ECOLOGIA INTEGRAL E ESPIRITUALIDADE DO SERVIÇO-APRENDIZAGEM

Texto publicado, como capítulo, no Volumen 3 de la Colección Uniservitate: Espiritualidad y Educación Superior: perspectivas desde el Aprendizaje-servicio. Colección Uniservitate. Coordinación general: María Nieves Tapia. Coordinación editorial: Jorge A. Blanco. CLAYSS, Centro Latinoamericano de Aprendizaje y Servicio Solidario. Argentina, 2022.

José Ivo Follmann sj

Resumo: O ensaio está escrito sob a marca do contexto atual de injustiças, no qual se desenham fortes degradações humanas, sociais e ambientais. Nele se faz uma nota especial em relação ao momento da pandemia presente e ao agravamento que ele representa no processo de degradação humana já em curso por séculos. Na contextualização têm destaque duas iniciativas globais de busca de soluções, como é a dos “objetivos do desenvolvimento sustentável” e a do “pacto educativo global”. É anotada, também, a importância dos 500 anos da espiritualidade inaciana. A atenção principal está no papel da educação e das universidades. A escrita do ensaio se desenvolve basicamente como um “diálogo concreto” movido por uma concepção operativa de justiça, portadora da espiritualidade do cuidado, amparada no paradigma de ecologia integral, como chave de referência no ensino social do Papa Francisco. O texto desenvolve a concepção de processos de conhecimento e ação inerentes a esse horizonte conceitual. Nele é mencionado, em síntese, como exemplo de referência, o modo como o ensino social da Igreja, em suas expressões mais atuais, vem sendo trabalhado operativamente no “marco de orientação de promoção da justiça socioambiental” da província dos jesuítas do Brasil. Estão espelhados nele, também, aspectos visíveis do modo como se dá aprendizagem e a espiritualidade, em coerência com este horizonte conceitual. Busca-se identificar a espiritualidade cultivada inerente à promoção da justiça e ao cuidado, dentro de práticas de “serviço-aprendizagem” junto a comunidades e como isto se manifesta por meio de projetos sociais no contexto universitário. O argumento central do ensaio é concluído com o apoio de recortes narrativos, que pautam práticas de “serviço-aprendizagem” e de espiritualidade inerentes a esses projetos e que são apresentados de forma sucinta. Os relatos são levantados em uma universidade jesuíta do sul do Brasil, sinalizando como são contempladas as principais dimensões da concepção operativa de justiça, dentro do horizonte da ecologia integral.

INTRODUÇÃO

A carta encíclica Laudato Si’ (Papa Francisco, 2015, LS) gerou um forte impacto na opinião pública mundial. Alguns fizeram uma leitura precipitada, focados na dramática crise ambiental que assola a humanidade. No entanto, aos poucos ficou evidenciado que se tratava de uma proposta muito mais profunda, desafiando a humanidade a se posicionar dentro de um novo paradigma sintetizado na expressão “ecologia integral”, com desdobramentos nos processos educacionais, na produção de conhecimento e nas práticas tecnológicas, socioculturais e humanas. A degradação da natureza ou ambiental deve ser pensada na sua interrelação profunda com a degradação humana e social, afirma a encíclica:

O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se juntos, e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestamos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social. (Papa Francisco, 2015, LS, 48).

A carta encíclica chama a atenção que tudo está intimamente relacionado e os problemas atuais exigem um olhar voltado com atenção para todos os aspectos da crise mundial. Neste sentido, ele propõe “uma ecologia integral que compreenda claramente as dimensões humanas e sociais”. (Papa Francisco, 2015, LS, 137). Isto está expresso, com precisão, na sequência:

Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza. (Papa Francisco, 2015, LS, 139).

Em 2020, o Papa Francisco publicou uma nova carta encíclica, a Fratelli Tutti (FT), na qual ele procura dar conta das dimensões humanas e sociais, quase sendo um novo grande capítulo para completar a reflexão desenhada na LS. Ao apresentar esta nova carta encíclica, na Praça São Pedro no dia 08 de outubro de 2020, o Papa Francisco assim se expressou: “A fraternidade humana e o cuidado da criação formam a única via para o desenvolvimento integral e a paz” (Papa Francisco, 2020b). É importante anotar que Papa Francisco não fala “duas vias”, mas sim “uma única via”. Por trás desse cuidado com a linguagem reside, sem dúvida, um recado muito claro com relação à proposta já explicitada na LS que aponta para a necessidade de uma ecologia integral. Parece que o Papa sinaliza que o conteúdo da FT deve ser aprofundado de forma integrada com o conteúdo da LS. As duas cartas encíclicas em seu conjunto, somam, com certeza, uma grande síntese atual do ensino social da Igreja.

A ideia da ecologia integral não se constitui, a rigor, como algo novo. Em diversos âmbitos das ciências podemos encontrar pensadores que, sobretudo, ao longo dos últimos cinquenta anos, demonstraram com vigor preocupações similares. Deve ser lembrado, por exemplo, o trabalho de Félix Guattari, sobre a ecosofia, desenvolvendo uma chave de leitura fecunda a partir da ideia das “três ecologias” (Guattari, 1990). Afonso Murad (2020) desenvolve uma reflexão detalhada e muito sugestiva a respeito da ecologia profunda (deep ecology), trazendo a contribuição de diversos autores, tendo com destaque, sobretudo, o filósofo e ecologista norueguês Arne Naess (2007, 2017).

O presente ensaio, sem retomar o detalhamento do processo de evolução do conhecimento consubstanciado nesses estudos e debates epistemológicos, está totalmente amparado no grande horizonte da ecologia integral, que nos é oferecido pelo viés do atual ensino social da Igreja. O desdobramento do ensaio está organizado em três partes: 1) traçado sintético, através de algumas sinalizações mais relevantes, dos principais dramas de degradação humana, social e ambiental, que envolvem a humanidade, hoje, e os grandes desafios expressos particularmente em dois movimentos de busca global de solução, expressos nos “objetivos do desenvolvimento sustentável” (2015-2030) e no “pacto educativo global” (Klein, 2021; Congregação para a educação católica, 2020), bem como a espiritualidade inerente a tudo isto; 2) proposta de operacionalização do conceito de justiça socioambiental, conforme está desenhada pela província dos jesuítas do Brasil em seu “marco de orientação da promoção da justiça socioambiental” (Companhia de Jesus -Jesuítas do Brasil, 2020)  e a espiritualidade da qual este marco é portador; 3) síntese narrativa, no horizonte do debate da função social das universidades, de aspectos de práticas de “serviço-aprendizagem”, presentes em alguns projetos universitários com a comunidade e traços de espiritualidade neles expressos.

1. UM UNIVERSO EM EBULIÇÃO: INTERROGAÇÕES E PERSPECTIVAS

Em nossos dias, a degradação civilizacional na sociedade humana é visível. São muitas as reflexões sobre este fenômeno presente. Como são, também, muitos os estudos e manifestações, de toda ordem, que se debruçam sobre os sintomas crescentes e explícitos do estado de gravidade dessa degradação.

A humanidade teria perdido o seu senso de humanidade? Estaríamos feitos reféns de superficialidades e abalados em valores que sempre foram fundamentais, como o valor da própria dignidade do ser humano? A síndrome da prepotência arrogante e autossuficiente de uns poucos, mascarada de forma vil diante de todos, parece assumir formas escandalosamente visíveis e descaradas. O descaso em relação ao ser humano, em muitas situações políticas, econômicas e sociais, assume formas de irresponsabilidade extrema, calculada e perversa. Isto se expressa, sobretudo, no acúmulo inominável da concentração de riquezas e na exclusão, no descarte e na morte dos mais sofridos. Em diversos lugares, tornaram-se ostensivas e assustadoras as manifestações de racismos, xenofobias e preconceitos discriminatórios de toda ordem.

O descuido para com a vida, em todos os sentidos, especialmente para com a “mãe terra”, parece ser uma chaga incurável. Apesar de todos os movimentos e esforços por encontrar a cura desse mal, parece que a ambição e o lucro a todo custo continuam imperando. Vivemos tempos que ameaçam levar de roldão os esforços gigantescos e as conquistas da humanidade, após muita construção civilizacional. Infelizmente o quadro que se desenha parece ser o quadro de aceleramento agudo da degradação em todos os sentidos.

É urgente que a degradação ceda lugar ao reconhecimento. É urgente que processos de educação sadios retomem as rédeas da humanidade para que ela possa reapropriar-se de sua condição humana. É urgente que se restabeleça a alma da humanidade.

1.1. A Pandemia e a retomada da consciência?

A sacudida da humanidade, no presente momento de pandemia,[1] traz consigo desafios não postergáveis. Se a situação é muito desafiadora, é, também, alentador que, por todos os recantos da terra, despontem sinalizações e vislumbres consistentes de um novo mundo possível e necessário. Estão sendo tecidas novas lógicas em nível pessoal e coletivo. O seu alcance e sua consistência não são mensuráveis. Mas, com certeza, apontam para a necessidade e a urgência da transformação radical.

Ainda estamos afundados na pandemia. Não sabemos quando poderemos vislumbrar a nova realidade, que alguns estão chamando de “pós-pandemia”. Temos dificuldades para desenhar essa realidade futura, em nossas mentes e corações. Algumas ideias são repetidas. Faço memória de duas: 1) A pandemia veio para inaugurar definitivamente aquilo que, há muito tempo, vem sendo denominado de mudança de época. 2) Com a pandemia as seguranças que marcaram as normalidades do século XX caem por terra e se inicia, de verdade, o século XXI.

Segundo o Cardeal José Tolentino Mendonça (2020), a atual pandemia nos faz entrar em uma nova época da história. A pandemia vai passar. Mas nós já estaremos em outra época da história, em termos culturais, civilizacionais e espirituais: uma época espiritualmente outra.

Como jesuíta que sou por opção de consagração religiosa dentro da Igreja Católica, não posso deixar de fazer menção ao momento importante que a Companhia de Jesus, como ordem religiosa, está vivendo, ao celebrar os quinhentos anos de conversão de Inácio de Loyola, ou seja, de espiritualidade inaciana (1521-2021). Ele foi uma personalidade que protagonizou rupturas radicais em sua própria trajetória. Inaugurou uma espiritualidade transformadora, radicalmente contestadora das lógicas dominantes, em sua própria família e em seu contexto social e cultural. Ele mexeu nas estruturas de base que o sustentavam. A guinada espiritual lhe proporcionou um novo sentido à vida. Passou a ver as pessoas e as coisas a partir de uma lógica totalmente outra. Passou de um “olhar degradante e depravador” para um “olhar de reconhecimento e dignificador”. Passou a “ver Deus em tudo”, assumindo um comportamento totalmente novo[2].

A pandemia também mexeu muito conosco. Embaralhou as nossas lógicas. Colocou em questão as estruturas de base e as certezas que nos sustentam. Ela reacendeu, em todos os recantos da terra, a busca e a escuta das diversas vozes da sabedoria humana na história. Essas vozes sempre estiveram presentes. Infelizmente a humanidade tornou-se surda a elas.

Para nós que somos de tradição cristã, o “totalmente novo” que referimos acima, assim como em Inácio de Loyola, nos faz volver à interioridade do grande e insondável mistério de amor do “grito regenerador” de Jesus Cristo. E nele retornam e reboam as três perguntas originárias: “Onde estás”? “Onde está o teu irmão”? “Como está a criação”? presentes no início das sagradas escrituras de nossa tradição[3].

Em uma leitura que fiz em inícios de 2019, de um pequeno livro do teólogo brasileiro Leonardo Boff (2018), uma passagem me chamara particular atenção: “Vamos criar juízo e aprender a ser sábios e a prolongar o projeto humano, purificado pela grande crise que seguramente nos acrisolará”. O autor referia duas passagens riquíssimas da Sagrada Escritura, onde Deus aparece como “apaixonado amante da vida” (Sb 11, 24) e que nos faz um apelo radical: “Escolhe a vida e viverás” (Dt 30, 28). Leonardo Boff escrevia: “Andemos depressa, pois não temos muito tempo a perder” (Boff, 2018).

A pandemia me fez compreender mais profundamente aquela assertiva. Eu torço, agora, para que a pandemia possa efetivamente ter contribuído para que paremos de correr na direção errada (da morte) e para que aceleremos os passos na direção certa (da vida). Esta é a espiritualidade que mais necessitamos.

1.2. Outras interrogações específicas

Como já mencionei, parece que estamos vivendo um tempo de aceleramento agudo da degradação em todos os sentidos. Trata-se de algo generalizado, mas particularmente presente em alguns contextos mais explorados, deteriorados e empobrecidos. Ao mesmo tempo em que se alarga o fosso das desigualdades sociais, se ampliam, também, escandalosas agressões ao meio ambiente em diferentes contextos.

Às vezes me surpreendo ao reavivar dentro de mim imagens que ocupam a minha retina. Faço aqui dois registros através da expressão de olhares que podem ser considerados paradigmáticos[4]:

1) O olhar de uma criança negra, representando milhões de olhares de crianças obrigadas a sobreviver no meio dos dejetos do déficit habitacional escandaloso das grandes periferias urbanas. São crianças que crescem dentro de um submundo degradado e desumano. É um olhar, que na sua expressão de inocência e encanto, grita por justiça. É um olhar no qual se perfilam milhões de olhares de adultos, já não mais inocentes, mas humilhados, desconfortados, revoltados ou desesperadamente conformados, na dor e na angústia de um “destino” injustificado, interrogando diariamente o mundo do luxo, do desperdício e da indiferença[5] que os esmaga. Uma interrogação que vem do mundo do lixo, da fome e do anseio por atenção e reconhecimento.

2) O olhar triste e desencantado do líder indígena frente a uma das múltiplas empresas monstruosas, devastadoras do seu habitat, se misturando com a tristeza e o desespero de centenas de povos originários vítimas de processos genocidas que marcam a história latino-americana e dos povos colonizados em geral. Retrata a triste marca genocida do processo colonizador que continua sendo reproduzido em nossas mentes e em nosso existir. As nossas espiritualidades, inclusive, não conseguem se libertar disso. É um olhar que nos interroga com vigor, ao mesmo tempo, fascinante e profundamente perturbador. Um olhar acompanhado pelo grito desesperado dos povos indígenas sendo diariamente violentados em seus territórios.

Parafraseando o pensamento de Boaventura de Sousa Santos (2019), somos sociedades sobre cujas histórias e estruturas pesa terrivelmente a tríplice marca do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado. Esta tríplice herança continua vivamente desenhada pelos atuais traços de economias extrativistas e acentuadamente financeiras, geradoras de desigualdades sociais escandalosas, pelo racismo estrutural que mostra, de forma renovada, as suas evidências em múltiplos casos e pela consciência sempre viva da morosidade com que avança a conquista da equidade em todos os âmbitos das sociedades.

A função da educação está, também, em ajudar a desconstruir as perversidades desumanizantes inerentes à tríplice herança referida, do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado (Santos, 2019)[6]. Paralelamente em muitos contextos acontecem movimentos de espiritualidade que ajudam a reabilitar as contribuições das sabedorias ancestrais africanas e indígenas no Brasil.

1.3. Nota a partir dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável

Segundo Victor Martin-Fiorino (2020), um dos aspectos destacáveis no início do século XXI foi a existência de uma declaração da Organização das Nações Unidas – ONU apresentando oito grandes Objetivos para o Milênio, prevendo-se a sua avaliação até 2015. Entre os objetivos se destacou o objetivo 7 voltado para a sustentabilidade do meio ambiente. O balanço das quatro metas deste objetivo, junto com as dos outros objetivos, em relação ao seu cumprimento, foi estimado positivo, em 2015, apesar de se ter constatado um nível de engajamento muito baixo de parte dos Estados, das empresas e outros atores sociais (Martin-Fiorino 2020, p.153).

