PASTORAL DA UNIVERSIDADE: UMA COMPREENSÃO SOCIOLÓGICA

José Ivo Follmann sj

(Sacerdote Jesuíta, Doutor em Sociologia pela Université Catholique de Louvain, Bélgica, Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas (Mestrado e Doutorado) da UNISINOS, Coordenador do Programa Gestando do Diálogo Inter-Religioso e o Ecumenismo – GDIREC, do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e Diretor do Centro de Ciências Humanas da UNISINOS. (UNISINOS, junho de 2003)


Foi-me solicitado fazer uma leitura sociológica dos Relatórios da Pastoral da Universidade apresentados pelas equipes das diversas Instituições de Ensino Superior da Região Sul. Agradeço o convite e peço desculpas se não consigo atender plenamente àquilo que os organizadores imaginavam, ao solicitar uma avaliação a partir de uma “compreensão sociológica”.

Antes de iniciar a minha “leitura” propriamente, tomo a liberdade de fazer três observações introdutórias:

  • A sensação que eu tenho, (e isto se repete todas as vezes que participo em reuniões ou encontros como este), é que o bom desses momentos é o grande enriquecimento mútuo que eles proporcionam. Independente das construções conjuntas e coletivas que intentamos ensaiar, a oportunidade de podermos nos escutar mutuamente já tem o seu valor em si.
  • Alguém falou, no início do encontro, da importância de se fazer permanentemente releituras hermenêuticas, no sentido de avançarmos na compreensão contextuada de nossa prática. Eu entendo que, aqui, estamos fazendo, efetivamente, uma releitura hermanêutica coletiva. Sinto-me muito bem com isso.
  • Não me senti muito à vontade, no entanto, ao receber o convite para prestar uma “assessoria sociológica” com a informação de que haveria, além desta, mais uma assessoria pedagógica, uma assessoria filosófica e uma assessoria teológica. O seccionamento do conhecimento que esse tipo de encaminhamento sugere, apesar de não ser a intenção da equipe organizadora, é algo muito complicado. Por isso entendi o convite como sendo o convite para uma reunião na qual haveria a presença de um sociólogo, de uma pedagoga, de um filósofo e de um teólogo que, juntos, prestariam uma assessoria… É isto? Aliás nem sei se ainda sou capaz de assessorias sociológicas… O certo é que, o que aqui estou colocando, não deve ser considerado como simplesmente sociológico, pois os meus questionamentos e as minhas percepções colocam-se, em muitos momentos, além ou aquém da sociologia, se este tipo de “localização” ainda faz sentido…

Dito isto, vou apresentar a minha “leitura” dividida em quatro grandes pontos ou quatro grandes aproximações:

  1. Em uma primeira aproximação ampla, a partir da observação dos relatórios das atividades pastorais das três Universidades aqui presentes, devo destacar os seguintes aspectos:
  • Busca de um envolvimento nos grandes debates da sociedade hoje;
  • Realização de reflexões envolvendo o debate fé e cultura;
  • Empenho por prestar serviços de assistência social e de acolhimento;
  • Visibilidade de serviços litúrgicos e sacramentais.

Considerando estes quatro aspectos, uns mais presentes numa realidade, outros mais presentes nas outras, podemos estabelecer interessantes perfis comparativos das três maneiras de fazer e pensar a Pastoral da Universidade, das Instituições aqui presentes. É um exercício que podemos fazer em conjunto.

  • Em segundo lugar, sinto-me convidado a fazer algumas aproximações de semelhança entre as atividades de pastoral nas três Instituições, que, na minha percepção, são semelhanças claramente evidentes:

2.1) As três Instituições mostram uma linha de atividade comum, que poderíamos denominar “encontros de espiritualidade”. Enquanto na UNISINOS se fala em Exercícios Espirituais de Santo Inácio, como “Retiros na Vida” e outros; na UCPel temos o assim chamado “Maná” e outras formas; na PUC-RS existem os retiros de pastoral e os retiros de aprofundamento.

2.2) A questão do diálogo inter-religioso e da abertura ao diverso está também muito presente nas três Instituições: enquanto na UNISINOS existe um programa bastante consolidado denominado “Programa Gestando o Diálogo Inter-Religioso e o Ecumenismo” (GDIREC); na PUC-RS existem diferentes iniciativas neste sentido, destacando-se o Projeto Alfa/Omega e o Projeto Meditação Oriental; também na UCPel essa preocupação não está ausente.

