o seguinte teor: ‘a humanidade parece estar retrocedendo em seu processo civilizatório’ ou ‘estamos perdendo o senso de humanidade’. A prepotência arrogante e autossuficiente de uns poucos vem assumindo formas sempre mais visíveis e descaradas. O descaso e a irresponsabilidade frente à dignidade do ser humano parecem sempre mais ostensivos, em muitas situações políticas, econômicas e sociais. São irresponsabilidades patéticas e humanamente incompreensíveis, mas infelizmente, talvez, perversamente calculadas. Isto está demonstrado, principalmente, no acúmulo inominável da concentração de riquezas de uns poucos e na exclusão, no descarte e na morte da maioria dos mais sofridos. Também se tornaram ostensivas e assustadoras, diversas manifestações extemporâneas de racismos, xenofobias e demais fobias preconceituosas e discriminatórias. Tudo isso em um contexto de violência crescente, ou mesmo, de guerras extemporâneas e sem explicação.

É, a rigor, o descuido para com a vida. Isto parece ter-se tornado uma chaga incurável. É o descuido para com o ser humano em si; mas, também, para com todos os seres vivos e especialmente para com a própria ‘mãe terra’. Vivemos tempos que ameaçam levar de roldão os esforços gigantescos e as conquistas da humanidade, depois de séculos de sofrida construção civilizacional. Infelizmente o quadro que se desenha parece ser o quadro de aceleramento agudo de uma ‘cultura da indiferença’ frente à vida, em todos os sentidos.

O Papa Francisco, colocando-se em profunda sintonia e diálogo com outras lideranças religiosas e humanitárias, tornou-se uma voz vigorosa frente a todo esse desmando da humanidade. A sua contribuição para o Ensino Social da Igreja, por exemplo, é vigorosa e nova, focando em uma ‘espiritualidade do cuidado’ ou, talvez, num sentido mais amplo de apelo profético para o ‘cuidado da casa comum’. Isto está evidenciado sob diferentes aproximações tanto no apelo por uma ‘Igreja em saída’ no anúncio do evangelho no mundo atual (Evangelii Gaudium, 2013), quanto no convite para o paradigma da ‘ecologia integral’ como caminho necessário nesse cuidado (Laudato Si’, 2015) e através do aceno profético para uma ‘fraternidade universal’ e prática da amizade social. (Fratelli Tutti, 2020).

É urgente que um conhecimento novo, formas de engajamento novas e hábitos novos, iluminados por uma ‘espiritualidade do cuidado’, refletindo o ensino social cristão com os parâmetros referidos do Papa Francisco, sejam sempre mais afirmados para a superação da ‘cultura da indiferença’ que, como uma doença silenciosa, vem matando a humanidade.

A Espiritualidade, que hoje nos é solicitada, é uma ‘espiritualidade do cuidado’. É um convite para uma profunda disposição pessoal de busca dos melhores caminhos na construção de sociedades geradoras de vida; de nos refazermos em nossa capacidade de reconhecer o outro em sua dignidade; de nos indignarmos frente às desigualdades escandalosas e inaceitáveis e à situação desumana vivida por muitos irmãos e irmãs; de cuidarmos da vida e dos dons da criação, impelidos pelo amor a todas as formas de vida que pulsam neste planeta terra, no presente, e que, a depender de nós, pulsarão no futuro.

Nos últimos anos, talvez em grande parte como resposta ao alerta com relação aos riscos impostos pela ‘cultura da indiferença’, ou como resultado do impacto da grave pandemia sofrida, presenciamos a manifestação de muitos testemunhos individuais e grupais de reação importante contra os desmandos que acontecem. Entre outras iniciativas, foram se constituindo e reforçando, por exemplo, redes e iniciativas de educação popular para rearticular uma produção de conhecimento autêntica e democrática, fortalecendo novas práticas e hábitos. Testemunhamos muitas pessoas demonstrando extrema atenção e cuidado vigilante para que, nos tempos tenebrosos vividos, as coisas não desandassem de vez e o prejuízo fosse grande demais para a população.

Mesmo que a gravidade do impacto de toda degradação presenciada turve nossos horizontes, talvez possamos celebrar novos alentos para um tímido incremento na civilidade, no cuidado pelos outros, perceptível em certos comportamentos e nos espaços públicos. Trata-se de uma novidade que também se fez visível em algumas lideranças empresariais. Talvez sejam resultados da reação frente ao impacto da pandemia…

É importante povoar o nosso próprio habitat dessa consciência, refletindo-se tanto no cuidado e atenção às pessoas que conosco vivem e que nos procuram, como cuidando do bom uso de tudo, evitando desperdício e favorecendo reaproveitamentos. Que as crianças e jovens que crescem em nosso meio possam beber de nossas vidas e de nosso testemunho, uma autêntica ‘cultura do cuidado’ impulsionada pela ‘espiritualidade do cuidado’.

POR QUE QUERES SER PADRE?

O pequeno texto que tomei a liberdade de postar, foi escrito por mim em dezembro de 1974, um pouco mais de um mês antes de assumir o “ministério presbiteral” como padre jesuíta. Eu já havia recebido dois meses antes o “ministério diaconal”. Foi um pequeno texto escrito então, às pressas, a pedido da “Revista Notícias para Nossos Amigos” que o publicou (n. 123/124, NATAL, 1974). Fiquei muito feliz em rever este pequeno texto, agora, quase cinco décadas depois… (Reproduzo o texto literalmente, assim como foi publicado na época.)

José Ivo Follmann, S.J.

Dezembro de 1974

Estou nas vésperas do meu sacerdócio…

Se olho para mim agora, vejo desenhadas nos meus gestos, nas minhas atitudes e nos meus pensamentos todas as vivências, todas as amizades e todos os ambientes que já experimentei ao longo da minha vida.

Ao longo da minha trajetória, que teve muitos momentos altos e, também, muitos momentos baixos, foi-se delineando, pouco a pouco, isto que hoje sou… isto é, alguém que optou definitivamente pelo sacerdócio.

Muitos, duros e enriquecedores, foram os questionamentos que diariamente me foram dirigidos, como também grandes foram os incentivos que sempre fielmente me acompanharam, seja a nível de colegas de estudo na Universidade, seja a nível de colegas de trabalho, seja da parte do grupo de amizade e de vida religiosa, que sempre me manteve de pé.

Uma pergunta constantemente se fez presente: Por que queres ser padre? Acho que nunca consegui dar uma resposta completa… Ou, mesmo que muitas vezes tenha conseguido satisfazer aos que perguntavam, eu sempre fiquei com a impressão de não ter dito quase nada daquilo que teria de fato gostado de dizer.

No início, como adolescente, eu via no padre uma espécie de ideal a conquistar ou quiçá uma posição social a galgar… era algo muito definido. A resposta então era fácil, bastava repetir três ou quatro chavões mal assimilados e aprendidos de outros. Agora, já não sou adolescente. Estou às vésperas do sacerdócio.

Já não sei mais definir com clareza o que é o padre. Já não vejo no ser padre uma posição a conquistar. Agora, apesar de ainda não ser, já estou sentindo na pele o que significa de fato ser padre.

Os meus estudos, os contatos que tive e as reflexões que fiz me puseram diante da crua realidade, não do sacerdócio, acobertado por uma capa bonita e triunfalista, mas da vida dos padres e da vida da Igreja em geral, onde se delineiam casos dos mais tristes e desalentadores até os mais alegres e incentivadores. Se por um lado está havendo um grande esforço da parte da Igreja e de seu clero por serem uma força que desperta e aviva constantemente para uma resposta crescente ao chamado de Cristo, que é um chamado para o Serviço dos homens, por outro lado percebo sempre com mais crua nitidez o quão longe estamos de uma resposta autêntica ao mesmo Evangelho de Cristo.

Posso dizer que minha vocação despertou e se confirmou na medida em que fui percebendo a radicalidade da Mensagem de Cristo, e, na medida em que fui vendo quão longe estamos do caminho que Ele nos indica. Vejo o ser padre como um radical comprometer-se com Cristo e com os cristãos.

Todos os cristãos são chamados por Cristo a uma missão fundamental que é a de estar sempre a serviço dos outros, ajudando-os a encontrarem-se consigo mesmos e com seus irmãos, a fazerem tudo para o bem e com amor, e caminharem assim para Deus. Aqueles que recebem a Ordem Sacerdotal se comprometem na tarefa específica de presidir neste serviço. Mas não entendam mal, o “presidir” não quer dizer nenhum cargo honorífico ou de dominação, mas quer dizer “facilitar”… O sacerdote deve ser o facilitador da autêntica vida cristã dos membros de sua comunidade ou dos seus companheiros de trabalho.

O padre é facilitador especialmente pelo fato de se colocar em total disponibilidade, esteja onde estiver, pela causa do Evangelho de Cristo na vida das pessoas.

Este aspecto do sacerdócio ministerial é o que mais me diz, por isso o acentuo aqui; não seja, no entanto, entendido em detrimento dos demais aspectos que não menciono…

(Quando a gente é convidado a falar assim “de coração, de improviso, sempre sai aquilo que está nadando em cima, e que nem sempre é o mais radicalmente teológico).

É isso aí!… Mais uma vez tenho a sensação de ter tentado responder à pergunta “Por que queres ser padre? A desvantagem é que desta vez foi em cima de um papel que, por mais pessoal que queiramos fazê-lo, sempre permanece com um sabor de impessoalidade…

Para finalizar, uma palavra de gratidão. Gratidão porque eu sei que todos os que leem esta página têm algo de muito profundo a ver comigo. O mais fantástico e vital para alguém que dá um passo importante em sua vida é saber que não está só, que isto mexe com muitos outros, que alimentam o mesmo ideal e que dão força.

Por isso, não sei como agradecer a todos quantos, me criticando, me incentivando com sua amizade e oração e apontando para o Evangelho, me fizeram e fazem levar a minha vida a sério e a identificar no sacerdócio ministerial a minha maneira de responder ao chamado, que Cristo dirige a todos os cristãos.

O CUIDADO COMO UM LEGADO ESPIRITUAL INACIANO NA “PÓS-PANDEMIA”.

Publicado na Revista EM COMPANHIA, em julho de 2020.

Texto de reflexão espiritual com perspectiva formação pastoral

Artigo para a Revista Em Companhia, Província do Brasil, Companhia de Jesus

José Ivo Follmann sj – 15/07/2020

A palavra cuidado é muito importante no vocabulário interno da Companhia de Jesus. Pode-se dizer que o “cuidado das pessoas” e o “cuidado apostólico” fazem parte da espiritualidade inaciana e do modo de ser jesuíta. Também o “Cuidado da Casa Comum”, que se consagrou com a Carta Encíclica Laudato Sí, em 2015, com o Papa Francisco, reflete uma longa história de tomada de consciência interna à Companhia de Jesus, ao longo das últimas Congregações Gerais, na construção de relações justas com Deus, com os outros na sociedade e com os dons da criação, ou seja, no cuidado da vida em todas as suas dimensões e expressões.

Foi o que me veio à mente, de imediato, frente à pergunta feita pela jornalista sobre qual o “legado da vida e espiritualidade de Santo Inácio” em vista de um compromisso nosso na “nova realidade pós-pandemia”. Mas, talvez, o início da resposta, deva ser: “ver Deus em tudo”. Também é uma expressão de síntese vigorosa na espiritualidade inaciana. Além de síntese vigorosa é uma expressão de força indescritível. É algo profundamente mobilizador. Muitas vezes me deixo arrebatar pela riqueza espiritual tremenda que está assim expressa.

Em Inácio de Loyola, isto se moldou dentro de um processo profundo de conversão. Ele se entregou radicalmente a esse processo deixando que uma nova espiritualidade reconfigurasse a sua vida.