Em 2015 a ONU formulou os conhecidos “objetivos do desenvolvimento sustentável” – ODS 2015-2030 (Nações Unidas, 2015) Apesar de todos os objetivos voltados para a sustentabilidade ambiental serem centrais na proposta do presente texto, optamos por dar destaque especial ao objetivo 4: “Educação de qualidade: assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos” (Nações Unidas, 2015).Este objetivo está necessariamente interligado com os demais objetivos que dão conta das principais urgências para um efetivo desenvolvimento sustentável.[7]

No discurso do dia 25 de setembro de 2015 na sede da ONU, na celebração dos 70 anos da entidade, na qual foram publicados os ODS, o Papa Francisco, depois de fazer um amplo traçado sobre os grandes desafios para a humanidade hoje, retomando muitos pontos expressos na carta encíclica LS, fez o seguinte apelo:

Para que estes homens e mulheres concretos possam subtrair-se à pobreza extrema, é preciso permitir-lhes que sejam atores dignos do seu próprio destino. O desenvolvimento humano integral e o pleno exercício da dignidade humana não podem ser impostos; devem ser construídos e realizados por cada um, por cada família, em comunhão com os outros seres humanos e num relacionamento correto com todos os ambientes onde se desenvolve a sociabilidade humana – amigos, comunidades, aldeias e vilas, escolas, empresas e sindicatos, províncias, países etc. Isto supõe e exige o direito à educação – mesmo para as meninas (excluídas em alguns lugares) -, que é assegurado, antes de tudo, respeitando e reforçando o direito primário das famílias a educar e o direito das Igrejas e de agregações sociais a apoiar e colaborar com as famílias na educação das suas filhas e dos seus filhos. A educação, assim entendida, é a base para a realização da Agenda 2030 e para a recuperação do ambiente (Papa Francisco, 2015b).

O foco do pronunciamento do Papa Francisco é claro e aponta para a importância do suprimento de todos, em dois níveis: A nível material, este mínimo absoluto tem três nomes: casa, trabalho e terra. E, a nível espiritual, um nome: liberdade do espírito, que inclui a liberdade religiosa, o direito à educação e os outros direitos civis”. (Papa Francisco, 2015b). Ou seja, é exigência para a dignidade humana poder ter habitação, trabalho digno e devidamente remunerado, alimentação adequada e água potável, junto com liberdade religiosa e, mais em geral, liberdade do espírito e educação.

Segundo o Papa Francisco, uma verdadeira abordagem ecológica “sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres” (Papa Francisco, 2015, LS, 49). Neste sentido a Ecologia Integral contempla a tarefa convergente de “combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e cuidar da natureza” (Papa Francisco, 2015, LS, 139).

Quando concentramos a nossa preocupação central na Ecologia Integral, segundo Martin-Fiorino, para além das conceituações científicas, a nossa atenção se dirige ao fato de que a ecosfera é a nossa Casa Comum, fazendo com que discurso científico e discurso engajado, voltado para todas as formas de vida, se misturem:

– Na reconciliação com uma lógica da vida, que permite que transcendamos a nós mesmos, rompendo as autorrefencialidades, numa perspectiva de cuidado dos demais e do meio ambiente (Papa Francisco, 2015, LS, 208).

– Na reciprocidade, na ajuda e cuidado mútuos e dos seres humanos, em suma, na solidariedade para com os demais, superando a cultura do descarte (Papa Francisco, 2015, LS, 156).

– Na convivência com todos os seres vivos, viventes humanos e não humanos, desde o princípio universal do destino dos bens, a começar pelos mais fragilizados (Papa Francisco, 2015, LS, 158).[8]

1.4. A proposta do Pacto Educativo Global

Na sua mensagem, no dia do lançamento do Pacto Educativo Global, em 12 de setembro de 2019, o Papa Francisco marcou o evento com as seguintes palavras:

Toda a mudança requer um percurso educativo para construir novos paradigmas capazes de responder aos desafios e emergências do mundo atual, de compreender e encontrar as soluções para as exigências de cada geração e de fazer florir a humanidade de hoje e de amanhã (Papa Francisco, 2019).

O Papa Francisco sempre foi muito atento à questão da educação, desde o início de seu pontificado. Mesmo que às vezes se referisse diretamente às instituições de ensino em seus diversos níveis, em geral a sua atenção se centrou na ação educativa como processo social inerente à sociedade gerando sentido comprometendo harmonicamente o passado, o presente e o futuro da humanidade. O seu conceito de educação envolve um grande leque de experiências de vida e de aprendizagens, levando os jovens a desenvolver as suas personalidades, tanto individual como coletivamente.

Em seu discurso para os participantes de um Seminário sobre o tema “Education: The Global Compact”, promovido pela Pontifícia Academia das Ciências Sociais, 07 de fevereiro de 2020, o Papa Francisco insistiu que é necessário que se restabeleça o processo educativo de forma integral. Que as novas gerações compreendam e se apropriem integralmente da própria tradição e cultura, que é algo inegociável, na relação com as outras culturas. O cultivo da autocompreensão, de forma aberta à diversidade e às mudanças culturais. E remarcou:

Desta forma será possível promover uma cultura de diálogo, uma cultura de encontro e de compreensão mútua, de forma pacífica, respeitadora e tolerante. Uma educação que permita identificar e promover os verdadeiros valores humanos numa perspectiva intercultural e inter-religiosa.

(…) Ao promover a aprendizagem da cabeça, do coração e das mãos, a educação intelectual e socioemocional, a transmissão dos valores e virtudes individuais e sociais, o ensino da cidadania engajada e solidária com a justiça, e a transmissão das competências e conhecimentos que formam os jovens para o mundo do trabalho e da sociedade, as famílias, as escolas e as instituições tornam-se veículos essenciais para o empowerment da próxima geração. Então sim, já não se fala de um pacto educacional quebrado. Este é o pacto! (Papa Francisco, 2020a).

Não temos como alongar a nossa exposição aqui sobre tudo aquilo que o “pacto educativo global” significa, mas é importante que em breves traços façamos o registro de que ele se caracteriza pela centralidade da pessoa em todo processo educativo e, também, por retomar a importância da família como o primeiro e indispensável sujeito educador. Nele é dada, também, toda atenção à escuta das crianças, adolescentes e jovens, de modo especial meninas em determinadas situações, de sete compromissos, dando destaque à centralidade da pessoa no processo educativo, ouvindo a voz das crianças, adolescentes e jovens, em especial as meninas, em certas situações. Ele está focado na prática do acolhimento com abertura para os mais vulneráveis e marginalizados e aponta para a necessidade de encontrar outras formas de compreender a economia, a política, o crescimento e o progresso, na perspectiva duma ecologia integral e guardar e cultivar a nossa casa comum[9].

2. O CONCEITO OPERACIONAL DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL E A HIPÓTESE DE APROXIMAÇÃO COM DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E EDUCAÇÃO INTEGRAL

2.1. Prolegômenos

Uma hipótese de atalho que encontramos para ir ao encontro dos apelos presentes tanto nas cartas encíclicas sociais do Papa Francisco, como na formulação dos “objetivos do desenvolvimento sustentável” da ONU e, sobretudo, no “pacto educativo global”, está naquilo que estamos definindo como “promoção da justiça socioambiental”. O empenho explícito da Companhia de Jesus, desde finais do século XX em integrar o compromisso com a justiça social e as questões ambientais, está muito bem expresso no Marco de Orientação da Justiça Socioambiental da província dos jesuítas do Brasil (Província dos Jesuítas do Brasil, 2020). Como já sinalizei na introdução deste ensaio, este empenho foi intensamente reforçado com a explicitação do paradigma de Ecologia Integral, nas encíclicas sociais do Papa Francisco.

2.2. Vetores temáticos da promoção da Justiça Socioambiental

Sob a articulação do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA[10], que é o órgão que facilita o funcionamento das ações de promoção da justiça, a busca permanente está em construir uma cultura do cuidado, focando a atenção em três grandes cuidados: o cuidado da dignidade humana na atenção a nós mesmos e aos outros, o cuidado dos dons da criação em sua diversidade e o cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas na atenção à diminuição das desigualdades sociais.

  • Cuidado da dignidade do ser humano, na atenção a nós mesmos e aos outros.

É a dimensão ou vetor temático do cuidado da dignidade humana, amparada no autoreconhecimento e no reconhecimento dos outros. Esta dimensão acontece, na prática, nas relações conosco mesmos em nossa autocompreensão e identificação e com o diferente, nas relações étnico-raciais, religiosas, de gênero, de geração, de origem nacional, de visões de mundo e opções, buscando sempre formas de estabelecer o diálogo, o valor da pluralidade e a inclusão de todos/as.

  • Cuidado dos dons da criação, da vida e da saúde dos ecossistemas.

É a dimensão ou vetor temático do cuidado dos dons da criação. Trata-se da conservação, preservação e usos adequados dos dons naturais, em vista do cuidado dos ecossistemas saudáveis e da vida para o futuro do planeta terra e de seus habitantese atenção especial ao nosso modo de ser, viver e trabalhar e à diversidade da vida nos diferentes biomas de cada território.

  • Cuidado das políticas, da sociedade e da economia em vista da diminuição das desigualdades sociais.

É a dimensão ou vetor temático do cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas. Nesta terceira dimensão está fundamentalmente em questão a diminuição das desigualdades, das exclusões sociais e da pobreza, pela busca do acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, segurança, saúde, moradia, educação, alimentação e nacionalidade.

2.3. Posições estratégicas da promoção da Justiça Socioambiental

Tentando pensar, na prática, o nosso compromisso com a promoção da justiça, no esforço de termos alguma incidência nisso, e tendo presente a perspectiva e amplitude social e ambiental apontadas, estão sendo ensaiados, dentro do marco referido, alguns atalhos operacionais. Distinguimos, neste sentido, três níveis concretos ou diferentes posições estratégicas em nossas incidências nas práticas na promoção da justiça ou da justiça socioambiental. Ou seja, podemos incidir nas práticas de justiça efetivadas em nível de produção do conhecimento, em nível de interlocução direta com grupos, organizações e movimentos nas ações junto às tomadas de decisão, e, sobretudo, em nível de cotidiano em nosso ser, viver e agir, no dia a dia.

Os cuidados acima descritos segundo as três dimensões ou vetores temáticos que delimitamos, passam a ter força operativa quando visualizadas nessas três posições estratégicas ou níveis transversais. Entendo que essa transversalidade tríplice e complexa, apresentada aqui em formato caricato e simplificado, pode estar apontando para uma chave fecunda no avanço dentro da ideia de desenvolvimento sustentável e de educação integral.

3. A FUNÇÃO SOCIAL DA UNIVERSIDADE, “SERVIÇO-APRENDIZAGEM” E ESPIRITUALIDADE

3.1. Impactos na academia e na sociedade

A inquietação e o apelo profético expressos pelo teólogo Leonardo Boff, mencionados anteriormente, não são novidade, mas fazem ecoar e repercutir de forma nova e vigorosa o grito múltiplo e multimilenar da própria alma da humanidade. Trata-se, sobretudo, de uma interpelação ética, com a qual muitas vozes vêm fazendo eco, ao longo das últimas décadas. É uma interpelação dirigida também para as instituições acadêmicas, em sua função precípua de produção do conhecimento e formação de profissionais em todas as áreas de conhecimento.

Existe um descompasso, ainda abismal, entre as demandas da sociedade e as efetivas entregas do meio acadêmico. Existem também muitos esforços pela superação desse abismo. Uma multiplicidade de intelectuais e outros agentes sociais deveriam ser destacados, aqui, por suas contribuições, a partir das mais diversas posições, na busca dessa superação. O presente ensaio não permite retomar todo esse debate que, como a temática da ecologia integral, ou, de forma associada a essa temática, nos enche de esperança. Não posso, no entanto, deixar de mencionar em destaque, a teoria da complexidade (Morin, 2005), o conceito e a prática transdisciplinar (Nicolescu, 2000), os debates sobre a “ecologia dos saberes” (Santos, 2010) e sobre a “racionalidade ambiental” (Leff, 2006, 2016), como alguns dos múltiplos e promissores caminhos de aproximação entre o mundo acadêmico o mundo fora da academia. Em todos esses caminhos são-nos fornecidas chaves importantes para a revalorização de saberes que foram atropelados e marginalizados pelas racionalidades acadêmicas e suas lógicas viciadas e segmentadas.

A sociedade humana, apesar dos avanços tecnológicos importantes ou, muitas vezes, por causa deles, da maneira como esses se deram, está longe de ter resolvido os seus próprios problemas internos. A mesma coisa se deve dizer quanto aos conflitos gerados na relação do ser humano com os bens naturais. Alguns problemas internos e, também, conflitos na relação com a natureza tenderam a se agravar. O mundo acadêmico está sendo escandalosamente moroso ou, até, alienado no exercício do seu papel.

O cenário em que irrompe a complexa crise socioambiental (social e ambiental) é o de um mundo em ebulição, onde as contradições de problemas atuais e problemas do passado compõem conjuntamente o enredo para a compreensão dos problemas e conflitos que devem ser encarados concretamente pelo meio acadêmico. O mundo está em crise, não porque está em processo criativo, mas porque é um mundo em degradação, tentando sobreviver. A Universidade sobreviverá se conseguir ajudar a humanidade e o mundo a sobreviver. A Universidade só tem sentido se for geradora de processos criativos dentro da humanidade.

A “retomada da consciência” provocada pelo choque da pandemia pode tender a ser mais um movimento superficial e inconsequente, se a humanidade permanecer inerte e não souber lançar mão de sua expertise para, dentro de cada contexto cultural, fazer as pazes com o seu passado. Este fazer as pazes com o seu passado necessita de uma profunda transformação tanto em nível da educação, como, também, dentro daquilo que chamamos de espiritualidade ou alma da humanidade.

3.2. A função da Universidade

De fato, quando pensamos o cuidado da dignidade humana, o cuidado da sociedade e o cuidado ambiental, estamos frente a importantes lógicas de relações complexamente presentes na sociedade, e nem sempre o mundo acadêmico conseguiu estabelecer uma interlocução coerente. Ao contrário, o mundo acadêmico tendeu a se isolar construindo o seu mundo próprio.

Como facilitar essa interlocução? Como romper o isolamento e autorrefencialidade da academia? Um caminho importante é o de sempre voltarmos para três perguntas ou questões básicas: 1) A primeira questão, em nosso “que fazer” universitário, sempre deve ser: que sociedade nós queremos? 2) Uma segunda questão naturalmente se seguirá: que sujeitos formar para essa sociedade que queremos? e 3) A terceira questão, consequentemente, fará voltar o nosso olhar para as universidades, enquanto tal: que educação nós necessitamos? E, dentro desta questão: que universidade para ser coerente com a educação necessária para os sujeitos e a sociedade buscados? (cfr. Follmann, 2008, p. 322)[11].

O nosso sonho é na direção de uma sociedade sustentável, isto é, uma inovação tecnológica condizente com os avanços internacionais e com o estabelecimento de garantias de sustentabilidade social e ambiental, em vista da sobrevivência equilibrada da sociedade e do meio ambiente, no presente e no futuro. Por isso, os cidadãos e profissionais dessa sociedade devem passar por um processo de formação condizente e o sistema no qual este processo formativo se dá deve ser impulsionador disto. Encontramos, sem dúvida, os melhores direcionamentos para isto na Pacto Educativo Global acima referido.