2.3) Chamou muito a nossa atenção o fato de as três Instituições se envolverem com projetos de gerar amplos debates sobre a teologia hoje ou a vida de fé hoje. Enquanto a UNISINOS está preparando um grande evento internacional, pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a realizar-se em maio de 2004, com o título: “Simpósio Internacional sobre Teologia e Universidade: Novos Desafios para o Século XXI”, a UCPel está com um evento previsto para setembro deste ano, com o título: “II Simpósio Transdisciplinar Ciência e Deus no Mundo Atual”. Isto tudo está em profunda consonância com as “semanas de reflexão” que a PUC-RS promove com os seus professores colocando na pauta a discussão sobre “fé e ciência”.

  • Um terceiro ponto, que eu gostaria de destacar aqui, diz respeito ao cerne do que está em questão neste Encontro… Trata-se da equação Universidade (substantivo) católica (adjetivo), que alguém mencionava bem no início deste nosso Encontro. É, sem dúvida, uma chave fundamental para uma boa compreensão da Pastoral da Universidade ou da idéia de uma Universidade em Pastoral. Às vezes parece que se recai no velho vício medieval de querer como que atrelar o ser universidade ao ser católico, ou seja, busca-se inverter a equação…

3.1) Temos que levar a sério o desafio de ser efetivamente Universidades e excelentemente Universidades, com tudo o que isto envolve em termos de seriedade acadêmica e de compromisso público. Por falar em compromisso público, é oportuno lembrar que, mesmo que as nossas Universidades sejam de iniciativa e gestão privada, elas atuam de fato num campo que é de serviço público. Nós temos que prestar contas à sociedade pela seriedade desta nossa participação no serviço público.

3.2) Temos que levar a sério o desafio de ser efetivamente Universidade católica, assumindo a confessionalidade como adjetivo e não como mero complemento anexo. Ou seja, a orientação cristã, que consubstancia essa confessionalidade, deve ser inerente ao “que fazer” universitário, ajudando a garantir a seriedade acadêmica e o compromisso público. Devemos constantemente buscar responder à questão: por que, para nós cristãos, faz sentido e é importante o empreendimento universitário, enquanto realização da seriedade acadêmica e prestação desse serviço público à sociedade.

  • E, assim, aprofundando esta linha de reflexão, chego ao meu quarto ponto, com um convite para olharmos para o objetivo que a Pastoral da Universidade no âmbito da ABESC se propõe: “Construção de um sujeito histórico comprometido político, cultural e profissionalmente com a mudança da realidade social, a partir de valores e princípios cristãos”. Quero sugerir o seguinte caminho de reflexão, inspirando-me em um texto do Planejamento Estratégico da Associação das Universidades Jesuítas da América Latina (2001-2005), com a formulação de três perguntas:

4.1) Em nosso “que fazer” universitário, a primeira pergunta sempre deve ser: Que sociedade queremos? Destacando-se que as Universidades existem, como eu disse acima, como um serviço público à sociedade. Não podemos perder isso de vista. Quem se envolve nesse serviço deve, em primeiro lugar, prestar contas à sociedade. Nunca no entanto devemos esquecer que o ideal de sociedade de uma Universidade católica e de orientação cristã, é baseado nos princípios da justiça evangélica.

4.2) Uma segunda pergunta naturalmente se seguirá: Que sujeitos formar para essa sociedade que queremos? Destacando-se que, hoje, mais do que nunca, os estudantes necessitam que sejam cultivados, neles, valores que os chamem a serem sujeitos capazes de assumir responsavelmente a construção da sociedade. Eles necessitam, para tal, vivenciar, em nosso meio, uma efetiva formação integral.

4.3) E a terceira pergunta, consequentemente, nos fará voltar o nosso olhar para as Universidades enquanto tal: Que Universidade para formar esses sujeitos? Destacando-se a necessária atenção a três aspectos: a clara explicitação de nossa identidade cristã; a permanente avaliação e atenção à qualidade acadêmica de nossas Universidades; a um redobrado empenho por uma ação sempre mais partilhada, em rede, das Universidades católicas e de orientação cristã.

Seguindo essas perguntas e procurando respondê-las nesta ordem, teremos certamente um bom caminho para darmos conta da pergunta central, que move este encontro: A Pastoral em nossas Universidades está adequadamente estruturada e orientada de forma coerente em suas ações?

