A IMPORTÂNCIA DO DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO E O FUTURO DO MUNDO DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES

Pe. José Ivo Follmann sj, 15/09/2002

Palestra proferida em Encontro dos Ex-colegas do Colégio Santo Inácio, Salvador do Sul.

“Alarga o espaço da tua tenda, estende as cortinas das tuas moradas (…), alonga as cordas, reforça as estacas” (Isaías, 54,2).

O Diálogo inter-religioso é, sem dúvida, um dos temas mais instigantes e que porta uma profunda incidência no presente e no futuro da humanidade. Já passou o tempo em que falar de religiões e de religiosidades era considerado coisa do passado ou coisa de gerações vencidas e de contextos sócio-culturais anacrônicos. O mundo continua habitado pelo religioso. Mudou a “forma de habitar”, e o “habitante” assumiu novas formas, mas ele continua presente e muito visivelmente presente.

Não é a minha intenção fazer aqui uma leitura histórica das mudanças no “mundo das religiões e das religiosidades” ao longo dos tempos, mas é importante que a nossa reflexão tenha presente em seu horizonte, por um lado, a distinção entre os “tempos pré-modernos”, os “tempos modernos” e os “tempos pós-modernos” no que diz respeito ao “mundo das religiões e das religiosidades” e, por outro lado, a mistura e simultaneidade desses três “tempos”, constatável em grande parte das manifestações desse “mundo das religiões e das religiosidades” em nossos dias.

A abordagem que eu me proponho a fazer é sociológica (talvez de uma Sociologia mais militante do que acadêmica), procurando apontar algumas notas sugestivas para um roteiro de reflexão, cuja complementação e efetivação compete, a rigor, a cada um dos leitores e das leitoras, dentro da medida de seus conhecimentos pessoais, de suas percepções e, também, de sua vivência religiosa.

Enquanto contribuição para o nosso encontro de ex-alunos do Colégio Santo Inácio, Kappesberg, o texto se justifica, não só pela atualidade do assunto, mas, sobretudo, porque a Missão da Companhia de Jesus, hoje, tem no diálogo inter-religioso um de seus pilares centrais e traz uma muito significativa contribuição para uma nova compreensão deste diálogo ao situá-lo de forma integrada com o serviço da fé, a promoção da justiça e o diálogo entre as culturas.

Colocado este horizonte de leitura, vamos ao nosso tema: “a importância do diálogo inter-religioso e o futuro do mundo das religiões e das religiosidades”.

Os grandes desafios vividos pela humanidade em sua paradoxal “homogeneização e diversificação”, neste início de um novo século e de um novo milênio, lançam interrogações específicas para a compreensão do “mundo das religiões e das religiosidades”. A contribuição da Sociologia (ao lado de outras Ciências Humanas) faz-se importante na medida em que ajuda a contextualizar esse fenômeno, fornecendo, também, chaves para a sua interpretação e para a ação concreta visando o presente e o futuro.

Nunca se falou tanto em diálogo inter-religioso e nunca a humanidade foi tão interrogada sobre as guerras religiosas. Nunca também o “mundo das religiões e das religiosidades” mostrou tanta complexidade. Nunca as suas semelhanças e as suas diferenças foram tão conhecidas.

O enorme debate gerado a partir do atentado ao World Trade Center (WTC), nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, aguçou radicalmente esta temática. A religião e os fundamentalismos religiosos tornaram-se matéria de divulgação diária em grande parte dos meios de comunicação. Muitos espaços, normalmente fechados para a divulgação de assuntos ligados à religião, abriram-se para esse debate, oportunizando, inclusive, preciosas e importantes reflexões de estudiosos das religiões, bem como, manifestações muitas vezes esclarecedoras de renomados líderes religiosos. Isto foi perceptível, inclusive, ainda neste ano, no entorno da memória do primeiro aniversário daquele impactante acontecimento.

O presente texto é construído de uma maneira muito simples, em três momentos, tendo presente três grandes centralidades de referência, com as quais procuro trabalhar em minhas abordagens sociológicas, que podem ser expressas aqui, da seguinte forma: 1) “as religiões e as religiosidades em sua significação social”, 2) “o campo religioso propriamente dito” e 3) “as implicações da dinâmica pessoal dos sujeitos religiosos”.

1) Voltando o nosso olhar para “as religiões e as religiosidades em sua significação social” colocamos a questão da mútua repercussão no processo social como um todo e a existência ou não de diálogo inter-religioso. As religiões e as religiosidades são vistas em sua participação na construção do todo, ou seja, a atenção do estudioso ou do observador volta-se para o grande processo social, que pode ser definido como a produção da sociedade por ela mesma, e as religiões e as religiosidades, como participantes ativas (produtoras) e passivas (produzidas) dentro deste processo. Pelo lado da participação ativa, pode-se dizer, por exemplo, que o diálogo inter-religioso é, sobretudo, escola de cidadania e que os integrismos e fundamentalismos são fonte de destruição social e de guerra. Como também, por outro lado, o contexto social, cultural e político repercute, em geral, diretamente nos modos de ser do “mundo das religiões e das religiosidades”. Hoje, segundo alguns analistas, existe um processo de “DES-moralização” das religiões, na medida em que entram no mesmo jogo de mercado imposto pelo contexto. Somente a existência de uma boa cultura de diálogo inter-religioso poderá “RE-moralizar” as religiões, ajudando-as a preservarem as suas missões fundamentais. A “promoção da justiça” nas sociedades, certamente, estará facilitada na medida da existência deste verdadeiro diálogo.

2) O nosso segundo olhar volta-se para “o campo religioso propriamente dito”. Talvez aí estejamos frente a um dos aspectos mais sérios a ser considerado. Estou falando diretamente dos conflitos internos ao próprio campo religioso. Trata-se do nível institucional e inter-institucional. O campo religioso é considerado como um dos campos mais contaminados pela disputa institucional, mesmo que isto seja muitas vezes bastante invisível. Isto torna-se facilmente compreensível, quando levamos em consideração que se trata de confronto de “convicções”. Segundo Paul RICOEUR (1995, p. 183) “não admitimos facilmente que aqueles que não pensam como nós tenham o mesmo direito, que temos, de professar suas convicções porque, pensamos, isso seria dar um direito igual à verdade e ao erro”. Muralhas institucionais são criadas para proteger a “verdade” do “erro”. Enquanto essas muralhas não forem transformadas em paredes com muitas janelas e portas, as religiões estarão longe de se ajudarem mutuamente a encontrar as suas identidades e as suas fecundas e fecundantes diferenças. O campo religioso permanecerá, hoje e no futuro, um campo de grande significação social e cultural, na medida em que não precisarmos identificar em primeiro plano a sua marca conflitual característica, mas a sua busca de diálogo. O campo religioso poderá ser testemunho de diálogo cultural e, por que não, testemunho de democracia.

3) O terceiro olhar que quero apontar (para nossa reflexão) refere-se à própria vivência pessoal da fé, enquanto tal. Estamos aqui referindo-nos ao nível mais profundo, que é o nível da própria prática religiosa, da vivência de fé. Em alguns contextos é bastante visível, hoje, a existência de instituições religiosas ou religiões preocupadas quase que exclusivamente com a vinculação e fidelização das pessoas às suas propostas institucionais. O empenho por ajudar as pessoas a despertarem efetivamente para uma fé sólida e comprometida fica, nestes casos, em segundo plano, quando não totalmente ausente. Ou então, se olharmos pelo lado dos próprios sujeitos individuais, é comum constatarmos a existência de práticas religiosas repetitivas e vazias, contribuindo unicamente para a sobrevivência institucional, quando não voltadas basicamente para a satisfação social ou atendimento a carências psicológicas imediatas. Esta constatação não pode ocultar, no entanto, a existência (crescente!, segundo alguns) de práticas de uma fé constantemente alimentada e cultivada dentro das perspectivas de adesão e convicção pessoais. Seria importante podermos testar a hipótese de que, hoje, nas religiões instituídas, em geral, a prática de adesão pessoal passa a ganhar terreno sobre a prática de rotina ou de conveniência social e institucional. De todas as formas, uma coisa é certa: é na busca do cultivo autêntico da fé, independente da orientação ou vínculo religioso, que encontramos os melhores elementos para uma maior substanciação e fundamentação do sujeito cultural e cidadão que somos.

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Como podem perceber, coloquei três grandes frentes de desafios para a nossa reflexão sobre o diálogo inter-religioso. São desafios que aparecem, de uma forma ou outra, nas mais diferentes abordagens sobre a temática: 1) A responsabilidade cidadã dos que vivem uma religiosidade ou integram uma religião, no sentido de serem efetivamente forças de agregação social e não de desagregação social, sendo protagonistas de promoção da justiça e de uma cultura de paz e diálogo e não de uma cultura de guerra e discórdia. 2) A responsabilidade institucional das religiões pelo cultivo de uma cultura de diálogo profundo entre elas para somarem forças e não desperdiçarem as suas forças em divisões e mútuos combates ou medos sem sentido. 3) E, sobretudo, nos dias de hoje, a responsabilidade dos que desenvolvem uma religiosidade ou dos integrantes das religiões, de cultivarem profundamente os seus valores e a sua fé dentro de um mundo e de uma humanidade tremendamente esvaziada de sentidos.

Por falar em cultivar os valores e a fé, deve-se lembrar aqui que muitas vezes se pensa que o diálogo inter-religioso ou o ecumenismo não passam de mecanismos para unificar artificialmente e matar a diversidade. Isto certamente seria um grande risco, caso não houvesse um autêntico processo de diálogo, mediado por um perfeito casamento entre humildade, convicção religiosa e abertura à verdade. O diálogo só existe quando se fala de igual para igual. É importante que se perca os medos e que aconteça a aproximação. Só assim, no conjunto, se terá mais força. É importante que a identidade de cada um seja preservada e reforçada, mas é também importante que haja uma grande aproximação uns dos outros, pois assim haverá mais oportunidades de se desfazerem os medos mútuos e uma maior percepção de que o outro não é tão perigoso como sempre o imaginamos. Isto também ajudará a que se percebam os diferentes “tempos” do “mundo das religiões e das religiosidades”, os quais se misturam, às vezes, num mesmo indivíduo ou grupo, onde traços de “pré-modernidade”, de “modernidade” e de “pós-modernidade” sobrepõem-se. Esses diferentes “tempos” devem ser reconhecidos e respeitados.

O “mundo das religiões e das religiosidades”, na sua rica diversidade, faz sentido no presente e no futuro, na medida em que, além de sua inequívoca vocação de proporcionar as religações com o Transcendente, o ser e o agir da humanidade puderem encontrar nele, e em seu multicolorido harmonioso, fonte de paz e de inspiração para o diálogo e para a justiça.

A Terra de Santa Cruz, 500 anos depois…*

– Palavras de apresentação do Caderno –


* O artigo é uma recomposição de aspectos presentes de forma dispersa em quatro artigos anteriores “O Mundo das Religiões na Terra de Santa Cruz” (Jornal Adunisinos, n.19, agosto, 2000),  “Igreja e Missão na Cidade” (Rev. Renovação, 1997),  “O Mundo das Religiões e da Religiosidade; novos desafios para o diálogo inter-religioso” (Re. Notícias Jesuítas, 2000), “O Mundo das Religiões no Município de Cachoeirinha” (Cadernos de CEDOPE, n. 14, 2000).

José Ivo Follmann

(Doutor em Sociologia, Padre Jesuíta, Diretor do Centro de Ciências Humanas)

O Texto:

Tendo sido solicitado pelo Jornal da Associação dos Docentes da UNISINOS, para fazer uma breve reflexão sobre os “500 anos de Brasil, sob o ponto de vista da evolução do fenômeno religioso”, eu escrevi o seguinte:

“No dia 1º de maio de 1500 ergueu-se na praia de Porto Seguro, Bahia, uma grande cruz de madeira e nossa terra foi denominada de “Terra de Santa Cruz”. A colonização portuguesa do Brasil deu-se sob o signo da “cristandade”, isto é, “unidade dos povos e países cristãos em torno de interesses religiosos e políticos comuns, sob a hegemonia da Igreja católica”. (DEL PRIORE, 1994, p. 7)

O Brasil normalmente foi e é conhecido como um “grande país católico” ou o “grande país católico”. Esta característica, que trazemos de nossa história, tem a ver diretamente com o empreendimento colonizador português, parte de uma fantástica política civilizatória onde interesses econômicos, políticos e religiosos caminhavam juntos. “Acreditava-se estar promovendo o verdadeiro bem das regiões colonizadas. O catolicismo era uma espécie de motivação presente na ação do Estado português. Colonizar e evangelizar eram encarados conjuntamente”. (MACEDO, 1989, p. 30)

Mas este “grande país católico” não é de fato tão católico assim. Ele é mesmo um “grande cadinho religioso” quando não uma “grande bricolagem” … Por um lado, isto tem muito a ver com o próprio processo de colonização ou de evangelização católica sob o signo da colonização. Este processo deu-se em grande medida sob o signo da dominação, gerando um forte caldo represado de cultura de resistência. Por outro lado, tem a ver também com o fato de que mais do que nos outros campos, no campo religioso, o ser humano manifesta-se como agente ativo na construção da realidade simbólica, a partir de sua experiência pessoal e social. Assim, as diferentes situações vividas geram constantemente formas novas de apropriação das crenças e práticas religiosas na busca de respostas às necessidades espirituais e materiais.