3.3. Projetos sociais e espiritualidade do “serviço-aprendizagem”

A Universidade que tomei como referência neste estudo, é uma Universidade Jesuíta que se situa no sul do Brasil. Nessa Universidade existe uma instância denominda Centro de Cidadania e Ação Social – CCIAS[12], que congrega e articula os projetos sociais da Instituição. Entre os 18 projetos que vem sendo desenvolvidos como serviços de interface entre Universidade e comunidade, escolhi cinco para colher elementos para a presente reflexão:

1) A Horta Mãe-da-Terra é um projeto de produção coletiva de hortaliças e plantas alimentícias não convencionais, desenvolvido por estudantes da Universidade, estudantes de educação básica e professores, junto a uma escola municipal em um bairro popular.

2) O Programa Esporte Integral é um conjunto de atividades coletivas, em interface com a comunidade, que funciona no centro esportivo do Campus Universitário e em outros espaços focado na formação da cidadania, nas experiências de democracia participativa e no exercício do direito ao lazer, a partir de práticas esportivas.

3) O Programa de Atenção Ampliada à Saúde, funciona em um prédio de fácil acesso, nas proximidades da Prefeitura Municipal, e se caracteriza como “serviço-escola” interdisciplinar na área da saúde, tendo como um de seus focos o Serviço-Escola institucional do Curso de Psicologia.

4) O Vida-com-Arte é uma proposta de educação musical e fortalecimento de vínculos que atende crianças e adolescentes da rede escolar do município, que se encontram em situação de vulnerabilidade social, tendo como foco principal proporcionar aos participantes a oportunidade de conviverem em um ambiente sadio e desenvolverem suas habilidades musicais e humanas.

5) O Grupo de Cidadania e Cultura Religiosa Afro, é um espaço criado, no Campus Universitário, pelo Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – NEABI, realizando encontros semanais da comunidade de afrodescendentes do município e arredores. Reúne crianças, jovens, adultos e idosos, para uma convivência cultural, de diálogo inter-religioso, de aprendizagens coletivas e de conhecimento de sua realidade e de aproximação com o mundo acadêmico.

Tem-se assim, dentro de cinco frentes de interface da Universidade com a comunidade, uma diversidade bastante sugestiva de espaços que proporcionam práticas, que podem ser consideradas pertinentes, em termos de “serviço-aprendizagem”.

Na Horta Mãe da Terra, na qual estão envolvidos professores, educadores, acadêmicos estagiários e os participantes locais, os processos de aprendizagem se dão “por meio da educação integral que visa desenvolver as dimensões da pessoa a partir de reflexões e experiências abordando a esfera social, política, afetiva, cultural, mística e ambiental”. A coordenação do projeto comenta que: “quando trabalhadas de maneira prática formam cidadãos com um pensamento crítico, emancipatório, político, transformador, social e propositivo capaz de analisar e agir nas complexas relações existentes entre processos naturais e sociais na escola e na comunidade”. Falando especificamente do aprendizado dos educadores e estagiários, a coordenação comenta, que em todo este processo: “educadores e estagiários têm a oportunidade de trabalhar com uma comunidade que ainda apresenta elevado índice de vulnerabilidade social. Trata-se de uma experiência transformadora” (Projeto Horta Mãe da Terra, in Olma, 2021)[13].

O Programa Esporte Integral, fiel ao seu objetivo central que é a formação na cidadania, favorece espaços de “serviço-aprendizagem” em diferentes experiências de democracia participativa, no exercício concreto do direito ao lazer, mediante práticas esportivas e de lazer, coletivamente construídas. Nessas práticas todas/os participantes, junto com integrantes das equipes, profissionais, estagiárias/os e técnicas/os, são sempre, na medida do possível e viável, envolvidas/os no planejamento, na busca de conhecimentos e nas avaliações.

O Programa de Atenção Ampliada à Saúde tem como objetivo promover práticas em saúde, contemplando as necessidades constitutivas dos processos de desenvolvimento humano e societário com vistas à qualidade de vida. Nele, todas/os profissionais, professoras/es, técnicas/os, estagiários/as e estudantes, são envolvidas/os nas mais diferentes atividades formativas e de atendimento, havendo sempre o reforço por meio de seminários teóricos sistemáticos, de supervisão semanal, de estudos de casos mensais, além da formação continuada para a capacitação em diferentes áreas e temáticas. Os grupos participantes, ou o público-alvo do programa, têm seus processos de aprendizagem voltados à psicoeducação, hábitos alimentares, higiene e hábitos saudáveis, além de outros aspectos trabalhados em consultas individuais, em conjunto e/ou em grupos. Tudo isto faz com que vislumbre nos seus espaços de trabalho deste programa, uma experiência significativa de “serviço-aprendizagem”.

O Vida-com-Arte veio proporcionando ao longo da década de 2010, um processo diferenciado de “serviço-aprendizagem” fazendo com que em três encontros semanais profissionais músicos, estagiários, oficineiros e jovens aprendizes das escolas das periferias mais vulneradas do município tivessem oportunidade de trocas coletivas no manejo musical de instrumentos como violino, viola, violoncelo, contrabaixo, flautas e percussão. Momentos importantes de aprendizagem sempre foram também a interação dos oficineiros nos próprios ensaios da orquestra da Universidade, através do manejo de instrumentos e do canto. A prática de apresentações públicas sempre representou ponto de culminância no processo de aprendizagem e formação dos sujeitos em sua cidadania.

O Grupo de Cidadania e Cultura Religiosa Afro se caracteriza, sobretudo, por atividades voltadas para o processo histórico e identitário da população negra na região e, também, a dimensão religiosa diversa dos participantes. Os processos de aprendizagens sempre se deram de forma coletiva, sobretudo, mediante rodas de conversa com todas/os todos, profissionais professores, estudantes e participantes de todas as idades interagindo de forma dialogada. Uma metodologia utilizada na análise de histórias de vida da população negra do município foi o que denominamos de hermenêutica coletiva. A oralidade, com a contação de histórias de vida e troca de experiências, envolvendo a todas/os sempre foi o que mais marcou as práticas de aprendizagem. O “Cidadania” se considera um espaço de aprendizado coletivo e de inclusão afirmativa da população afro no meio acadêmico.

Quando buscamos identificar aspectos relativos à espiritualidade presente nos projetos sociais em questão, abrem-se horizontes de percepção muito interessantes, tais como:

A equipe que coordena, por exemplo, o projeto Horta Mãe da Terra, nos relatou que entendem e praticam “a espiritualidade por meio do espaço da horta como sendo uma ferramenta de conexão para promover o cuidado com a vida e o bem viver”. Ou, ainda, é relatado pela coordenação o modo como é considerada a na visão do projeto: “a terra como nossa “grande mãe”, a “pachamama”, dos povos indígenas, e a “magna mater” de quase todas as tradições da humanidade assegurando uma vida digna. A espiritualidade ocorre durante o cultivo e o cuidado com a terra” (Projeto Horta Mãe da Terra, in Olma, 2021).

No que se refere à espiritualidade nas nossas atividades do Programa Esporte Integral, foi relatada a existência de alguns espaços: “Nestes espaços, a partir das demandas trazidas pelos participantes criam-se estratégias de diálogo, dinâmicas, visitas a outras organizações e demais ações que ampliem e possibilitem construções enquanto grupo”. Estes espaços foram assim caracterizados: “ricos espaços de reflexão e de construção coletiva de valores”. (Projeto Esporte Integral, in Olma, 2021).

Para falar em espiritualidade, a coordenação do Programa de Atenção Ampliada à Saúde, foi clara em relatar dentro dos seguintes termos: Nós “não temos momentos específicos para a espiritualidade”, no entanto, “somos uma equipe cuja postura ética, encaminha nossas tomadas de posição e escolhas, sempre buscando o melhor para a população atendida, participantes e estagiários”. Em outra passagem do depoimento, a coordenação relata: “Estamos integrados, construindo cotidianamente o trabalho de forma coletiva. Realizamos composições que partem do diálogo e que sempre visam o melhor para a nossa coletividade”. A coordenação também fala das parcerias na busca de soluções, como prática de espiritualidade, ou seja, não querer ficar isolados: “Buscamos compor com parceiro, tentando alianças de trabalho e ampliação de soluções para os inúmeros problemas e desafios encontrados” (Programa Atenção Ampliada à Saúde, in OLMA, 2021).

Quanto ao Projeto Vida-com-Arte, segundo a sua coordenação, é importante anotar que “o projeto gera impacto em muitas vidas de jovens e adolescentes, e ele mesmo é a expressão de uma prática espiritual constante, de correção das injustiças sociais, de compartilhamento de afetos e saberes” (Projeto Vida-com-Arte, in OLMA, 2021).

O Grupo de Cidadania e Cultura Religiosa Afro originou-se do desejo mostrado por líderes de diferentes religiões para conhecer melhor a cultura e história africana e dos afrodescendentes. A sua espiritualidade reflete muito, desde a origem “a abertura e cultivo de práticas espirituais diversas, ao lado de reflexões da espiritualidade inaciana, sempre foram marcantes. Sempre iniciamos as atividades com algum tipo de reflexão seja a partir da espiritualidade católica ou de outra denominação religiosa”. Assim, a espiritualidade neste projeto sempre quis expressar-se em direitos de igualdade ativa, em direitos à dignidade e fraternidade, em confiança e conhecimento, em justiça e paz entre todos os povos, culturas e religiões”. Segundo a sua coordenação, “o respeito à diversidade religiosa orienta, assim, a busca dos fundamentos da coexistência pacífica entre as múltiplas formas que conduzem ao Altíssimo e à superação das limitações e condutas que separam a humanidade”. E um outro comentário temos a seguinte assertiva: “A vida sem disfarces e estigmas associados a julgamentos a quem é diferente, conduz à valorização da diversidade e à complementaridade religiosa e à igualdade social”. (Grupo Cidadania e Cultura Religiosa Afro, in OLMA, 2021)

Assim, os cinco projetos aqui pautados, relatam percepções e práticas específicas que convergem, por caminhos diferentes e criativos, para uma mesma espiritualidade que nasce do conceito de justiça socioambiental (social e ambiental) e de um horizonte de práticas pedagógicas comuns. É uma espiritualidade que se pauta, principalmente, na “mística” que desperta e é cultivada: no reconhecimento radical da própria dignidade e da dignidade do outro; no sofrimento e na indignação frente às desigualdades escandalosas e inaceitáveis e frente à situação desumana, vivida, por muitos irmãos e irmãs; no cuidado da vida e dos dons da criação, impelido pelo amor a toda a vida, que pulsa no presente, e pulsará no futuro, neste planeta terra.

4. ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO (A TÍTULO DE CONCLUSÃO)

A humanidade necessita urgentemente centrar-se na cultura do cuidado e desfazer-se da tragédia da cultura da indiferença. A atenção central deve ser colocada na dimensão relacional e na interligação de tudo dentro do convívio humano, nas relações interpessoais, na sociedade e em relação aos dons da natureza.

Precisamos estar cuidadosamente atentos à prática da justiça em todo complexo convívio humano. Este estar “cuidadosamente atentos” é o que, aqui, concluindo, podemos chamar de espiritualidade do cuidado. Esta denominação parece ser a mais apropriada porque tem em seu centro o permanente cuidado da dignidade humana e da vida em todas as suas manifestações.

Em outras palavras, é uma espiritualidade que perpassa o cuidado da dignidade humana, o cuidado dos dons da criação e o cuidado do ordenamento social e econômico de inclusão e igualdade. Precisamos cultivar em nós essa tríplice mística do cuidado. São cuidados que podem ser exercidos tanto em nível de produção do conhecimento, de influência nas tomadas de decisão e no modo de ser, viver e agir dentro do cotidiano.Ou seja, uma espiritualidade integral que nos envolve em nossa totalidade de vida e de ação.

Precisamos de uma espiritualidade que nos mude, radicalmente, em nossas práticas. Que nos faça retomar o verdadeiro caminho da justiça. Que seja força regeneradora da sabedoria humana. Segundo o teólogo Leonardo Boff, “vamos criar juízo e aprender a ser sábios e a prolongar o projeto humano, purificado pela grande crise que seguramente nos acrisolará” (Boff, 2018, p. 158). Segundo este teólogo é necessário que andemos depressa, pois não temos muito tempo a perder (p. 159).

A Espiritualidade, que hoje nos é solicitada, é a disposição de nossos corações para buscar os melhores caminhos para a construção de sociedades sustentáveis e geradoras de vida. Um dos caminhos mais fecundos para isto, que se desenha de diferentes formas, são os novos formatos de aprendizagem, expressos sobretudo no “serviço-aprendizagem”.

REFERÊNCIAS

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Brasil (2009). Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: Mec-Secad.

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Santos, B. de S. (2019). O fim do império cognitivo. A afirmação das epistemologias do Sul.Belo Horizonte: Autêntica Editora.

NOTAS:


[1] A Pandemia do Coronavírus – Covid-19, eclodiu em todo mundo, em inícios de 2020 e continua ainda, em meados de 2021, data de escrita deste ensaio, causando estragos avassaladores em diversos contextos.

[2] O uso do termo espiritualidade neste ensaio está diretamente relacionado com esta “mística inaciana” do “ver Deus em tudo” (Loyola, 2015).

[3] “Onde estás”? Foi assim que Deus interpelou Adão. (Gn. 3,9).  “Onde está o teu irmão”? Foi assim que Deus interpelou Caim (Gn. 4,9). “Como está a criação”? Assim interpela Deus a humanidade, não deixando que ela esqueça seu mandato de cuidar de tudo (Gn. 1, 26-31; 2, 15). No que se refere a Gn. 2, 15 e, especialmente, Gn. 1, 26-31, em termos teológicos “o ser humano na criação” está abordado de forma muito detalhada e profunda por Lúcio Flávio Cirne (Cirne, 2013, p. 82-89).

[4] Retomo em síntese o que referi em conferência preparada para III Seminário de Espiritualidades contemporâneas, pluralidade religiosa e diálogo, na Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, 22-24/04/2020. O evento foi cancelado devido à pandemia, mas a conferência foi publicada em formato eletrônico pela instituição promotora (Cfr. Follmann, 2020).

[5] O que sente o menino negro pobre de periferia é uma marca global, hoje, na sociedade humana. É a chaga da cultura da indiferença denunciada pelo Papa Francisco em Lampedusa em 2013, quando fala da “globalização da indiferença”. Cfr Ihu On-Line (2013). Obtido em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521786-qadao-onde-estas-caim-onde-esta-o-teu-irmao-o-discurso-de-francisco-em-lampedusa

[6] Um exemplo muito promissor está nas leis 10639/2003 e 11645/2008, que revisam e esclarecem a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei 9394/96) mediante os artigos 26A e 79B, normalizando a obrigatoriedade da Educação das Relações Étnico-raciais em todo sistema educacional brasileiro e o ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e dos povos indígenas (Brasil, 2009).

[7] Os 17 ODS são: 1. Erradicação da pobreza; 2. Agricultura sustentável; 3. Saúde e bem-estar; 4. Educação de qualidade; 5. Igualdade de gênero; 6. Água potável e saneamento; 7. Energia limpa e acessível; 8. Trabalho decente e crescimento econômico; 9. Indústria, inovação e infraestrutura; 10. Redução das desigualdades; 11. Cidades e comunidades sustentáveis; 12. Consumo e produção responsáveis; 13. Ação contra mudança global do clima; 14. Vida na água; 15. Vida terrestre; 16. Paz, justiça e instituições eficazes; 17. Parcerias e meios de implementação. A explicitação dos títulos das temáticas dos objetivos é um indicativo bastante sugestivo com relação ao complexo alcance da expressão “desenvolvimento sustentável”. Sintetizado de: https://www.pactoglobal.org.br/ods

[8] Cfr Martin-Fiorino, 2020, pp. 155-156.