A humanidade, hoje, tem a oportunidade de entregar-se, como um todo, a um processo de transformação em suas “normalidades”. A sacudida em Inácio de Loyola foi radical e gerou um projeto pessoal e coletivo totalmente novo. Cada um e cada uma de nós tem a alegria de participar e de estar envolvido e envolvida, de alguma forma, no projeto coletivo que resultou da conversão de Inácio de Loyola. Nós comungamos, através desse projeto, na mesma Missão de Jesus Cristo.

A sacudida da humanidade, no atual momento de pandemia, está sendo intensa e, por todos os recantos da terra despontam sinalizações e vislumbres consistentes de um novo mundo possível e necessário. Estão sendo tecidas novas lógicas em nível pessoal e coletivo. O seu alcance e sua consistência ainda não são mensuráveis. Mas, com certeza, apontam para a necessidade e a urgência da transformação radical.

Ainda estamos afundados na pandemia. Ainda não sabemos quando poderemos vislumbrar a nova realidade, que alguns estão chamando de “pós-pandemia”. Ainda temos dificuldades para desenhar, em nossas mentes e corações, essa realidade futura. Algumas ideias são repetidas. Vou citar duas: 1) A pandemia veio para inaugurar definitivamente aquilo que, há muito tempo, vem sendo denominado de “mudança de época”. 2) Com a pandemia as seguranças que marcaram as normalidades do século XX caem por terra e se inicia, de verdade, o século XXI.

Segundo o Cardeal José Tolentino Mendonça, a atual pandemia nos faz entrar em uma nova época da história. A pandemia vai passar. Mas nós já estaremos em outra época da história, em termos culturais, civilizacionais e espirituais: uma época espiritualmente outra. (Palestra, FAJE, junho 2020)

Como já sinalizei, Inácio de Loyola foi um radical. Foi personalidade que protagonizou rupturas radicais em sua própria trajetória. Inaugurou uma espiritualidade transformadora, radicalmente contestadora das lógicas dominantes em sua própria família e em seu contexto social e cultural. Ele mexeu nas estruturas de base que o sustentavam. A guinada espiritual lhe proporcionou um novo sentido à vida. Passou a ver as pessoas e as coisas a partir de uma lógica totalmente outra. Passou a “ver Deus em tudo”, assumindo um comportamento totalmente novo.

A pandemia também vem mexendo muito conosco. Mexeu com nossas lógicas. Mexeu com as estruturas de base e as certezas que nos sustentam. Ela reacendeu, em todos os recantos da terra, a busca e a escuta das diversas vozes da sabedoria humana na história. Essas vozes sempre estiveram presentes. Infelizmente a humanidade tornou-se surda a elas.

Em uma leitura que fiz em inícios de 2019, de um pequeno livro de Leonardo Boff (2018), de antes da pandemia, uma passagem me chamara particular atenção: “Vamos criar juízo e aprender a ser sábios e a prolongar o projeto humano, purificado pela grande crise que seguramente nos acrisolará”. O autor referia duas passagens riquíssimas da Sagrada Escritura, onde Deus aparece como “apaixonado amante da vida” (Sb 11, 24) e que nos faz um apelo radical: “Escolhe a vida e viverás” (Dt 30, 28). Leonardo Boff escrevia: “Andemos depressa, pois não temos muito tempo a perder”.

A pandemia me fez compreender mais profundamente aquela assertiva. Eu torço, agora, para que a pandemia possa efetivamente contribuir para que paremos de correr na direção errada (da morte) e para que aceleremos os passos na direção certa (da vida).

As nossas instituições vão estar povoadas de protocolos para o exercício do cuidado conosco e com quem está conosco. O nosso avanço, no entanto, deve apontar para muito além desses protocolos. Que o sonho, ou, o apelo à conversão, que o Cardeal Tolentino manifestou, ao falar em nova época “espiritualmente nova”, se faça um efetivo processo de transformação em nós!

Eu torço para que saltemos muito além dos protocolos e que o processo de conversão se faça realidade na disposição de nossos corações, fazendo-nos efetivos no cuidado: a) Cuidado por refazermos em nós a capacidade de reconhecer o outro em sua dignidade, mediante gestos concretos de fraternidade, acolhimento e denúncia de toda ordem de preconceitos e discriminações; b) Cuidado por delinear caminhos para a construção de sociedades geradoras de vida, sem as escandalosas e crescentes injustiças sociais e desigualdades; c) Cuidado por cultivar a vida em todas as suas expressões e dons da criação, em geral. Em suma, um cuidado regenerador nosso no amor a toda a vida que pulsa em nossa Casa Comum.

Colocados no horizonte da Ecologia Integral e do cuidado da Casa Comum de que nos fala a Laudato Sí (2015), todos os cuidados aqui mencionados são dimensões da prática da justiça socioambiental. A realidade “pós-pandemia” deverá encontrar-nos profundamente revigorados/as na disposição de sermos, em nosso cotidiano e em todos os níveis de nossa atuação, cultivadores/as da justiça socioambiental. Talvez deva ser um dos traços fundamentais da espiritualidade que necessitamos.

Neste sentido, o Marco da Promoção da Justiça Socioambiental da Província (Marco PJSA), em sua nova edição (2020), conclui com fortes apelos para que nos empenhemos em propor que a economia esteja a serviço das necessidades básicas de todos os seres humanos e de sua qualidade de vida, bem como conserve os dons da criação e não continue comprometendo mortalmente a natureza. Que, em nossas vidas, em nossas instituições e no mundo econômico, político e social, sejamos protagonistas do cuidado com a vida, uma vida digna para todos e todas.

É importante que junto com toda a humanidade tenhamos aprendido a lição da pandemia. Um aprendizado de que não podemos voltar a fazer as mesmas coisas e da mesma maneira.

CAMINHOS DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL E ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO

Palestra proferida na UNICAP, Recife, PE, em abril de 2020.

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

Conferência preparada por José Ivo Follmann para: III Seminário de Espiritualidades contemporâneas, pluralidade religiosa e diálogo.

UNICAP, Recife 22-24/04/20 20 (evento postergado). Publicado em E-Book: GILBRAZ, Aragão; VICENTE, Mariano (orgs). Desafios dos Fundamentalismos (Espiritualidades, Transdisciplinaridade e Diálogo – 3). Recife: EdUnicap/OTTR, 2020, pp. 113-133.

CONTEXTUALIZAÇÃO

Talvez possa ser chocante iniciar este texto sobre “caminhos de justiça socioambiental e espiritualidade do cuidado” mostrando imagens que expressam flagrantes injustiças.

É o olhar de uma criança negra, representando milhões de olhares de crianças obrigadas a sobreviver no meio dos dejetos do escandaloso déficit habitacional de nossas periferias. São crianças que crescem dentro de submundo estreito e desumano. É um olhar, que na sua expressão de inocência e encanto, grita por justiça. É um olhar no qual se perfilam milhões de olhares de adultos, já não mais inocentes, mas humilhados, desconfortados, revoltados ou desesperadamente conformados, na dor e na angústia de um “destino” injustificado, interrogando diariamente o mundo do luxo, do desperdício e da indiferença que os esmaga. Uma interrogação que vem do mundo do lixo, da fome e do anseio por atenção e reconhecimento.

No olhar triste e desencantado do líder indígena frente a um dos múltiplos monstros empreendedores, devastadores do seu habitat, se mistura a tristeza e o desespero de centenas de povos originários vítimas de processos genocidas que marcam a história latino-americana, em geral, e brasileira, em particular, ao longo de mais de 500 anos. Aliás, a marca genocida do processo colonizador já perturbou muitas vezes a minha mente. Isto, sobretudo, porque continuamos marcados pela mente colonizadora e grande parte de nosso existir, inclusive, de nossas espiritualidades não consegue se libertar disso. É um olhar que nos interroga com vigor, ao mesmo tempo, fascinante e profundamente perturbador. Um olhar acompanhado pelo grito desesperado dos povos indígenas sendo diariamente violentados em todo território amazônico.

Depois de mais de quinhentos anos não conseguimos, ainda, nos libertar do processo colonizador ou colonialista, que continua habitando as nossas mentes, os nossos comportamentos e impregna os nossos governantes. Parece que na sociedade brasileira, como também acontece em muitas outras sociedades, a própria humanidade e o “bom senso humano” ficaram abafados, reprimidos e esquecidos. O ser humano foi desviado de sua real identidade, se assim se pode dizer. Isso poderia soar como uma frase de efeito poético se não fosse a gravidade geradora de conflito de que é portadora.

Diversas pessoas que iniciaram esta leitura talvez se sintam desconfortadas, como eu mesmo me sinto, em trazer aqui como chamada inicial, um mote tão repetido e tão batido, que é este tema. Mas precisamos ser honestos com a nossa história e a nossa realidade. Dissimular, esquecer, colocar panos quentes, sempre foi o pior caminho. Todos/as sabemos isto. Deixemos que a história nos incomode. Quem for historiador nos perdoará por mais este pequeno pecado…

Um dia, alguém disse que a América Latina seria totalmente outra se os “colonizadores” no século XV e XVI tivessem tido um mínimo de reconhecimento dos seres humanos, das populações e dos povos que habitavam, nesse contexto, e que nela tinham o seu habitat há milênios. Se, ao invés de uma postura de não reconhecimento, de dominação e de espoliação, tivesse ocorrido simplesmente um movimento de aproximação, de intercâmbio, de diálogo e de mútuo enriquecimento, a história seria outra.

Isso soa absurdo, pois não se deve ler o passado com os paradigmas do presente. No entanto, infelizmente, os paradigmas do passado permanecem vivos e a perversidade denunciada, num passado longínquo, continua absurdamente atual, em todos os processos de dominação, exploração e desrespeito aos seres humanos, que, mais do que nunca, se multiplicam em nossa sociedade.

Voltando à imagem da criança negra olhando para nós do meio do lixo, precisamos fazer, também, um recuo histórico. Não vamos comentar os quase quatrocentos anos de escravidão de africanos no Brasil, que marcaram de forma indelével a estrutura social brasileira. A nossa atenção vai focada na maneira como se deu a chamada “abolição da escravatura”, ou seja, a realidade da população negra no imediato pós-escravidão ou pós-abollição. Como os afrodescendentes se viram tratados depois que deixaram de ser escravos? Não se pode dizer que a tragédia foi maior que a sofrida pelos povos indígenas, porque estes, desde a ocupação comandada a partir do tempo de Pedro Álvares Cabral, nas costas brasileiras e anteriormente, por outros aventureiros, em outras costas latino-americanas, até nossos dias, sobrevivem como vítimas de um permanente genocídio. Mas o que se desenhou desde os tempos de pós-escravidão ou pós-abolição, até nossos dias, com relação à maioria negra da população brasileira, é o processo de invisibilidade. Trata-se de uma invisibilidade desenhada no bojo do processo de branqueamento que foi o grande projeto nacional. As políticas de branqueamento, desde o final do Império, com Dom Pedro II, vieram dominando grande parte de nossa história, produzidas e tuteladas, sobretudo, pelas elites dominantes.

Eu gosto muito de um conceito trabalhado por Adevanir Aparecida Pinheiro,[1] que é o conceito de “branquidade”, diferenciando de “branquitude”. Esta autora (2014) retoma estes conceitos que ela já desenvolvera em sua tese doutoral em 2011. Branquidade diz respeito aos sujeitos que negam a importância do conceito de raça enquanto conceito político, não se abrindo para o diálogo sobre essa importância. Por sua vez quando os sujeitos brancos aceitam a importância do conceito de raça enquanto conceito político e interagem de igual para igual, aí sim, segundo a autora, nós podemos falar em branquitude.  Ao contrário de branquitude, a branquidade seria o resultado mais radical e perverso do branqueamento. O seu enraizamento na sociedade é um entrave muito complicado para que se possa implementar uma verdadeira educação das relações étnico-raciais. O primeiro passo para esta educação deverá ser a quebra da prisão da branquidade, para que a branquitude se liberte. Os brancos e brancas pensando, sentindo e vivendo revestidos de branquitude, terão de fato condição de contribuir na recuperação da verdadeira identidade nacional de tríplice referência: indígena, negra e branca.