Em síntese, devemos desdobrar esta pergunta central, em três grandes perguntas: a) a nossa orientação cristã exige que tipo de sociedade, ou seja: como é uma sociedade, que queremos, coerente com os princípios cristãos? b) que sujeitos nós devemos formar em nossas Universidades, que tenham condições de protagonizar este tipo de sociedade? c) como devem ser e agir as nossas Universidades para que efetivamente proporcionem a formação deste tipo de sujeitos?

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Esses são os quatro pontos que eu tinha a sugerir, neste início de conversa para a nossa “assessoria sociológica”… Sintetizando: primeiro apontei alguns aspectos a destacar para estabelecer um perfil comparativo entre as três Instituições; em seguida identifiquei três importantes convergências por mim percebidas; em terceiro lugar retomei a equação Universidade (substantivo) e católica (adjetivo); e, por último, recordei o objetivo da Pastoral da Universidade no âmbito da ABESC, para sugerir um caminho de reflexão.

Antes de concluir queria, no entanto, ainda sublinhar algo que entendo de fundamental importância, apoiando-me na fala da Professora Flávia, que me precedeu: Se levarmos a sério a constatação de que a maior parte de nossa aprendizagem não se dá pelo sentido da audição, mas por outros sentidos, é, sem dúvida, urgente que os ambientes de nossas Universidades e as suas estruturas, sejam efetivamente coerentes com aquilo que é pregado. Ou seja, os ambientes e as estruturas fazem parte da Pastoral da Universidade ou da, assim chamada, “Universidade em Pastoral”.

O SÍNODO DA AMAZÔNIA NO HORIZONTE DO CONCÍLIO VATICANO II

José Ivo Follmann sj – Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil, 27/10/2019

“Flor espontânea de uma inesperada primavera”, o Concílio Vaticano II (1962-1965) fez a Igreja viver “um novo Pentecostes”. São expressões presentes no texto que introduz o Compêndio dos Documentos Conciliares. Nelas se expressa bem o que aquele evento desencadeou: um processo de mudanças de Igreja, dentro da mudança de época, que marca a humanidade nas últimas décadas.

Depois da conclusão do Vaticano II, já vivemos uma longa história de mais de meio século. Poderíamos entrar em detalhes e mostrar como o Espírito de Deus soprou de forma renovada nos diversos Sínodos que se sucederam e, também, nas Conferências Episcopais, sempre retomando e aprofundando apelos e propostas já presentes no Vaticano II.

O Sínodo para a Amazônia, finalizou a sua Assembleia Especial, em Roma, no dia 27 de outubro de 2019. Inicia-se, agora, a fase pós-sinodal. É a fase de colocar em prática o que foi construído coletivamente e que será, oficialmente, orientado. É a fase de prosseguir no aprofundamento das escutas recíprocas e dos diálogos. Tempo de assimilação e de oração, em um permanente processo de discernimento e de conversão integral. Ou seja: uma conversão que impregne todas as dimensões de nosso viver.

A Assembleia final reuniu em torno de 250 participantes sinodais, debruçando-se sobre textos e documentos de trabalho recolhidos de um processo intenso de reflexão coletiva, que durou quase dois anos, envolvendo, segundo relato da Rede Eclesial Pan Amazônica – REPAM, em torno de 87.000 pessoas.

Este Sínodo é o “filho mais novo do Concílio Vaticano II”. Uma contribuição ímpar para a Igreja, apontando o caminho da sinodalidade na Igreja, que deve ser aprofundada. Foi um grande kayrós vivido pela Igreja! Um avanço sem igual neste tempo pós-conciliar. Um avanço concreto, dentro de uma região, com características muito genuínas e próprias, com desafios tremendos para a humanidade como um todo, que é a Região da Amazônia.

Os problemas, os desafios e os múltiplos clamores da vida e dos seres humanos que integram aquela realidade pluricultural, pluriétnica e plurinacional, foram pautados e levados a sério.

Amparada em laudos técnicos e científicos, mas, sobretudo, sensível aos clamores da região e compassiva com a vida em todas as suas manifestações e com os povos que fazem história naquele contexto, a Igreja levantou a voz como um alerta profético para a humanidade. Foram revigorados, assim, posicionamentos já muito presentes em falas e apelos dos últimos Papas da Igreja, desde São Paulo VI.