[9] Revista IHU On-Line, comenta Pacto Educativo Global, 16/10/2020: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/603808-educacao-papa-lanca-pacto-global-com-sete-compromissos-por-um-mundo-diferente

[10] Nota importante: o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA) será referido ao longo de todo o capítulo apenas por sua sigla. Trata-se de um “Observatório em Rede” da Província do Brasil, Companhia de Jesus, com núcleo articulador em Brasília, DF. www.olma.org.br

[11] As três perguntas estão inspiradas no primeiro Plano Estratégico 2001-2005, da Associação das Universidades Confiadas à Companhia de Jesus na América latina e Caribe – AUSJAL.

[12] Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, São Leopoldo, RS, Brasil. Ver Centro de Cidadania e Ação Social – CCIAS: http://unisinos.br/cidadania/ccias-centro-de-cidadania-e-acao-social-unisinos/

[13] As citações na sequência deste item fazem parte de uma documentação do autor, em elaboração para publicação no site do OLMA – www.olma.org.br: Olma (2021). Experiências Significativas de Justiça Socioambiental. (EM PREPARAÇÃO).

PROFETAS DA JUSTIÇA E RECONCILIAÇÃO

Este texto teve a sua primeira publicação em agosto de 2019.

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

Este texto foi escrito para a Revista do Colégio Medianeira, Curitiba, PR, dirigida à comunidade educativa daquela instituição.

P. José Ivo Follmann sj
Secretário para a Justiça Socioambiental
Província dos Jesuitas do Brasil
(agosto de 2019)

Há algum tempo, em uma das redes sociais na qual costumo me comunicar, alguém postou a mensagem de uma senhora trabalhadora vinculada a uma cooperativa de reciclagem de lixo. Na mensagem ela fazia um apelo veemente, acompanhado de uma recomendação muito justa: uma verdadeira lição de justiça socioambiental para nós.

Depois de se apresentar, ela (aquela trabalhadora) pedia para que fôssemos mais atentos em facilitar a coleta seletiva dos lixos. As palavras dela foram um misto de agradecimento pela separação da “matéria prima” do trabalho de quem faz disso a sua profissão, e de estímulo para ampliarmos a nossa contribuição no combate à contaminação, à poluição e ao estrago que vem castigando e destruindo a nossa mãe terra. As palavras dela foram, também, um lembrete delicado para ajudarmos a melhorar as condições de trabalho das pessoas envolvidas nessas frentes.

Na fala suave e decidida daquela mulher, – uma senhora negra cujo olhar sofrido não escondia um forte brilho repleto de sabedoria e liderança -, suas palavras foram finalizadas com uma recomendação muito oportuna, repleta de profundo senso de humanidade.

Ela dizia: “Quando separam as caixinhas de leite vazias e garrafas vazias de yougurtes ou coisas parecidas, procurem, por favor, passar uma água, deixando, depois, os frascos abertos no lixo. Isto ajuda muito para nossos narizes. Isto torna o nosso trabalho menos insalubre. Vocês não imaginam os cheiros que às vezes temos que suportar em nosso trabalho. É um pedido! Não custa”!

Confesso que aquela fala ressoa em mim até hoje. Aprendi e agradeço! Sempre que vou descartar algum frasco de leite, garrafas de yougurtes ou embalagens parecidas, me lembro de quem estará lá na outra ponta recolhendo aquela “matéria prima” para o seu trabalho.

Em minha função de Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil, tenho viajado bastante e frequentado muitos aeroportos. Um dia, no espaço de um banheiro de aeroporto, a atitude de um senhor de idade – “senhor da bengala” – me chamou a atenção. Ele era bastante idoso. As suas limitações físicas eram visíveis. Apesar de trêmulo, ele manejava com destreza a bengala, na qual se apoiava. Chamou-me a atenção que ele, no meio da correria e do tumulto dos que entravam e saíam, naquele recinto, serviu-se da bengala para juntar os pedaços de papel no chão; pedaços de papel que outros, na pressa e no desleixo, descuidadamente, haviam largado ao redor da lixeira. Na sequência, com cuidado e certa dificuldade, ele se inclinou diversas vezes, para com uma das mãos, – a que estava livre da bengala -, colocar os papéis no recipiente do lixo, sem se perturbar com os transeuntes.

Observei com atenção os movimentos daquele senhor da bengala. Terminada a sua ação, que parecia um evidente hábito rotineiro, ele encostou a bengala, pegou o papel, lavou tranquilamente as suas mãos, as enxugou e colocou o papel, cuidadosamente, na lixeira. Depois, armando-se de novo com a bengala, caminhou para a porta, tranquilo, sem se fazer notar. “Que exemplo de delicadeza humana”, pensei comigo. “Preocupar-se em deixar o ambiente limpo para os outros…” “Quem não se sente bem, quando encontra um ambiente desses, limpo e asseado, sem o horror do desleixo e dos papéis espalhados pelo chão”? Tornei-me um fiel seguidor desse “senhor da bengala”, anônimo, discreto, fisicamente frágil, mas tremendamente robusto em humanidade.

Se queremos falar em justiça e reconciliação, precisamos começar pelas pequenas coisas do dia-a-dia. O cuidado da “nossa casa comum”, é, em primeiro lugar, o cuidado de quem frequenta ou trabalha nessa “casa”. Saber importar-se com as outras pessoas, com o seu bem-estar. Hoje, sempre que entro em algum banheiro bem cuidado e limpo, sem papéis espalhados no chão, lembro-me do “senhor da bengala”. Também me dou conta que existem gestores/as que têm sensibilidade e se preocupam para que as pessoas que usam os ambientes que estão sob sua responsabilidade não se sintam agredidas em sua dignidade. Escalam para tal zeladorias permanentes e atentas. A boa gestão pede este cuidado.

Fazer gestão com justiça é cuidar da dignidade humana. Praticamos a justiça, como gestores e gestoras, quando as tomadas de decisão, em todas as instâncias de nossos empreendimentos, estão revestidas de sensibilidade e humanidade. Trata-se da atenção permanente de garantir que as pessoas se sintam bem e respeitadas em sua dignidade. Nada melhor para o ser humano do que poder frequentar ambientes limpos e acolhedores. Isto ajuda a cultivar a própria dignidade.

Falando em “ambientes limpos e acolhedores”, fico escandalizado, com a mente e o coração perturbados, sempre quando me deparo com cenas em que os nossos irmãos e irmãs estão jogados nas calçadas das ruas ou “residindo” em ambientes sórdidos, amontoados em barracos, rodeados de esgoto e lixo, imundos, como se eles fossem o próprio lixo da humanidade. São vidas humanas desfiguradas, no meio da imundície, que clamam por justiça! Elas clamam para que não sejamos insensíveis e não consideremos estas cenas como normal e como algo que não tem solução. Elas clamam para que não repitamos o mantra horrível: “Infelizmente é assim mesmo; não dá para fazer nada”, como se isto fosse uma espécie de destino fatal dos “deserdados da sorte” ou “descartados do mundo”.

O número desses “deserdados” e “descartados” vem-se multiplicando nos últimos anos. É um escândalo! É uma interrogação inquieta com relação aos nossos sistemas econômicos, políticos e sociais. Como reverter essa calamidade? Como calar a ignorância cínica, que pensa, diz e age como se isto devesse ser assim mesmo? Como calar essa ignorância cínica que habita, também, dentro de nós? Muitas vezes, a perversidade nos leva ao extremo de jogar a culpa de tudo nas próprias vítimas. Pobre humanidade! A que extremo estamos reduzidos? “Sempre foi assim…”

Há um caminho possível para além destes cinismos acomodados e inoperantes. Levar a sério a dignidade humana deve interpelar, de forma permanente, a todos/as nós, e, sobretudo, as pessoas responsáveis pela tomada de decisão com relação aos destinos dos recursos e dos bens dos quais a humanidade dispõe.

Só os exemplos aqui relatados já deveriam ser suficientemente mobilizadores para nos fazer acordar e chamar à responsabilidade. Para nós que somos cristãos ou para quem, seguindo o cristianismo ou não, atua em uma organização dirigida pela Companhia de Jesus, tudo isto fala com redobrado vigor porque somos orientados a nos colocarmos na perspectiva da reconciliação como caminho da justiça. Para a Companhia de Jesus e para quem orienta a sua vida religiosa pelo cristianismo, Jesus Cristo é o caminho da reconciliação de tudo, ou seja, da reconciliação consigo mesmo/a, com as outras pessoas em sociedade, com os dons da criação e com Deus. Por um caminho ou outro, somos convidados/as a assumir a participação na ação de reconciliação em todos os níveis. Este é um caminho de construção da justiça.

No Estatuto da Província dos Jesuítas do Brasil, recentemente aprovado, consta que uma das competências do Secretário para a Justiça Socioambiental é a de “promover a consciência da justiça socioambiental na Província em coerência com o paradigma da Ecologia Integral e da Teologia da Reconciliação” (Estatuto da Província, Art. 27, & 7-a).

O paradigma da Ecologia Integral, introduzido pelo Papa Francisco em sua Carta Encíclica Laudato Sí (2015), baseando-se no princípio da relacionalidade de tudo em nossa “casa comum”, é uma chave que ajuda a pensar a promoção da justiça, como um processo de reconciliação, em todas as dimensões. “Tudo está interligado, nesta casa comum”, diz uma das canções que acompanha o movimento do Sínodo para a Amazônia, em realização de outubro de 2017 a outubro de 2019. É o que chamamos de justiça socioambiental, amparada na Ecologia Integral e na Reconciliação. Trata do trabalho pela justiça, no qual as injustiças sociais e injustiças ambientais aparecem profundamente interligadas. Não temos como fazer justiça social sem justiça ambiental e não temos como fazer justiça ambiental sem justiça social.

No meio da perversidade humana e estrutural, que nos assola, o “senhor da bengala”, a senhora da cooperativa de reciclagem de lixo e gestores e gestoras que, em suas decisões, colocam a atenção primeira na dignidade humana e no ambiente digno de vida, são profetas da justiça socioambiental: profetas da justiça e da reconciliação de todas as pessoas e de todas as coisas.

CAMINHOS DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL E ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO

Palestra proferida na UNICAP, Recife, PE, em abril de 2020.

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

Conferência preparada por José Ivo Follmann para: III Seminário de Espiritualidades contemporâneas, pluralidade religiosa e diálogo.

UNICAP, Recife 22-24/04/20 20 (evento postergado). Publicado em E-Book: GILBRAZ, Aragão; VICENTE, Mariano (orgs). Desafios dos Fundamentalismos (Espiritualidades, Transdisciplinaridade e Diálogo – 3). Recife: EdUnicap/OTTR, 2020, pp. 113-133.

CONTEXTUALIZAÇÃO

Talvez possa ser chocante iniciar este texto sobre “caminhos de justiça socioambiental e espiritualidade do cuidado” mostrando imagens que expressam flagrantes injustiças.

É o olhar de uma criança negra, representando milhões de olhares de crianças obrigadas a sobreviver no meio dos dejetos do escandaloso déficit habitacional de nossas periferias. São crianças que crescem dentro de submundo estreito e desumano. É um olhar, que na sua expressão de inocência e encanto, grita por justiça. É um olhar no qual se perfilam milhões de olhares de adultos, já não mais inocentes, mas humilhados, desconfortados, revoltados ou desesperadamente conformados, na dor e na angústia de um “destino” injustificado, interrogando diariamente o mundo do luxo, do desperdício e da indiferença que os esmaga. Uma interrogação que vem do mundo do lixo, da fome e do anseio por atenção e reconhecimento.

No olhar triste e desencantado do líder indígena frente a um dos múltiplos monstros empreendedores, devastadores do seu habitat, se mistura a tristeza e o desespero de centenas de povos originários vítimas de processos genocidas que marcam a história latino-americana, em geral, e brasileira, em particular, ao longo de mais de 500 anos. Aliás, a marca genocida do processo colonizador já perturbou muitas vezes a minha mente. Isto, sobretudo, porque continuamos marcados pela mente colonizadora e grande parte de nosso existir, inclusive, de nossas espiritualidades não consegue se libertar disso. É um olhar que nos interroga com vigor, ao mesmo tempo, fascinante e profundamente perturbador. Um olhar acompanhado pelo grito desesperado dos povos indígenas sendo diariamente violentados em todo território amazônico.

Depois de mais de quinhentos anos não conseguimos, ainda, nos libertar do processo colonizador ou colonialista, que continua habitando as nossas mentes, os nossos comportamentos e impregna os nossos governantes. Parece que na sociedade brasileira, como também acontece em muitas outras sociedades, a própria humanidade e o “bom senso humano” ficaram abafados, reprimidos e esquecidos. O ser humano foi desviado de sua real identidade, se assim se pode dizer. Isso poderia soar como uma frase de efeito poético se não fosse a gravidade geradora de conflito de que é portadora.

Diversas pessoas que iniciaram esta leitura talvez se sintam desconfortadas, como eu mesmo me sinto, em trazer aqui como chamada inicial, um mote tão repetido e tão batido, que é este tema. Mas precisamos ser honestos com a nossa história e a nossa realidade. Dissimular, esquecer, colocar panos quentes, sempre foi o pior caminho. Todos/as sabemos isto. Deixemos que a história nos incomode. Quem for historiador nos perdoará por mais este pequeno pecado…

Um dia, alguém disse que a América Latina seria totalmente outra se os “colonizadores” no século XV e XVI tivessem tido um mínimo de reconhecimento dos seres humanos, das populações e dos povos que habitavam, nesse contexto, e que nela tinham o seu habitat há milênios. Se, ao invés de uma postura de não reconhecimento, de dominação e de espoliação, tivesse ocorrido simplesmente um movimento de aproximação, de intercâmbio, de diálogo e de mútuo enriquecimento, a história seria outra.

Isso soa absurdo, pois não se deve ler o passado com os paradigmas do presente. No entanto, infelizmente, os paradigmas do passado permanecem vivos e a perversidade denunciada, num passado longínquo, continua absurdamente atual, em todos os processos de dominação, exploração e desrespeito aos seres humanos, que, mais do que nunca, se multiplicam em nossa sociedade.

Voltando à imagem da criança negra olhando para nós do meio do lixo, precisamos fazer, também, um recuo histórico. Não vamos comentar os quase quatrocentos anos de escravidão de africanos no Brasil, que marcaram de forma indelével a estrutura social brasileira. A nossa atenção vai focada na maneira como se deu a chamada “abolição da escravatura”, ou seja, a realidade da população negra no imediato pós-escravidão ou pós-abollição. Como os afrodescendentes se viram tratados depois que deixaram de ser escravos? Não se pode dizer que a tragédia foi maior que a sofrida pelos povos indígenas, porque estes, desde a ocupação comandada a partir do tempo de Pedro Álvares Cabral, nas costas brasileiras e anteriormente, por outros aventureiros, em outras costas latino-americanas, até nossos dias, sobrevivem como vítimas de um permanente genocídio. Mas o que se desenhou desde os tempos de pós-escravidão ou pós-abolição, até nossos dias, com relação à maioria negra da população brasileira, é o processo de invisibilidade. Trata-se de uma invisibilidade desenhada no bojo do processo de branqueamento que foi o grande projeto nacional. As políticas de branqueamento, desde o final do Império, com Dom Pedro II, vieram dominando grande parte de nossa história, produzidas e tuteladas, sobretudo, pelas elites dominantes.