Os 500 anos de Brasil, desde o início da colonização portuguesa, foram 500 anos processados sob o signo paradoxal da destruição e da construção religiosa. A dominação colonial dentro do projeto de “cristandade” desrespeitou, às vezes, até ao aniquilamento total, outras culturas e tradições religiosas. O nosso colega professor Attico Chassot desafia-nos, constantemente, a tentarmos lembrar (inutilmente!) o nome de algum de nossos antepassados “brasileiros” de antes da chegada dos portugueses… Nós, hoje, 500 anos depois, nos perguntamos sobre o que sabemos das religiões dos povos que aqui viveram e que, aos frangalhos, sobrevivem… Muito pouco! Esta é a nossa resposta. Além de nossas frases prontas, aprendidas nas escolas e revestidas de preconceitos de superioridade colonial, muito pouco sabemos. Grandes esforços são feitos hoje para reconstruir algo a partir dos fragmentos que ficaram.

Semelhantemente ao que se deu com os povos indígenas, as religiões cultivadas pelos milhões de negros, trazidos escravos da África, foram cruelmente anuladas, tendo que sobreviver na clandestinidade. Hoje exultamos: “Bendita clandestinidade!”

A história, aliás, é pródiga em ensinar-nos que o ser humano não se deixa aprisionar, nem mesmo pelas civilizações mais poderosas. Neste nosso Brasil, 500 anos depois do início da colonização portuguesa, crenças antigas e tradicionais dos povos indígenas reencontram a sua legitimidade e, mais do que nunca, as religiões de raízes africanas passam a ter visibilidade na sociedade.

Hoje ainda se ouve de vez em quando alguém dizer que a religião oficial do Brasil é a católica… Isto, obviamente, não é verdade! O Brasil deixou de ser um país oficialmente católico em 1889, com a separação entre Estado e Igreja. Foi uma das muitas coisas boas da República! A partir desse ato de separação entre o Estado e a Igreja, abriu-se o espaço para a liberdade de expressão religiosa. As Igrejas Evangélicas, já presentes em grande parte acompanhando levas de imigrantes, ou então por iniciativas missionárias heróicas, passaram a ter a sua presença legitimada, apesar dos grandes esforços que a Igreja Católica fazia para estabelecer limites legais a isto. O meio evangélico hoje, 500 anos depois da declaração do Brasil como país católico, apresenta em geral um grande dinamismo, destacando-se em especial a sua vertente pentecostal. Esta vertente demonstra uma crescente expansão, sobretudo, através da versão neo-pentecostal. Ao lado do forte esquema de pertença e de fidelidade doutrinal, bem disciplinado, nas Igrejas pentecostais mais antigas, como as Igrejas Assembléia de Deus, a Congregação Cristã do Brasil e outras, pode-se observar de mais a mais o fenômeno da oferta e procura da “cura divina” e atenção às necessidades imediatas mais diversas, que se acentua particularmente através de Igrejas mais recentes, como a Igreja Universal do Reino de Deus e outras, que passaram a ser conhecidas como neo-pentecostalismo.

A expansão religiosa não foi só por fora da Igreja Católica. Ela aconteceu, também, de forma crescente e intensa por fora dos horizontes do cristianismo como um todo. É neste sentido, por exemplo, fortemente característico do Brasil o meio “mediúnico” ou “de possessão”, composto pelo Espiritismo Kardecista e, de modo especial, pelas religiões de raízes africanas, sobretudo o Candomblé sob todas as suas formas e expressões. Neste meio destaca-se, ainda, a Umbanda, uma religião tipicamente brasileira. Trata-se de uma religião criada durante os anos 1920 e está fortemente marcada por tradições africanas, pela tradição “mediúnica” do Espiritismo Kardecista (de Allan Kardec) e pela tradição católica. Encontram-se nela, também, influências religiosas indígenas entre outras.” (Jornal Adunisinos, agosto, 2000, p.4)

Perpassando estes três grandes agrupamentos (católicos, evangélicos e “mediúnicos”) a marca do “minima catolica” (como diz Helcion Ribeiro) continua dando o tom na complexa realidade religiosa brasileira. Muitas vezes em aulas de “sociologia das religiões” fiz o exercício com o grupo de alunos, buscando construir com eles (e a partir do imaginário e da percepção deles), as diferentes formas de “viver religião” no Brasil de hoje, classificando em agrupamentos. É bem sugestivo o quadro que resulta de diferentes sínteses sucessivas feitas a partir deste repetido exercício:

FORMAS DE “VIVER RELIGIÃO” HOJE, NO BRASIL (em ordem de importância numérica; um esboço)
Católicos só “de nome” sem prática religiosa pública;Católicos cumpridores de algumas exigências religiosas públicas mínimas;Católicos cumpridores regulares das exigências formais do catolicismo;Seguidores de práticas mediúnicas, sejam afro-brasileiras ou kardecistas (confessando-se também católicos ou não);Pertencentes a Igrejas ou movimentos pentecostais ou neo-pentecostais;Ligados a movimentos organizados catolicos (RCC, ECC, etc);Pertencentes a Igrejas protestantes históricas;Católicos engajados em pastorais sociais e/ou integrantes de CEBs;Pertencentes a inúmeros outros agrupamentos e organizações com ligaçao ou não a sistemas religiosos mais amplos;Cultivadores de vivência religiosa pessoal/privada;Ateus ou não-crentes declarados.
Fonte: Exercício de grupos de alunos em sala de aula (Aulas de “Sociologia das Religiões”), publicado em “Igreja e Missão na Cidade”, Rev. Renovação, 1997)

Muito para além desta classificação, fruto do imaginário e da percepção de observadores jovens, o cadastro dos locais de culto religioso e templos que estamos realizando na Região Metropolitana de Porto Alegre e do qual o presente Caderno visa dar conta dos dados do Município de Esteio, nos alerta, no entanto para um outro fenômeno, que é o grande percentual de pessoas que de fato não freqüentam regularmente qualquer religião. Trata-se de um pouco menos de 70% da população.

Infelizmente, não temos dados sobre o comportamento religioso ou não destas pessoas em sua vivência no dia a dia. Sabemos que, por herança histórica, a maioria desses têm uma ligação mais ou menos tênue com a Igreja Católica Apostólica Romana.

Seriam esses quase 70% representados totalmente por “não-religiosos” ou “pouco-religiosos”? Certamente não. Muitos indícios nos levam a supor que um grande número daqueles que, mesmo sem estarem em celebrações, sessões, missas ou cultos religiosos coletivos com freqüência semanal, desenvolvem, com maior ou menor intensidade, práticas religiosas diversas ligadas ao imaginário católico herdado e outras práticas em sua maioria de caráter mágico, místico ou esotérico.

Isto coloca um desafio novo muito grande para o que nós denominamos de “diálogo inter-religioso”. Talvez seja mais desafiador do que com práticas com identidade definida. Hoje quando falamos em diálogo inter-religioso esta realidade certamente deve estar presente.

Para além do cultivo das identidades, é urgente que toda esta energia boa vivenciada nas diferentes formas de “viver religioso” sob a marca da “Terra da Santa Cruz”, que se encontra muitas vezes dispersa, seja mais e mais canalizada num grande projeto, já não mais sob o signo de uma “cristandade” dominadora e excludente, mas sob o signo da dignidade humana por uma sociedade sem exclusões.

Bibliografia:

ANTONIAZZI, A. Bigarrure Religieuse du Brésil. Rév. ÉTUDES, t. 374,  n. 2, 1991.

DEL PRIORE, M. Religião e religiosidade no Brasil colonial. São Paulo : Ática, 1994.

FOLLMANN, J. I. e outros. O mundo das religiões no município de Cachoeirinha, Cadernos CEDOPE, Série Religiões e Sociedade, n. 14, 1999

MACEDO, C. M. Imagem do eterno: religiões no Brasil. São Paulo : Ática, 1989.

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Ao longo do processo de mapeamento e do cadastro, com o contato com diferentes opiniões de lideranças religiosas e estudiosos, por um lado, e por motivos de ordem prática imediata, por outro lado, já foi estabelecida nova “composição” ou categorização, que está sendo utilizada no atual momento de organização de nosso banco de dados e da análise destes dados. As letras em destaque no quadro abaixo são  identificações de referência a serem usadas nos textos, para facilitar a leitura e compreensão dos dados.

QUADRO GERAL DE CATEGORIZAÇÃO DAS RELIGIÕES

   H = igrejas evangélicas históricas

   P = igrejas e grupos evangélicos pentecostais e

         neo-pentecostais;

 C = catolicismo, igreja católica apostólica romana

   A = religiões afro-brasileiras e umbanda;

   K = espiritismo kardecista

   D = diversas, outras.

Na medida em que tivermos reações e questionamentos de pessoas e grupos interessados, as nossas delimitações se tornarão certamente sempre mais adequadas à realidade e sempre mais práticas, assim se espera.

Em nossos textos no presente Caderno, fazendo sempre que necessário referência à respectiva letra de identificação, seguiremos normalmente os seguintes “agrupamentos” ou “conjuntos” de religiões.

QUADRO SINTÉTICO DE CATEGORIZAÇÃO DAS RELIGIÕES

Evangélicos; Igrejas evangélicas históricas; pentecostais e neo-pentecostaisCatolicismo; Igreja católica apostólica romana“Mediúnicas” ou “de possessão”; Religiões afro-brasileiras; Umbanda e Espiritismo kardecistaDiversas outras religiões e agrupamentos religiosos
 (H); (P)(C)(A); (K)(D)

Observação:

Os comentários a partir das entrevistas complementares apresentados abaixo são comentários em vista à construção de hipóteses e em nenhum momento têm a pretensão tirar alguma conclusão ou generalização a respeito de alguma das religiões em questão. A amostra dos entrevistados não é cientificamente representativa, mas por se tratarem de pessoas diretamente envolvidas com o cotidiano de sua religião, a consideramos suficiente para as finalidades deste trabalho.

O “Mundo das Religiões” nesta Terra de Santa Cruz

(Um olhar sobre o desenvolvimento do campo religioso no Brasil, 500 anos depois do início da colonização portuguesa)

Palestra proferida em Evento Sociopastoral de Lageado, no ano 2000.

J. Ivo Follmann

(Doutor em Sociologia, Padre Jesuíta,

Diretor do Centro de Ciências Humanas)

No dia 1º de maio de 1500 ergueu-se na praia de Porto Seguro, Bahia, uma grande cruz de madeira e esta terra foi chamada de “Terra de Santa Cruz”. A colonização portuguesa de nosso país deu-se sob o signo da “cristandade”, isto é: “unidade dos povos e países cristãos em torno de interesses religiosos e políticos comuns, sob a hegemonia da Igreja católica”. (DEL PRIORE, 1994: 7)

O Brasil normalmente foi e é conhecido como o “grande país católico”. Este predomínio católico historicamente presente no Brasil tem a ver diretamente com o empreendimento colonizador português. Tratava-se de uma fantástica política civilizatória onde interesses econômicos, políticos e religiosos caminhavam juntos. “Acreditava-se estar promovendo o verdadeiro bem das regiões colonizadas. O catolicismo era uma espécie de motivação presente na ação do Estado português. Colonizar e evangelizar eram encarados conjuntamente”. (MACEDO, 1989: 30)

Mas este “grande país católico” não é de fato tão católico assim. Ele é mesmo um “país de grandes contrastes”… Contrastes em todos os sentidos, contrastes grandes também no plano religioso. Isto certamente tem muito a ver com o próprio processo de colonização, ou de evangelização católica, sob o signo da colonização. Trata-se de um processo que se deu em  grande medida sob o signo da dominação, gerando um forte caldo represado de cultura de resistência. Tem, no entanto, também a ver com o fato de que mais do que nos outros campos, no campo religioso o ser humano se manifesta como agente ativo na construção da realidade simbólica, a partir de sua experiência social vivida. Assim as diferentes situações sociais vividas geram constantemente formas novas de apropriação das crenças e práticas religiosas na busca de resposta às necessidades espirituais e materiais.

Os 500 anos de Brasil, desde o início da colonização portuguesa, foram 500 anos de destruição e de construção religiosa. A dominação colonial sob o signo da cristandade desrespeitou, às vezes até o aniquilamento total, outras culturas e tradições religiosas. Nosso colega, o Prof. Attico Chassot constantemente nos desafia a dizermos o nome de algum de nossos antepassados “brasileiros” de antes da chegada dos portugueses… Nós nos perguntamos: o que sabemos das religiões dos povos que viveram e que aos frangalhos sobrevivem? Muito pouco! Esta é a nossa resposta. Além de nossas frases prontas aprendidas nas escolas e revestidas de preconceitos de superioridade colonial, muito pouco sabemos. Grandes esforços são feitos hoje para reconstruir algo a paritr dos fragmentos que ficaram.

Semelhantemente ao que se deu com os povos indígenas, as religiões cultivadas pelos milhões de negros trazidos escravos da África foram cruelmente anuladas, tendo que sobreviver na clandestinidade. Bendita clandestinidade!

A história, aliás, é pródiga em nos ensinar que o ser humano não se deixa aprisionar, nem mesmo pelas civilizações mais poderosas. Neste nosso Brasil, 500 anos depois do início da colonização portuguesa, crenças antigas e tradicionais de nossos povos indígenas reencontram a sua legitimidade e mais do que nunca as religiões de raízes africanas passam a ter visibilidade na sociedade.