O Sínodo mostrou problemas e apelou para soluções. Denunciou desmandos e irresponsabilidades ecocidas e genocidas. Apelou para uma conversão ecológica e social. Em termos de fidelidade ao seguimento cristão, alertou para a existência do “pecado ecológico”.

O Sínodo se orientou, sobretudo, pela conversão cultural, pela busca do “rosto amazônico” de uma Igreja que seja missionária segundo o espírito de Jesus que se encarnou neste mundo. Foi um apelo para termos a humildade de aprender verdadeiramente do outro. Sinalizou, inclusive, para a instituição de um “rito amazônico”. Reconheceu os erros e limitações pastorais que acompanharam a história da Igreja no contexto Amazônico.

Apelou para uma conversão pastoral. Sinalizou a urgência por passar de um modelo de “pastoral de visita” para uma “pastoral de presença” junto às comunidades no contexto Amazônico. Propôs medidas concretas neste sentido. Reconheceu o grande papel exercido pelas mulheres na Igreja, destacando o seu grande significado e importância em toda a vida da Igreja e a valorização de seu protagonismo na liderança das comunidades. Propôs medidas concretas para garantir uma maior valorização da sensibilidade feminina na dinamização da sinodalidade da Igreja.

Renovou com vigor o posicionamento do Concílio Vaticano II, retomando a frase: “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias de todos, sobretudo dos pobres e dos que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”. (cf. G.S, 1)

UMA EM TRES: UMA SOCIOLOGIA EM TRES ABORDAGENS

O texto “Uma em três: uma sociologia em três abordagens” é uma síntese do modelo teórico usado na tese doutoral do autor. Foi usado em aulas de sociologia, como referência básica de abordagem teórica, desde final da década de 1990.

José Ivo Follmann (versão de 02 de outubro de 2003)

1) Três abordagens simultâneas (introdução)

              Em nossas pesquisas sobre a “Identidade dos Católicos no Partido dos Trabalhadores” e sobre as “Comunidades Eclesiais de Base no Estado do Rio grande do Sul” utilizamos uma abordagem teórica tríplice. Foi o próprio processo de pesquisa que foi nos induzindo a esta necessidade teórica, isto é, de tentar captar a realidade em questão, ao mesmo tempo, dentro de uma perspectiva de discussão da produção da historicidade, dentro de uma perspectiva de discussão das lógicas dos campos de atividade e dentro de uma perspectiva de discussão da dinâmica pessoal e identidade. Se, por um lado, o objeto específico de nosso estudo nos conduziu a esta opção teórica, por outro lado, o longo contato que tivemos com estas três produções teóricas, levou-nos, aos poucos, à conclusão sobre a pertinência deste tríplice emprego teórico para um bom tratamento das mais diferentes questões colocadas para a pesquisa sociológica.[1]

              Trata-se de três perspectivas, ligadas a diferentes paradigmas de interpretação da sociedade, implicando também que tenhamos presente e consideremos os pressupostos teóricos com os quais estes paradigmas estão carregados.

              Primeiramente, o ponto de vista da produção da historicidade tem como referência principal a existência do conflito central dentro da sociedade estando em questão a apropriação e gestão de sua historicidade. Este conflito central é marcado por uma lógica, que pode ser denominada de lógica dos movimentos sociais na concepção de movimentos sociais de A.Touraine.

              Em segundo lugar, o ponto de vista das lógicas dos campos de atividade apresenta como referência principal o espaço social onde se realizam a reprodução e a produção da sociedade “distribuídas” pelas diferentes atividades, tendo cada uma sua lógica social própria. No caso concreto dos estudos mencionados, estavam em questão o campo religioso (e o campo político), ou seja, a lógica religiosa (e a lógica política) seguindo concepção de P.Bourdieu.

              Finalmente, o ponto de vista da dinâmica pessoal e identidade apresenta como referência principal a importância das iniciativas ao nível do sujeito individual, apresentando-se este como um lugar de iniciativa coletiva. Em outras palavras, há uma lógica da dinâmica e identidade dos indivíduos que deve ser levada em conta nos estudos sociológicos. Consideramos em primeiro plano autores como J. Remy, G.Bajoit e A Melucci.