Eu gosto muito de um conceito trabalhado por Adevanir Aparecida Pinheiro,[1] que é o conceito de “branquidade”, diferenciando de “branquitude”. Esta autora (2014) retoma estes conceitos que ela já desenvolvera em sua tese doutoral em 2011. Branquidade diz respeito aos sujeitos que negam a importância do conceito de raça enquanto conceito político, não se abrindo para o diálogo sobre essa importância. Por sua vez quando os sujeitos brancos aceitam a importância do conceito de raça enquanto conceito político e interagem de igual para igual, aí sim, segundo a autora, nós podemos falar em branquitude.  Ao contrário de branquitude, a branquidade seria o resultado mais radical e perverso do branqueamento. O seu enraizamento na sociedade é um entrave muito complicado para que se possa implementar uma verdadeira educação das relações étnico-raciais. O primeiro passo para esta educação deverá ser a quebra da prisão da branquidade, para que a branquitude se liberte. Os brancos e brancas pensando, sentindo e vivendo revestidos de branquitude, terão de fato condição de contribuir na recuperação da verdadeira identidade nacional de tríplice referência: indígena, negra e branca.

Não temos como falar de autêntica espiritualidade do cuidado sem desobstruir este tríplice caminho. É necessário limpar os três acessos, as três vertentes, pois sabemos que as melhores contribuições e legados da espiritualidade do cuidado estão nas duas vertentes que historicamente foram obstruídas. E pior, obstruídas por espiritualidades demasiadamente contaminadas por lógicas e racionalidades brancas europeias.

Mas o que tem a ver tudo isto com justiça socioambiental? Tem tudo a ver. A alma da justiça socioambiental é a espiritualidade do cuidado. Se não colocarmos estas referências duras de nossa história no centro de nossa reflexão, a nossa abordagem sobre justiça socioambiental no Brasil será fatalmente manca e sem sentido. Como também a espiritualidade do cuidado não passará de um jogo de máscaras. Por quê? Porque as vítimas centrais das injustiças (socioambientais) estariam ausentes. E, a rigor, as vertentes mais lúcidas da espiritualidade do cuidado não estariam no centro do palco, ou seja, os principais protagonistas da espiritualidade do cuidado continuariam sendo as vítimas centrais (invisíveis) das injustiças.

CONCEITO DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL[2]

Na Laudato Sí (L.S. n. 49), o Papa Francisco, assim se expressou: “hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres”. (Grifos do autor).

No Marco de Orientação da Promoção da Justiça Socioambiental – Marco PJSA, da Província dos Jesuítas do Brasil, temos a seguinte formulação para definir justiça socioambiental:

Todas as ações que têm como objetivo colaborar para a superação das injustiças presentes em nossa herança histórica e reproduzidas pelo atual modelo de desenvolvimento extrativista e financeiro, gerador de desigualdades sociais e de agressões ambientais inomináveis. A rigor, dentro da perspectiva da concepção de ecologia integral, que nos foi apresentada pelo Papa Francisco, em sua Carta Encíclica Laudato Si (LS), existe uma sinalização implícita do conceito de (in)justiça envolvendo o nosso convívio na Casa Comum, em todas as esferas de relações, com o convite para um processo urgente e necessário de reconciliação e construção de relações justas. Trata-se basicamente de todas as relações que o ser humano empreende: as relações com Deus; as interpessoais, de geração, de gênero, étnico-raciais, religiosas, culturais, sociais, políticas, econômicas e, também, com os dons da natureza“. (JESUÍTAS, 2020)

Está muito evidente que, de fato, no chamado do Papa, na Carta Encíclica, está embutido um desafio à realidade humana como um todo, em toda a sua complexidade. Esta é a grande novidade, a grande inovação em termos de Ensino Social da Igreja, que Laudato Sí expressa. A Justiça Socioambiental não pode ser, simplesmente, pautada como conjunto de práticas reativas a situações pontuais, decorrentes dos chamados conflitos ambientais, como muitas vezes o conceito é trabalhado na Academia. Ela é uma intervenção na sociedade como um todo em seu modo de ser e se organizar, incluindo a relação com os dons da criação e, a rigor, a espiritualidade

Estamos vivendo em um mundo estragado (degradado) em todos os aspectos. Isto envolve as pessoas em suas relações, a organização social em suas relações políticas, econômicas e culturais, e, também, o meio ambiente como um todo. É neste mundo como um todo que incide a justiça, que será justiça socioambiental na medida em que tiver no horizonte a complexa inter-relação de tudo. O desafio está em propor um conceito de justiça socioambiental que seja efetivamente operacional abrangendo os diferentes níveis de ação, tanto em nossos processos de produção de conhecimento, como nos processos de tomada de decisão e nos processos da vida do dia-a-dia, no cotidiano.

Muito se avançou, por diversos caminhos e tempos recentes, na reflexão teológica e pastoral focando o cuidado da vida em todas as suas dimensões e sublinhando a ideia de que “tudo está estreitamente interligado”. (L.S. 16). O Patriarca Bartolomeu, referido pelo Papa Francisco (L.S. 6), fala em “túnica inconsútil da criação”. O duplo foco, do cuidado da vida e da inter-relação de tudo, é uma ponte direta para a retomada de elementos centrais nas diferentes tradições teológicas e religiosas que tomam consciência da permanente atualidade de suas intuições ou revelações originárias, apontando para o grande “religar” no “cuidado da alma da humanidade”.

TRÊS ÊNFASES TEMÁTICAS OU DIMENSÕES DA JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL

O Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA,[3] tem buscado enfrentar esse desafio construindo, teórica e empiricamente, um conceito de justiça socioambiental, centrado na atenção a três ênfases temáticas ou dimensões. Em cada uma dessas três dimensões podemos identificar, transversalmente, três posições estratégicas para incidir na realidade ou níveis de incidência na construção da justiça socioambiental. O que para alguns pode parecer, à primeira vista, um artifício complicador, é no entanto, um potencial operativo de fácil manejo na organização consistente de nossas ideias e ações, a rigor de nossa práxis transformadora.  

Falando a linguagem da cultura do cuidado, estamos focados em três grandes cuidados: o cuidado da dignidade humana, o cuidado dos dons da criação e o cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas, diminuição das desigualdades sociais.

  • O Reconhecimento da dignidade do ser humano.

É a dimensão do cuidado da dignidade humana, amparada no reconhecimento. Esta dimensão acontece, na prática, nas relações com o diferente, nas relações étnico-raciais, religiosas, de geração, de origem nacional, de visões de mundo e opções, buscando sempre formas de estabelecer o diálogo, o valor da pluralidade e a inclusão de todos/as.

A justiça começa a ser construída na medida da tomada de consciência de que todos somos habitantes e fazemos parte da Casa Comum e cada um/a tem o direito de ser reconhecido em dignidade nas suas diferenças. Assim são práticas de justiça socioambiental, todas as práticas que reconhecem e cultivam por dentro das diferenças de todas as ordens, a dignidade do ser humano e suas particulares repercussões na vida pessoal e cultivo da própria dignidade em nossa Casa Comum.

  • Cuidado dos dons da criação, da vida e da saúde dos ecossistemas.

É a dimensão do cuidado dos dons da criação. Trata-se da conservação, preservação e usos adequados dos dons naturais, em vista do cuidado dos ecossistemas saudáveis e da vida para o futuro do planeta terra e de seus habitantese atenção especial ao nosso modo de ser, viver e trabalhar e à diversidade da vida nos diferentes biomas de cada território.

A justiça socioambiental, nesta dimensão, se expressa através de práticas com relação aos dons da criação, que podem ser percebidas nos diferentes níveis de participação social, indo desde uma radical revisão das práticas na produção do conhecimento, das tomadas de decisão e do tratamento harmonioso e equilibrado dos dons da criação, no seu cultivo e uso no dia-a-dia. Estão em pauta, neste ponto, as repercussões destas práticas do bom equilíbrio e harmonia das condições da nossa Casa Comum.

  • O Ordenamento das políticas, da sociedade e da economia em vista da diminuição das desigualdades sociais.

É a dimensão do cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas. Nesta terceira dimensão está fundamentalmente em questão a diminuição das desigualdades, das exclusões sociais e da pobreza, pela busca do acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, segurança, saúde, moradia, educação, alimentação e nacionalidade. A rigor, o que está em pauta, são os grandes e pequenos processos decisórios na sociedade em seus ordenamentos políticos e econômicos e na condução das políticas públicas. Estão em pauta bons resultados de tudo isto, para um convívio harmônico e inclusivo em nossa Casa Comum.

Assim, com o foco na ideia de que tudo está interligado nesta nossa Casa Comum, são práticas de justiça socioambiental, práticas econômicas e políticas pautadas no atendimento aos direitos sociais e humanos básicos, no reconhecimento da dignidade do ser humano e no cuidado dos dons da criação como dimensões básicas no Cuidado da Casa Comum.

Três posições estratégicas ou níveis de incidência na promoção da justiça socioambiental

Tentando pensar na prática o nosso compromisso com a promoção da justiça, nesta perspectiva de amplitude socioambiental, faço um convite para buscarmos atalhos operacionais. Podemos, neste sentido, distinguir três níveis concretos, como diferentes instâncias ou posições estratégicas na realização da justiça ou da justiça socioambiental. As práticas de justiça devem expressar-se no nível da produção do conhecimento, no nível das tomadas de decisão, e, sobretudo, no nível cotidiano de nosso ser, viver e agir, no dia-a-dia.[4]

Em nível de produção do conhecimento, através do reconhecimento das diversas formas de saber e de percepção da vida e das coisas, muito para além dos simples conhecimentos disciplinados pelo mundo acadêmico, destaca-se a busca da superação da linha abissal que separa, por um lado, conhecimentos academicamente valorizados e, por outro lado, saberes excluídos do mundo racional-científico. Destaca-se a valorização da diversidade na percepção da realidade. Nos aspectos relacionados à Igreja, o convite é absorver com humildade os conhecimentos populares e tradicionais em nossas práticas religiosas, através da consolidação de uma “Igreja em Saída”. Em suma, é uma proposta de buscar valorizar uma “ecologia dos saberes”, de modo geral e, em particular, nas práticas de Igreja.

No nível da tomada de decisões, a postura de cultivo aberto e não excludente do conhecimento, respeitando o lugar de fala de cada um e de cada uma, imprimindo práticas cada vez mais democráticas é, sem dúvida, aporte fundamental para um maior acerto na gestão, dando conta de autêntica e ampla cultura de participação e de reconhecimento da dignidade dos sujeitos envolvidos nas decisões, na política, na economia e na organização social, cultural e institucional. Neste sentido, sugere-se caminhar para formas inovadoras de implementar e avaliar as políticas públicas, formas estas embasadas em indicadores mais sustentáveis e na busca de uma sociedade equitativa e justa, em termos políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais.

Enfim, no nível das práticas do cotidiano, estamos no chão do cuidado por dentro das práticas pessoais e coletivas no dia-a-dia. É o campo do cotidiano, o campo da singeleza e simplicidade do dia-a-dia, do cuidado e da justiça, na vida como ela acontece. O espaço e o tempo de profundo sedimentar do cuidado da nossa Casa Comum, no testemunho vivo do reconhecimento do outro dentro de suas especificidades culturais, religiosas, entre outras, por mais diferentes que possam ser frente às nossas. Aqui, sem dúvida, todos/as somos chamados/as a uma conversão socioambiental radical e profunda em nossas práticas cotidianas, sejam elas pessoais ou institucionais.

A PRÁTICA DA JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL COMO ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO[5]

Penso que, sempre tendo presente as três ênfases ou dimensões em pauta (o ser humano em sua dignidade, o convívio com os dons da criação e o ordenamento socioeconômico e das políticas púbicas) e as três posições ou níveis de incidência (produção do conhecimento, influência nos processos de decisão e o modo de ser na vida cotidiana), a humanidade, em geral, e a sociedade brasileira, em particular, necessitam urgentemente centrar-se na cultura do cuidado e desfazer-se da tragédia da cultura da indiferença.[6] A atenção central deve ser colocada na dimensão relacional e na interligação de tudo dentro do convívio humano, nas relações interpessoais, na sociedade e em relação aos dons da natureza.

Este é o chão concreto de realização da prática da justiça e, mais especificamente, a prática da justiça socioambiental. Precisamos estar cuidadosamente atentos à prática da justiça socioambiental em todo complexo convívio humano. Este estar “cuidadosamente atentos” é o que, aqui, também chamo de espiritualidade do cuidado. É denominada assim porque tem em seu centro o permanente cuidado da dignidade humana e da vida em todas as suas manifestações.

Em outras palavras, é uma espiritualidade que perpassa o cuidado da dignidade humana, o cuidado dos bens da criação e o cuidado do ordenamento social e econômico de inclusão e igualdade. Estes cuidados podem ser exercidos tanto em nível de produção do conhecimento, de influência nas tomadas de decisão e no modo de ser, viver e agir dentro do cotidiano.

Precisamos de uma espiritualidade que nos mude, radicalmente, em nossas práticas. Que nos faça retomar o verdadeiro caminho da justiça. Leonardo Boff, em “Reflexões de um velho teólogo e pensador” (2018) nos aponta que:

“A singularidade de nosso tempo reside no fato de que a espiritualidade vem sendo descoberta como dimensão do profundo do ser humano, como o momento necessário para o pleno desabrochar de nossa individuação e como espaço da paz no meio dos conflitos e desolações sociais e existenciais”. (BOFF, 2018, p.166)

A espiritualidade é geradora de mudança interior. O autor nos lembra um pensamento radical do grande líder religioso oriental Dalai Lama: “Espiritualidade é aquilo que produz dentro de nós uma mudança”! (“Se não produz em você uma transformação, não é espiritualidade”!). O autor comenta esta frase, afirmando que existem mudanças e mudanças. O ser humano é um ser de mudanças, pois nunca está pronto. No entanto, há “mudanças que não transformam sua estrutura de base” e há mudanças que são verdadeiras transformações “capazes de proporcionar um novo sentido à vida ou abrir novos campos de experiência e de profundidade, rumo ao próprio coração e ao Mistério de todas as coisas. Não raro é no âmbito da religião que ocorrem tais mudanças. Mas nem sempre”. (BOFF, 2018, p.165-166)

Esta manifestação pelo valor da espiritualidade, como força regeneradora, está amparada no próprio grito do autor, que nos diz: “vamos criar juízo e aprender a ser sábios e a prolongar o projeto humano, purificado pela grande crise que seguramente nos acrisolará”. (BOFF, 2018, p. 158). Acrescenta:

Incentivam-nos as escrituras judaico-cristãs: “Escolhe a vida e viverás” (Dt 30,28), e Deus se apresentou “como o apaixonado amante da vida” (Sb 11, 24). Andemos depressa, pois não temos muito tempo a perder. (BOFF, 2018, p. 159)[7]

É um pequeno grito que se soma a infinitos outros gritos, que se levantam em todos os recantos da terra, fazendo coro ao grande e insondável mistério de amor do “grito regenerador” de Jesus Cristo. As três perguntas originárias retornam e reboam: “Onde estás”? “Onde está o teu irmão”? “Como está a criação”?[8]

A Espiritualidade, que hoje nos é solicitada, é a disposição de nossos corações para buscar os melhores caminhos para a construção de sociedades geradoras de vida; refazer-nos em nossa capacidade de reconhecer o outro em sua dignidade; de nos indignarmos frente às desigualdades escandalosas e inaceitáveis e à situação desumana, vivida, por muitos irmãos e irmãs; de cuidar da vida e dos dons da criação, impelidos pelo amor a toda a vida que pulsará neste planeta terra, no futuro. É a disposição de sermos no cotidiano: cultivadores/as de justiça socioambiental.