Hoje ainda se ouve de vez em quando alguém dizer que a religião oficial do Brasil é a católica… Isto não é verdade. O Brasil deixou de ser um país oficialmente católico em 1889, com a separação entre Estado e Igreja. Foi uma das coisas boas da República. A partir deste ato de separação entre o Estado e a Igreja, abriu-se o espaço para a liberdade de expressão religiosa. As Igrejas evangélicas passaram a ter a sua presença legitimada, apesar dos grandes esforços que a Igreja católica fez no início da República por estabelecer limites legais a isto. O meio evangélico hoje, 500 anos depois da declaração do Brasil como país católico, apresenta em geral um grande dinamismo, destacando-se sobretudo em sua vertente pentecostal. Esta vertente demonstra uma crescente expansão, sobretudo através da versão neo-pentecostal. Ao lado de um forte esquema de pertença e de fidelidade doutrinal, bem disciplinado, nas Igrejas pentecostais mais antigas, como as Igrejas Assembléia de Deus, a Congregação Cristã do Brasil e outras, pode-se observar um fenômeno de oferta e procura da “cura divina” e atenção às necessidades imediatas mais diversas, que se acentua cada vez mais, particularmente através de Igrejas mais recentes, como a Igreja Universal do Reino de Deus e outras, que passaram a ser conhecidas como neo-pentecostalismo.

A expansão religiosa não foi só por fora da Igreja católica. Ela se deu de forma intensa e crescente por fora dos horizontes do cristianismo como um todo. É, neste sentido, por exemplo, fortemente característico do Brasil o meio “mediúnico” ou “de possessão”, composto pelo Espiritismo kardecista e, de modo especial, pelas religiões de raízes africanas, sobretudo o Candomblé sob todas as suas formas e expressões. As estatísticas dos recenseamentos indicam um número relativamente limitado de adeptos, pois trata-se de formas complementares ou substitutivas ao que é proposto na religião católica. Neste meio pode-se destacar a Umbanda, como sendo uma religião tipicamente brasileira. Trata-se de uma religião criada durante os anos 1920 e ela está fortemente marcada por tradições africanas, pela tradição “mediúnica” do espiritismo kardecista (de Allan Kardec) e pela tradição católica. Encontram-se nela, também, influências religiosas indígenas e outras. Ela se define pelo exercício da caridade e volta-se muito para a questão da cura: uma cura ao mesmo tempo psíquica, social e cósmica. “A Umbanda é, para seus adeptos, muito mais satisfatória que a medicina, que só se ocupa do corpo, e aquelas religiões, que se ocupam só da alma”, como me disse uma Mãe de Santo. Em recente pesquisa que realizamos no município de Cachoeirinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre, desenha-se de forma exemplar um quadro religioso que talvez possa ser generalizável para muitas situações. Trata-se de um município urbano onde sempre predominou a Igreja católica, enquanto tradição religiosa. O município tem um total de 120.000 habitantes, sendo que destes, 37.000 freqüentam algum culto, sessão, missa ou celebração religiosa semanalmente. Isto representa um pouco mais de 32% da população. No entanto, se observarmos o número total de pessoas que freqüentam, isto é as 37.000), veremos que se destacam os adeptos das Igrejas pentecostais e neo-pentecostais. Dos freqüentadores religiosos semanais, 48% são do meio pentecostal ou neo-pentecostal. O meio católico soma 31%. Na seqüência temos o conjunto das Igrejas Evangélicas históricas  com 10%, as Religiões de raízes africanas e as de Umbanda com 4,3 %, em seu conjunto, as Espíritas kardecistas com 3,4% e outras diversas com 1,9 %. (Note bem: estes percentuais são calculados em referência ao total dos 37.000 freqüentadores semanais de cultos, sessões, missa ou celebrações religiosas.)

COMENTÁRIOS PARA O DEBATE SOBRE O TEXTO:

“A MORTE MÁGICA DA ÉTICA PROTESTANTE”

Parrticipação em painel de debate sobre “a morte mágica da ética protestante”, compondo mesa de debate com Prof. Dr. Oneide Bobsin, na Escola Superior de Teologia – EST, São Leopoldo, em setembro de 2000.

J. Ivo Follmann

(06 de setembro de 2000)

Não sou especialista em pentecostalismo, muito menos em neopentecostalismo e em Igreja Universal do Reino de Deus, mas a sociologia das religiões, que é meu campo de ocupação principal há muitos anos ajuda-me a entender que o tema aqui abordado pelo Prof. Oneide Bobsin é um dos temas mais relevantes e problemáticos que hoje se impõe para os cientistas das religiões no Brasil.

Entendo que o meu papel aqui é o de levantar questões que possam jogar algumas perguntas a mais em nosso debate, além das perguntas que o próprio conferencista em sua exposição já soube provocar.

Vou ater-me, assim, a dois comentários que poderão despertar (eu o espero) algumas interrogações a mais:

  • Num primeiro comentário, terei como referência três olhares teóricos como usualmente venho trabalhando nas minhas pesquisas: a partir da produção da historicidade, a partir dos campos de atividades e a partir do sujeito;
  • Num segundo comentário, farei um pequeno contraponto de complementação a partir de alguns dados da pesquisa sobre locais de culto religioso e templos na Região Metropolitana de Porto Alegre.
  1. Comentário um:
  1. (Perspectiva da produção da historicidade) Concordo plenamente com o Prof. Bobsin quando diz que a miséria, o abandono, a doença, o desespero, o desemprego, a violência e a corrupção em todos os níveis desenham-nos um quadro propício e um terreno fértil para os exorcismos e as promessas de prosperidade. Se tomarmos esta realidade religiosa dentro da perspectiva de produção da historicidade, isto é, se tivermos como referência principal em nossa análise a existência do conflito central dentro da sociedade, estando em questão a apropriação e gestão de sua historicidade (utilizo aqui a concepção de historicidade de Alain Touraine), devemos perguntar-nos a serviço de que atores, a serviço de quem ou de que forças na sociedade estão efetivamente esses exorcismos e essas promessas de prosperidade? Qual é a função da “nomeação diabólica” da realidade, para utilizar a expressão sugerida pelo conferencista? Trata-se de uma desqualificação alienadora. É o radical oposto da “nomeação simbólica” onde a mediação religiosa, muitas vezes (por exemplo, nas CEBs), tende a revestir miséria, abandono, doença etc. de força libertadora. Estamos, portanto, claramente frente ao embate entre a função alienadora da religião e a sua função desalienadora ou libertadora. (Uso o conceito de alienação trabalhado por Peter Berger.)

No caso do avanço pentecostal e, sobretudo, neopentecostal (e do movimento carismático em suas diferentes expressões), dá-se em geral uma afirmação da função alienadora. Trata-se de uma hipótese de fácil comprovação. O viés principal é o socorro imediato (no caso neopentecostal, sobretudo) frente às precariedades do cotidiano. O exemplo mais flagrante é a saúde. Enquanto o povo busca os “milagres de Deus”, a história vai sendo construída contra este mesmo povo por aqueles que se apropriaram da historicidade e se consideram seus gestores exclusivos.

  1. (Perspectiva dos campos de atividade) Em segundo lugar, quero mencionar o que o palestrante denomina, já no início da exposição, de “fronteiras dissolventes” ou “fronteiras porosas”. De fato, essa porosidade ou diluição de fronteiras sempre foi mais forte no meio popular. Aqui eu gostaria de olhar esta mesma realidade religiosa comentada pelo palestrante desde uma outra perspectiva sociológica muito conhecida, que é a dos campos de atividade. A construção, que Pierre Bourdieu faz do campo religioso, é contribuição  importante e constitui-se em instrumento apto para a compreensão dos mecanismos internos às atividades religiosas. Segundo ele, a constituição de um campo religioso leva normalmente a uma “monopolização da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas religiosos”. Aqueles que dominam um campo ou subcampo têm os meios de o fazer funcionar em seu próprio proveito, isto é, em proveito de seus interesses. A indefinição de fronteiras coloca em risco esse domínio, mas é também uma forma de resistência da parte dos dominados. Quem exerce o domínio sabe em geral lidar com isso a seu favor, isto é, para garantir a força das fronteiras. Quem tem interesse pela definição de fronteiras são os que dominam no campo ou subcampo, ou seja, os seus “donos”. Eu me pergunto se os “donos” do subcampo pentecostal (ou melhor: neopentecostal) se esta não é a principal função da ritualização extremada do exorcismo, transformando a porosidade de fronteira em violento processo de culpabilização e de dependência psicológica. Eu até diria que, em outros tempos, e por muito tempo, foi nisto que residiu em parte o sucesso de público da Igreja Católica Apostólica Romana.

Talvez caiba acrescentar aqui uma observação a mais: O campo religioso no Brasil foi sempre, caracteristicamente e, talvez se possa dizer, demasiadamente, de domínio absoluto católico. A atual fragmentação do campo religioso, o surgimento de diferentes subcampos, alguns com extremo vigor, tem também, sem dúvida, um efeito salutar na Igreja Católica e outras Igrejas Cristãs Históricas, no sentido de gerar uma desacomodação em muitos aspectos e uma certa redinamização.

  1. (Perspectiva do sujeito) Uma outra questão a ser posta é: Não estaria o neopentecostalismo, através de seu aguerrido combate, mediante a ritualização do exorcismo etc, fortalecendo a umbanda, pelo efeito inverso? O “tornar-se igual ao inimigo para combatê-lo” pode certamente levar ao efeito imediato esperado, mas também pode levar, a longo prazo, a uma espécie de desmoralização daquele que ataca e a um fortalecimento e ressignificação das representações e práticas daqueles que são combatidos. Para isto, trago presente a profunda capacidade de resistência silenciosa acumulada na alma brasileira ao longo de séculos. Aqui eu gostaria de entrar com um terceiro olhar sociológico, a partir da perspectiva do sujeito. Segundo Guy Bajoit “os indivíduos selecionam (adotam ou rejeitam) os sentidos culturais (as idéias, as representações, as normas, as opiniões, os valores, os princípios) em função das necessidades da gestão de si mesmos.”  Olhando sob este ponto de vista, alcançamos mais facilmente o que está mais profundamente entranhado nos sujeitos que constituem a sociedade: a sua cultura. Falamos, portanto, da “gestão de si mesmo” de um povo marcado indelevelmente por aquilo que é o povo brasileiro em sua grande maioria: carne da carne de pretos e índios supliciados e mão possessa, que os supliciou, como diz o texto que o conferencista recolheu de Darci Ribeiro. A sociedade brasileira é constituída da gente sofrida que somos e da gente insensível e brutal, que também somos, como diz o mesmo autor. Sofridos e insensíveis, eu diria que sim, mas profundamente orgulhosos de nossa alegre inventividade e profundamente ciosos de nossos santos e nossos deuses.  Eu me arriscaria a dizer: A alma brasileira não é uma alma sujeitável a racionalidades instituídas, nem mesmo se são racionalidades religiosas, quando impostas de cima para baixo… Uma alma, eu diria, curtida num longo processo contraditório de dominação, cujo sujeito tem uma profunda sede de afirmação.

Neste contexto, “gestão de si mesmo” não lembra tanto uma busca libertária pós-moderna, mas tem muito mais a ver com a revanche de uma alma secularmente machucada e tripudiada por todo tipo de poder, entre eles o religioso. Pergunto até quando vai durar a intermediação neopentecostal desta revanche. Talvez o Prof. Bobsin tenha razão ao arriscar o palpite de que a Umbanda tenderá a sair por cima…

A alma brasileira é religiosa e muito religiosa. O sujeito brasileiro é portador de uma religiosidade acumulada ao longo de séculos. É um sujeito mais pronto para sintonizar com propostas revestidas de apelos sagrados, do que com propostas revestidas da racionalidade moderna secularizada.

  • Comentário dois:
  • (Alguns dados de pesquisa em realização) Além deste arrolamento de hipóteses e provocações bastante soltas, quero fazer ainda um pequeno comentário considerando dados recentes de uma pesquisa, ou seja, um cadastro de locais de culto religioso e templos, que estamos realizando na Região Metropolitana de Porto Alegre nos últimos anos. Creio que alguns dados colhidos nesta pesquisa podem ajudar-nos neste momento de reflexão…
  • (Novos locais de culto e templos nas últimas duas décadas) Se olharmos especificamente para dois municípios da nossa vizinhança, cujas totalizações já existem em nosso banco de dados (Cachoeirinha e Esteio), notaremos um fortíssimo incremento no número de locais de culto religioso e templos, tanto no meio pentecostal e neopentecostal quanto no meio das religiões afro e de umbanda, durante as últimas duas décadas, sobretudo durante a última década, conforme o quadro 1 abaixo:

 

Quadro 1

RELIGIÕES E INCREMENTO DE LOCAIS DE CULTO E TEMPLOS NO PERÍODO DE 1980-1999, EM CACHOEIRINHA E ESTEIO (RMPA, RS)

(Observação: o total de locais de culto e templos, em dezembro de 1999, em Cachoeirinha era de 165 e em Esteio era de 118)

RELIGIÕESCACHOEIRINHAESTEIOTOTAL
1980-891990-991980-891990-99
Pentecostais e Neopentecostal13451032100
Evangélicas Históricas352010
Católica729422
Afro e Umbanda73271561
Kardecista13105
Diversas11013
TOTAL32882952201
Fonte: CEDOPE & GDIREC, Unisinos, dezembro de 1999

 Vemos por este quadro que em Cachoeirinha, do total de 32 novos locais inaugurados na década de oitenta, 7 são de religiões afro ou umbanda e 13 de pentecostais ou neopentecostais (note-se que neste período também são inaugurados no mesmo município 7 templos católicos). No mesmo município, na década de noventa, do total de 88 novos locais, 32 são de religiões afro ou umbanda e 45 de pentecostais ou neopentecostais (neste período são inaugurados 2 templos católicos novos).