O debate está aberto. A rigor ainda não cabem conclusões… É um desses textos em construção, que o autor nunca quer concluir. O esquema sempre ajudou muito nas aulas de sociologia e, mesmo, em palestras com públicos diversos. O livre navegar por diversas perspectivas teóricas é, sem dúvida, um caminho interessante dentro do “fazer sociológico”. O grande desafio que se coloca é o de não se cair na tentação fácil da caricatura dos autores. A nossa intenção sempre foi a de respeitar rigorosamente o lugar epistemológico de cada um. Parafraseando Santo Agostinho[2], quase se poderia dizer: “Respeite o lugar epistemológico dos autores e faça o que quiser!”

2) Produção da historicidade (e lógica dos movimentos sociais)

              Nosso estudo da sociedade pode tomar como ponto de partida e sublinhar em primeiro plano a historicidade, ou seja, a capacidade de produção da sociedade por ela mesma. Isto nos conduz diretamente à concepção de movimentos sociais tal como A. Touraine a trabalha.

              Falar dos movimentos sociais significa, para A. Touraine, falar do coração da vida social. O conceito de movimento social ocupa o centro das atenções, na concepção sociológica deste autor. Isto está intimamente ligado à maneira como ele concebe tanto as relações de classe como a noção de historicidade. “O movimento social, diz ele, é a conduta coletiva organizada de um ator de classe lutando contra seu adversário de classe pela direção social da historicidade dentro de uma coletividade concreta.“(1978: 104)

              As classes sociais, no seu entender, são forças opostas neste conflito central. Na auto-produção da sociedade, é preciso sempre estar atento às relações de classes de que ela é portadora.

              Segundo A. Touraine, é necessário ultrapassar as abordagens reducionistas e unilateriais e, colocando a sociedade sobre seus pés, reconhecer nela a verdadeira realidade das relações de classe.

              Ele entende por relações de classe “os conflitos entre os que detém o poder de dirigir a intervenção da sociedade sobre ela mesma, e os que lutam contra esta apropriação privada da historicidade e particularmente dos instrumentos e dos produtos da acumulação e do investimento.“(1976: 38). A questão central destes conflitos não é outra coisa senão acesso à historicidade e sua apropriação. A historicidade é expressão da capacidade da sociedade de autoproduzir-se tanto em nível de gestão dos recursos quanto em nível de orientação. Em outras palavras, cada sistema de ação histórica (de historicidade) ou cada estado da produção define-se pela maneira própria pela qual o saber, os investimentos e a ética são produzidos dentro de uma sociedade ou são expressão da auto-produção da sociedade por ela mesma.

              Para situar melhor o conceito de movimento social de A. Touraine, se faz necessário notar a dupla dialética assinalada por este autor no que concerne às relações de classe. Para ele, “a classe dirigente se identifica com a historicidade, a assume, dirigindo particularmente os investimentos, mas ela torna-se dominante pelo movimento inverso que a empurra a transformar esta direção em ordenamento e em mecanismo de reprodução e de defesa do mesmo (ordenamento). A classe popular é dominada, não somente por ser direcionada mas sobretudo por sofrer o direcionamento de seu adversário; ela é também contestatária, tanto na medida em que ela se opõe a esta ordem em nome da historicidade enquanto tal, tanto como para sua própria libertação”.(1978: 88-89).

              Esta dupla dialética, em nível de relações de classes, conduz em seu bojo a dinâmica da sociedade que traz confronto e conflito entre movimentos sociais da classe popular e movimentos sociais da classe dirigente (e dominante). Estes movimentos sociais são manifestações efetivas de dois atores de classe fundamentalmente opostos na sociedade.          

              O movimento social popular se evidencia numa sociedade toda vez que se manifesta uma ação coletiva porque carrega no seu projeto “componentes” com os quais a classe popular contesta a apropriação da historicidade em mãos da classe dirigente (e dominante). Os movimentos sociais (de classe popular) não são outra coisa que manifestações concretas deste ator fundamental.

3) Campos de atividade e suas lógicas

              Nosso estudo da sociedade pode tomar como ponto de partida e sublinhar em primeiro plano a idéia de espaço social enquanto dividido em diferentes campos ou subconjuntos.  Estes, a modo de mercados especializados, reúnem agentes e instituições em torno de questões e interesses específicos, isto é, de questões, motivos e projetos específicos. Trata-se dos diferentes campos de atividade, segundo P. Bourdieu.

              Cada campo de atividade se estrutura dentro de uma lógica própria, constituída de relações entre produtores e consumidores dos bens específicos do campo. Dito de outra forma, existem “instâncias objetivamente estabelecidas para assegurar a produção, a reprodução, a conservação e a difusão” dos bens próprios do campo. (P. Bourdieu, 1971: 305).