INTERROGAÇÕES E DESAFIOS DENTRO DO MOMENTO CONJUNTURAL VIVIDO

Qualquer leitura de nossa realidade hoje não resiste às evidências de flagrantes atentados à justiça socioambiental e de debilidades na prática de uma espiritualidade do cuidado. Vou propor um pequeno exercício de ordenar de forma sistemática algumas dessas evidências. Obviamente, dentro do espaço que temos, não será possível passar de uma simples “chuva de ideias” ou “chuva de percepções”, que proponho ordenar a partir de três perguntas amplas. É uma provocação  para o exercício pessoal de cada um e de cada uma e para a continuação do nosso diálogo.

  • Como está o conhecimento, no Brasil?
  • (Cuidado da dignidade humana). Após mais de duas décadas de esforços mais ou menos sucedidos pela instituição de políticas educacionais renovadas, inclusivas, inovadoras e abertas ao diálogo, assiste-se no Brasil nos dias de hoje a uma guinada brusca à “direita”. Trata-se de verdadeira guerra de ideias entre a denúncia contra a “ideologia de gênero” e a afirmação da diversidade e da liberdade de opções, que parecia consolidada na sociedade. Alguns Ministérios do atual Governo são os principais vetores do combate à “ideologia de gênero”, associando-a ao que é denominado por eles de “marxismo cultural” e, em consequência, um combate acirrado contra o mundo intelectual e cultural que ao longo das últimas décadas teria se alimentado nessas “ideologias perversas”. Este combate vem acompanhado por uma sutil promoção de uma espiritualidade e religião alienante cultivada por determinadas lideranças neopentecostais de grande poder mobilizador.
  • (Cuidado do meio ambiente natural). Com relação ao que nós denominamos cuidado do meio ambiente natural, imperam, hoje no Brasil, propostas explícitas de “combate a esse cuidado”, através de duas ideias chaves: 1) Os “recursos naturais” (sic) devem ser explorados intensivamente para gerar riqueza e o Estado deve garantir que isto possa acontecer; 2) Os defensores do meio ambiente são orquestrados por interesses do “comunismo” ou por interesses de organismos que querem internacionalizar a Amazônia, ou seja, apossar-se dos recursos naturais da Amazônia, em prejuízo aos interesses nacionais.
  • (Cuidado da sociedade). O que é notável em nível de concepções com relação ao meio ambiente natural, assume formas mais alarmantes com relação à própria sociedade e seu ordenamento político e econômico. Trata-se do cultivo do preconceito que dissemina a ideia de que a corrupção é algo endêmico no meio político e que os únicos que podem salvar a sociedade são os empresários geradores de trabalho e emprego. Predomina a ideia da naturalização das desigualdades e todos os defensores de políticas que busquem facilitar uma diminuição das desigualdades sociais, são rotulados como “comunistas”, seguidores do “marxismo cultural” e inimigos dos “cidadãos de bem”.
  • (Anotação sobre espiritualidade). Mas nem tudo são trevas… É impressionante o que a pandemia (da Covid-19)[9] conseguiu desencadear em termos de criatividade e disseminação do conhecimento. Pessoalmente me vejo diariamente surpreendido e impactado pelas incontáveis formas com que muitas pessoas, – em número crescente, pois isto é contagiante, – procuram socializar os seus conhecimentos e seus dons artísticos, de forma gratuita, muitas vezes movidos pelo esforço solidário de passar conhecimentos, boas ideias e bons momentos de lazer para os outros, em suma, de cuidar dos outros. A pandemia estimulou a espiritualidade do cuidado em nível de conhecimento. Independentemente da pandemia, nos últimos anos, talvez em grande parte como resposta ao alerta com relação aos riscos obscurantistas vigentes, estão se constituindo e reforçando importantes redes e iniciativas de educação popular para rearticular uma produção de conhecimento autêntica e democrática, amparada nisso que alguns denominam, por exemplo, no contexto amazônico, de “cuidadania”.
  • Como está o empenho da incidência cidadã nos rumos do Brasil?
  • (Cuidado da dignidade humana). A reconstrução cidadã do Brasil, após o longo período da ditadura militar, chegou a um patamar importante na promulgação da Constituição de 1988 que foi considerada a “constituição cidadã”. Nas décadas que se seguiram, muitos esforços, com sucessos e fracassos, foram realizados para regulamentar aquelas conquistas de 1988. No entanto, nos últimos anos, houve uma radical quebra em tudo isso. Os acirramentos ideológicos tomaram conta. Tornou-se inviável qualquer busca de diálogo construtivo. Nas últimas eleições presidenciais (2018), a indústria de “fake News” mostrou-se, sobretudo, como um instrumento poderoso, e talvez tenha sido o fator decisivo. A cultura das “fake”, crescentemente difundida nas redes sociais, desconsidera, ao extremo, todo e qualquer cuidado para com a dignidade das pessoas que são os alvos, ou seja, as vítimas.  Isto virou “cultural” ou seja, é um comportamento bastante generalizado em termos de “debate público” e de veiculação de ideias.
  • (Cuidado do meio ambiente natural). Isto também se revela quando se trata de pensar políticas com relação às terras indígenas, por exemplo. É repetidamente afirmado que aquilo que é defendido por certas lideranças no meio indígena, em geral de grande reconhecimento nacional e internacional, são ideias falsas atreladas a interesses estrangeiros. Busca-se, então, “libertar” os indígenas deste atrelamento e, em nome de uma política “de ajudar os indígenas a serem como nós”, pretende-se implementar uma legislação facilitadora da ocupação de terras reservadas aos povos indígenas para a exploração do capital ou para a implementação de grandes empreendimentos do próprio Estado.
  • (Cuidado da sociedade). Se voltarmos o nosso olhar para a sociedade enquanto tal e seu ordenamento político e econômico, teremos como constatações centrais o seguinte: O governo atual, que se elegeu em grande parte impulsionado pela disseminação de “fakes”, se caracteriza por: 1) Apoiar-se na ideia de que foi democraticamente eleito contando com o apoio dos “cidadãos de bem”; 2) Dar claras demonstrações de total desrespeito aos valores republicanos; 3) Orientar-se por uma política econômica falaciosa amparada num extrativismo selvagem e financeirização incerta; 4) Desarticular e desmontar ostensivamente políticas públicas e sociais duramente conquistadas a partir de várias gerações.
  • (Anotação sobre espiritualidade). Em termos de ordenamento político e econômico da sociedade, nestes tempos de pandemia sanitária, o Brasil vive um verdadeiro “pandemônio” de instabilidade e incertezas cotidianas. No meio desse “pandemônio”, podemos, no entanto, vislumbrar a prática da espiritualidade do cuidado de parte de muitas pessoas e grupos. Trata-se do cuidado vigilante para que as coisas não desandem de vez e o prejuízo seja grande demais para a população. É um cuidado que, em geral, não tem cor partidária e pode expressar-se tanto em manifestos junto aos órgãos de legislação pública e de decisão dos rumos do país, como, também, em campanhas e mobilizações de apoio imediato, para com as maiorias pobres mais necessitadas de alimentos e cuidados de higiene e saúde. Esta novidade ou expressão “inusitada” de cuidado certamente também é visível em algumas lideranças empresariais.
  • Como está o jeito de viver no dia-a-dia, no Brasil?
  • (Cuidado da dignidade humana). O cotidiano brasileiro está habitado por contrastes marcados pela naturalização de agressões à dignidade humana de toda ordem. Parece que a relação entre a casa grande e a senzala, do longo período de escravidão negra no Brasil, nos marcou de forma indelével. O desconforto de enormes favelas formando cinturões desumanos sem medida, cercando (de forma ameaçadora) o conforto e o luxo de conjuntos de prédios, palácios e mansões, parece constituir-se na marca registrada da maioria das grandes cidades do Brasil. Desenha-se, com naturalidade, na mente das pessoas um convite sutil a assumir esta realidade como algo dado e imutável: umas pessoas parecem estar merecendo mais do que as outras. A desconstrução desta naturalização da desigualdade é o grande desafio da ciência. No entanto, conforme já mencionamos acima, no início deste título, o Brasil está vivendo um clima de combate acirrado contra o mundo intelectual e cultural, pois este, ao mostrar a origem não natural das desigualdades, estaria alimentando “ideologias” ofensivas aos “cidadãos de bem”.
  • (Cuidado do meio ambiente natural). Existe uma distância enormemente abissal entre o cotidiano ou a vida do dia-a-dia das pessoas que vivem no submundo urbano e o das pessoas que vivem em situação mais ou menos confortável em seus apartamentos e casas, sem falar do “supermundo” das mansões de luxo. A naturalização da desigualdade é alimentada e reforçada diariamente através deste impacto visível da desigualdade nas condições habitacionais e de vida. Por dentro da percepção do déficit habitacional e da crescente realidade dos moradores de rua, que são dois grandes desafios para o cotidiano e a relação (in)justa dos seres humanos com o seu meio natural, a interrogação mais atenta deve ser dirigida ao mundo do desperdício que passa por dentro do modo de viver cotidiano em nossas casas, de menor ou maior conforto.
  • (Cuidado da sociedade). Tentar entender o impacto sobre o cotidiano, do que está acontecendo no Brasil hoje, nos alerta mais uma vez em relação às terríveis desigualdades. A pandemia, que assola o país, neste semestre, colocou esta questão a nu. Não se encontrou fórmula de “isolamento social” cabível num contexto tão desigual. Como forçar a ficar em casa pessoas que só encontram um pouco de liberdade e dignidade, na rua ou fora de casa? Não se tem registro de políticas afirmativas que realmente estivessem focadas nesta situação de desigualdade. Todas as políticas mais bem sucedidas no combate à Covid-19 estavam focadas na população que têm condições de um cotidiano e vida do dia-a-dia mais ou menos confortável. A principal preocupação repetidamente manifesta pelo poder executivo central do país, foi em chamar os trabalhadores a saírem de casa para trabalhar e ganhar o seu sustento. O empenho honesto e sincero por preservar a vida dessas pessoas e proporcionar lhes um mínimo de proteção nas condições limitadas e desumanas em que vivem, foi praticamente inexistente. O momento seria de tomarmos consciência, como nação, do tremendo problema de déficit habitacional em que o país está imerso. A pandemia trouxe muitos legados. Que este desafio do déficit habitacional também seja um legado.
  • (Anotação sobre espiritualidade). Uma espiritualidade do cuidado em nosso cotidiano deve estar marcada pela consciência permanente dos contrastes abissais existentes no habitat da população brasileira. É importante povoar o nosso próprio habitat dessa consciência, refletindo-se tanto no cuidado e atenção às pessoas que conosco vivem e que nos procuram, como cuidando do bom uso de tudo, evitando desperdício e favorecendo reaproveitamentos. Que as crianças e jovens que crescem em nosso meio possam beber de nossas vidas e de nosso testemunho, uma autêntica “cultura do cuidado”, ou seja: espiritualidade do cuidado.

PALAVRAS PARA (NÃO) CONCLUIR

No início desta fala eu referia o olhar da criança negra nos interrogando de dentro dos dejetos, do lixo e do submundo da periferia e referia, também, o olhar do líder indígena impactado tristemente pela presença de múltiplos monstros empreendedores, devastadores do seu habitat. São olhares que nos interrogam. A espiritualidade do cuidado é uma espiritualidade que se deixa interrogar por esses olhares e por muitos outros necessitados do cuidado.  

REFERÊNCIAS

BOFF, Leonardo. Reflexões de um velho teólogo e pensador. Petrópolis: Vozes, 2018.

CIRNE, Lúcio Flávio Ribeiro. O Espaço da Coexistência: uma visão interdisciplinar de ética socioambiental. São Paulo: Ed. Loyola, 2013.

FRANCISCO, Papa. Laudato Sí. (Carta Encíclica do Sumo Pontífice). São Paulo: Paulus/Loyola, 2015.

FOLLMANN, J. I. O ‘Cuidado Da Casa Comum’ Como Caminho De Espiritualidade E Justiça. Revista Convergência. Rio de Janeiro, Vol. LIV, n. 523, 2019a, pp. 58-69

FOLLMANN, J. I. Justiça Socioambiental e Vida Religiosa Consagrada. Revista Convergência. Rio de Janeiro, Vol. LIV, n. 526, 2019b, pp. 50-60.

JESUÍTAS. Marco de Promoção da Justiça Socioambiental: Marco PJSA. Rio de Janeiro: Companhia de Jesus, Província do Brasil, 2ª Ed. Reformulada e atualizada, Publicação provisória PDF, maio de 2020.

PINHEIRO, A. A.. O Espelho Quebrado da Branquidade: Aspectos de um Debate Intelectual, Acadêmico e Militante. 1. ed. São Leopoldo: Casa Leiria, 2014.


NOTAS

[1] Professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, doutora em Ciências Sociais, coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – NEABI.

[2] Os textos deste sub-título e do próximo reproduzem diversos excertos do Marco da Promoção da Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil, em sua nova edição provisória (JESUÍTAS, 2020), também já presentes em artigo de minha autoria publicado na Revista Convergência em 2019. (FOLLMANN, 2019b)

[3] Trata-se de um “Observatório em Rede” da Província do Brasil, Companhia de Jesus, com núcleo articulador em Brasília, DF. www.olma.org.br 

[4] São os mesmos “atalhos operacionais” assumidos também pelo Marco da PJSA já mencionado.

[5] Na segunda parte deste subitem são reproduzidos excertos de artigo publicado na Revista Convergência. (FOLLMANN, 2019a)

[6] Destaco, no momento presente, a eleição do Papa Francisco (2013) e a surpreendente viagem dele à Ilha de Lampedusa, sul da Itália, alguns meses depois de assumir como Líder Máximo da Igreja, onde ele denunciou a “globalização da indiferença”. Destaco também os recorrentes apelos deste Papa por uma “Igreja em saída”.

[7] CIRNE, 2013, p.191-197, com o subtítulo “ética ambiental e espiritualidade” fala em uma verdadeira conversão do ser humano. Refere dois caminhos paradigmáticos importantes na tradição cristã: a herança espiritual de Francisco de Assis, conhecida sobretudo pelo famoso “Cântico das Criaturas”, que expressa o louvor ao Deus altíssimo, a humanidade que se faz irmã das criaturas e o respeito e admiração por todo o mundo criado; e a herança dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, no qual o próprio Princípio e Fundamento apresenta um caminho de vida no qual Deus, o ser humano e o ambiente (o mundo) estão intimamente inter-relacionados; encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus é o grande horizonte na “oração para alcançar o amor” dos Exercícios Espirituais Inacianos.

[8] “Onde estás”? Foi assim que Deus interpelou Adão. (Gn 3,9).[8]  “Onde está o teu irmão”? Foi assim que Deus interpelou Caim. (Gn 4,9). “Como está a criação”? Assim interpela Deus a humanidade, não deixando que ela esqueça seu mandato de cuidar de tudo. (Gn. 1, 26-31; 2, 15). No que se refere a Gn. 2, 15 e, especialmente, Gn. 1, 26-31, em termos teológicos “o ser humano na criação” está abordado de forma muito detalhada e profunda por CIRNE, 2013, p. 82-89.

[9] Este texto foi concluído no auge dos efeitos, no Brasil, da pandemia da COVID-19, que mexeu com toda a humanidade no primeiro semestre de 2020.

JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL: BUSCANDO UM CONCEITO OPERACIONAL NO HORIZONTE DA ECOLOGIA INTEGRAL

Reflexão elaborada em julho de 2019. Com ampliações posteriores para Revista Convergência e para VII Congresso de Teologia na PUC-Rio

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

José Ivo Follmann (1)

(Este texto reproduz parcialmente uma reflexão abordada em artigo em fase de publicação na Revista Convergência, CRB)

Introdução

O conceito de “justiça socioambiental” circula, há alguns anos, no meio acadêmico, na prática das organizações sociais e religiosas e em movimentos sociais, mas não está perceptível nele uma efetiva distinção com relação ao conceito de justiça ambiental. É prática da academia a existência de uma clara distinção entre justiça social e justiça ambiental. No entanto, para proporcionar um entendimento mais efetivo do conceito de justiça ambiental, passou-se a denominar como “justiça socioambiental”, com o argumento de que não existe como encontrar solução de crise ambiental, sem a promoção da justiça social, ou seja, sem ter um olhar de justiça para os que mais sofrem os desmandos com relação ao meio ambiente.