Se olharmos para o município de Esteio, temos que do total  de 29 novos locais de culto religioso e templos inaugurados na década de oitenta, 7 são de religiões afro ou umbanda, 10 são pentecostais ou neopentecostais (e 9 são católicos). No mesmo município de Esteio, na década de noventa, foram inaugurados 52 locais de culto religioso e templos, dos quais 15 são de religiões afro ou umbanda e  32 de pentecostais ou neopentecostais (e 4  são católicos).

  • (Número de freqüentadores por semana…) Um dado muito interessante que temos a partir do cadastro é o que diz respeito ao número de freqüentadores por semana em cada local de culto religioso ou templo (talvez se trate dos fiéis mais identificados com a rotina de sua instituição religiosa e que se consideram mais profundamente vinculados e membros efetivos). Vejamos no quadro 2 abaixo:

Quadro 2

RELIGIÕES E FREQÜÊNCIA SEMANAL EM LOCAIS DE CULTO E TEMPLOS, MUNICÍPIOS DE CACHOEIRINHA E ESTEIO (RMPA, RS)

RELIGIÕESCACHOEIRINHAESTEIO
Pentecostais e Neopentecostais48,4%44,1%
Evangélicas Históricas10,2%6,9%
Católica31,9%31,4%
Afro e Umbanda4,2%10,7%
Espiritismo Kardecista3,4%4,3%
Diversas1,9%2,6%
FREQ. SEMANAL (TOTAL)36.162                  (30,1%)29.764               (37,2%)
POPUL.MUNICIP. (TOTAL)(120.000)(80.000)
Fonte: CEDOPE & GDIREC, UNISINOS, dezembro de 1999

O município de Cachoeirinha conta hoje com  uma população de 120.000 habitantes. Deste total, o número dos que freqüentam algum local de culto ou templo por semana é de 36.162 (ou seja: 30,1% da população).  Se tomarmos estes 36.162 freqüentadores semanais, 48,4% deles são pentecostais ou neopentecostais.  

Quanto ao município de Esteio, a sua população hoje é de 80.000 habitantes. Deste total, 29.764 freqüentam algum local de culto religioso ou templo por semana (ou seja: 37,2% da população).  Se tomarmos este total de freqüentadores semanais, 44,1% são pentecostais ou neopentecostais.

  • (Algumas questões…) Infelizmente não temos ainda o dado para uma comparação histórica. Certamente dentro de dez anos poderemos fazer isto e poderemos, inclusive, verificar algumas das hipóteses que aqui estão sendo discutidas. Continuarão os pentecostais e neopentecostais crescendo no mesmo ritmo? Haverá uma retomada católica e das evangélicas históricas pelo viés dos movimentos carismáticos em contextos sócio-econômicos de periferia? Haverá um crescimento mais acelerado em nível das religiões de raízes africanas e de umbanda? Ou estes subcampos dentro do campo religioso tenderão sempre a diluir as suas fronteiras, levando a afirmar uma religiosidade administrada em nível pessoal sem interferências institucionais muito claras, sobretudo, marcas institucionais forjadas na dominação…

MEMÓRIA E RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA: ALGUMAS INTERROGAÇÕES SOCIOLÓGICAS

Texto inédito redigido em 11 de novembro de 2012

Quando falamos em memória é importante que falemos em primeiro lugar de suas condições de possibilidade. Sabemos que não existe história sem memória e podemos, assim, afirmar que a própria história deve ocupar-se das condições de possibilidade da memória. Ao me deparar com a questão da “memória através das religiões de matriz africana”, formulei para mim a pergunta sobre suas condições de possibilidade. Dei-me conta da necessidade de retomar o próprio processo histórico e identificar neste processo mecanismos e estratégias, ideologias e políticas que geraram condições perversas para que as memórias dos afrodescendentes subsistissem e se transmitissem com facilidade. Senti-me impelido a pensar em formular “algumas interrogações sociológicas” neste sentido.

Michael Pollak em artigo escrito em 1992, com o título “Memória e Identidade Social”, ao mesmo tempo em que afirma que as oposições binárias entre memórias dominantes (oficiais) e memórias dominadas (não oficiais) devem ser consideradas algo superado, afirma, também, que devemos estar sempre atentos ao processo de “negociação”. (Pollak, 1992, p.5). O mesmo autor em artigo anterior já deixava clara a sua posição ao afirmar que “um passado que permanece mudo é muitas vezes menos o produto do esquecimento do que de um trabalho de gestão da memória, segundo as possibilidades da comunicação”. (Pollak, 1989, p.14)

As historiografias oficiais são sempre construídas com certa linearidade e ordenamento. (Benjamin, 1992, p.28). Esta linearidade e este ordenamento estão, também, bem expressos no que Pollak (1989, p.9-10) denomina de “enquadramentos da memória”.

Aos enquadramentos da memória, subjazem, no entanto, também importantes estratégias e políticas condutoras da história e definidoras da cultura e estrutura sociais. É este quadro que fez com que, ao ser interrogado sobre a questão “memória e religiões de matriz africana”, aflorassem à minha mente diversas questões, aqui denominadas de “algumas interrogações sociológicas”. Ao entrarmos no mundo da MEMÓRIA através das religiões de matriz africana, é fundamental que explicitemos os principais aspectos envolvidos no monstruoso volume de abafamentos e dominações que pesa sobre esta realidade.

Acostumei-me a agrupar essas interrogações em três níveis, reproduzindo aqui um exercício de reflexão que realizei em coautoria com Adevanir Aparecida Pinheiro, coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – NEABI da nossa Universidade[1]:

O primeiro nível é o de algumas estratégias de esquecimento, que devem ser consideradas vigorosas e bem sucedidas. Trata-se de mecanismos de esquecimento aos quais os negros trazidos para o Brasil foram submetidos. Sem entrar em detalhamentos, uma vez que se trata de matéria de amplo conhecimento comum, vou referir os três mecanismos, por assim dizer, paradigmáticos: 1) O significado da “árvore do esquecimento”, o símbolo central que aponta para a intencionalidade dominante do esquecimento.[2] 2) A imposição de uma nova religião, o catolicismo como a religião oficial reinante. 3) A desestruturação violenta dos laços familiares, misturando clãs e etnias, procurando provocar um total desenraizamento de vínculos culturais e políticos de origem.

O segundo nível está diretamente relacionado com o uso de teorias racistas, com a precípua função de legitimar os empreendimentos de escravização dos negros africanos. Isto deve ser visto como agravante que justificou e acompanhou as estratégias aqui  mencionadas e outras. Para além da busca de legitimar a escravização, essas teorias foram mais longe, patrocinando intelectualmente políticas de branqueamento nacional. Os escritos de José Arthur Conde de Gobineau (década de 60 e 70 do século XIX) foram particularmente marcantes neste sentido. Segundo o mesmo, as raças inferiores (africanas) mesclando-se com outras raças superiores (européias) estariam levando o Brasil a uma degenerescência, sem futuro. Parafraseando o seu pensamento, pode-se dizer que, segundo ele, a vinda de maior número de brancos para o Brasil era uma urgente necessidade e fazia-se também urgente preservar os brancos da contaminação do sangue negro…[3]

O terceiro nível dá conta das políticas de branqueamento da sociedade brasileira, como políticas afirmativas em favor dos imigrantes brancos eurodescendentes, em flagrante descaso com relação aos negros. Essas políticas marcaram o período de processo de abolição da escravatura e o período pós-abolição, evidenciando um processo de “purificação racial” e de “desafricanização” do Brasil.

É com estes três níveis de referência e de agravamento do volume de abafamentos e dominações que pesa sobre a realidade dos afrodescendentes e da memória através das religiões de matriz africana, que eu lanço as minhas “interrogações sociológicas”: 1) Quais as condições de possibilidade de desvendar as densas camadas de abafamento e esquecimento provocado e estrategicamente programado? Qual o papel e incidência das diferentes formas de resistência e sobrevivência conhecidas, apesar – e à revelia – de toda a estratégia do esquecimento e abafamento? Qual o papel da academia com vistas a ajudar a escrever uma história através da qual se desvelem as dívidas culturais e sociais e se faça justiça aos prejudicados e, de certa forma, moralmente destruídos?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. 1992. O narrador. Reflexões sobre a obra de Nikolai Lesskov. In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. [Trad. Maria Amélia Cruz] Lisboa: Relógio D’Água, 235 p.

PINHEIRO, Adevanir Aparecida; FOLLMANN, José Ivo. 2012.Trabalho de Extensão Universitária com Afrodescendentes: refazendo laços e desatando nós. Cadernos de Extensão. Ed.Unisinos, p. …

POLLAK, Michael, 1989. Memória, Esquecimento, Silêncio.Rev. Estudos Históricos, 2 (3): 3-15

POLLAK, Michael,1992. Memória e Identidade Social. Rev. Estudos Históricos, 5 (10): 200-212


[1] Ver artigo publicado recentemente em CADERNOS DE EXTENSÃO, Unisinos, 2012. (Pinheiro e Follmann, 2012, p….a …)

[2] Durante grande parte do período de tráfico dos africanos escravos para o continente americano, e especificamente para o Brasil, eles eram submetidos a um ritual antes de serem embarcados. Era um ritual para esquecerem o seu passado… Eram obrigados a dar voltas em redor de uma árvore, a chamada “árvore do esquecimento”. Ao serem capturados e importados do continente africano para outros países e para o Brasil, eles eram obrigados a fazerem o ritual de esquecimento, ou seja, os homens tinham que dar nove voltas em torno da árvore do esquecimento e as mulheres davam sete voltas. Esta “árvore do esquecimento” continua, depois, se repetindo sob as mais diferentes formas ao longo do processo de escravidão e pós-escravidão…

[3] Ver José Arthur Conde de Gobineau. L’Emigration au Brésil, 1874, in Georges Raeders, 1988. 

RELIGION, POLITIQUE ET IDENTITÉ

Tese de Doutorado em Sociologia realizada e aprovada na Université Catholique de Louvain la Neuve, Bélgica, em 1993. Disponibilizada regularmente no acervo de teses, Biblioteca da Universidade. Diversos artigos foram publicados com recortes desta tese, mantida no original francês. Agora, também, disponível para acesso fácil e gratuito como e-book e PDF pela Editora Casa Leiria, 2024.

EDUCAÇÃO CATÓLICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: UMA HISTÓRIA DE INTERROGAÇÕES PARA AS PRÁTICAS EM SALA DE AULA

(Artigo publicado em forma de capitulo no livro EDUCACIÓN CATÓLICA EN LATINOAMÉRICA: UN PROYECTO EN MARCHA, sob a coordenação de Patricia Imbarrack e Cristobal Madero sj, Universidad Católica de Chile, novembro de 2019, pp. 225-242 )

José Ivo Follmann sj (2019)

INTRODUÇÃO

Tomei como ponto de partida, na redação deste capítulo, uma vivência pessoal em sala de aula em uma instituição católica de elite, em nível de educação básica, no ano de 1970, quando por causa do uso de determinados materiais didáticos fui motivo de convocação de “reunião de pais e mestres”, gerando um diálogo ideológico de certa forma constrangedor.

Ancorada, em seu início, na narrativa pontual biográfica, a redação do capítulo transita por diversos caminhos e atalhos, atenta aos impactos sociais, culturais e educacionais, em contextos em permanente mudança e de fortes debates ideológicos, a partir, sobretudo, da década de 1960, cujos ecos nos acompanham até hoje. São pontuadas também três outras atenções especiais: A organização nacional da educação católica em um contexto de forte competividade de mercado; A educação católica em um contexto de diversificação religiosa acelerada conjugada com a afirmação sempre maior da laicidade na sociedade; E, por fim, um recente debate sobre as formas mais apropriadas de práticas de inclusão socioeducativa de entidades educacionais católicas e similares. O capítulo é concluído por “notas não conclusivas” sinalizando algumas provocações para avançar no processo de reflexão sobre as práticas de sala de aula na educação católica.