              A construção que P. Bourdieu faz, por exemplo, do campo religioso, é contribuição importante que constitui instrumento apto para a compreensão dos mecanismos internos à atividade religiosa. Segundo ele, a constituição de um campo religioso leva normalmente a uma “monopolização da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas religiosos”. (1971: 304). Está claro, entretanto, para o autor que, se aqueles que dominam um campo têm os meios de o fazer funcionar em seu próprio proveito, isto é, em proveito de suas disposições e interesses, eles não podem deixar de estar constantemente atentos à resistência dos dominados. Esta resistência é importante para que se possa falar de campo. Se todas as resistências estivessem neutralizadas, estaríamos na presença de um aparelho e não de um campo…  (Igreja católica ao longo da Idade Média era mais aparelho do que campo; quando temos campo a vigilância de que está no poder deve ser maior, para evitar ruídos…)

              O fato do campo estar estruturado dentro de uma lógica própria das relações entre os produtores e os consumidores não quer dizer que estes campos sejam impermeáveis e isolados dentro do espaço social. Bem pelo contrário, é através dos campos de atividade que a sociedade e as relações de classe se produzem e se reproduzem.  O conceito de campo de atividade fornece uma contribuição fundamental para compreender certos aspectos específicos das práticas das classes sociais. Ao nível dos “consumidores” dentro do campo religioso, por exemplo, segundo argumentação de M. Weber, é bem provável que as disposições e interesses religiosos das classes privilegiadas se dêem em termos de “demandas de legitimação” da ordem estabelecida, enquanto no meio das classes desfavorecidas isto ocorra mais provavelmente em termos de “demandas de compensação“.  (Busca de milagres, presenciar milagres, fantasia da melhoria de vida… Ou, vida eterna feliz e recompensada…)

              Continuando no mesmo exemplo do campo religioso, é na busca por garantir o monopólio da gestão dos bens de salvação que o corpo do poder eclesiástico sente-se empurrado, por um lado, a uma constante transação com os leigos e suas demandas religiosas, e, por outro, a uma constante vigilância para eliminar e neutralizar a concorrência de outras forças, como, por exemplo, a força profética. Esta última torna-se, sobretudo, perigosa quando através dos apelos e denúncias éticas ela ameaça transformar as “demandas de compensação” em apelo para o engajamento na construção de uma “nova sociedade” e uma “nova maneira de a Igreja ser”.  (A teologia da libertação, …)

4) Lógica da dinâmica e identidade pessoais

              Nosso estudo da sociedade pode tomar como ponto de partida e sublinhar em primeiro plano o indivíduo-sujeito com sua dinâmica e identidade pessoais

              Para muitos sociólogos, o debate sobre a inter-relação entre indivíduo e sociedade encontra-se ainda muito disperso, porque o sujeito, cujo estatuto sociológico está em questão, carece de uma elaboração teórica apropriada dentro da sociologia. É neste rumo que a proposição teórica que orientou uma pesquisa sobre os jovens, realizada sob a coordenação de G.Bajoit (1993)[3]  foi a da “teoria da construção do sujeito pela gestão relacional de si próprio”.

              Segundo G.Bajoit “os indivíduos selecionam (adotam ou rejeitam) os sentidos culturais (as idéias, as representações, as normas, as opiniões, os valores, os princípios) em função das necessidades da gestão de si mesmo, portanto em função da lógica do sujeito que lhe é própria no momento dado.”(1993) A idéia central da teoria proposta é a definição do sujeito como capacidade de gestão de si mesmo. Esta capacidade “permite ao indivíduo de decidir por ele mesmo, de escolher sua vida, de manter-se dono de seu destino, entre os outros, graças a eles e apesar deles.“(1993). Três recursos psíquicos essenciais são identificados nesta gestão de si mesmo: uma capacidade de reflexão (de acomodação e de distanciamento) graças à qual as tensões existenciais do indivíduo são tratadas; uma capacidade de projeção (de concretização e de escolha identitária) graças à qual ele gera a identidade e seus projetos; e uma capacidade de ação (de identificação e de diferenciação sociais), graças à qual ele elabora suas estratégias face aos outros (indivíduos ou grupo). O ser sujeito reside nesta capacidade de gestão de si mesmo. Numa palavra, o sujeito é a expressão, em cada indivíduo, da execução desta capacidade ou destas capacidades. A “dinâmica afetiva” e a dimensão da “paixão”, etc. são também aspectos fundamentais para a compreensão das ações coletivas e da sociedade. Além de G. Bajoit, tanto J. Remy, [4] quanto A. Melucci apresentam importantes contribuições neste sentido.