Se existe conflito ambiental, o mesmo se dá devido à desigualdade social no acesso a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, para usar expressão da Constituição Brasileira, art. 225. Ou seja, existe uma desigualdade social com característica ou relação ambiental.

Certamente houve muitos avanços importantes e pertinentes a celebrar neste debate. Entendo, no entanto, que é urgente desvincular a ideia da “justiça socioambiental”, do conceito de justiça ambiental. Mas, também, obviamente, não se deve partir parra a simples soma da justiça social e justiça ambiental. É necessário que se retome a questão fundamental da interlocução, diálogo de par a par, interconexão entre justiça social e justiça ambiental. A justiça socioambiental acontece nesta complexa inter-relação e conexão entre justiça social e justiça ambiental. Não é necessário negar a importância didática dos dois conceitos – justiça social e justiça ambiental – em seu uso conforme as diversas situações. O que deve ser evitado é o remendo conceitual da sobreposição pura e simples do “socioambiental” ao “ambiental” na definição da “justiça socioambiental”.

O que o presente texto quer ensaiar é a construção de um conceito de Justiça Socioambiental – JSA que seja coerente com o paradigma da Ecologia Integral, apresentada pelo Papa Francisco na Encíclica Laudato Sí, tentando construir uma operacionalidade teórica e prática deste conceito.

Praticando a justiça socioambiental: em três dimensões e diferentes níveis de ação

A referência de fundo é o paradigma da Ecologia Integral. Nesta perspectiva, ao falar em justiça socioambiental – JSA estamos focados na complexa interlocução, diálogo de par a par e interconexão entre justiça social e justiça ambiental. A JSA acontece nesse entrelaçamento entre justiça social e justiça ambiental, que diz respeito à busca de vida justa e equilibrada em todas as dimensões e níveis de ação humana e social e na sua relação com os dons da criação.

Na Laudato Sí (L.S. n. 49), o Papa Francisco, assim se expressou: hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres.

Entendo que, de fato, no chamado do Papa está embutido um desafio à realidade humana como um todo, em toda a sua complexidade. A JSA não pode ser, simplesmente, pautada como conjunto de práticas reativas a situações pontuais, decorrentes dos chamados conflitos ambientais, como sinalizei acima. Ela é uma intervenção na sociedade como um todo em seu modo de ser e se organizar, incluindo a relação com os dons da criação.

Estamos vivendo em um mundo estragado (degradado) em todos os aspectos. Isto envolve as pessoas em suas relações, a organização social em suas relações políticas, econômicas e culturais, e, também, o meio ambiente como um todo. É neste mundo como um todo que incide a justiça, que será JSA na medida em que tiver no horizonte o grande “tecido inconsútil” (L.S. 9) onde “tudo está estreitamente interligado”. (L.S. 16)

O desafio está em propor um conceito de JSA que seja efetivamente operacional, que possa dar conta das principais dimensões da complexa existência humana em sociedade e na sua relação ambiental e dos níveis de ação mais decisivos e chaves neste existir.

Fonte: Elaboração de José Ivo Follmann

Três dimensões operacionais

O Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA,(2) tem buscado enfrentar esse desafio construindo, teórica e empiricamente, um conceito de Justiça Socioambiental – JSA, centrado na atenção a três eixos ou dimensões, que perpassam transversalmente os diferentes níveis níveis de ação. Falando a linguagem da cultura do cuidado, estamos focados em três grandes cuidados: o cuidado da dignidade humana, o cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas e o cuidado dos bens da criação.

O Reconhecimento da dignidade do ser humano.

É a dimensão do cuidado da dignidade humana, amparada no reconhecimento. Esta dimensão acontece, na prática, nas relações com o diferente, nas relações étnico-raciais, religiosas, de geração, de origem nacional, de visões de mundo e opções, buscando sempre formas de estabelecer o diálogo, o valor da pluralidade e a inclusão de todos/as.

A justiça começa a ser construída na medida da tomada de consciência de que todos somos habitantes e fazemos parte da Casa Comum e cada um/a tem o direito de ser reconhecido em dignidade nas suas diferenças. Assim são práticas de JSA, todas as práticas que reconhecem e cultivam por dentro das diferenças de todas as ordens, a dignidade do ser humano e suas particulares repercussões na vida pessoal e cultivo da própria dignidade em nossa Casa Comum.

Cuidado dos dons da criação, da vida e da saúde dos ecossistemas.

É a dimensão do cuidado dos dons da criação. Esta dimensão está expressa na constante atenção à conservação, preservação e usos adequados dos dons da criação, em vista do cuidado dos ecossistemas saudáveis e da vida para o presente e futuro do planeta terra e dos seres nele habitantes.

A JSA, nesta dimensão, se expressa através de práticas com relação aos dons da criação, que podem ser percebidas nos diferentes níveis de participação social, indo desde uma radical revisão das práticas na produção do conhecimento, das tomadas de decisão e do tratamento harmonioso e equilibrado dos dons da criação, no seu cultivo e uso no dia-a-dia. Estão em pauta, neste ponto, as repercussões destas práticas do bom equilíbrio e harmonia das condições da nossa Casa Comum.

O Ordenamento da sociedade ou a superação das desigualdades sociais.

É a dimensão do cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas. Nesta terceira dimensão está fundamentalmente em questão a superação das desigualdades, das exclusões sociais e da pobreza, pela busca do acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, segurança, saúde, moradia, educação, alimentação e nacionalidade. A rigor, o que está em pauta, são os grandes e pequenos processos decisórios na sociedade em seus ordenamentos políticos e econômicos e na condução das políticas públicas. Estão em pauta bons resultados de tudo isto, para um convívio harmônico e inclusivo em nossa Casa Comum.

Assim, com o foco na ideia de que tudo está interligado nesta nossa Casa Comum, são práticas de JSA, práticas econômicas e políticas pautadas no atendimento aos direitos sociais e humanos básicos, no reconhecimento da dignidade do ser humano e no cuidado dos dons da criação como dimensões básicas no Cuidado da Casa Comum.

Diferentes níveis operacionais

Além das três dimensões, em termos operacionais necessitamos de outros atalhos garantidores de operacionalidade conceitual. Podemos, neste sentido, distinguir níveis concretos, como diferentes instâncias ou espaços de expressão e realização da justiça ou da JSA. Identificamos três como chaves para isto. As práticas de justiça podem ser identificadas no nível da produção do conhecimento, no nível das tomadas de decisão, e, sobretudo, no nível cotidiano de nosso ser, viver e agir, no dia-a-dia.

Em nível de conhecimento, através do reconhecimento das diversas formas de saber e de percepção da vida e das coisas, muito para além dos simples conhecimentos disciplinados pelo mundo acadêmico. Destaca-se a busca da superação da linha abissal que separa, por um lado, conhecimentos academicamente valorizados e, por outro lado, saberes excluídos do mundo racional-científico. Destaca-se a valorização dos diversos saberes. (Nos aspectos relacionados à Igreja, somos convidados a absorver com humildade, os conhecimentos populares e tradicionais em nossas práticas religiosas, através da consolidação de uma “Igreja em Saída”.)

No nível da tomada de decisões, a postura de cultivo aberto e não exclusivista do conhecimento, é, sem dúvida, aporte fundamental para um maior acerto na gestão, dando conta de autêntica e ampla cultura de participação e de reconhecimento da dignidade dos sujeitos envolvidos nas decisões. Neste sentido, sugere-se caminhar para formas inovadoras de implementar e avaliar as políticas públicas, formas estas embasadas em indicadores mais sustentáveis e na busca de uma sociedade igualitária e inclusiva.

Enfim, no nível das práticas do cotidiano, estamos no chão do cuidado por dentro das pequenas práticas pessoais e coletivas no dia-a-dia. É o campo do cotidiano, o campo das pequenas coisas do dia-a-dia, do cuidado e da justiça, na vida como ela acontece. O espaço e tempo de profundo sedimentar o cuidado da nossa Casa Comum, no testemunho vivo dentro das práticas pessoais e coletivas do dia-a-dia. Aqui, sem dúvida, todos/as somos chamados/as a uma profunda conversão socioambiental.

São diferentes níveis de ação, nos quais se pode manifestar o chão concreto de realização da prática da justiça e, mais especificamente, a prática da JSA. Precisamos de JSA em nossos meios de produção de conhecimento, em nossos processos de tomadas de decisão, em nosso modo de proceder nas práticas cotidianas em geral.

Concluindo

A reflexão aqui apresentada não pretendeu ser mais do que chave de provocação, visando a sua continuidade. Penso que, sempre tendo presente as três dimensões em pauta (o ser humano em sua dignidade, o convívio com os dons da criação e o ordenamento socioeconômico e das políticas púbicas), a humanidade, em geral, e a sociedade brasileira, em particular, necessitam urgentemente centrar-se na cultura do cuidado e desfazer-se da tragédia da cultura da indiferença. A atenção central deve ser colocada na dimensão relacional e na interligação de tudo dentro da experiência humana na criação.

Assim, retomando os níveis de intervenção, referidos neste texto, podemos dizer que a JSA é praticada na medida em que, tanto nas dimensões do cuidado da dignidade humana e do cuidado dos bens da criação, como na dimensão do cuidado do ordenamento social e econômico de inclusão e igualdade, estiverem sendo adotadas medidas de prática de justiça, na produção do conhecimento, nas tomadas de decisão e no modo de ser, viver e agir dentro do cotidiano.

A prática da Justiça Socioambiental – JSA, assim definida, tem muito a contribuir no momento difícil que enfrenta a sociedade brasileira. Trata-se de um desafio que pede, em primeiro lugar, a realização do nosso próprio “tema de casa”, dentro de nossa Casa Comum.

NOTAS:

  1. Doutor em Sociologia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Mestrado e Doutorado), UNISINOS. Sacerdote jesuíta e Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil. (O presente texto repete e reproduz parcialmente, artigo a ser publicado na Revista Convergência, CRB e conferência a ser proferida no VII Congresso de Teologia, Rio de Janeiro).
  2. Trata-se de um “Observatório em Rede” da Província dos Religiosos Jesuítas do Brasil, com núcleo articulador em Brasília, DF. www.olma.org.br

O APOSTOLADO SOCIAL FAZ PARTE DO ‘DNA’ DA COMPANHIA DE JESUS

Entrevista publicada em agosto de 2010, em IHU OnLine.

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

Entrevista publicada por Graziela Wolfart no IHU OnLine Edição 337 | 09 agosto 2010. O entrevistado demonstra a sua crença de que os jesuítas têm por vocação buscar sempre o bem maior e mais universal e que o trabalho em rede pode ser um importante facilitador para isto. Depois de relatar aspectos da trajetória histórica do apostolado social da Companhia de Jesus, o professor e padre jesuíta José Ivo Follmann afirma, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line: “retomando e reforçando o binômio Serviço da Fé e Promoção da Justiça e a urgência do Diálogo Cultural e Inter-Religioso, as novas dimensões que apontam forte são o cuidado com o meio ambiente (dimensão ecológica) e a atenção às novas fronteiras, num mundo que avança vertiginosamente no meio científico e tecnológico levando às vezes de roldão a dignidade e o sentido da existência humana”. Mas reconhece que “nem sempre o social conseguiu ter a visibilidade e a importância que o carisma inaciano lhe exige”.

IHU On-Line – Qual a postura e as principais ações da rede SJ-CIAS na Província do Sul?
José Ivo Follmann – A Rede SJ-CIAS (Rede Jesuíta de Cidadania e Ação Social) nasce da urgência de termos uma ação articulada e efetiva no Setor Social da Província do Sul. Nasce, sobretudo, da necessidade de aprendermos a trabalhar em rede. A palavra chave é APRENDER. SJ-CIAS quer ser uma escola de aprendizado para que saibamos colocar-nos em rede nacional, latino-americana e mundial. Para trabalhar em rede é necessário que comecemos em nossa própria casa. Precisamos cultivar-nos nesta exigência que se faz sempre mais irreversível para que nossas ações ganhem em força e em amplitude. Como jesuítas, nós temos por vocação buscar sempre o bem maior e mais universal. O trabalho em rede pode ser, sem dúvida, um importante facilitador para isto.

IHU On-Line – O senhor poderia recuperar a história do apostolado social da Companhia de Jesus? Quando isso começa? Quais são as motivações iniciais? Como surgiram os CIAS? Como isto chegou até nós?
José Ivo Follmann – O Apostolado Social faz parte do DNA da Companhia de Jesus. Inácio de Loyola, que era de estirpe nobre, viveu o seu processo de conversão em uma profunda experiência de encarnação na condição de mendigo. Para ele e seus companheiros, na Itália, já a partir de 1537, (portanto dois anos antes da fundação da Companhia), o Apostolado Social (práticas junto aos empobrecidos) era uma das frentes de atividade, ao lado da pregação, do ensino catequético e da confissão. É de destaque uma importante iniciativa social junto às mulheres de rua ou prostitutas, em Roma. Por diversos fatores, o apostolado social, enquanto tal, não chegou a ser colado historicamente à “marca” jesuíta enquanto apostolado próprio da Companhia, até a primeira metade do século XX. Isso está relacionado, em grande parte, com a concepção de pastoral que predominava na Igreja católica e também, mais tarde, com a maneira como esta Igreja se relacionou com o mundo moderno, em todos os campos, mas, sobretudo, no campo social. Também está associado à supressão sofrida pela Companhia de Jesus e a maneira como ela se restaurou buscando, em primeiro plano, afirmar-se no campo educacional. No entanto, alguns nomes são notáveis e exemplares, tais como: o Pe. Francisco Xavier , no Oriente, o Pe. Ricci , na China, o Pe. Nobili , na Índia, o Pe. Pedro Claver , na Colômbia, o Pe. Von Spee , na Alemanha e os padres Nóbrega, Anchieta , Vieira , Malagrida e outros, no Brasil. Não se pode deixar de referir, sobretudo, o monumental trabalho junto aos povos indígenas guarani, os “povos das missões” , ao longo dos séculos XVII e XVIII. Ao longo do século XX, especialmente nas décadas de 1930 a 1960, foram notáveis algumas presenças organizadoras, promocionais e assistenciais junto à classe operária urbana. Devem ser lembrados, próximos de nós, os padres João Batista Reus, Leopoldo Brentano, Inácio Valle, Cândido Santini, Claudio Mascarello e outros. Destaque grande também deve ser feito à incidência no desenvolvimento e organização social no meio rural. Devem ser citados diversos nomes, neste sentido, mas vamos destacar o nome do Pe. Max Von Lassberg e do Pe. Theodor Amstad . O primeiro como desbravador de novas fronteiras agrícolas ajudando a fundar novas comunidades; e o último pela maravilhosa obra das cooperativas no meio rural. Os quatro últimos Superiores Gerais passaram a sublinhar com maior insistência a importância do Apostolado Social na Companhia de Jesus. A começar pelo Pe. João Baptista Janssens, passando pelo Pe. Pedro Arrupe, depois Pe. Peter-Hans Kolvenbach e hoje o Pe. Adolfo Nicolás .