1. A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX: UM CONTEXTO DE GRANDES MUDANÇAS

Vou iniciar com o relato de um evento pessoal. Em 1970 eu lecionava em uma escola católica jesuíta, conhecida como sendo de elite, no sul do Brasil. A disciplina era “Cultura religiosa”. Fui orientado a utilizar, em sala de aula, um material didático muito em voga e bem adequado ao novo momento que a igreja católica vivia a partir do Concílio Vaticano II e do engajamento social cristão no contexto desafiador que o Brasil e toda América Latina estavam vivendo. As aulas tinham grande sucesso, contando com boa adesão e participação dos estudantes de sétima série do ensino fundamental. No entanto, um dia fui surpreendido com a convocação da direção do colégio para uma reunião com um grupo de pais. O assunto era: a orientação ideológica dos materiais usados em sala de aula.[1] Naquele material eram explicitados, de forma bastante equilibrada e dentro do alcance da faixa etária dos estudantes, aspectos da realidade social e cultural, que na opinião dos pais não estariam sendo adequados. Eu era um jovem principiante, no meio caminho de minha formação jesuítica, na época estudante de Ciências Sociais, na Universidade Federal local. Me vi no constrangimento de ter que explicar para alguns daqueles pais que a logomarca da Sono-Viso do Brasil,[2] que estilizava um S e um V não tinha nada a ver com Foice e Martelo e que a estrela de Belém (guia dos Reis Magos) que aparecia em uma imagem não tinha nada a ver com eventuais estrelas presentes em bandeiras de países comunistas. Me senti tremendamente provocado por aqueles constrangimentos totalmente inesperados. Foi, com certeza, um grande aprendizado.

Sem ficar preso ao anedótico desta narrativa, creio que ela é tremendamente simbólica, refletindo todo um contexto que se vivia, sobretudo, a partir da segunda metade do século XX, mais precisamente as reviravoltas políticas, culturais e sociais, a partir da década de 1960. Foi um contexto que deixou marcas profundas tanto para a sociedade como para a igreja católica e diversas outras igrejas cristãs e, consequentemente, para a educação católica e cristã.  Segundo Danilo R. Streck e Aldino L. Segala (2007: 165), “Uma nova forma de ser igreja implicava na crença de que uma outra sociedade era possível; a sociedade onde todas as pessoas pudessem ter pão suficiente e a sede de justiça pudesse estar saciada”.[3]

No mesmo artigo é feita menção especial ao papel importante exercido pelo Concílio Vaticano II e sua repercussão intensa na igreja católica na América Latina. Este último aspecto aparece como o ponto fulcral na grande virada acontecida, nesse contexto, em termos teológicos e pedagógicos, que é o foco do texto dos autores.

Paulo Freire proclamava que a educação promovida pelas igrejas devia ser concebida e realizada com raízes na história e cultura do povo. Segundo ele, “o papel educacional das igrejas não pode ser entendido como alheio às condições da realidade concreta na qual elas estão presentes”. (Freire, 1977, p.105, apud Streck e Segala, 2007, p.165)

Alguns documentos do episcopado, na época, foram de grande importância, destacando-se, sobretudo, os documentos da Conferência Episcopal Latinoamericana – CELAM, do encontro de Medellin, Colômbia, em 1968 e de Puebla, México, em 1979.[4]

Pontos de destaque, no texto de Streck e Segala (2007), são, também, as comunidades eclesiais de base – CEBs e a educação popular. Foi um período extremamente fértil, particularmente em termos de atividades relacionadas com a educação popular, fora do sistema formal de ensino, em grande parte lideradas pela igreja. A par disto, grandes debates eram vividos dentro do sistema formal, haja visto o grande evento em Buga, Colombia, 1967 um ano antes do conhecido conteúdo do encontro dos bispos em Medellín, 1968. A ideia de libertação e educação libertadora, proclamada e aprofundada em Buga, Colômbia, foi assumida no documento de Medellín, Colômbia. As principais características dessa educação foram retomadas, posteriormente, no documento de Puebla (1979), que as sintetiza em três pontos: – criar no ser humano espaço para a boa nova cristã; – impulsionar o exercício da função crítica inerente à educação verdadeira; – e promover o educando como sujeito do desenvolvimento próprio e dos outros. Em suma: – educação para humanizar; – educação para a justiça; – educação para o serviço.

A educação católica no Brasil tinha uma grande presença no Ensino Médio. Oscar Beozzo (1993: 69) relata que, no final da década de 1950, no Brasil, 80% dos estudantes deste nível eram de instituições católicas de educação. O acesso era mais favorecido às classes média e alta, devido às anuidades elevadas. Por um lado, grandes tensões ideológicas internas eram vividas gerando conflitos no âmbito da gestão e das práticas em sala de aula. Por outro lado, também estavam sendo travados debates sobre a democratização do ensino, apontando inclusive para a importância de se destinar recursos públicos para as iniciativas educacionais privadas.

O direcionamento, no entanto, foi bem outro. Houve um grande incremento na rede pública de educação e as escolas privadas foram gradualmente excluídas do acesso a subsídios públicos. Impossibilitadas de acolher estudantes da população mais pobre, a crise ideológica que já estava instalada, tendeu a crescer nas instituições católicas. A nova forma de ser escola, que vinha na carona da nova forma de ser igreja, parecia ter-se tornado um discurso longínquo, em um quadro onde a sobrevivência das escolas e de suas práticas em sala de aula necessitavam estar ajustadas ao horizonte de consumo das elites dominantes.

A crise ideológica nas escolas foi acompanhada por duas outras crises. Em primeiro lugar estava a própria crise na vida religiosa consagrada, com uma diminuição significativa do número de vocações para este estado de vida. Em segundo lugar, pesou também forte a política estatal de investir maiores recursos, por um lado, nas escolas públicas, e de facultar, por outro lado, a possibilidade do surgimento de um mercado voraz de empreendimentos privados de ensino, pautados no negócio e no lucro.

Estes últimos dois aspectos trouxeram em seu bojo um agravamento sem precedentes para as condições de sustentabilidade econômico-financeira das escolas católicas e outras escolas confessionais e comunitárias. Paradoxalmente estas instituições são as que mais estão focadas no serviço público à sociedade. Como agravante do paradoxo, talvez se possa dizer que o poder de intimidação das famílias pagantes, neste contexto, passa a ser ainda mais rigoroso com relação às práticas em sala de aula.

2. EDUCAÇÃO CATÓLICA NO BRASIL: ORGANIZAÇÃO NACIONAL E COMPETIVIDADE.

O século XXI iniciou com um cenário totalmente desfavorável à sustentabilidade econômico-financeira de instituições católicas de educação e outras iniciativas educativas similares. Segundo Manoel Alves (2006), este cenário tornou visível, também, as fragilidades de gestão interna da maioria dessas instituições. Para o autor, isto não era algo notável em tempos favoráveis e sem concorrências, mas mudanças radicais aconteceram e o contexto se tornou desfavorável, sobretudo, ao longo das últimas duas décadas do século XX.

No entender do mesmo autor, não faz mais sentido buscar explicações externas ou esperar a melhoria das condições externas. Em termos de ensino católico é necessário investir forte na liderança interna, pois “só se tem possibilidade de prosperar se o negócio educacional pelo qual ele responde, for eficazmente gerido”. (Alves, 2006: 130). Parece que as instituições de educação católica foram muito lentas em se adequar ao novo momento vivido pela humanidade que é a “sociedade do conhecimento”.

Para fazer face a estes grandes desafios a educação católica no Brasil deu passos importantes em termos de organização nacional. Finalmente de 2007 instaurou-se definitivamente o processo de instituição oficial da Associação Nacional da Educação Católica – ANEC, superando a situação de evidente desarticulação anterior.[5] Esta entidade de representação nacional única da educação católica no Brasil, caracteriza-se dentro de três eixos principais: – representação política e defesa dos interesses das associadas; – assessoria às associadas; – apoio na gestão das instituições.

Como representante única e legítima da educação católica no Brasil, a ANEC é referência no importante papel de prestação de serviços a centenas de associadas e milhares de unidades de ensino, assim como promotora de eventos educacionais para o aperfeiçoamento da educação e da gestão. Ao todo, são praticamente 400 Mantenedoras católicas associadas, cerca de 2 mil escolas, 90 instituições de Ensino Superior e 100 obras sociais. A ANEC está presente em todos os estados da Federação, representa 2,2 milhões de alunos e 100 mil professores e funcionários.[6]

A crise, que constituía a reviravolta teológica e pedagógica vivida pela igreja católica, somada à drástica redução do quadro de religiosos/as consagrados/as e à mudança radical no contexto de espaços para a educação católica e de outras confissões, não é tudo o que deve ser observado de fundamental. Sinalizou-se acima o desafio da articulação de forças em nível nacional para criação de amparo e sinergia comuns e, dentro da frenética corrida da inovação tecnológica e pedagógica nas salas de aula e nos espaços educativos como um todo, não sucumbir à perda dos valores centrais que movem a educação católica.

No entanto, é também necessário que nosso olhar se volva para as transformações radicais vividas dentro da própria esfera religiosa brasileira, a sua acelerada diversificação e a drástica diminuição relativa da presença católica. O Estado Brasileiro veio dando passos de amadurecimento em sua laicidade e a sua relação se dá com a esfera religiosa como um todo, mais do que com os interesses desta ou daquela religião. Neste sentido busco, na sequência, trazer alguns elementos para ajudar a avançar nesta discussão.

3. A DIVERSIFICAÇÃO DA ESFERA RELIGIOSA BRASILEIRA E A LAICIDADE DO ESTADO.

A esfera religiosa brasileira sofreu, ao longo das últimas décadas, um processo muito acelerado de inflexão nas forças: de um Brasil predominantemente católico está-se caminhando para um Brasil onde a força do segmento evangélico pentecostal e neopentecostal e a diversificação religiosa em geral, tendem a conquistar espaços sempre maiores.

Em termos de diversificação na esfera religiosa os dados oficiais consolidados em nível nacional são fornecidos pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, de 1940 a 2010. Neste período o quadro estatístico dá conta da queda numérica sensível daqueles que se declaram católicos e do aumento acelerado, daqueles que se declaram evangélicos, bem como aumento grande daqueles que se declaram “sem religião”, incluindo, neste último grupo, os descrentes ou ateus. Constata-se também a multiplicação do número de religiões que se somam no quadro das “outras religiões”, como podemos constatar no quadro a seguir:

Composição da população brasileira em percentuais segundo identificação religiosa nos dados dos censos demográficos oficiais de 1940 e 2010

Identificação religiosa1940 (%)2010 (%)
Católicos95,264,6
Evangélicos2,622,2
“Sem religião”0,28,0
Outras religiões2,05,2
Total100,0100,0
Fonte: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Censos de 1940 e 2010.

Tudo indica que em 2020 a população católica no Brasil estará abaixo de 50%.[7] No entanto, a explosão da diversidade religiosa, que assistimos no Brasil contemporâneo, por si só, não gera espírito pluralista ou de convívio democrático. Ao contrário, muitas vezes, também, são geradas radicalizações fundamentalistas. Tem-se, assim, um movimento duplo contraditório gerado pela diversificação: crescimento do espírito de convívio democrático pluralista, de um lado, e aumento de radicalizações fundamentalistas, de outro. Da mesma forma é perceptível um duplo movimento em nível de Estado: ao mesmo tempo em que são constatáveis movimentos de amadurecimento da laicidade no sentido de garantir o direito à diversidade e pluralidade de expressão religiosa de todos, existem, também, movimentos de busca de vantagens eleitorais contando com o apoio desta ou daquela confissão religiosa.

O conhecimento exerce papel importante no processo de identidade religiosa. O que falta muito na sociedade brasileira é conhecimento com relação ao mundo das religiões e das religiosidades. Hoje este “mundo” se diversificou muito no Brasil devido, também, a uma presença mais visível, mesmo que estatisticamente muito reduzidas, de vertentes islâmicas, judaicas, budistas e outras tradições religiosas históricas fortes e milenarmente consolidadas. Um componente fundamental nos processos de identidade religiosa é a relação sadia com o outro, com o diferente. Talvez se deva dizer que o diálogo inter-religioso é a tábua de salvação de uma educação religiosa geradora da vida social sadia.

É de consenso que cabe ao Estado laico criar as condições para que se eduquem as consciências religiosas em sua diversidade e seu reconhecimento mútuo. Acredito, também, como foi afirmado acima, que uma laicidade maduramente vivida e administrada pelo Estado é condição para que a esfera religiosa possa exercer o seu papel na construção da sociedade democrática.

Mencionei acima a instalação do Estado laico, dentro do mesmo processo proclamação da República. Já se passaram 125 anos desde a primeira Constituição Republicana, que foi em 1891, e a laicidade do Estado ainda está longe de uma consolidação amadurecida. A história do século XX e também da primeira década do século XXI está repleta de exemplos que trazem à luz do dia o “fantasma” do catolicismo como religião oficial. Isto foi, sobretudo, acentuado durante todo o longo período do governo Vargas, mas que de certa forma retornou durante o governo Lula.[8] No Brasil, este tempo histórico da laicidade do Estado presenciou dois fenômenos complementares:  A forte carga de preconceitos e perseguições (repressões) às religiões de matriz africana e outras, que, comumente, foram desclassificadas enquanto religião, não aceitáveis pela racionalidade cristã acidental (Monteiro, 2009); O crescente aumento das igrejas evangélicas pentecostais e, na sequência, as neopentecostais, ao longo da segunda metade do século XX, acompanhadas de um forte trabalho de lobby político e de oposição à influência católica.

A contaminação religiosa do Estado laico no Brasil não é muito diferente de outros países, porque, de fato, não se conhecem exemplos concretos de total isenção ou neutralidade do Estado frente às diferentes religiões. (Mariano, 2005). O que devemos ter muito claro é que tudo isto repercute, sobretudo, no sentido da educação católica, passando pelo desafio do “fazer educativo” como serviço público, da necessária participação na cultura do diálogo com as outras religiões e o esforço renovado pela construção de espaços próprios de cultivo dos processos de identidade católica ao mesmo tempo em que se deve contribuir para preservar o exercício da função laica do Estado.