Não temos como falar de autêntica espiritualidade do cuidado sem desobstruir este tríplice caminho. É necessário limpar os três acessos, as três vertentes, pois sabemos que as melhores contribuições e legados da espiritualidade do cuidado estão nas duas vertentes que historicamente foram obstruídas. E pior, obstruídas por espiritualidades demasiadamente contaminadas por lógicas e racionalidades brancas europeias.

Mas o que tem a ver tudo isto com justiça socioambiental? Tem tudo a ver. A alma da justiça socioambiental é a espiritualidade do cuidado. Se não colocarmos estas referências duras de nossa história no centro de nossa reflexão, a nossa abordagem sobre justiça socioambiental no Brasil será fatalmente manca e sem sentido. Como também a espiritualidade do cuidado não passará de um jogo de máscaras. Por quê? Porque as vítimas centrais das injustiças (socioambientais) estariam ausentes. E, a rigor, as vertentes mais lúcidas da espiritualidade do cuidado não estariam no centro do palco, ou seja, os principais protagonistas da espiritualidade do cuidado continuariam sendo as vítimas centrais (invisíveis) das injustiças.

CONCEITO DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL[2]

Na Laudato Sí (L.S. n. 49), o Papa Francisco, assim se expressou: “hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres”. (Grifos do autor).

No Marco de Orientação da Promoção da Justiça Socioambiental – Marco PJSA, da Província dos Jesuítas do Brasil, temos a seguinte formulação para definir justiça socioambiental:

Todas as ações que têm como objetivo colaborar para a superação das injustiças presentes em nossa herança histórica e reproduzidas pelo atual modelo de desenvolvimento extrativista e financeiro, gerador de desigualdades sociais e de agressões ambientais inomináveis. A rigor, dentro da perspectiva da concepção de ecologia integral, que nos foi apresentada pelo Papa Francisco, em sua Carta Encíclica Laudato Si (LS), existe uma sinalização implícita do conceito de (in)justiça envolvendo o nosso convívio na Casa Comum, em todas as esferas de relações, com o convite para um processo urgente e necessário de reconciliação e construção de relações justas. Trata-se basicamente de todas as relações que o ser humano empreende: as relações com Deus; as interpessoais, de geração, de gênero, étnico-raciais, religiosas, culturais, sociais, políticas, econômicas e, também, com os dons da natureza“. (JESUÍTAS, 2020)

Está muito evidente que, de fato, no chamado do Papa, na Carta Encíclica, está embutido um desafio à realidade humana como um todo, em toda a sua complexidade. Esta é a grande novidade, a grande inovação em termos de Ensino Social da Igreja, que Laudato Sí expressa. A Justiça Socioambiental não pode ser, simplesmente, pautada como conjunto de práticas reativas a situações pontuais, decorrentes dos chamados conflitos ambientais, como muitas vezes o conceito é trabalhado na Academia. Ela é uma intervenção na sociedade como um todo em seu modo de ser e se organizar, incluindo a relação com os dons da criação e, a rigor, a espiritualidade

Estamos vivendo em um mundo estragado (degradado) em todos os aspectos. Isto envolve as pessoas em suas relações, a organização social em suas relações políticas, econômicas e culturais, e, também, o meio ambiente como um todo. É neste mundo como um todo que incide a justiça, que será justiça socioambiental na medida em que tiver no horizonte a complexa inter-relação de tudo. O desafio está em propor um conceito de justiça socioambiental que seja efetivamente operacional abrangendo os diferentes níveis de ação, tanto em nossos processos de produção de conhecimento, como nos processos de tomada de decisão e nos processos da vida do dia-a-dia, no cotidiano.

Muito se avançou, por diversos caminhos e tempos recentes, na reflexão teológica e pastoral focando o cuidado da vida em todas as suas dimensões e sublinhando a ideia de que “tudo está estreitamente interligado”. (L.S. 16). O Patriarca Bartolomeu, referido pelo Papa Francisco (L.S. 6), fala em “túnica inconsútil da criação”. O duplo foco, do cuidado da vida e da inter-relação de tudo, é uma ponte direta para a retomada de elementos centrais nas diferentes tradições teológicas e religiosas que tomam consciência da permanente atualidade de suas intuições ou revelações originárias, apontando para o grande “religar” no “cuidado da alma da humanidade”.

TRÊS ÊNFASES TEMÁTICAS OU DIMENSÕES DA JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL

O Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA,[3] tem buscado enfrentar esse desafio construindo, teórica e empiricamente, um conceito de justiça socioambiental, centrado na atenção a três ênfases temáticas ou dimensões. Em cada uma dessas três dimensões podemos identificar, transversalmente, três posições estratégicas para incidir na realidade ou níveis de incidência na construção da justiça socioambiental. O que para alguns pode parecer, à primeira vista, um artifício complicador, é no entanto, um potencial operativo de fácil manejo na organização consistente de nossas ideias e ações, a rigor de nossa práxis transformadora.  

Falando a linguagem da cultura do cuidado, estamos focados em três grandes cuidados: o cuidado da dignidade humana, o cuidado dos dons da criação e o cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas, diminuição das desigualdades sociais.

  • O Reconhecimento da dignidade do ser humano.

É a dimensão do cuidado da dignidade humana, amparada no reconhecimento. Esta dimensão acontece, na prática, nas relações com o diferente, nas relações étnico-raciais, religiosas, de geração, de origem nacional, de visões de mundo e opções, buscando sempre formas de estabelecer o diálogo, o valor da pluralidade e a inclusão de todos/as.

A justiça começa a ser construída na medida da tomada de consciência de que todos somos habitantes e fazemos parte da Casa Comum e cada um/a tem o direito de ser reconhecido em dignidade nas suas diferenças. Assim são práticas de justiça socioambiental, todas as práticas que reconhecem e cultivam por dentro das diferenças de todas as ordens, a dignidade do ser humano e suas particulares repercussões na vida pessoal e cultivo da própria dignidade em nossa Casa Comum.

  • Cuidado dos dons da criação, da vida e da saúde dos ecossistemas.

É a dimensão do cuidado dos dons da criação. Trata-se da conservação, preservação e usos adequados dos dons naturais, em vista do cuidado dos ecossistemas saudáveis e da vida para o futuro do planeta terra e de seus habitantese atenção especial ao nosso modo de ser, viver e trabalhar e à diversidade da vida nos diferentes biomas de cada território.

A justiça socioambiental, nesta dimensão, se expressa através de práticas com relação aos dons da criação, que podem ser percebidas nos diferentes níveis de participação social, indo desde uma radical revisão das práticas na produção do conhecimento, das tomadas de decisão e do tratamento harmonioso e equilibrado dos dons da criação, no seu cultivo e uso no dia-a-dia. Estão em pauta, neste ponto, as repercussões destas práticas do bom equilíbrio e harmonia das condições da nossa Casa Comum.

  • O Ordenamento das políticas, da sociedade e da economia em vista da diminuição das desigualdades sociais.

É a dimensão do cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas. Nesta terceira dimensão está fundamentalmente em questão a diminuição das desigualdades, das exclusões sociais e da pobreza, pela busca do acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, segurança, saúde, moradia, educação, alimentação e nacionalidade. A rigor, o que está em pauta, são os grandes e pequenos processos decisórios na sociedade em seus ordenamentos políticos e econômicos e na condução das políticas públicas. Estão em pauta bons resultados de tudo isto, para um convívio harmônico e inclusivo em nossa Casa Comum.

Assim, com o foco na ideia de que tudo está interligado nesta nossa Casa Comum, são práticas de justiça socioambiental, práticas econômicas e políticas pautadas no atendimento aos direitos sociais e humanos básicos, no reconhecimento da dignidade do ser humano e no cuidado dos dons da criação como dimensões básicas no Cuidado da Casa Comum.

Três posições estratégicas ou níveis de incidência na promoção da justiça socioambiental

Tentando pensar na prática o nosso compromisso com a promoção da justiça, nesta perspectiva de amplitude socioambiental, faço um convite para buscarmos atalhos operacionais. Podemos, neste sentido, distinguir três níveis concretos, como diferentes instâncias ou posições estratégicas na realização da justiça ou da justiça socioambiental. As práticas de justiça devem expressar-se no nível da produção do conhecimento, no nível das tomadas de decisão, e, sobretudo, no nível cotidiano de nosso ser, viver e agir, no dia-a-dia.[4]

Em nível de produção do conhecimento, através do reconhecimento das diversas formas de saber e de percepção da vida e das coisas, muito para além dos simples conhecimentos disciplinados pelo mundo acadêmico, destaca-se a busca da superação da linha abissal que separa, por um lado, conhecimentos academicamente valorizados e, por outro lado, saberes excluídos do mundo racional-científico. Destaca-se a valorização da diversidade na percepção da realidade. Nos aspectos relacionados à Igreja, o convite é absorver com humildade os conhecimentos populares e tradicionais em nossas práticas religiosas, através da consolidação de uma “Igreja em Saída”. Em suma, é uma proposta de buscar valorizar uma “ecologia dos saberes”, de modo geral e, em particular, nas práticas de Igreja.

No nível da tomada de decisões, a postura de cultivo aberto e não excludente do conhecimento, respeitando o lugar de fala de cada um e de cada uma, imprimindo práticas cada vez mais democráticas é, sem dúvida, aporte fundamental para um maior acerto na gestão, dando conta de autêntica e ampla cultura de participação e de reconhecimento da dignidade dos sujeitos envolvidos nas decisões, na política, na economia e na organização social, cultural e institucional. Neste sentido, sugere-se caminhar para formas inovadoras de implementar e avaliar as políticas públicas, formas estas embasadas em indicadores mais sustentáveis e na busca de uma sociedade equitativa e justa, em termos políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais.

Enfim, no nível das práticas do cotidiano, estamos no chão do cuidado por dentro das práticas pessoais e coletivas no dia-a-dia. É o campo do cotidiano, o campo da singeleza e simplicidade do dia-a-dia, do cuidado e da justiça, na vida como ela acontece. O espaço e o tempo de profundo sedimentar do cuidado da nossa Casa Comum, no testemunho vivo do reconhecimento do outro dentro de suas especificidades culturais, religiosas, entre outras, por mais diferentes que possam ser frente às nossas. Aqui, sem dúvida, todos/as somos chamados/as a uma conversão socioambiental radical e profunda em nossas práticas cotidianas, sejam elas pessoais ou institucionais.

A PRÁTICA DA JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL COMO ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO[5]

Penso que, sempre tendo presente as três ênfases ou dimensões em pauta (o ser humano em sua dignidade, o convívio com os dons da criação e o ordenamento socioeconômico e das políticas púbicas) e as três posições ou níveis de incidência (produção do conhecimento, influência nos processos de decisão e o modo de ser na vida cotidiana), a humanidade, em geral, e a sociedade brasileira, em particular, necessitam urgentemente centrar-se na cultura do cuidado e desfazer-se da tragédia da cultura da indiferença.[6] A atenção central deve ser colocada na dimensão relacional e na interligação de tudo dentro do convívio humano, nas relações interpessoais, na sociedade e em relação aos dons da natureza.

Este é o chão concreto de realização da prática da justiça e, mais especificamente, a prática da justiça socioambiental. Precisamos estar cuidadosamente atentos à prática da justiça socioambiental em todo complexo convívio humano. Este estar “cuidadosamente atentos” é o que, aqui, também chamo de espiritualidade do cuidado. É denominada assim porque tem em seu centro o permanente cuidado da dignidade humana e da vida em todas as suas manifestações.

Em outras palavras, é uma espiritualidade que perpassa o cuidado da dignidade humana, o cuidado dos bens da criação e o cuidado do ordenamento social e econômico de inclusão e igualdade. Estes cuidados podem ser exercidos tanto em nível de produção do conhecimento, de influência nas tomadas de decisão e no modo de ser, viver e agir dentro do cotidiano.