O papel do Pe. Janssens:  A começar pelo Pe. João Batista Janssens, que na célebre Instrução Apostólica de 10/10/1949, justifica a necessidade do Apostolado Social como expressão genuína da nossa vocação, explicitada nas prescrições do Instituto, e exigência diante dos danos produzidos pelo comunismo ateu e do liberalismo capitalista e suas consequências indesejáveis: a situação dos trabalhadores, produto nefasto das injustiças sociais e das perturbadoras estruturas econômicas. Em meados da década de 1950, o mesmo Pe. Janssens confiou ao Pe. Foyaca, uma visita a todas as Províncias da América Latina, tendo como ponto de atenção: os jesuítas e a questão social. É a partir da Instrução Apostólica de 1949 e desta visita do Pe. Foyaca, que devemos ler a origem dos CIAS (Centros de Investigación y Acción Social). Em carta a todos os Provinciais da América Latina, em 24/12/1962, Pe. Janssens incentivava, na época, a promoção e o desenvolvimento dos CIAS no contexto latino-americano. O Pe. Pedro Arrupe, ao assumir como Superior Geral, em 1965, herdou, assim, um grande dinamismo no Setor. Já em 1966, registrava-se a existência de 23 CIAS, com 165 jesuítas neles atuantes, em toda a Companhia Universal. Sendo que, destes, 11 na América Latina, com 87 jesuítas neles atuantes. Em Carta sobre o Apostolado Social na América Latina, 12/12/1966, o Pe. Arrupe anunciava a criação do CLACIAS (Consejo Latino Americano de CIAS), e escrevia o seguinte: “O objetivo fundamental dos CIAS (e, consequentemente, do Apostolado Social) será a transformação da mentalidade e das estruturas sociais no sentido da justiça social, preferentemente no setor da promoção popular, com a finalidade de possibilitar uma maior dedicação, participação e responsabilidade, em todos os níveis da vida humana”.

A condução de Pe. Arrupe:A partir da Congregação Geral XXXI, o Pe. Arrupe assim se refere ao Apostolado Social: “O que o Apostolado Social diretamente pretende, com todo o empenho, é informar as próprias estruturas da convivência humana de mais justiça e caridade, para poder qualquer homem participar em pessoa, e exercer a sua iniciativa e responsabilidade em todos os setores da vida social”. A Congregação Geral XXXII, em grande parte devido à forte liderança do Pe. Pedro Arrupe, ao definir a Missão da Companhia, deu centralidade ao binômio integrado: serviço da fé e promoção da justiça, recuperando para os dias de hoje o que está expresso, em outras palavras, na Fórmula Originária do Instituto. Nem tudo foi tranquilo e sem sofrimento no seguimento fiel a esta Missão. Houve desconfortos e desilusões, para não falar de perseguições.

O Pe. Peter Hans Kolvenbach, mesmo que marcado inicialmente pelo cuidado por curar algumas feridas no tecido social da Companhia e em sua relação com o corpo todo da Igreja, ao longo de sua longa trajetória como Superior Geral, no entanto, manifestou de forma crescente a sua apreensão e preocupação para que se encontrassem formas de redimensionar e revigorar o Apostolado Social na Companhia, como expressão importante de sua Missão nos dias de hoje. A Congregação Geral XXXIV, sob a sua liderança, reafirmou a formulação da Missão, seguindo a Congregação Geral XXXII, que apresentara o binômio integrado do Serviço da Fé e Promoção da Justiça e acrescentou novos aspectos, chamando a atenção, também, para a importância fundamental do Diálogo Cultural e Inter-Religioso.

Com o Pe. Adolfo Nicolás, amparado pela Congregação Geral XXXV, o Apostolado Social desponta com novas dimensões e renovado vigor. Retomando e reforçando o binômio Serviço da Fé e Promoção da Justiça e a urgência do Diálogo Cultural e Inter-Religioso, as novas dimensões que apontam forte são o cuidado com o meio ambiente (dimensão ecológica) e a atenção às novas fronteiras, num mundo que avança vertiginosamente no meio científico e tecnológico levando às vezes de roldão a dignidade e o sentido da existência humana. Mais do que nunca, a partir da Congregação Geral XXXV, se insiste na importância de um vigoroso trabalho em rede para termos condições de fazer algo que tenha efetivo impacto e alcance.

IHU On-Line – Nesse contexto histórico e dentro da proposta dos CIAS, como surgem o Cedope e o IHU? O que influencia o fato de surgirem dentro de uma universidade?
José Ivo Follmann – Eu tive, pessoalmente, a sorte de acompanhar o CEDOPE ao longo de toda a sua história desde o ato formal de sua criação em 1971 até o ato formal de sua extinção em 2001. Também fiz parte da criação do IHU em 2001, liderando como Diretor do então Centro de Ciências Humanas da Unisinos o longo processo de reflexão, e, por que não, negociação, relativo a esta nova criação. O CEDOPE foi liderado na sua criação e grande parte de sua existência, nas primeiras duas décadas, pelo Pe. Pedro Calderan Beltrão que adotou uma postura diferenciada com relação aos CIAS (Centros de Investigación y Acción Social). Ele postulava um trabalho social mais científico e de caráter acadêmico. O Pe. Beltrão nunca quis de fato que o CEDOPE fosse considerado como um CIAS, pois ele tinha diferenças ideológicas e teóricas com relação à linha em geral adotada nos CIAS. No final de três décadas de existência o CEDOPE talvez estivesse mais próximo da ideia originária de CIAS, mas estava se sentindo a necessidade de maior foco e também integração com a universidade. Foi o que desencadeou a ideia da criação do que hoje é o IHU (Instituto Humanitas Unisinos) somando-se neste processo, além do CEDOPE, o Núcleo de Humanismo Social Cristão e a própria Pastoral da universidade.

IHU On-Line – Qual seria a principal diferença do IHU em relação aos outros CIAS?
José Ivo Follmann – O IHU nasce como proposta de renovação ou de ressignificação da própria ideia de CIAS para os nossos tempos. Ele foi construído inspirado basicamente na ideia dos CIAS, mas dando a esta ideia um novo rosto e uma nova dinâmica de interlocução dentro dos grandes debates presentes nos dias de hoje, tendo como apoio facilitador a interface e a estrutura da universidade. O IHU, no meu entender, consegue ser a expressão daquilo que, em muitos momentos, foi e está sendo almejado por diversos CIAS, na busca de uma maior aproximação com o debate acadêmico, sobretudo quando se trata de trabalhos de pesquisa.

IHU On-Line – O senhor, de fato, vê a questão social como central na Companhia de Jesus?
José Ivo Follmann – Para mim, a questão social é central na Companhia de Jesus. Como eu disse no início, faz parte do seu DNA. Sempre me empenhei por isto. Entrei na Companhia de Jesus com esta perspectiva no meu horizonte. Mas creio que existem entendimentos diferentes do que significa questão social e de como fazer frente a ela. São entendimentos que se expressam em posturas teóricas e metodológicas diferenciadas, às vezes até opostas.

PROMOÇÃO DA JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL

Reflexão elaborada em 2016, em vista de assessorias na Província dos Jesuítas do Brasil.

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

Pe José Ivo Follmann sj (2016)
Secretário para a Justiça Socioambiental
da Província dos Jesuítas do Brasil – BRA

Quando a Companhia de Jesus convida os jesuítas e, também, os que se congregam em suas obras, a serem “Serviço da Fé e Promoção da Justiça” (CG. 32, d.4), ou melhor, Promoção da Justiça como condição sine qua non desse Serviço da Fé, pode-se acrescentar, dentro da compreensão nova e atual que nos é proporcionada, que em nosso Serviço da Fé devemos ser Promotores da Justiça Socioambiental. Isto vem mais claramente explicitado no modo como a Congregação Geral 35ª (2008) se expressou ao falar na necessidade do estabelecimento de relações justas com Deus, com os outros em sociedade e com os bens da criação. (CG.35, d.3)

No Marco de Orientação da Promoção da Justiça Socioambiental – Marco PJSA da Província dos Jesuítas do Brasil (2015) – http://www.jesuitasbrasil.com/newportal/wp-content/uploads/2016/07/MarcoPFSA.pdf – a definição de justiça socioambiental sugere uma chamada para a justiça frente aos desmandos e estragos sociais e ambientais causados pelo ser humano em sociedade, em sua forma desordenada de viver na casa comum, que é o planeta terra.

Nesse Marco PJSA que foi aprovado em 2015 para toda a Província dos Jesuítas do Brasil e, portanto, também, para todas as obras de suas Mantenedoras, entre elas a Associação Antônio Vieira – ASAV, está explicitada uma delimitação descritiva muito sugestiva e didática da abrangência das ações de Promoção da Justiça Socioambiental – PJSA.

As ações de Promoção da Justiça Socioambiental abarcam, sobretudo, três grandes níveis ou esferas da ação humana: 1) O reconhecimento radical dos seres humanos em sua dignidade, independente de raça, religião, cultura ou prestígio social, promovendo o diálogo intercultural e inter-religioso, a reeducação das relações étnico-raciais e denunciando as discriminações contra negros, indígenas e outros segmentos social e culturalmente estereotipados. 2) O esforço sincero e permanente por encontrar formas de superação das desigualdades, de erradicação das exclusões, da miséria e da pobreza, passando pelo cuidado com as políticas públicas de assistência social, saúde, educação, bem como, pelas políticas da terra e do trabalho, com atenção permanente aos indivíduos e grupos mais desprotegidos. 3) O compromisso diuturno no cuidado com o meio ambiente e os dons da criação, revelando cuidado com a vida em toda sua diversidade e com a conservação, preservação e cultivo do nosso ecossistema.

Em suma, ser justo significa empenhar-se pela vida em todos os seus sentidos. Podemos chamar isto de prática de justiça socioambiental. O ano de 2015 trouxe, pelas mãos do Papa Francisco, um presente valiosíssimo para a humanidade, que é a Encíclica LAUDATO SÍ (Louvado Sejas, Meu Senhor!). Sim, devemos louvar o Senhor por este documento extraordinário que convoca a todos os homens e mulheres da grande “casa comum” para, com generosidade, cuidarmos desta “casa” e do convívio bom e justo dentro dela, sendo praticantes da justiça socioambiental.

O conceito de justiça socioambiental aqui apresentado está fortemente inspirado no conceito de “Ecologia Integral” descrito pelo Papa Francisco na sua Carta Encíclica. Que as nossas obras e cada pessoa, que trabalha nessas obras, em seu jeito de ser e agir, sejam sempre mais profundamente iluminadas pela promoção da justiça socioambiental e pela ecologia integral.

RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL: MISSÃO DE RECONCILIAÇÃO E JUSTIÇA.

Reflexão elaborada em 2017 em vista de trabalhos de assessoria nas Frentes Apostólicas da Província dos Jesuítas do Brasil.

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma de ecologia integral

P. José Ivo Follmann sj
Secretário para a Justiça Social e Socioambiental
Província dos Jesuítas do Brasil
(26/09/2017)

A Educação Jesuíta está presente no mundo todo e participa do rico “tesouro espiritual” da Companhia de Jesus, Ordem Religiosa dos Jesuítas, cultivado e transmitido ao longo de séculos. Trata-se do mesmo “tesouro espiritual” que embasa a “missão de reconciliação e justiça” recentemente sublinhada pela Congregação Geral 36 (CG 36), em 2016.

É um “tesouro” que contém uma proposta educativa muito atenta aos diferentes contextos e épocas. Como tal, busca e cria respostas adequadas aos apelos de cada momento.

O Projeto Educativo Comum – PEC, construído recentemente pela Rede Jesuíta de Educação – RJE da Província dos Jesuítas do Brasil, em um de seus posicionamentos, assim se expressa: “O contexto socioambiental em que estamos inseridos nos apresenta apelos aos quais não podemos estar indiferentes e insensíveis”. (PEC, n. 2) O documento prossegue, apoiando-se na Sagrada Escritura (Rm 12,2), com o seguinte apelo: “Nossa fé nos ensina estar atentos aos sinais dos tempos e a não nos conformar com o mundo, mas transformá-lo”. (PEC, n. 2)

Vivemos em uma época de grandes crises. São crises que se manifestam nos diferentes âmbitos da sociedade. São crises envolvendo a própria sobrevivência do planeta terra. Essas crises são um desafio múltiplo, que chama a uma grande responsabilidade de busca de reconciliação e construção de relações justas.

Apoiando-se na Encíclica Papal ‘Laudato Sí’, os jesuítas, reunidos em 2016, na CG 36, assim se expressaram, em um de seus Decretos: “O Papa Francisco nos recorda que ‘não há duas crises separadas, uma ambiental e outra social, senão uma só e complexa crise socioambiental’. Esta crise única, que subjaz tanto à crise social como à ambiental, origina-se do modo como os seres humanos usam – e abusam – das pessoas e das riquezas da terra”. (CG 36, d.1, n.2)

Na ‘Laudato Sí’, o Papa Francisco refere e sublinha o conceito de Ecologia Integral, que pode ser considerado como paradigma transdisciplinar chave, para a busca de compreensão da problemática complexa em nossos dias.

Já em 2008, os jesuítas, na CG 35, ao falar da promoção da justiça focaram na “reconciliação com Deus”, “com os outros” e “com a criação”. (CG 35, d. 3, n. 20-24). Esta tríplice reconciliação foi particularmente aprofundada pela última Congregação Geral, sintetizando o eixo central da Missão da Companhia na palavra reconciliação. (CG 36, d. 1, n. 21-30)

A missão da reconciliação, nos termos desta Congregação, tem como elementos centrais a fé, a justiça e a solidariedade para com os pobres e os excluídos. (CG 36, d. 1, n. 3). Desde a década de 1970, na CG 32, o eixo central da missão sempre veio sendo definido como “o serviço da fé do qual a promoção da justiça se constitui como exigência absoluta” (CG 32, d. 4, n. 2). Não há uma ruptura com esta formulação, mas se alcança uma nova culminância de síntese e compreensão na palavra reconciliação, como expressão mais radical da justiça, enquanto condição do serviço da fé.

O nosso PEC afirma que a Instituição Educacional Jesuíta é um “lugar de transformação evangélica da sociedade e da cultura por meio da formação de homens e mulheres conscientes, competentes, compassivos e comprometidos”. (PEC, n.9; RJE, Estatuto, art. 5º). A educação jesuíta se propõe, assim, a facilitar espaços educativos por dentro e por fora da sala de aula, que levem à formação de homens e mulheres de alta qualificação profissional e profunda consciência crítica. Isto necessita de terreno concreto para fortalecer as suas raízes. O contato e a prática concreta de “responsabilidade socioambiental” ou “promoção da justiça socioambiental” no horizonte radical da reconciliação e da ecologia integral ajudarão a proporcionar isto.

Enseja-se a formação de homens e mulheres comprometidos e engajados na busca de soluções para os diferentes problemas concretos do convívio humano. Que sejam homens e mulheres cujo coração pulse forte e inquieto sempre que forem confrontados com os problemas que envolvem, sobretudo, a dignidade humana, a superação das exclusões e o cuidado dos bens da natureza, ou seja:

 O reconhecimento profundo da dignidade de todos os seres humanos acima de raízes étnico-raciais, de crenças religiosas, das diferentes gerações, gênero, origem nacional, visões de mundo e opções, buscando sempre formas de estabelecer o diálogo, o valor da pluralidade e a inclusão de todos.

 A superação das exclusões sociais e da pobreza, promovendo o acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, saúde, moradia, educação e alimentação. Inclui-se, sobretudo, o direito de ter um país para viver.

 A busca constante pela boa conservação, preservação e usos adequados dos dons da natureza, em vista do cuidado dos ecossistemas saudáveis e da vida para o futuro do planeta terra e de seus habitantes.

Este é o tríplice apelo ou a tríplice chave para o exercício de nosso papel de promoção da justiça socioambiental ou exercício de nossa responsabilidade socioambiental, no horizonte da ecologia integral e da visão cristã da reconciliação.