4.  DIÁLOGOS RECENTES SOBRE PRÁTICAS DE INCLUSÃO SOCIO EDUCATIVA

            Historicamente a legislação brasileira facultava às instituições contempladas pela lei da filantropia, o destino, para práticas sociais, de 20% do volume total da receita correspondente a isenção de tributações oficiais. Muitas instituições praticavam bolsas de estudo destinadas à população economicamente vulnerável. Esta legislação sofreu permanentes inovações. A partir de 2012, no entanto, a legislação enrijeceu, obrigando as instituições educativas a realizarem uma bolsa de estudos para cada cinco alunos pagantes.[9] Afirmou-se claramente o controle do Ministério da Educação com relação a estas práticas.

            A novidade, apesar de conter um fator de limitação da autonomia das instituições, oportunizou que fosse gerado um ambiente de soluções suficientemente seguras, tanto para a sustentabilidade econômico-financeira, quanto para a ampliação da efetivação dos valores da educação católica e de outras entidades símiles. Como venho lidando com a discussão das entidades filantrópicas,[10] o novo ambiente criado muito me mobilizou e iniciei a esboçar uma pesquisa de opinião junto a responsáveis administrativos, pedagógicos e de assistência social em instituições católicas de educação. A questão da pesquisa: qual a eficácia educacional segundo os valores das instituições católicas de educação, da realização das bolsas exigidas por lei dentro das próprias instituições ou em instituições criadas, à parte, em contextos sociais mais vulneráveis.[11]

            É sabido que, com os novos movimentos da legislação, algumas instituições passaram a praticar modalidades diversas de realização das bolsas para poderem atender ao mesmo tempo às exigências legais sem perder o foco nos seus valores institucionais e, também, garantir a viabilidade econômico-financeira.

            A partir de uma simples pergunta sobre vantagens e limitações das diferentes modalidades, foram colhidas algumas contribuições importantes, que ajudam a avançar na reflexão:

            Existe uma forte convergência na afirmação de que “não é o administrativo que deve fundamentar as opções pedagógicas”, pois “números podem camuflar rostos”. Aliás há quem diz que a rigor “não há vantagens econômico-financeiras em nenhuma das duas opções”. Deve ser “opção pensada como política pedagógica”. Existe, no entanto, a percepção de que na prática, apesar de as instituições alegarem a fidelidade à missão como motivação central, muitas vezes pesam implicitamente outros argumentos, inclusive ligados a não causar prejuízo ao conforto das famílias pagantes, preservando suas presumidas expectativas.

            O modelo de praticar bolsas internas à própria instituição que atende público pagante, parece não ser rejeitado sempre que viável, até afirmado que seria o modelo “mais próximo do melhor”. Pois constitui-se, segundo opinião de alguns, em um dos elementos que contribui para que a qualidade da educação também seja equidade na educação. Isto estaria “agregando valor social e intelectual”, pois “aprendemos mais com o outro, estando juntos, do que oportunizando que apenas um contexto se desenvolva isoladamente”. Há quem lembra que devemos evitar estar contribuindo para o “confinamento das periferias” e promover a prática da troca, pois é muito importante para os que vem da periferia “se perceberem enquanto seres inteligentes e iguais a todos os demais”. Ademais, “a convivência do público pagante com o público bolsista gera um mútuo crescimento e mostra concretamente para a comunidade o trabalho social que a escola desenvolve”. Há quem contrapõe a “inclusão autêntica” à prática da “‘inclusão’ perversa”.

            Privar as instituições de público pagante da presença de bolsistas provindos de meios sociais mais vulneráveis, estaria ajudando a reforçar a já “carência e déficit de diversidade” que marca estas escolas em geral. Estas “correm o risco de serem instituições de alunos ‘perfeitos’, ou seja, brancos, (…) de uma mesma classe econômica”, quando os alunos ‘problema’ são “eliminados já no processo de seleção”. A “riqueza do convívio na diversidade” é “um importante elemento para a educação integral”.

A prática de destinar os recursos para instituições externas,[12] e não aplicar dentro da própria instituição, “a longo prazo, favorece a dimensão administrativa, mas pedagogicamente segrega a sociedade afirmando o que o sistema prega”. A reprodução de escolas especiais para a elite e escolas de formadoras de servidores dos que dominam. “Existem vantagens de grande impacto social, mas também aparecem perigos de segregar”. Há opiniões que se manifestam radicalmente contrárias a manter unidades totalmente gratuitas, “pois de fato a qualidade não é a mesma”. No entanto também apresentam uma importante convergência de opiniões favoráveis, sobretudo ressaltando o seu impacto social nas comunidades locais. “Possibilitar oportunidades a populações necessitadas”, “dar oportunidade a populações de áreas de carência sócio econômica”, “fortalecer a comunidade local” são expressões associadas à importância de uma “política pedagógica intensa”, (…) “inserida na comunidade com proposta sócio política e educativa para além dos seus muros, trabalhando as famílias mais de perto.

Alguns mencionam também o argumento financeiro, no sentido da oportunidade de fazer mais com menos, pois os custos para manter bolsista em instituições de maior porte são muito maiores do que os custos em uma escola de menor porte e torna-se possível beneficiar um público maior. Neste argumento subjaz também a ideia de que, para garantir a manutenção dos índices de avaliação da instituição, seria necessário um investimento muito grande nos alunos bolsistas, de difícil praticabilidade econômico-financeira.

A convergência que predomina nos gestores ouvidos é de que as duas opções são importantes. Se reconhece que a opção por fazer as bolsas na própria instituição de público pagante é a opção mais complexa. Seria fundamental mantê-la, sempre que viável, não excluindo, no entanto, a opção por efetivar bolsas em instituições nos meios populares mais vulneráveis. “Ambas as proposições de oferta de bolsas de estudo são legítimas e agregam para a construção de um país com mais justiça social, garantindo o acesso a uma educação de qualidade, que forme integralmente o sujeito”.

O ideal seria que a própria instituição de público pagante pudesse ter uma interação com uma comunidade carente na circunvizinhança. O distanciamento geográfico facilmente estará associado ao enfraquecimento dos “laços sociais e agravando o processo de elitização da instituição” de público pagante.

Todas estas questões estão em pauta num rico debate, que demanda aprofundamento. Envolve, sobretudo, a questão das práticas pedagógicas em sala de aula para grupos diversificados socio culturalmente ou não. Trata-se de um desafio tremendo para instituições que tem no centro de sua missão, a fraternidade, ou seja, a inclusão e a equidade.

NOTAS NÃO CONCLUSIVAS

O grande desafio das instituições católicas de educação e todas as demais que estejam alinhadas a propósitos similares, está em encontrar e preparar professores/as que tenham condições efetivas de dar conta da criação de um ambiente em sala de aula, suficientemente adequado às inovações tecnológicas reinantes e às exigências desafiadoras de lidar com a diversidade ou, ao menos, de provocar a radical rejeição à cultura elitista e excludente.

No que diz respeito à confessionalidade das instituições é necessário sublinhar o desafio do diálogo inter-religioso. É pauta importante, cultivada em muitas instituições. Este diálogo é uma grande escola de aprendizagem. Ele só se faz possível se aqueles que dialogam entre si sabem cultivar sinceramente os seus próprios processos de identidade religiosa cultivando também reconhecimento dos processos de identidade religiosa dos outros. Este apelo e desafio apresenta uma face dupla: 1) proporcionar condições efetivas para um real ambiente de educação para as relações inter-religiosas harmônicas e de reconhecimento mútuo; 2) proporcionar condições efetivas para um real ambiente que possibilite o crescimento no processo de identidade católica para todos os que buscam esta orientação.

A confessionalidade também deve ser vista em relação ao Estado laico. Um bom caminho é levar a sério a própria expressão “educação católica”: Educação é o substantivoe católica é o adjetivo. A educação não é um meio de proselitismo da religião, mas sim é um serviço público de preparação de profissionais e cidadãos para a sociedade. A educação é católica não por usar o nome católico como marca impressa na tradição, mas enquanto este serviço público é iluminado por princípios, valores e práticas cristãos professados pela igreja católica.

Por fim, mas não em último lugar, está o grande desafio da compatibilidade entre sustentabilidade econômico financeira e um efetivo trabalho de inclusão socioeducativa. Isto passa pela busca de sólida organização de apoio nacional, que proporcione sinergia comum na boa gestão e inovações tecnológicas, como também passa pelo aprendizado mútuo em conjunto a partir das melhores práticas em sala de aula, no âmbito tecnológico e dos avanços pedagógicos no lidar com a diversidade e com os impactos de uma cultura hegemônica perversamente excludente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Beozzo, J. O. A Igreja no Brasil. In J. O. Beozzo (Ed.), A Igreja Latino-americana às vésperas do Concílio: História do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo, Brasil: Paulinas, 1993.

CELAM. Os cristãos e a Universidade (Seminário de Peritos e Encontro Episcopal, Buga, 1967). Perópolis, Brasil: Vozes, 1968.

CELAM. Documento de Aparecida: Texto Conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo, Brasil: Paulus, 2007.

Fischmann, R. Acordo contra a Cidadania. 2009. Disponível em: ˂http://silncioerudoasatiraemdenisdiderot.blogspot.com.br/2009/06/enviado-por-roseli-fischmann.html˃. Acesso em 03/03/16.

Follmann, J.I. Brazil, Catholic religion and education: challenges and prospects. International Studies in Catholic Education. Routledge – Taylor &Francis Group, 9:1, 77-88, 2017. http://dx.doi.org/10.1080/19422539.2017.1286912

Mafra, M. C. Na Posse da Palavra: religião, conversão e liberdade pessoal em dois contextos nacionais. Lisboa, Portugal: Imprensa de Ciências Sociais, 2002.

Mariano, R. Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. São Paulo, Brasil: Edições Loyola (2ª ed.), 2005.

Streck, D. R.; Segala, A. L. A theological-pedagogical turning point in Latin America: a new way of being school in Brazil, in G.R.Grace and J.O’Keefe (Eds.), International Handbook of Catholic Education – Challenges for School Systems in the 21st Century. Vol.2, Dordrecht, The Netherlands: Springer, 2007.


NOTAS:

[1] Tratava-se de uma produção inovadora em termos de catequese. As chamadas FICHAS CATEQUÉTICAS organizadas sob a coordenação do especialista na área Ir. Antonio Cechin (da Congregação dos Irmãos Maristas). O próprio Ir. Antonio em uma de suas últimas entrevistas em vida, se refere a este material: “As fichas catequéticas foram o fato divisor de águas de minha vida que pode ser separada em duas partes inteiramente diferentes uma da outra. Autores que fomos do sonho maior de minha irmã Matilde e meu, concretizado nessas fichas desencadeadoras de uma Catequese Nova e Libertadora, o continente latino-americano se transformou em nosso calvário mais dolorido”. O Ir. Antonio relata a surpresa e o espanto pessoal que teria tido em 1969, ao ver o Coronel Jarbas Passarinho, Ministro da Educação, brandindo na televisão estas fichas catequéticas e vociferando tratar-se de material altamente subversivo destinado à lavagem cerebral dos pré-adolescentes para o comunismo. “… referia-se aos colégios católicos como os principais disseminadores dessas ideias…”. http://www.ihu.unisinos.br/?id=516685 (acesso: 08/07/2018).

[2] Entidade contratada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, para a primeira impressão daquele material.

[3] O esquema de base de presente texto reproduz a mesma lógica de outra publicação recente, com o título “Brazil, Catholic religion and education: challenges and prospects” (Follmann, 2017), na qual tive a oportunidade de sintetizar na primeira parte a contribuição do Streck e Segala (2007), aqui referida. Retomo aqui algumas passagens do artigo de 2017, com a novidade, por um lado, da reflexão sobre os impactos na e da sala de aula e, por outro lado, do acréscimo do recente debate sobre as formas mais apropriadas de práticas de inclusão socioeducativa.

[4] O documento que, hoje, melhor expressa toda a trajetória e avanços vividos em termos de igreja na América Latina nas últimas décadas e sua situação atual é o documento de Aparecida do Norte, Brasil, em 2007. Ver neste sentido Jaci de Fátima Candiotto. A Educação Cristã na atual Cultura a partir do Documento de Aparecida. XI Congresso Nacional de Educação – EDUCERE, 2013, PUC-PR.

[5] Em 30/10/2007, aconteceu incorporação da ABESC – Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas e da ANAMEC – Associação Nacional de Mantenedoras das Escolas Católicas, na AEC – Associação de Educação Católica, que passou a denominar-se Associação Nacional da Educação Católica do Brasil – ANEC, em funcionamento, com este nome, a partir de 2008. Deu-se a partir daquele ano um processo de ajustes desta, superando-se em definitivo a situação desarticulada de três instâncias, como vinha sendo anteriormente. O seu estatuto social data de 25 de setembro de 2012.

[6] http://www.curtanaeducacao.org.br/realizacao/anec/  (Acesso 09/07/2018).

[7] Pesquisa do Instituto Data-Folha de julho de 2018, São Paulo, Brasil mostra 51% católicos e 33% evangélicos. Além da explosão visível do número de evangélicos, outros aspectos devem ser considerados, pois subsistem controvérsias em relação às metodologias de pesquisa, podendo a diversidade ser ainda maior devido à multiplicação de “dupla identidade religiosa”, misturando segmentos de matriz africana e das práticas espíritas com a “fachada” externa católica.