Precisamos de uma espiritualidade que nos mude, radicalmente, em nossas práticas. Que nos faça retomar o verdadeiro caminho da justiça. Leonardo Boff, em “Reflexões de um velho teólogo e pensador” (2018) nos aponta que:

“A singularidade de nosso tempo reside no fato de que a espiritualidade vem sendo descoberta como dimensão do profundo do ser humano, como o momento necessário para o pleno desabrochar de nossa individuação e como espaço da paz no meio dos conflitos e desolações sociais e existenciais”. (BOFF, 2018, p.166)

A espiritualidade é geradora de mudança interior. O autor nos lembra um pensamento radical do grande líder religioso oriental Dalai Lama: “Espiritualidade é aquilo que produz dentro de nós uma mudança”! (“Se não produz em você uma transformação, não é espiritualidade”!). O autor comenta esta frase, afirmando que existem mudanças e mudanças. O ser humano é um ser de mudanças, pois nunca está pronto. No entanto, há “mudanças que não transformam sua estrutura de base” e há mudanças que são verdadeiras transformações “capazes de proporcionar um novo sentido à vida ou abrir novos campos de experiência e de profundidade, rumo ao próprio coração e ao Mistério de todas as coisas. Não raro é no âmbito da religião que ocorrem tais mudanças. Mas nem sempre”. (BOFF, 2018, p.165-166)

Esta manifestação pelo valor da espiritualidade, como força regeneradora, está amparada no próprio grito do autor, que nos diz: “vamos criar juízo e aprender a ser sábios e a prolongar o projeto humano, purificado pela grande crise que seguramente nos acrisolará”. (BOFF, 2018, p. 158). Acrescenta:

Incentivam-nos as escrituras judaico-cristãs: “Escolhe a vida e viverás” (Dt 30,28), e Deus se apresentou “como o apaixonado amante da vida” (Sb 11, 24). Andemos depressa, pois não temos muito tempo a perder. (BOFF, 2018, p. 159)[7]

É um pequeno grito que se soma a infinitos outros gritos, que se levantam em todos os recantos da terra, fazendo coro ao grande e insondável mistério de amor do “grito regenerador” de Jesus Cristo. As três perguntas originárias retornam e reboam: “Onde estás”? “Onde está o teu irmão”? “Como está a criação”?[8]

A Espiritualidade, que hoje nos é solicitada, é a disposição de nossos corações para buscar os melhores caminhos para a construção de sociedades geradoras de vida; refazer-nos em nossa capacidade de reconhecer o outro em sua dignidade; de nos indignarmos frente às desigualdades escandalosas e inaceitáveis e à situação desumana, vivida, por muitos irmãos e irmãs; de cuidar da vida e dos dons da criação, impelidos pelo amor a toda a vida que pulsará neste planeta terra, no futuro. É a disposição de sermos no cotidiano: cultivadores/as de justiça socioambiental.

INTERROGAÇÕES E DESAFIOS DENTRO DO MOMENTO CONJUNTURAL VIVIDO

Qualquer leitura de nossa realidade hoje não resiste às evidências de flagrantes atentados à justiça socioambiental e de debilidades na prática de uma espiritualidade do cuidado. Vou propor um pequeno exercício de ordenar de forma sistemática algumas dessas evidências. Obviamente, dentro do espaço que temos, não será possível passar de uma simples “chuva de ideias” ou “chuva de percepções”, que proponho ordenar a partir de três perguntas amplas. É uma provocação  para o exercício pessoal de cada um e de cada uma e para a continuação do nosso diálogo.

  • Como está o conhecimento, no Brasil?
  • (Cuidado da dignidade humana). Após mais de duas décadas de esforços mais ou menos sucedidos pela instituição de políticas educacionais renovadas, inclusivas, inovadoras e abertas ao diálogo, assiste-se no Brasil nos dias de hoje a uma guinada brusca à “direita”. Trata-se de verdadeira guerra de ideias entre a denúncia contra a “ideologia de gênero” e a afirmação da diversidade e da liberdade de opções, que parecia consolidada na sociedade. Alguns Ministérios do atual Governo são os principais vetores do combate à “ideologia de gênero”, associando-a ao que é denominado por eles de “marxismo cultural” e, em consequência, um combate acirrado contra o mundo intelectual e cultural que ao longo das últimas décadas teria se alimentado nessas “ideologias perversas”. Este combate vem acompanhado por uma sutil promoção de uma espiritualidade e religião alienante cultivada por determinadas lideranças neopentecostais de grande poder mobilizador.
  • (Cuidado do meio ambiente natural). Com relação ao que nós denominamos cuidado do meio ambiente natural, imperam, hoje no Brasil, propostas explícitas de “combate a esse cuidado”, através de duas ideias chaves: 1) Os “recursos naturais” (sic) devem ser explorados intensivamente para gerar riqueza e o Estado deve garantir que isto possa acontecer; 2) Os defensores do meio ambiente são orquestrados por interesses do “comunismo” ou por interesses de organismos que querem internacionalizar a Amazônia, ou seja, apossar-se dos recursos naturais da Amazônia, em prejuízo aos interesses nacionais.
  • (Cuidado da sociedade). O que é notável em nível de concepções com relação ao meio ambiente natural, assume formas mais alarmantes com relação à própria sociedade e seu ordenamento político e econômico. Trata-se do cultivo do preconceito que dissemina a ideia de que a corrupção é algo endêmico no meio político e que os únicos que podem salvar a sociedade são os empresários geradores de trabalho e emprego. Predomina a ideia da naturalização das desigualdades e todos os defensores de políticas que busquem facilitar uma diminuição das desigualdades sociais, são rotulados como “comunistas”, seguidores do “marxismo cultural” e inimigos dos “cidadãos de bem”.
  • (Anotação sobre espiritualidade). Mas nem tudo são trevas… É impressionante o que a pandemia (da Covid-19)[9] conseguiu desencadear em termos de criatividade e disseminação do conhecimento. Pessoalmente me vejo diariamente surpreendido e impactado pelas incontáveis formas com que muitas pessoas, – em número crescente, pois isto é contagiante, – procuram socializar os seus conhecimentos e seus dons artísticos, de forma gratuita, muitas vezes movidos pelo esforço solidário de passar conhecimentos, boas ideias e bons momentos de lazer para os outros, em suma, de cuidar dos outros. A pandemia estimulou a espiritualidade do cuidado em nível de conhecimento. Independentemente da pandemia, nos últimos anos, talvez em grande parte como resposta ao alerta com relação aos riscos obscurantistas vigentes, estão se constituindo e reforçando importantes redes e iniciativas de educação popular para rearticular uma produção de conhecimento autêntica e democrática, amparada nisso que alguns denominam, por exemplo, no contexto amazônico, de “cuidadania”.
  • Como está o empenho da incidência cidadã nos rumos do Brasil?
  • (Cuidado da dignidade humana). A reconstrução cidadã do Brasil, após o longo período da ditadura militar, chegou a um patamar importante na promulgação da Constituição de 1988 que foi considerada a “constituição cidadã”. Nas décadas que se seguiram, muitos esforços, com sucessos e fracassos, foram realizados para regulamentar aquelas conquistas de 1988. No entanto, nos últimos anos, houve uma radical quebra em tudo isso. Os acirramentos ideológicos tomaram conta. Tornou-se inviável qualquer busca de diálogo construtivo. Nas últimas eleições presidenciais (2018), a indústria de “fake News” mostrou-se, sobretudo, como um instrumento poderoso, e talvez tenha sido o fator decisivo. A cultura das “fake”, crescentemente difundida nas redes sociais, desconsidera, ao extremo, todo e qualquer cuidado para com a dignidade das pessoas que são os alvos, ou seja, as vítimas.  Isto virou “cultural” ou seja, é um comportamento bastante generalizado em termos de “debate público” e de veiculação de ideias.
  • (Cuidado do meio ambiente natural). Isto também se revela quando se trata de pensar políticas com relação às terras indígenas, por exemplo. É repetidamente afirmado que aquilo que é defendido por certas lideranças no meio indígena, em geral de grande reconhecimento nacional e internacional, são ideias falsas atreladas a interesses estrangeiros. Busca-se, então, “libertar” os indígenas deste atrelamento e, em nome de uma política “de ajudar os indígenas a serem como nós”, pretende-se implementar uma legislação facilitadora da ocupação de terras reservadas aos povos indígenas para a exploração do capital ou para a implementação de grandes empreendimentos do próprio Estado.
  • (Cuidado da sociedade). Se voltarmos o nosso olhar para a sociedade enquanto tal e seu ordenamento político e econômico, teremos como constatações centrais o seguinte: O governo atual, que se elegeu em grande parte impulsionado pela disseminação de “fakes”, se caracteriza por: 1) Apoiar-se na ideia de que foi democraticamente eleito contando com o apoio dos “cidadãos de bem”; 2) Dar claras demonstrações de total desrespeito aos valores republicanos; 3) Orientar-se por uma política econômica falaciosa amparada num extrativismo selvagem e financeirização incerta; 4) Desarticular e desmontar ostensivamente políticas públicas e sociais duramente conquistadas a partir de várias gerações.
  • (Anotação sobre espiritualidade). Em termos de ordenamento político e econômico da sociedade, nestes tempos de pandemia sanitária, o Brasil vive um verdadeiro “pandemônio” de instabilidade e incertezas cotidianas. No meio desse “pandemônio”, podemos, no entanto, vislumbrar a prática da espiritualidade do cuidado de parte de muitas pessoas e grupos. Trata-se do cuidado vigilante para que as coisas não desandem de vez e o prejuízo seja grande demais para a população. É um cuidado que, em geral, não tem cor partidária e pode expressar-se tanto em manifestos junto aos órgãos de legislação pública e de decisão dos rumos do país, como, também, em campanhas e mobilizações de apoio imediato, para com as maiorias pobres mais necessitadas de alimentos e cuidados de higiene e saúde. Esta novidade ou expressão “inusitada” de cuidado certamente também é visível em algumas lideranças empresariais.
  • Como está o jeito de viver no dia-a-dia, no Brasil?
  • (Cuidado da dignidade humana). O cotidiano brasileiro está habitado por contrastes marcados pela naturalização de agressões à dignidade humana de toda ordem. Parece que a relação entre a casa grande e a senzala, do longo período de escravidão negra no Brasil, nos marcou de forma indelével. O desconforto de enormes favelas formando cinturões desumanos sem medida, cercando (de forma ameaçadora) o conforto e o luxo de conjuntos de prédios, palácios e mansões, parece constituir-se na marca registrada da maioria das grandes cidades do Brasil. Desenha-se, com naturalidade, na mente das pessoas um convite sutil a assumir esta realidade como algo dado e imutável: umas pessoas parecem estar merecendo mais do que as outras. A desconstrução desta naturalização da desigualdade é o grande desafio da ciência. No entanto, conforme já mencionamos acima, no início deste título, o Brasil está vivendo um clima de combate acirrado contra o mundo intelectual e cultural, pois este, ao mostrar a origem não natural das desigualdades, estaria alimentando “ideologias” ofensivas aos “cidadãos de bem”.
  • (Cuidado do meio ambiente natural). Existe uma distância enormemente abissal entre o cotidiano ou a vida do dia-a-dia das pessoas que vivem no submundo urbano e o das pessoas que vivem em situação mais ou menos confortável em seus apartamentos e casas, sem falar do “supermundo” das mansões de luxo. A naturalização da desigualdade é alimentada e reforçada diariamente através deste impacto visível da desigualdade nas condições habitacionais e de vida. Por dentro da percepção do déficit habitacional e da crescente realidade dos moradores de rua, que são dois grandes desafios para o cotidiano e a relação (in)justa dos seres humanos com o seu meio natural, a interrogação mais atenta deve ser dirigida ao mundo do desperdício que passa por dentro do modo de viver cotidiano em nossas casas, de menor ou maior conforto.
  • (Cuidado da sociedade). Tentar entender o impacto sobre o cotidiano, do que está acontecendo no Brasil hoje, nos alerta mais uma vez em relação às terríveis desigualdades. A pandemia, que assola o país, neste semestre, colocou esta questão a nu. Não se encontrou fórmula de “isolamento social” cabível num contexto tão desigual. Como forçar a ficar em casa pessoas que só encontram um pouco de liberdade e dignidade, na rua ou fora de casa? Não se tem registro de políticas afirmativas que realmente estivessem focadas nesta situação de desigualdade. Todas as políticas mais bem sucedidas no combate à Covid-19 estavam focadas na população que têm condições de um cotidiano e vida do dia-a-dia mais ou menos confortável. A principal preocupação repetidamente manifesta pelo poder executivo central do país, foi em chamar os trabalhadores a saírem de casa para trabalhar e ganhar o seu sustento. O empenho honesto e sincero por preservar a vida dessas pessoas e proporcionar lhes um mínimo de proteção nas condições limitadas e desumanas em que vivem, foi praticamente inexistente. O momento seria de tomarmos consciência, como nação, do tremendo problema de déficit habitacional em que o país está imerso. A pandemia trouxe muitos legados. Que este desafio do déficit habitacional também seja um legado.
  • (Anotação sobre espiritualidade). Uma espiritualidade do cuidado em nosso cotidiano deve estar marcada pela consciência permanente dos contrastes abissais existentes no habitat da população brasileira. É importante povoar o nosso próprio habitat dessa consciência, refletindo-se tanto no cuidado e atenção às pessoas que conosco vivem e que nos procuram, como cuidando do bom uso de tudo, evitando desperdício e favorecendo reaproveitamentos. Que as crianças e jovens que crescem em nosso meio possam beber de nossas vidas e de nosso testemunho, uma autêntica “cultura do cuidado”, ou seja: espiritualidade do cuidado.