              Dentro desta perspectiva que realça a dinâmica e identidade das pessoas, uma das contribuições, sem dúvida, mais conhecidas, hoje, é a de A. Melucci, segundo o qual, entre outras coisas, as pessoas “sempre se adaptam e dão um sentido próprio às condições que determinam suas vidas” (1994: 153). Elas criam “formas próprias de interação no interior das condições estruturais” em que estão inseridas (ver 1994: 153). Assim ao comentar, por exemplo, a noção de sistema, A. Melucci assim se expressa: “existem formas de construir uma realidade coletiva que são aparentemente estáveis, às quais as pessoas podem se referir mas que, por trás desta aparente estabilidade, existe um esforço contínuo de interação e de negociação que é visto enquanto um sistema”. (1994: 158).

5) Observação, à guisa de conclusão…

BIBLIOGRAFIA:

BAJOIT, Guy e FRANSSEN, A. Les Jeunes dans la Compétition et la Mutation Culturelle. Pairs: PUF, 1995.

BAJOIT, Guy. Pour une Sociologie Relationnelle. Paris: PUF, 1992

BOURDIEU, Pierre. “Genèse et Structure du Champ Religieux”, Revue Française de Sociologie, N. XII, 1971, pp.295-334

_______.  Questions de Sociologie. Paris: Minuit, 1980.

_______. Economia das Trocas Simbólicas. Rio de Janeiro: Perspectivas, 1974.

FOLLMANN, J. Ivo. Religion, Politique et Identité. (Tese de doutorado) UCL, Louvain la Neuve, Bélgica, 1993

_______. “O lugar sociológico do sujeito individual”, Revista Estudos Leopoldenses, São Leopoldo – RS, v. 35, n. 155, p.39-58, 1999.

_______. “Identidade como conceito sociológico”, Revista Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo – RS, v. 37, p. 43-66, 2001.

FOLLMANN, J. Ivo, SEGALA, Aldino, SPOHR, Inácio, REDIN, Clarindo, “Comunidades Eclesiais de Base – CEBs no Estado do Rio grande do Sul”, Cadernos Cedope, Série Religiões e Sociedade, São Leopoldo – RS, n. 8, p. 3-50, 1996.

MELUCCI, Alberto. A Invenção do Presente. Movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis: Vozes, 2001.

_______. “A Experiência Individual na Sociedade Planetária”, Revista Lua Nova, N. 38, 1996, pp.199-221.

_______. “Movimentos Sociais, Renovação Cultural e o Papel do Conhecimento” (entrevista de   Alberto Melucci a Leonardo Avritzer e Timo Lyyra), Revista Novos Estudos Cebrap, N. 40, 1994, pp.152-166.

REMY, Jean, L. VOYE e E. SERVAIS. Produire et Reproduire: Une Sociologie de la Vie Quotidienne. (2 vols.) Bruxelles: De Boeck Université, 1991 (1ª ed. 1980)

TOURAINE, Allain. Production de la Société. Paris: Du Seuil, 1993 (1ª ed. 1973)

_______. La Voix et le Regard. Paris: Le Seuil, 1978.

_______. Le Retour de l´Acteur: Essai de Sociologie. (Col. Mouvements), Paris: Fayard, 1984.

______. “Crise ou Mutation”, in N. BIRNBAUM. Au-delà de la Crise. Paris: Du Seuil, 1976.


[1] O mesmo esquema teórico foi adotado em pesquisa sobre: “Religiões e Políticas Sociais: um estudo das práticas de assistência social das religiões no Vale do Rio dos Sinos, 1993-1999” e também está sendo trabalhado na pesquisa atualmente em andamento: “As Contribuições das Grandes Religiões Mundiais para uma Ética e Políticas Sociais na Sociedade Contemporânea”.

[2] Santo Agostinho: “Ame e faça o que quiser!”

[3] O relatório desta pesquisa foi publicado em forma de livro pela PUF em 1995. As citações apresentadas neste texto são extraídas da versão original de 1993.

[4] São fundamentais as recentes discussões sobre a noção de “transação social” desenvolvidas no meio sociológico europeu por J. Remy e diversos outros.