[8] O que sempre mais pesou para estas “recaídas” são os espaços consideráveis nas áreas da saúde, educação, lazer e cultura” (Mariano, 2001, p. 146) que a igreja católica continuava e continua ocupando. Um evento recentíssimo foi particularmente perturbador na evolução harmônica das relações do Estado laico com a esfera religiosa no Brasil. Trata-se do Acordo entre o Estado Brasileiro e a Santa Sé assinado em 2008.  Foi um acordo bilateral solenemente assinado em 13 de novembro de 2008 entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao estatuto jurídico da igreja católica no Brasil, onde os signatários foram o Presidente Luiz Ignácio Lula da Silva e o Papa Bento XVI. Trata-se de um Acordo muito polêmico e gerou grandes perturbações no avanço de uma compreensão harmônica da função do Estado laico. Em resposta a este Acordo foi gestada a Lei Geral das Religiões apresentada em 2009, por um Deputado Federal, Pastor da Igreja Universal do Reino de Deus (Igreja Neopentecostal). O teor principal desta Lei é tornar o conteúdo do Acordo em questão, extensivo às outras denominações religiosas. Segundo a pesquisadora Fischmann (2009) trata-se de uma “tentativa de corrigir um erro incorrigível”.

[9] Lei Federal nº 12.101/2009, a Certificação de Entidade Beneficente de Assistência Social – CEBAS, e com a emissão da Portaria Normativa nº 15, publicada no dia 14 de agosto. Legisla sobre as condições requeridas para a Certificação em pauta. Evidentemente a determinação de uma bolsa para cada cinco alunos pagantes não é tout-court, pois a lei faculta que se calculem dentro do montante também bolsas parciais e apoios materiais aos bolsistas. Isto vige para a Educação Básica, mas também se aplica à Educação Superior dentro do mesmo esquema já cultivado pelo PROUNI – Universidade para Todos, desde 2005.

[10] Hoje vigora a certificação CEBAS.

[11] A pesquisa foi recentemente iniciada e está em sua fase exploratória para a construção de um projeto interdisciplinar sobre a eficácia educacional segundo os valores das instituições católicas de educação, das modalidades em pauta.

[12] Há casos em que isto é uma prática institucional histórica da congregação.

IGREJA, IDEOLOGIA E CLASSES SOCIAIS

Dissertação de Mestrado realizada em 1982-1984 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUS-SP. Publicada pela Editora Vozes em 1985. (O livro cuja edição está esgotada, encontra-se à venda em “Estante Virtual”. Caso haja interesse em adquirir, é só clicar na imagem da capa abaixo para abrir site da ESTANTE VIRTUAL.

SUMÁRIO:

INTRODUÇÃO

PARTE I: IGREJA, IDEOLOGIA E CLASSES SOCIAIS – ASPECTOS TEÓRICOS ESSENCIAIS

1 – Classes Sociais e Luta de Classes

2 – Ideologia e Religião

3 – Religião e Luta de Classes

4 – Igreja e Luta de Classes

PARTE II: IGREJA, IDEOLOGIA E CLASSES SOCIAIS NO BRASIL – ASPECTOS DA HISTÓRIA E DA STRUTURA SOCIAIL

5 – Classes Sociais e Ideologia no Brasil

6 – Igreja, Ideologia e Classes Sociais no Brasil

PARTE III: POSICIONAMENTOS IDEOLOGICOS INTERNOS À IGREJA MANIFESTOS NO DEBATE DA QUESTÃO “COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE E LUTA DE CLASSES”

7 – Por que “Comunidades Eclesiais de Base e Luta de Classes”?

8 -Posicionamentos Ideológicos Manifestos em Textos da “Direita” e da “Esquerda” Católicas

9 – Posicionamentos Ideológicos Manifestos em Textos de Componentes da Hierarquia e “Representantes das Bases”

10 – Posicionamentos Ideológicos Manifestos em Textos de Canções e de Roteiros de Reuniões

CONCLUSÕES, HIPÓTESES EPERSPECTIVAS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANEXOS

RELIGIÃO, LAICIDADE E DEMOCRACIA: APONTAMENTOS SOBRE O BRASIL

José Ivo Follmann sj – 2016

Artigo publicado em Cadernos do CEAS, Salvador, n. 236, p. 170-184, 2016

RESUMO: Tomando como ponto de partida uma breve provocação dentro do conceito de secularização, o artigo revisita brevemente o conhecido debate estatístico sobre as religiões e religiosidades no Brasil e retoma uma reflexão sobre processos de identidade religiosos. O debate central desemboca na relação entre a esfera religiosa e a laicidade do Estado no Brasil, com uma nota de reflexão sobre religião e democracia e pontuando, em conclusão, a importância do ensino religioso e da educação para as relações religiosas na sociedade e o papel da academia nesta questão.

PALAVRAS CHAVES: Secularização. Laicidade. Religiões no Brasil. Ensino religioso. Religião e democracia.

ABSTRACT: Taking as starting point a brief defiance within the concept of secularization, the article revisits the known statistical debate about religions and beliefs in Brazil and resumes a reflection on religious identity processes. The central debate ends in the relationship between the religious sphere and the secular State in Brazil, with a note of reflection on religion and democracy and scoring, in conclusion, the importance of religious teaching and education for religious relations in society and the role of the Academy in this.

KEY WORDS: Secularization. Laicity. Religions in Brazil. Religious teaching. Religion and democracy.

Introdução

Muitas interrogações passam pela nossa mente e coração quando convidados para refletir e escrever sobre a questão da laicidade no Brasil. O impacto inicial mais importante está na própria percepção do Brasil como um “mundo das religiões e religiosidades”. Trata-se de um mundo complexo e com muitos atalhos e caminhos de interrogação. Dentro deles a laicidade do Estado[1], declarada há 125 anos, aparece como um ator, ao mesmo tempo, visível e dissimulado.

O presente artigo é uma composição despretensiosa de alguns excertos de reflexões e estudos meus recentes, tentando traçar atalhos e caminhos de abordagem suficientemente provocadores para avançarmos nas respostas sobre o papel das religiões e religiosidades no Brasil de hoje avançando no entendimento da esfera religiosa em sua complexidade e em sua relação com a laicidade do Estado, como caminhos para o Brasil.

O fenômeno complexo que envolve crenças religiosas, descrenças, religiões, religiosidades e espiritualidades, mais do que nunca, nos desafia. As estatísticas fornecidas e conhecidas, que aqui são lembradas, proporcionam uma aproximação útil, apesar das suas limitações amplamente conhecidas e que já se tornaram quase paradigmáticas.

O artigo parte de uma provocação a partir do conceito de secularização e, depois de passar por alguns lembretes conhecidos, em termos de debate estatístico, com a retomada de uma reflexão sobre processos de identidade religiosos e alguns ensaios para o debate atual da relação entre a esfera religiosa e a laicidade do Estado no Brasil, conclui com uma chamada sobre a urgência do ensino religioso e da educação para as relações religiosas na sociedade e uma revisão radical nas posturas da academia.

Interrogação inicial sobre religião e secularização…

Em sua obra de 1967, O Dossel Sagrado, Peter Berger faz dois movimentos importantes de reflexão. Num primeiro movimento reflexivo, ele nos conduz por questões que relacionam a religião com a construção e a manutenção do mundo, e, num segundo movimento reflexivo, traz aportes fundamentais para o entendimento do processo de secularização e as implicações do mesmo para a plausibilidade da religião. (Berger, 2004).

Este autor tornou-se referência obrigatória na sociologia contemporânea das religiões e na sociologia em geral. Ao explicitar a sua premissa de que a sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo, realça que a religião ocupa um lugar de destaque nesse empreendimento.  Cabe ressaltar a atenção dada por ele à função de legitimação da religião e aos processos de alienação e des-alienação, nos quais a religião também participa.

Peter Berger escreveu esta obra em 1967 (Berger, 2004) e, na época, segundo o seu entendimento, o processo de secularização era visto como uma fragilização do religioso, decorrência da perda de força de referência das grandes instituições religiosas como garantidoras de uma visão ordenada dos mundos. O pluralismo religioso estaria debilitando a própria religião em sua plausibilidade. O sociólogo brasileiro que mais vigorosamente se alinhou com a tese de fragilização do religioso a partir da secularização, foi Antonio Flavio Pierucci (2004). Chegou a falar da desmoralização das religiões na medida em que estas vão sendo forçadas a se lançarem em um mercado sempre mais competitivo. (Pierucci e Prandi, 1996).

Estaria a religião fadada a um processo irrecuperável de desmoralização? Ou, pelo contrário, estaria acontecendo, um processo de remoralização do religioso via processos de identidade? Segundo Ricardo Mariano, o próprio Peter Berger, vários anos depois de ter lançado o seu clássico aqui referido, teria rejeitado sua perspectiva teórica pregressa, afirmando ser “falsa a suposição de que vivemos em um mundo secularizado” e que “toda a literatura escrita por historiadores e cientistas sociais, chamada vagamente de ‘teoria da secularização’, está essencialmente equivocada”. (Mariano, 2011, p.241)

De fato, o que se conhece por secularização não pode ser considerado um processo que leva ao fim da religião, mas sim o processo que institui um novo momento na esfera religiosa, onde a religião ganha novos modos de ser e agir, com novo dinamismo, formas novas e presença renovada. Às vezes se fala em renascer…  Enquanto as instituições religiosas se veem diminuídas em sua incidência social e pública, a religião parece restabelecer-se com vigor e vida renovada, no nível dos sujeitos individuais em seus processos religiosos de identidade.

Assim, a ação eficaz para a vida, garantidora de uma visão ordenada dos mundos, que era sempre ação precípua das instituições religiosas enquanto empreendimentos humanos através dos quais se estabelece um “cosmos sagrado” (Berger, 2004), tende a ser assumida e assimilada, de mais a mais, no plano do sujeito individual ou no plano pessoal, fazendo com que, em lugar de grandes “cosmos sagrados”, tenhamos uma constelação de “microcosmos sagrados”, refletindo “sínteses pessoais” vividas com profundidade e garantindo, por baixo da aparente fragmentação e caos, a visão ordenada dos mundos consistente e, mais do que nunca, dinâmica. Oneide Bobsin (2011), acresce um viés interessante de reflexão com a ideia de “humanismo de autotranscendência ”, que inclusive extrapola a própria esfera religiosa propriamente, manifestando-se também pela via de fórmulas sucedidas de autoajuda.

Revisitando as estatísticas religiosas

Enquanto reinava o predomínio inequívoco da dominação religiosa católica, como religião oficial do Brasil, havia pouca margem para a percepção da diversidade e de outras forças dentro da esfera religiosa neste país. Havia também pouca percepção da “violência simbólica” religiosa de parte de uma religião com relação às demais expressões religiosas. A partir do momento em que foram geradas condições históricas para uma maior abertura para a diversidade, além de serem proporcionadas condições de maior percepção da própria diversidade antes oculta e “clandestina”, passou-se também a perceber melhor e explicitar as violências simbólicas existentes. O próprio Estado Brasileiro que é um Estado Laico, desde a Proclamação da República em 1889,[2] como já foi referido, também foi lentamente amadurecendo em sua laicidade, passando paulatinamente, num sucedâneo de dissimulações e visibilidades, a assumir mais explicitamente, ao menos no discurso, uma posição de equidistância com relação às diversas formas de expressão religiosa.

Quanto à esfera religiosa, enquanto tal, os dados estatísticos do IBGE, apesar das muitas fragilidades de seus números, evidenciam que, ao longo das últimas décadas, existe um processo acelerado de inflexão nas forças religiosas: de um Brasil predominantemente católico está-se caminhando para um Brasil onde a força do segmento evangélico, especialmente pentecostal e neopentecostal, tende a conquistar espaços sempre maiores. Também ganha visibilidade o aumento significativo do número daqueles que se declaram “sem religião”.

Estes são dados muito conhecidos e retomá-los aqui pode parecer redundante, mas a nossa memória precisa desses apoios, na reflexão… O quadro estatístico dá conta da queda numérica sensível daqueles que se declaram católicos (de 95,2% da população em 1940, para 64,6% em 2010) e do aumento acelerado, daqueles que se declaram evangélicos (de 2,6% da população em 1940, para 22,2% em 2010), bem como aumento grande daqueles que se declaram “sem religião” (de 0,2% da população em 1940, para 8% em 2010), incluindo, neste último grupo, os descrentes ou ateus (que, provavelmente, não passam de 1% da população). Constata-se também a multiplicação do número de religiões que se somam no quadro das “outras religiões” (2% da população em 1940, para 5,2% em 2010).

Composição da população brasileira em percentuais segundo identificação religiosa nos dados dos censos demográficos oficiais de 1940 e 2010

Identificação religiosa1940 (%)2010 (%)
Católicos95,264,6
Evangélicos2,622,2
“Sem religião”0,28,0
Outras religiões2,05,2
Total100,0100,0
Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1940 e 2010.