PALAVRAS PARA (NÃO) CONCLUIR

No início desta fala eu referia o olhar da criança negra nos interrogando de dentro dos dejetos, do lixo e do submundo da periferia e referia, também, o olhar do líder indígena impactado tristemente pela presença de múltiplos monstros empreendedores, devastadores do seu habitat. São olhares que nos interrogam. A espiritualidade do cuidado é uma espiritualidade que se deixa interrogar por esses olhares e por muitos outros necessitados do cuidado.  

REFERÊNCIAS

BOFF, Leonardo. Reflexões de um velho teólogo e pensador. Petrópolis: Vozes, 2018.

CIRNE, Lúcio Flávio Ribeiro. O Espaço da Coexistência: uma visão interdisciplinar de ética socioambiental. São Paulo: Ed. Loyola, 2013.

FRANCISCO, Papa. Laudato Sí. (Carta Encíclica do Sumo Pontífice). São Paulo: Paulus/Loyola, 2015.

FOLLMANN, J. I. O ‘Cuidado Da Casa Comum’ Como Caminho De Espiritualidade E Justiça. Revista Convergência. Rio de Janeiro, Vol. LIV, n. 523, 2019a, pp. 58-69

FOLLMANN, J. I. Justiça Socioambiental e Vida Religiosa Consagrada. Revista Convergência. Rio de Janeiro, Vol. LIV, n. 526, 2019b, pp. 50-60.

JESUÍTAS. Marco de Promoção da Justiça Socioambiental: Marco PJSA. Rio de Janeiro: Companhia de Jesus, Província do Brasil, 2ª Ed. Reformulada e atualizada, Publicação provisória PDF, maio de 2020.

PINHEIRO, A. A.. O Espelho Quebrado da Branquidade: Aspectos de um Debate Intelectual, Acadêmico e Militante. 1. ed. São Leopoldo: Casa Leiria, 2014.


NOTAS

[1] Professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, doutora em Ciências Sociais, coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – NEABI.

[2] Os textos deste sub-título e do próximo reproduzem diversos excertos do Marco da Promoção da Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil, em sua nova edição provisória (JESUÍTAS, 2020), também já presentes em artigo de minha autoria publicado na Revista Convergência em 2019. (FOLLMANN, 2019b)

[3] Trata-se de um “Observatório em Rede” da Província do Brasil, Companhia de Jesus, com núcleo articulador em Brasília, DF. www.olma.org.br 

[4] São os mesmos “atalhos operacionais” assumidos também pelo Marco da PJSA já mencionado.

[5] Na segunda parte deste subitem são reproduzidos excertos de artigo publicado na Revista Convergência. (FOLLMANN, 2019a)

[6] Destaco, no momento presente, a eleição do Papa Francisco (2013) e a surpreendente viagem dele à Ilha de Lampedusa, sul da Itália, alguns meses depois de assumir como Líder Máximo da Igreja, onde ele denunciou a “globalização da indiferença”. Destaco também os recorrentes apelos deste Papa por uma “Igreja em saída”.

[7] CIRNE, 2013, p.191-197, com o subtítulo “ética ambiental e espiritualidade” fala em uma verdadeira conversão do ser humano. Refere dois caminhos paradigmáticos importantes na tradição cristã: a herança espiritual de Francisco de Assis, conhecida sobretudo pelo famoso “Cântico das Criaturas”, que expressa o louvor ao Deus altíssimo, a humanidade que se faz irmã das criaturas e o respeito e admiração por todo o mundo criado; e a herança dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, no qual o próprio Princípio e Fundamento apresenta um caminho de vida no qual Deus, o ser humano e o ambiente (o mundo) estão intimamente inter-relacionados; encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus é o grande horizonte na “oração para alcançar o amor” dos Exercícios Espirituais Inacianos.

[8] “Onde estás”? Foi assim que Deus interpelou Adão. (Gn 3,9).[8]  “Onde está o teu irmão”? Foi assim que Deus interpelou Caim. (Gn 4,9). “Como está a criação”? Assim interpela Deus a humanidade, não deixando que ela esqueça seu mandato de cuidar de tudo. (Gn. 1, 26-31; 2, 15). No que se refere a Gn. 2, 15 e, especialmente, Gn. 1, 26-31, em termos teológicos “o ser humano na criação” está abordado de forma muito detalhada e profunda por CIRNE, 2013, p. 82-89.

[9] Este texto foi concluído no auge dos efeitos, no Brasil, da pandemia da COVID-19, que mexeu com toda a humanidade no primeiro semestre de 2020.

EPIRITUALIDADE E ESPIRITUALIDADES NO CONTEXTO DAS FAMÍLIAS CATÓLICAS

Publicado em forma de capítulo no livro “Educação e Religião: Múltiplos olhares sobre o Ensino Religioso” em 2013

Reflexão espiritual com perspectiva de formação pastoral

José Ivo Follmann sj (30/01/2013)

Resumo: O artigo é uma composição harmônica de textos, que misturam o testemunho pessoal do próprio autor com diversas aproximações da vida católica da família brasileira, acompanhadas de referências sugestivas sobre a realidade indiana, e uma retomada sintética de diferentes formas de espiritualidade católica, suas características e seus fundamentos.
Palavras chaves: Catolicismo; Família católica; Espiritualidades católicas.

Abstract: The article is a harmonious composition of texts, by mixing the personal testimony of the author with different approaches on Brazilian catholic family´s life, followed by suggestive references to Indian reality, and a synthetic retaking of different forms of catholic spiritual way of life, its characteristics and its essentials.
Key-Words: Catholicism; Catholic family; Catholic spiritual ways of life.

Palavras de introdução

A palavra espiritualidade lembra algo que impregna o que existe de mais profundo e existencial no cotidiano de alguém ou no cotidiano de uma família, um grupo ou uma organização. É algo que ajuda a orientar e dar sabor à vida e à ação. Cada religião ou cada orientação religiosa, apoiando-se em sua fonte fundacional e em suas tradições, difunde as suas crenças e as cultiva em seus fiéis ou seguidores; propiciando, também, formas de cultivo das crenças, através de práticas consideradas mais adequadas para nelas perseverar e crescer.

Eu, pessoalmente, nasci e fui criado em uma família católica, constituída por uma espiritualidade profunda e consistente, manifesta através de práticas cotidianas bastante definidas e ordenadas. Devo dizer que estou marcado por essa espiritualidade. Escrever sobre o tema “espiritualidade e espiritualidades no contexto das famílias católicas” é, assim, para mim, uma grande oportunidade, porque faz reviver um grande manancial de riquezas espirituais nunca suficientemente exploradas ou degustadas.

Muitas coisas se me passaram pela cabeça e pelo coração, no momento em que iniciei a organização deste texto. Eu havia sido recentemente solicitado para ajudar a escrever a história da comunidade local onde eu nasci e vivi a minha infância. As lembranças, naturalmente, se aceleram e multiplicam neste tipo de exercício de memória. As lembranças de minha iniciação na fé católica e das práticas espirituais cotidianas de nossa família também foram avivadas em mim. Estavam dadas, portanto, as melhores condições para desenvolver a reflexão que resultou no presente texto.

A composição ou costura do texto foi realizada em janeiro de 2013, mais de sessenta anos depois das minhas vivências de infância, em um contexto muito distante, no tempo e no espaço, durante minha estada na Índia. Confesso que estava profundamente impactado pela realidade desafiadora e rica em tradições culturais e religiosas, que é a realidade daquele país. A população católica na Índia é minoria. É, portanto, uma realidade religiosa muito diversa da que vivemos no Brasil. Até se poderia dizer: exatamente inversa. Enquanto a sociedade brasileira está impregnada por um substrato cultural católico, a sociedade indiana está impregnada por um substrato cultural hindu. Consequentemente a realidade da espiritualidade das famílias católicas também é diferente… Eu, no entanto, arrisquei a pergunta: Será que é tão diferente assim? Na ocasião, fiz uma longa entrevista com um jesuíta indiano muito experiente em trabalhos pastorais. A percepção que esse jesuíta revelou foi que, basicamente, a espiritualidade das famílias católicas na Índia, em seus traços e tendências principais, é muito semelhante à espiritualidade, que nós percebemos nas famílias católicas brasileiras.

Não precisamos, no entanto, apressar conclusões… Além destas “Palavras de introdução”, o texto foi estruturado, à maneira de um caminho cheio de atalhos, recolhendo, inclusive, textos já elaborados anteriormente, e passando pelos seguintes subtítulos: – Minhas memórias católicas da infância; – Espiritualidade ou espiritualidades; – O substrato comum das espiritualidades católicas; – Folheando o catálogo de diferentes espiritualidades católicas; – Três menções especiais para o momento presente; – Diferentes formas de viver o catolicismo; – Meu testemunho, sessenta anos depois; – Palavras de conclusão.

Como o texto é um caminho cheio de atalhos ou uma composição dinâmica de retalhos, de constatações e reflexões, colhidas em diversos contextos, a sua leitura não precisa ser linear.

Minhas memórias católicas da infância

Uma lembrança muito viva é a grande centralidade que a devoção a São José exercia na nossa família. Havia, na sala maior de nossa casa, em um dos lados, um oratório com uma imagem grande de São José. Lá nunca faltavam velas e sempre tinha um vaso de flores. As paredes da sala estavam cheias de imagens da iconografia católica, mas a de São José tinha um destaque muito grande. Era diante desta imagem que nos reuníamos todas as noites, depois da janta, para, de joelhos, rezar o terço. Esta reza era feita, às vezes em alemão e outras vezes em português. Eu cultivo hoje ainda a bela lembrança das orações diárias, antes e depois das refeições, que eram longas e feitas com fórmulas mescladas, sendo algumas em alemão e outras em português.

Depois do terço, íamos para a cama. Lembro como a minha mãe, todas as noites, se aproximava discretamente das nossas camas e nos abençoava com água benta, enquanto nós fingíamos que já estávamos dormindo. Isto passava carinho e segurança! Aliás, a água benta nunca faltou em nossa casa. Era símbolo de proteção divina e combate contra os males e doenças. Também era muito usual ter ramos bentos em casa para proteger contra tormentas e raios. Os ramos bentos eram conservados a partir do cerimonial litúrgico do domingo de ramos. Estão vivas na minha memória cenas em que a mãe e a avó queimavam ramos e faziam invocações a santas e aos santos protetores durante tormentas.

Lembro como, muitas vezes, enquanto o jantar era preparado, o meu pai, com seu vozeirão, entoava canções, em geral eram hinos de igreja, e nós cantávamos junto, formando uma polifonia de beleza indescritível… Tudo isto acontecia sob a luz das lamparinas de querosene e do lampião de gás. Às vezes o meu pai fazia a leitura de algum texto em alemão ou em português e nós ouvíamos atentos. Quando era necessário ele introduzia com uma pequena fala situando o texto ou dizia uma frase de impacto depois da leitura. Em geral eram textos instrutivos e que traziam mensagens de vida cristã. Algumas vezes eram textos anedóticos e de entretenimento. Era um ambiente gostoso, muito harmonioso e, sobretudo, disciplinado.

Tive as minhas primeiras inserções no compromisso com a comunidade, através da limpeza que a nossa família era encarregada de manter no cemitério. O pai nos mandava capinar o cemitério e dizia que isto era um serviço para a comunidade. Acostumei-me desde pequeno com esta ideia. Parece algo irrelevante, mas só eu sei o quanto isto me marcou e me lembra da imagem de meu pai como uma pessoa responsável pelas coisas da comunidade. Isto se revelava em todas as atividades comuns da comunidade.

A bíblia não era muito lida, mas nós tínhamos o catecismo da doutrina católica. Com muita frequência havia uma tarde de aulas de catequese, a cargo do próprio padre da paróquia. Trata-se de uma maneira muito sábia de introdução na vida de compromisso cristão adulto. Eu fui batizado, quando não tinha completado ainda um mês de vida e fui também crismado algumas semanas depois. Isto soa estranho, uma vez que crisma é um sacramento de confirmação para quem já está no seu pleno uso da razão. No entanto, as famílias eram tão estáveis e confiáveis na sua vida da fé católica, que havia uma plena confiança da parte do clero de que os pais realmente garantiriam uma boa formação na fé.

Nos domingos, sempre que ocorria missa na comunidade, a cinco quilômetros de distância, todos nós íamos para a igreja, os pais e a avó iam a cavalo e nós todos a pé. Na ausência de missa na comunidade, enfrentávamos doze quilômetros para ir à missa na sede da paróquia. A missa ocupava uma centralidade muito grande no imaginário. Lembro-me que nós crianças chegávamos a brincar de celebrar missa. A participação na celebração da missa era um momento auge e sempre se usava a melhor roupa. Em dias de celebração festiva, como por exemplo, a “missa do galo” de natal, o pai nos levava a todos para a igreja, em uma carroça, puxada por uma junta de bois. Era uma festa!

Muitas outras lembranças poderiam ser registradas, mas esta não é a finalidade deste texto. Fiz esta breve incursão na minha memória da infância, porque o meu interlocutor indiano, referiu a maneira intensa como são cultivadas as espiritualidades nas famílias católicas indianas, nos contextos do mundo rural antigo e tradicional e, como esta realidade vem mudando gradativamente, tanto, na própria vida no campo, como, sobretudo, nos centros urbanos e nos contextos intermediários. Ele também destacou a centralidade exercida pela missa.

As formas de expressão da espiritualidade católica se diversificam no próprio ritmo de crescimento da complexidade da vida humana em sociedade. Essas formas, no entanto, também são diversas alimentando-se em diferentes experiências espirituais que foram sendo acumuladas dentro e fora do catolicismo, ao longo da história.

Espiritualidade ou espiritualidades?

A espiritualidade, como foi definida no início deste texto, tem a ver com o modo como pessoas, famílias, grupos ou, mesmo, organizações organizam a sua vida cotidiana no sentido de manter vivas as crenças religiosas. É notável como cada religião ou organização religiosa difunde as suas crenças, as cultiva em seus fiéis ou seguidores, e propicia formas de aprofundamento das mesmas, através de práticas consideradas mais adequadas para nelas perseverar e crescer.

É muito grande a distância, entre o que uma religião ou organização religiosa, – no caso a Igreja católica, – cultiva e difunde, por um lado, e, o que é praticado, por outro lado, no cotidiano concreto das pessoas, famílias, grupos e organizações.

A realidade nos mostra que não existe uma só espiritualidade católica e também não se pode falar em espiritualidade das famílias católicas, no singular. São muitas as espiritualidades das famílias católicas, ou seja: as formas como as famílias católicas cultivam as crenças provindas do catolicismo são infindamente diversificadas. Existe, isto sim, um substrato comum, reconhecível com maior ou menor clareza.

A espiritualidade que eu pessoalmente pratico hoje, mais de sessenta anos depois da minha infância, é radicalmente diferente daquela que eu praticava naquela época sob a orientação de minha família e da tradição de meus pais, mesmo que eu deva reconhecer naquela experiência de infância uma base rica que permanece.

Ao perguntar ao meu interlocutor indiano sobre “a espiritualidade das famílias católicas”, ele foi direto e claro, ao dizer: “É difícil falar de uma espiritualidade, pois isto varia muito, de um contexto para outro… Para começar, existem as famílias do interior rural e existem as famílias dos grandes centros urbanos. Além disso, ainda deve ser considerada a situação das famílias que estão em uma situação intermediária, entre o campo e a cidade.” Pensei comigo: “assim como no Brasil…” “E tem mais, – continuou o meu interlocutor indiano, – isto depende muito, também, das diferentes influências que as famílias tiveram e têm a partir de grupos e movimentos católicos, como também do tipo de dedicação que o clero demonstra com relação às famílias de sua responsabilidade.” Mais uma vez, mentalmente, relacionei a similaridade com a realidade brasileira.

O substrato comum das espiritualidades católicas

Quais são os fundamentos da Igreja católica? São as Sagradas Escrituras, a Bíblia Sagrada e a Tradição. Trata-se da doutrina e dos costumes transmitidos pela Igreja, desde os apóstolos, sempre sob a vigilância do poder central da Igreja. A religião católica assim como as demais Igrejas dentro do Cristianismo cultiva e transmite a fé em um Deus, dentro da mesma tradição da fé monoteísta, do conjunto das religiões abraâmicas, como referência ao Patriarca Abraão: o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Na interpretação cristã, Deus se revela, de maneira especial em Jesus de Nazaré como verdadeiro homem e verdadeiro Deus, e na força do Espírito Santo. Em Jesus os planos de Deus se revelam de forma explícita na imagem do Reino de Deus. A partir das falas de Jesus, nós podemos dizer que a Igreja tem o seu centro de referência no Reino.

Qual a origem da estrutura organizacional? Jesus de Nazaré mostrou o desejo de ver a sua missão continuada, através de um grupo de seguidores. O número dos Doze Apóstolos é importante como simbolismo do Novo Povo de Deus, povo que abrange tudo, transfigurado na missão e identidade de Jesus. No entendimento da doutrina da Igreja, os sucessores dos apóstolos são os bispos. Dentre os apóstolos, Pedro recebeu do próprio Jesus uma missão especial de liderança e a sua escolha final de estar em Roma e ali ter morrido mártir, fez com que a tradição definisse o Bispo de Roma, como sucessor de Pedro e chefe da Igreja. O Bispo de Roma passou mais tarde a ser denominado de Papa, pela sua liderança na Igreja. O Papa é um bispo entre os bispos. Ele não é o Bispo do mundo, é o Bispo de Roma, que se relaciona com os demais bispos, como líder religioso. Na hierarquia da Igreja católica, os padres e diáconos são auxiliares dos bispos.

Não se pode falar da Igreja católica sem falar dos sete sacramentos, que talvez sintetizem a experiência de Deus. Os sacramentos da Igreja são apresentados como dons de Deus para a santificação de seu povo. O Concílio de Trento, de 1545 a 1560, definiu os sacramentos em sete. Eles acompanham a vida do cristão do nascimento à morte. Os três primeiros sacramentos são os de iniciação cristã e de cultivo da fé: o batismo, a confirmação e a eucaristia. São aqueles que acompanham o rito de entrada na fé e de cultivo da fé. A Igreja sempre aceitou e aceita batizar crianças, por causa da disposição e promessa dos pais em educar a criança na fé católica.

Se a prática do batismo de crianças é bastante associada à Igreja católica, o mesmo deve ser dito da prática da missa. “Ser católico” lembra “ser de missa”. A missa católica é algo da cultura, até se dá comumente o nome de missa a celebrações que não tem nada a ver com a celebração da eucaristia. O que é a missa? A celebração da eucaristia é um serviço divino, fazendo a atualização do mistério central da redenção na memória da paixão, morte e ressureição do Senhor; ela desempenha papel fundamental na Igreja católica. É sacramento que tem uma centralidade grande na Igreja católica, sendo de obrigação semanal (dominical) para os fiéis, enquanto os padres e bispos normalmente a celebram todos os dias.

Além dos sacramentos da iniciação (batismo e crisma) e de cultivo da fé (eucaristia), a Igreja católica cultiva os sacramentos da cura e os do serviço. Os da cura são: o sacramento da reconciliação ou confissão e o da unção dos enfermos. Trata-se de sacramentos voltados, sobretudo, para o conforto e restabelecimento do ânimo espiritual e corporal. Os sacramentos do serviço e da comunhão são a ordem e o matrimônio. São formas de celebrar e manifestar a presença de Deus, através de serviço à comunidade e da vida de partilha e amor.

Outro componente que deve ser ressaltado é a figura dos sacramentais, que podem ser símbolos, objetos, lugares, rituais e fórmulas de oração e bênção e outras expressões. Os sacramentais não têm, em geral, fundamentação bíblica. Eles foram introduzidos pela própria Igreja ao longo da história, muitas vezes tomando emprestado de outras culturas e de outras religiões. Eles ajudam, pela cultura católica, a reforçar e estimular a própria fé.

A Igreja católica professa a “comunhão dos santos”. Ou seja, para ela, a unidade da fé ultrapassa as barreiras do tempo e do espaço. Nisto está baseada a veneração e a devoção aos santos e às santas que foram modelos para todos os cristãos. A Igreja não se vê como só reduzida aos que ainda estão vivos, mas ela se vê também como “comunhão dos santos”, com todos aqueles e aquelas que já passaram e que estão na eternidade. Maria, Mãe de Jesus, tem uma centralidade muito grande na Igreja católica. Ao longo de sua tradição eclesial a Igreja católica, entre todos os santos e todas as santas, possui uma especial devoção à Virgem Maria, ou, como preferem os indianos, Maria Mãe. Para os católicos, Maria está intimamente ligada à história do povo e à história da salvação e o seu “sim” é modelo para todos os discípulos. No catolicismo popular a figura de Maria é muito respeitada, pois se considera a sua experiência de dor e sofrimento, que a torna muito próxima de todos os devotos, especialmente os pobres e sofredores.

Folheando o catálogo de diferentes espiritualidades católicas

Um aspecto importante na Igreja católica, em sua história, são os mosteiros, as ordens religiosas e as congregações religiosas. O sistema monástico se desenvolveu há muito tempo na antiga Igreja, com base na vida dos eremitas, que se retiravam para o deserto. Hoje existem inumeráveis mosteiros, ordens e congregações religiosas masculinas e femininas. Conhecemos ordens e congregações religiosas com os mais diferentes carismas e formas de engajamento na missão da Igreja.

Formas diversas de espiritualidade foram originadas nesse processo constituindo-se em alimento para diferentes práticas e engajamentos na vida e na missão da Igreja. Neste sentido, apesar de o centro da espiritualidade católica estar na celebração da eucaristia e na vida sacramental em geral, muitas e diversificadas são as formas de reforço espiritual, desenvolvidas ao longo dos séculos. As principais fontes orientadoras desses processos podem ser encontradas nos mosteiros, nas ordens e nas congregações religiosas. Temos como destaque: – a “espiritualidade de retiro”, proveniente dos Monges do Deserto (Santo Antão), impulsionando uma espiritualidade de deserto e de retirada do mundo; – a “espiritualidade beneditina”, concernente à Ordem dos Beneditinos (São Bento), e que alimenta todo um tipo de espiritualidade de busca da perfeição cristã em comunidade, através da oração comum e afastada das preocupações mundanas; – a “espiritualidade franciscana”, originada na Ordem Franciscana (São Francisco), orientando para uma vida desapegada, em pobreza, de amor à natureza e serviço aos pobres; – a “espiritualidade dominicana”, ancorada na Ordem Dominicana (São Domingos), caracterizando-se pela pobreza, amor à verdade e dedicação à pregação; – a “espiritualidade inaciana”, proveniente da Ordem dos Jesuítas (Santo Inácio), caracterizando-se pelos exercícios espirituais, o discernimento da vontade de Deus e o exame de consciência, para em tudo amar e servir; – a “espiritualidade carmelita”, ancorada na Ordem Carmelita (Santa Teresa d´Avila), cujas características principais são: desprendimento interior, silêncio, solidão e busca do progresso espiritual e experiência mística; – a “espiritualidade redentorista”, desenvolvida pela Congregação dos Redentoristas (Santo Afonso de Ligório), caracterizando-se pelo seguimento do Cristo em sua encarnação, morte e ressurreição; – a “espiritualidade mariana ou servita”, ancorada na Congregação dos Servitas ou Servos de Maria (Sete Fundadores) , desenvolvendo práticas focadas em Maria aos pés da cruz, a serviço dos que sofrem.

Além destes caminhos espirituais aqui apontados de uma forma esquemática, poder-se-ia ainda organizar grandes listas de “espiritualidades católicas” organizadas por outras congregações religiosas ou outras vias e momentos, como, por exemplo, a espiritualidade ancorada na organização Opus Dei, nos movimentos leigos pós Concílio Vaticano II em geral, no movimento Schoenstatt, no movimento Focolari, no movimento Santo Egídio e muitos outros.

Quero fazer uma menção especial à “espiritualidade carismática”, pela sua forte expressão hoje no Brasil, à “espiritualidade do diálogo” e à “espiritualidade da teologia da libertação”. Estas duas últimas, em grande parte, porque me ajudam mais a orientar o meu jeito de viver a “espiritualidade inaciana” dentro da Igreja católica.

Três menções especiais para o momento presente

A primeira menção é direcionada para a espiritualidade carismática. Trata-se de uma forma de cultivar a fé cristã muito cultivada, hoje, no Brasil e que repercute profundamente nas famílias católicas pela presença diária aos meios de comunicação. É uma espiritualidade baseada na ação do Espírito Santo e na efusão de seus dons na Igreja, voltada para a renovação carismática da mesma. Trata-se de uma espiritualidade que exerce, também, um forte papel de conforto e cura espiritual e corporal.

Além das repetidas e marcantes invocações para aliviar as pessoas de suas dores espirituais e corporais, trazendo conforto e cura, esta espiritualidade está centrada, sobretudo, na busca de: – praticar a redescoberta da pessoa viva e vivificante de Jesus, como fonte de esperança e salvador do mundo, ontem, hoje e sempre; – o reencontro filial, confiante e feliz com Deus que é Pai; – o gosto pela oração pessoal e comunitária, pelo louvor e pela adoração; – o apreço pela Palavra de Deus e a procura dos sacramentos; – uma maior fidelidade à Igreja e um revigoramento da juventude e vocações sacerdotais e religiosas; – uma liberdade interior que deixe a pessoa ser modelada, convertida e transformada por Deus. A espiritualidade carismática também dá grande centralidade à devoção a Maria, Mãe de Deus, que sempre se deixou guiar pelo Espírito Santo.

A segunda menção a fazer diz respeito a uma espiritualidade do diálogo. Num mundo de crescente consciência da diversidade, o diálogo se faz fundamental para que a humanidade possa crescer em harmonia. Como mencionei no início, a organização deste texto foi realizada durante a minha estada na Índia, sendo embebido pela riqueza multi-milenar e multiforme da cultura e da sociedade daquele país, que, historicamente, sobreviveu através de um múltiplo, criativo, controvertido e, ao mesmo tempo, harmonioso processo de assimilação e resistência a sucessivas dominações. A sociedade indiana tem, também, os seus problemas que, sem dúvida, são sérios e muito desafiadores, mas é incrível, nesse país, a capacidade de convivência na diversidade. O Brasil está despertando, ao longo das últimas décadas, sempre mais, para a riqueza da sua própria diversidade cultural. Esta diversidade está manifesta, de modo especial, nas religiões e religiosidades que se multiplicam.

Cresce a consciência de que a prática do reconhecimento dos outros e a prática do diálogo são formas fundamentais para se viver a missão da Igreja católica dentro deste contexto. Para sintetizar o que caracteriza, em essência, esta forma de espiritualidade, talvez uma frase de G. Gadamer, lembrada por Faustino Teixeira, possa ser inspiradora: “A capacidade constante de voltar ao diálogo, isto é, de ouvir o outro, parece-me ser a verdadeira elevação do homem à sua humanidade.”

A terceira menção é voltada para a espiritualidade da teologia da libertação. A expressão “teologia da libertação” aponta para o fenômeno das comunidades eclesiais de base e também nos faz retomar toda a questão do ensino social da Igreja. Isto demanda um detalhamento um pouco mais amplo.

As comunidades eclesiais de base têm sido uma manifestação muito importante do catolicismo. Aliás, não só do catolicismo, pois é um fenômeno que se manifestou também em outras Igrejas do cristianismo, em certo sentido. Trata-se da organização comunitária a partir da base, sem a interferência da hierarquia clerical. As comunidades eclesiais de base trouxeram um modelo diferente, inverso do que sempre marcou a Igreja, ao longo da história, que é a estrutura clerical.

Este foi o motivo porque chamaram tanta atenção. Elas têm um componente novo, enquanto refletem a opressão vivida pelo povo, a partir de uma teologia, que também se coloca nesta perspectiva, a teologia da libertação. Com o apoio nas ciências humanas, que ajudam a entender e sistematizar o que está efetivamente acontecendo, reflete os problemas vividos pelo povo, tentando retomar a boa nova de Jesus Cristo, que proclama a libertação do povo. A Igreja não veio só para trazer a mensagem da vida eterna, mas ela está aí para ajudar o povo a se libertar das opressões, aqui e agora. A mensagem da teologia da libertação foi marcante para a Igreja católica e outras Igrejas cristãs, sobretudo a partir de finais da década de 1960 e teve grandes repercussões até finais da década de 1980.

Este foi um tempo forte de alimentação de uma espiritualidade nesta perspectiva, sobretudo, no contexto latino-americano em geral e no Brasil em particular. A lembrança do momento forte das comunidades eclesiais de base e da teologia da libertação, reporta-nos a alguns pontos essenciais do ensino social da Igreja. Trata-se, no meu entender, de um aspecto fundamental da identidade da Igreja católica.

Quais são as fontes do ensino social da Igreja católica? No primeiro plano estão as Sagradas Escrituras, partilhadas por todas as Igrejas cristãs. São inúmeras as passagens que poderiam ser referidas. Refiro três, que para mim são emblemáticas: Mateus 25:40 “Tudo que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos a mim o fizestes”; João 9:11 “Aquele que quiser ser o primeiro entre vós, seja o servo de todos”; e Lucas 20:25 “Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Outra fonte do ensino social da Igreja católica, também partilhado pelas outras Igrejas cristãs, são os “Padres da Igreja”, escritores eclesiásticos entre o século II e o século V. Várias linhas temáticas importantes aparecem aí, por exemplo: “Não se pode separar fé, da caridade dos pobres”; “Predileção da Igreja pelos pobres”; “Não somos donos, mas administradores dos bens”; “Todos os bens da criação se destinam a todos os homens”; “O homem tem uma natureza social, é chamado a viver em comunidade”; “Todos os homens temos uma igualdade básica”; “A propriedade privada sem respeito pelo destino universal de todos os bens para todos os homens, é fonte de egoísmos, de ilusões e exploração”; “A participação de bens é uma exigência de justiça”; “Quem não remedia a fome é homicida”; “Alguns ajudam um pobre, mas empobrecem cem”; “Quando se dá esmola se devolve ao pobre o que lhe pertence, é, portanto, obra de justiça”; “A misericórdia com o pobre é justiça”.

Além dessas fontes históricas, o ensino social da Igreja se espelha na vida concreta do povo, em suas organizações e necessita da mediação das ciências humanas para entender cada momento. Devem ser destacados três elementos fundamentais: o próprio clamor dos pobres, em múltiplas formas no cotidiano da vida comum; os movimentos sociais que existem e são expressão organizada do clamor dos pobres; e as ciências humanas, o próprio conhecimento da realidade. Esses três elementos são fundamentais, pois ajudam a desenhar, no espelho da Boa Nova Cristã, o contraste ético mobilizador. Não se trata de uma mobilização caótica e ingênua, mas projetada com método científico e real operacionalidade. Este último aspecto envolve, segundo cada contexto, na maioria dos casos, muita paciência e responsabilidade histórica. Envolve, sobretudo, muito discernimento para acertar como melhor agir para o maior bem de todos e para ajudar a garantir que os marcados pela exclusão tenham as melhores chances para serem reconhecidos como cidadãos.

Diferentes formas de viver o catolicismo

A Igreja católica, no entanto, é um mundo. São muitas e diferentes as formas de viver o catolicismo e a porção dos que se posicionam dentro das orientações, baseadas na teologia da libertação, das comunidades eclesiais de base e do compromisso social, que acabei de esboçar, é relativamente pequena, em muitos contextos do conjunto todo da Igreja. Não se trata de fazer cálculos estatísticos aqui. Entendi que seria importante proporcionar mais este acesso ou atalho, ainda que de forma muito rápida e genérica, dentro da ideia de trazer aproximações para entender as “espiritualidades no contexto das famílias católicas”.

Em exercícios realizados com alunos da disciplina de “sociologia das religiões”, em diversos anos consecutivos, fui elaborando um quadro aproximativo das diferentes “formas de viver religião no Brasil” e dentro disto as diferentes “formas de viver o catolicismo no Brasil”.

No quadro então esboçado, considerando só a categoria católica, foram ressaltados os seguintes “agrupamentos”: – Católicos só de nome, com nenhuma prática religiosa pública; – Católicos cumpridores de algumas exigências religiosas públicas mínimas; – Católicos cumpridores regulares das exigências formais do catolicismo; – Seguidores de práticas mediúnicas, kardecistas espíritas ou de religiões de Matriz africana, confessando-se também católicos; – Ligados a movimentos organizados católicos, Renovação Carismática Católica, Encontro de Casais com Cristo e similares; – Católicos engajados em pastorais sociais e/ou integrantes de Comunidades Eclesiais de Base e engajados no compromisso social.

Trata-se apenas de um esboço a partir da observação empírica. Hoje, eu ainda acrescentaria a categoria dos “católicos comprometidos com o diálogo”… A hipótese levantada por diferentes grupos de alunos foi que este ordenamento estaria correspondendo também à importância numérico-quantitativa dos católicos no Brasil, prevalecendo ainda o número dos “católicos só de nome” e o número dos “católicos engajados em pastorais sociais” continuaria representando, apesar de todo o boom das décadas de 1960 a 1980, o menor percentual. Mesmo que esta hipótese tenha sido formulada no final da década de 1990, é muito provável que o quadro não tenha se alterado significativamente. Ou seja, a hipótese continua atual.

Voltando ao meu interlocutor indiano, fica claro que também na Índia existem diferentes “formas de viver o catolicismo”. Mesmo que ali também exista o fenômeno do “catolicismo só de nome”, não há muita base para tal, uma vez que na Índia o catolicismo é minoria. Não existe, também, obviamente, o “catolicismo praticado junto com adesão a religiões de Matriz africana ou ao Kardecismo espírita”, mas existem casos de convívio entre práticas hinduístas e católicas, em alguns contextos. Aliás, mesmo que haja uma grande vigilância da hierarquia católica com relação a isto, a cultura hinduísta é forte e a fronteira é muito movediça. Muitos modos de proceder, provenientes da cultura hinduísta, estão totalmente assimilados na liturgia católica, destacando-se, sobretudo, o gestual litúrgico. Observados estes dois pontos, as “formas de viver catolicismo” na Índia se assemelham às do Brasil.

Meu testemunho sessenta anos depois

Recentemente, respondi a uma entrevista para uma revista local de circulação restrita, e me surpreendi dando um testemunho pessoal, referente à minha percepção da fé cristã e ao meu modo de proceder. Trata-se de uma reflexão sobre espiritualidade cristã, mas, sobretudo, um testemunho da minha espiritualidade sessenta anos depois daquela espiritualidade que aprendi nos meus anos de infância.

R.R. Como podemos entender a relação fé e vida? Como podemos crescer na fé e crescer humanamente de maneira integral?

Para mim vida humana e fé estão profundamente relacionadas e imbricadas uma na outra. É nesta relação que reside o ponto que distingue mais plenamente a espécie humana das demais espécies de seres animais. Trata-se da condição de conseguir reconhecer-se para além dos próprios limites. Trata-se da condição de reconhecer a dimensão de eternidade dentro de seu próprio existir.

Estes “momentos” de auto-reconhecimento em sua própria dimensão de eternidade assumem diferentes formas e podem proporcionar diferentes resultados, a depender da disposição vivida pelos sujeitos e do tipo de fé que efetivamente cultivam.

R.R. Como o senhor orienta ou orientaria pessoas que vivenciam hoje uma experiência de crise de fé?

Crises de fé em geral representam processos de amadurecimento. A total ausência de crise é mais perigosa. Crises de fé também podem advir do cansaço frente ao muito trabalho e pouco resultado visível, mas este tipo de cansaço vai, muito mais, em uma linha de “desespero” do que propriamente crise… O cansaço ao qual me refiro aqui talvez deva ser mais visto como resultado da falta de cultivo da fé…

Assim como uma pessoa pode entrar num processo depressivo em termos psicológicos, também se pode falar de processos similares em relação à dimensão profunda de nosso existir, que envolve a fé. Assim como as depressões podem ser prevenidas com ocupações adequadas, etc., assim também no plano da fé é importante que não se deixe tudo isto morrer na praia. A fé deve ser permanentemente exercitada. É o mesmo que o amor entre as pessoas. Se este amor não é cultivado, está fadado a morrer.

R.R. Qual o papel da fé nessa fase de transição da sociedade cristã para uma sociedade secularizada?

Creio que existe um equívoco em falar da transição de uma sociedade cristã para uma sociedade secularizada… O cristianismo é uma “religião” eminentemente secular! Jesus Cristo se ENCARNOU na história humana. Ser cristão significa viver a presença de Deus em todas as coisas. A história do Cristianismo, apesar de originalmente ter essa marca secular (de secularização), pode, no entanto, ser lida como uma história de sucessivos processos de forte sacralização da fé cristã. Hoje vivemos em um momento na história da humanidade em que se manifesta sempre mais algo que se poderia denominar de “secularização encantada”. A expressão talvez não seja totalmente adequada porque sugere certas conotações, que não têm nada a ver com o que se quer dizer. Entre estes diferentes encantamentos “seculares” encontra-se de uma forma nova o próprio cristianismo em seu estado mais original.

R.R. Seria possível confrontar-se tão de perto com a realidade da miséria e da injustiça social sem levantar questões relacionadas com a fé e o comprometimento pessoal?

A revolta frente aos males terríveis que subsistem, às vezes até geram crises de fé. As pessoas se interrogam com relação às tragédias da humanidade, a todas as coisas horríveis e todo o sofrimento que diariamente nos incomoda… Como acreditar na existência de um Deus de Bondade e de Amor, que deixa acontecer tudo isto?
No entanto, a realidade da miséria e da injustiça social são desafios para toda a pessoa de fé. Ou seja, as injustiças, a miséria e os sofrimentos humanos não deveriam deixar uma pessoa de fé, indiferente. Caso estes fatos gerem crise de fé então talvez exista algo errado na maneira como a pessoa vive a sua fé e como a sua fé está orientada. A indiferença talvez possa ser considerada o sinal mais cabal de falta de fé.

A questão fundamental está no foco desta atenção ou desatenção que se tem frente às injustiças, à miséria e aos sofrimentos. Por exemplo, alguém como eu, que está orientado por uma perspectiva cristã, nunca apontará Deus como culpado e não vai reivindicar intervenção divina, mas vai interrogar-se sobre a responsabilidade humana e a minha responsabilidade. O que eu posso fazer no meu cotidiano para que essas injustiças diminuam?

R.R. Com relacionar fé e vida, crença e cidadania? Ser cristão hoje exige um comprometimento na construção de outro mundo, outras relações sociais, outras relações ecológicas e ambientais, como pensar tudo isso na integralidade da vida?

Existe algo que é essencial em toda esta reflexão que as perguntas aqui formuladas me provocam: o ser humano é um ser de liberdade! A pergunta é ampla: estou focando as respostas dentro da minha orientação cristã. No entanto, é importante entender-se que vivemos em um momento da humanidade em que mais do que nunca se diversificaram as crenças e também são múltiplas as formas de se entender o que é ser cidadão.

A pergunta foca o ser cristão. Sim, ser cristão sempre significou e significa comprometimento. Isto não é de hoje… O cristão por definição (em seguimento à encarnação de Deus na história) é denúncia de tudo o que está degradando as relações e é comprometido com a construção de outro mundo possível, outras relações sociais, outras relações ecológicas… O mundo cristão ao longo da história tem grandes dívidas com relação a isso. Muitos equívocos, muitos males, muitos pecados, muitas infidelidades aos princípios fundantes do Cristianismo estão escancarados na história.

É necessária uma permanente busca de renovação. Como jesuíta que sou, posso testemunhar, por exemplo, como na última Congregação Geral da Ordem, na qual participei em inícios de 2008, esta questão esteve presente e chegou-se a formular em um dos documentos centrais, a necessidade de sermos protagonistas de NOVAS relações com Deus, NOVAS relações sociais (entre os humanos) e NOVAS relações com o meio ambiente. Portanto, mesmo que isto seja da própria essência do ser cristão, existe uma permanente necessidade de atualização e correção de rota, porque nós humanos somos limitados e frágeis.

R.R. O que dizer para as novas gerações sobre a integração fé e vida? Como os jovens, no seu olhar, têm feito experimentações de fé que proporcionam crescimento humano?

Eu quero fazer um alerta: Nem sempre o que se coloca como “experimentações de fé” são efetivamente experiências que levam a um engajamento comprometido com a história. Olhando numa perspectiva cristã, com o Deus encarnado que trabalha na história da humanidade através da livre ação dos seres humanos.

É muito importante sabermos distinguir entre as experiências pessoais de êxtase e de reconforto e as vivências espirituais que levam a um maior engajamento comprometido com a vida e a história. A dimensão cúltica (de internalização e contemplação) e a dimensão ética (de compromisso histórico) são duas dimensões muito importantes, mas que não devem ser confundidas, muito menos uma dimensão ser reduzida à outra.

Até aqui vai o texto da entrevista, na qual me surpreendo, sessenta anos depois, convivendo em harmonia dentro de uma espiritualidade universal, radicalmente diferente daquela espiritualidade de meu berço infantil, dentro de um mundo pequeno e disciplinado. Aquele era um mundo gostoso e harmônico. Hoje também me vejo vivendo um mundo gostoso e harmônico cultivado dentro de mim, apesar de jogado permanentemente nos desafios das fronteiras do diferente.

Palavras de conclusão

O caminho feito foi de vários atalhos, uns se apresentaram em forma de trilhas transversais, outros constituíram trilhas paralelas e convergentes. Existe uma grande riqueza a ser explorada. O texto levanta diversas hipóteses importantes. Mesmo que eu não tenha buscado fazer um estudo comparativo, o meu interlocutor indiano exerceu um papel chave na escolha dos recortes feitos.

O Brasil e a Índia são dois países grandes e que vertiginosamente estão ganhando destaque no cenário internacional de hoje. O Brasil e a Índia são dois países que apresentam uma grande diversidade cultural e religiosa. Tanto no Brasil como na Índia são desenvolvidos cuidados políticos para que esta diversidade viva numa crescente harmonia. O Brasil tem uma vida relativamente curta em relação à Índia. Nosso país é dez vezes mais jovem. Quando no Brasil falamos em 500 anos, na Índia se fala em 5.000 anos. O Brasil tem 500 anos de forte presença católica, inclusive como religião oficial, ao longo de 400 anos. A Índia tem 5.000 anos de forte presença da religião hinduísta, sendo praticamente a cultura hindu a cultura de base do povo deste país. O hinduísmo, aliás, é um substrato cultural que, segundo suas lideranças em muito ultrapassa os limites dos 5.000 anos de registro histórico.

As mesmas preocupações, que o clero católico brasileiro manifesta com respeito ao esvaziamento nas práticas espirituais católicas no âmbito da família, no meio da agitação do mundo de hoje, sobretudo na cidade, são confirmadas também no meio do clero católico na Índia, o meu interlocutor indiano. Este falou que a redução nas práticas religiosas católicas em casa, no seio da família é preocupante. E acrescentou: “Inclusive no meio rural, apesar de ali ainda existirem mias momentos de oração em família.” Sugeriu que a agitação e os horários diferentes não permitem mais momentos de encontro, mas também entende que o próprio clero não apresenta mais a mesma disposição de fazer um acompanhamento corpo a corpo junto às famílias, ficando mais preso a administrar burocraticamente a paróquia com atendimentos formais. Parecia que ele estava falando do Brasil…

As espiritualidades no contexto das famílias católicas variam muito segundo o próprio grau de adesão religiosa que os integrantes da família vivem. Esta variação também se dá segundo o contexto vivido pelas famílias, tendendo a ser mais intensa no meio rural e mais diluída e, talvez, mais individualizada no meio urbano. É muito provável que o grupo católico, majoritário no Brasil, que foi descrito como “católicos só de nome” não apresentem nenhuma prática católica em família. Isto pode ser muito diferente em outros grupos, sobretudo nos de missa dominical ou pertencentes ativos a movimentos e grupos organizados católicos.

A presença ostensiva, num número crescente de famílias católicas, de missas católicas televisionadas secundadas com preces e bênçãos, coordenadas por sacerdotes, que se movem em grande parte na linha da espiritualidade carismática, é um dado importante a considerar, no contexto brasileiro. Na Índia, mesmo que existam ensaios com relação a isto, não chega a ser marcante, inclusive se fala numa espécie de decréscimo da onda carismática.

Na Índia existe uma religiosidade entranhada na cultura, que transborda toda e qualquer religião. Isto faz com que os indianos sejam pessoas mais espirituais, em tudo o que fazem e dizem. Nós brasileiros temos, com certeza, muito a aprender neste sentido. Aprender, sobretudo, a valorizar as nossas culturas, as nossas crenças e religiões e mesmo as nossas descrenças e negações de religião. Sem raízes culturais fortes ou sem ter tido tempo ou condições propícias de cultura, a sociedade brasileira, em muitos contextos, está se movimentando em geral muito próxima da beira do precipício da banalização e do vazio de sentido. Talvez beber um pouco mais das lições milenares da Índia nos possa alertar desse precipício. As lições a que me refiro não são propriamente as lições religiosas, mas estou falando da valorização das próprias tradições e do respeito às tradições dos outros, propiciando um convívio harmonioso na diversidade.