Este quadro, no entanto, não diz tudo. Ou melhor, ele provavelmente não consegue explicitar aspectos importantes que se mantém não explicitados ou intencionalmente “submersos”[3]. Alguns comentários e publicações sobre estatísticas religiosas brasileiras mostram, por exemplo, uma grande interrogação frente ao paradoxo do pequeno percentual registrado quando se trata de seguidores das religiões da matriz africana (0,3% da população em 2010). Geraram-se, neste sentido, polêmicas frente à limitação lamentável do IBGE por ainda não ter encontrado mecanismos apropriados para colher dados mais condizentes. Qualquer levantamento superficial que se faça, nas regiões metropolitanas do Brasil, leva, por exemplo, à constatação de números elevados em termos de espaços físicos dedicados a religiões de matriz africana, como “casas”, “terreiros”, “templos” ou “centros”, com uma multiplicidade ímpar de denominações, tanto pelo viés das “afro brasilidades” umbandistas, quanto pelo viés de “africanidades” mais cultivadas em suas tradições de origem, muitas vezes também se expressando em suas formas cruzadas.

A mesma “surpresa” ou “interrogação” que nos causam os percentuais baixos das religiões de matriz africana e de umbanda, também pode ser manifesta com relação ao espiritismo. O Brasil é, provavelmente, uma das culturas onde o espiritismo, nas diferentes versões, encontrou maior guarida. O indício mais evidente que faz reforçar esta hipótese é a intensidade com que concepções religiosas espíritas são veiculadas por certos meios de comunicação, sobretudo, através de novelas de grande penetração popular. Este aspecto da realidade religiosa, em grande parte, continua, também, ausente nas estatísticas religiosas.

Existe um consenso criado de que é urgente e fundamental que o IBGE crie mecanismos adequados para dar conta, de forma mais consistente, das diferentes práticas religiosas, ou seja, da real diversidade religiosa, e, sobretudo, do fenômeno tão próprio dos processos de identidade vividos no Brasil e que envolvem dupla ou múltipla adesão religiosa.

Independente das limitações apontadas, o mapa religioso que foi apontado pelo IBGE 2010, é tremendamente significativo e sinalizador da diversidade, que, em grande parte, ainda está pouco explicitada ou “submersa”. O que o IBGE mostra é “a ponta de um iceberg”, que emerge. A ponta de um grande “iceberg da esfera religiosa” do Brasil que sinaliza para uma diversidade crescente. O mapa religioso brasileiro sinalizado pelo IBGE 2010, além de apontar para esta multiplicação de novas formas de expressão do religioso, não consegue mostrar uma riqueza muito grande que subjaz e que as estatísticas ainda não estão conseguindo fazer emergir.

Também, obviamente, o Protestantismo Histórico conseguiu organizar-se com uma presença mais pública ao longo do século XX. A explosão da diversidade pode ser vista como reação contra os constrangimentos uniformes anteriores, na história brasileira, de quase quatro séculos de religião católica como religião oficial. Em algumas situações, esta explosão da diversidade assume contornos de pluralismo religioso, ou seja, de convívio e reconhecimento democrático entre as diferentes expressões religiosas.

Focando os processos religiosos de identidade…

Saindo da análise dos dados estatísticos, o processo histórico brasileiro com relação à sua esfera religiosa é, sobretudo, um processo de múltiplas relações inter-religiosas e inter-étnicas. Falar das estatísticas religiosas, sua evolução e suas limitações não é algo fortuito, nem casual… Como foi dito, o quadro estatístico religioso é uma ponta visível de um enorme ‘iceberg’ constitutivo da complexidade dos processos de identidade (Follmann, 2001; 2012) que acontecem na sociedade, mediados pela dimensão religiosa. Muitos aspectos e eventos poderiam ser arrolados para mostrar a complexidade desta dimensão nem sempre suficientemente percebida.

Quando na minha pesquisa de doutorado trabalhei o conceito de identidade, inspirei-me com a ideia de “encruzilhada” ou de “cruzamento complexo” de vias (sem semáforo), ou, ainda, de “lugar de encontro” e de “cruzamento” de diferentes projetos. Em uma palavra: o conceito nasceu da ideia da interação, ou seja, a identidade é uma constante “costura” que se faz no seio da interação. “Costuras” fazem-se sempre necessárias. (Follmann, 2001; 2012).

Segundo Gilberto Velho (1987, p. 26ss), os projetos estão sempre ligados a contextos específicos. Um projeto não é jamais um fenômeno puramente subjetivo e também não totalmente objetivável. Ele sempre é elaborado em um campo de “possibilidades” e de “conveniências”. Levando essa ideia ao extremo, o projeto, dentro da experiência de fragmentação, que é a experiência diária dos indivíduos em sociedade especificamente em contextos como o que vivemos, não é nada mais que a tentativa permanente de dar sentido e coerência à sua existência em interação com a complexidade que os envolve e atravessa.

A grande fragilização e ameaça constante de fragmentação vivida pelos indivíduos em sociedade e, sobretudo, o vazio e a angústia em contextos onde as referências institucionais perderam força, fazem com que os mesmos busquem alguma referência que, ao mesmo tempo, seja suficientemente segura, com respaldo de conhecimento socialmente aceito, por um lado, mas suficientemente independente, por outro, para que a autonomia pessoal seja preservada. Certamente o papel da educação para as relações religiosas e do ensino religioso é fundamental. Em uma sociedade na qual a dimensão religiosa exerce um substrato cultural predominante e historicamente consolidado, é fácil de entender que as sínteses religiosas pessoais possam tornar-se as principais formas de se potencializar isto.

Em suma, quero dizer que, ao voltarmos a nossa atenção ao estudo do “mundo das religiões e religiosidades” focando a complexidade dos processos religiosos de identidade, percebemos a importância da interlocução do próprio conhecimento religioso na produção do conhecimento acadêmico sobre o “mundo das religiões e religiosidades” sendo inequivocamente inerente e necessária ao processo, ao menos quando se trata de compreender processos religiosos de identidade; em suma, a realidade social religiosa por dentro.

Na teoria da secularização, à qual fizemos menção no início deste texto, alimentava-se uma espécie de aposta com relação à iminência da extinção da dimensão religiosa, enquanto portadora de significação considerável nas sociedades humanas. A teoria, no entanto, sofreu fortes revisões, sobretudo, no sentido de dizer que o que realmente está em jogo – e é fato – é a gradual perda da força das instituições religiosas. Isto significa perda ou esvaziamento dos sentimentos religiosos, mas, pelo contrário, pode proporcionar maior busca de cultivo pessoal da dimensão religiosa. O fenômeno que se observa é um movimento simultâneo, por um lado, de perda da força institucional das grandes instituições tradicionais e, por outro lado, um novo ganho e maior vivacidade nas múltiplas formas de vivências religiosas cultivadas pelos sujeitos contemporâneos. Estas vivências religiosas são na maioria dos casos “arranjos pessoais”, muitas vezes carentes ou sequiosos de melhores conhecimentos.

Religião e democracia

A explosão da diversidade religiosa, que assistimos no Brasil contemporâneo, por si só, não gera espírito pluralista ou espírito de convívio democrático. Ao contrário, muitas vezes, pode descambar em radicalizações fundamentalistas. Tem-se um movimento duplo contraditório gerado pela diversificação: crescimento do espírito de convívio democrático pluralista, de um lado, e aumento de radicalizações fundamentalistas, de outro. Assim como, também, é perceptível um duplo movimento em nível de Estado: ao mesmo tempo em que são constatáveis movimentos sérios de amadurecimento da laicidade no sentido de garantir o direito à diversidade e pluralidade de expressão religiosa de todos, existem, também, os movimentos de busca de vantagens eleitorais contando com o apoio desta ou daquela confissão religiosa.

Um componente fundamental nos processos de identidade religiosa é a relação sadia com o outro, com o diferente. Pode-se dizer que o diálogo inter-religioso é a nossa tábua de salvação. A humanidade estará dando a volta por cima quando aprender a dialogar nessa esfera (religiosa) onde historicamente se geraram, também, os maiores fanatismos e intolerâncias. A história está repleta de eventos de guerra e de mortes em nome de adesões ou não a determinada religião. Muitos também imolaram e imolam as suas vidas em nome de uma fé. Se quisermos trabalhar efetivamente pela paz, devemos empenhar-nos pelo cultivo do diálogo inter-religioso. Assim como já foi dito que o desenvolvimento é o novo nome da paz (Papa Paulo VI, 1967), assim também se pode dizer que o diálogo inter-religioso é o novo nome da paz. (Küng, 1996; Teixeira, 1997). Diálogo só acontece quando existe um verdadeiro reconhecimento do outro, do diferente. Diálogo só se faz possível se aqueles que dialogam entre si sabem cultivar sinceramente os seus próprios processos de identidade religiosa e se cultivarem ao mesmo tempo um grande reconhecimento dos processos de identidade religiosa dos outros.

O papel da esfera religiosa, e sua interlocução no âmbito da educação, é um papel chave nas sociedades de hoje e isto se dá tanto no plano dos processos de identidade das pessoas e dos processos de conhecimento, como no plano dos processos de convívio cidadão. Cabe ao Estado laico criar as condições para isto.

A laicidade do Estado é fundamental neste sentido, ou seja, uma laicidade maduramente vivida e administrada pelo Estado é condição para que a esfera religiosa possa exercer o seu papel na construção da sociedade democrática. Um ensino religioso e uma “educação para as relações religiosas” são um bom caminho para ajudar a sociedade a amadurecer, desde as gerações mais jovens, para uma cultura do pluralismo religioso e da laicidade, condições fundamentais da democracia.

A reflexão sobre religião e democracia no Brasil não pode deixar de mencionar dois eventos de suprema importância: A Liga Eleitoral Católica – LEC, que funcionou durante as décadas de 1930 a 1950 e a Frente Parlamentar Evangélica – FPE que vem funcionando com crescente vigor nas últimas três décadas. Trata-se de força ou articulações suprapartidárias pela defesa dos interesses e valores de determinados segmentos religiosos.

No caso da LEC o foco principal estava voltado contra o absenteísmo dos católicos na política e contra os fisiologismos políticos, por um combate mais eficaz aos interesses comunistas, protestantes, espíritas e maçons, com campanha permanente pela defesa da família, da educação católica, dos bons costumes e de combate à liberalidade da moda.

No caso da FPE, estão expressos os interesses de segmentos evangélicos, tendo com supremacia parlamentares do segmento pentecostal e neopentecostal. Alterando a marca estritamente católica, para os interesses evangélicos e de combate ao catolicismo, grande parte das pautas desta Frente tem semelhança em seu teor básico com as pautas da então LEC.

Este registro, mesmo que superficial, é importante pois sinaliza para um dos aspectos mais fortes na relação das religiões com a construção da condução política do País. Mesmo que não se conheçam partidos fortes de marca exclusiva de determinada religião, estas duas articulações suprapartidárias são paradigmáticas e refletem importantes forças institucionais da esfera religiosa com braços de força ostensiva para dentro da esfera política.

Tais forças institucionais suprapartidárias, no entanto, podem às vezes ocultar certas promiscuidades de interesses (partido invisível), quando não claro ocultamento (fachada falsa) de propósitos perversos, totalmente contrários aos valores ostentados publicamente. A verdadeira cultura democrática tem mais chance de acontecer na medida em que existe um profundo cultivo em nível pessoal do processo religioso de identidade, movendo-se reforçado por seus valores pessoais, dentro da arena política pública, dentro das regras públicas explícitas do jogo político.

Laicidade do Estado Brasileiro e esfera religiosa

É de consenso que cabe ao Estado laico criar as condições para que se eduquem as consciências religiosas em sua diversidade e seu reconhecimento mútuo. Acredito, também, que uma laicidade maduramente vivida e administrada pelo Estado é condição para que a esfera religiosa possa exercer o seu papel na construção da sociedade democrática. A laicidade do Estado, com o seu caráter distinto e separado das religiões, além de poder garantir que cada cidadão possa escolher livremente a sua religião, tem condições para oferecer a possibilidade de convivência da diversidade e da pluralidade no espaço público. (Mafra, 2002). Muitas vezes já se ouviu dizer que a “liberdade religiosa é a mais importante das liberdades”, como está expresso em uma frase do próprio Rui Barbosa1(1877, p.419), mas isto só tem condições de funcionar na medida em que na própria esfera religiosa houver um efetivo reconhecimento da diversidade e da pluralidade.

Mencionei a instalação do Estado Laico, dentro do mesmo processo de início do Estado Republicano Brasileiro. Já se passaram 125 anos desde a primeira Constituição Republicana, que foi em 1891, e a laicidade do Estado Brasileiro ainda está longe de uma consolidação amadurecida. A história do século XX está repleta de exemplos que trazem à luz do dia o “fantasma” do Catolicismo como religião oficial. Isto foi, sobretudo, acentuado durante todo o longo período do governo Vargas.[4] Este tempo histórico da laicidade do Estado Brasileiro presenciou, também, por um lado, sob a influência de setores da religião católica, uma forte carga de preconceitos e perseguições (repressões) às religiões de matriz africana e outras, que, comumente, eram desclassificadas enquanto religião, não aceitáveis pela racionalidade cristã ocidental (Monteiro, 2009); e, por outro lado, sobretudo, na segunda metade do século XX, foi crescente o aumento das Igrejas Evangélicas Pentecostais e, na sequência, as Neopentecostais, acompanhadas de um forte trabalho de lobby político e de oposição à influência católica e combate aberto às religiões de matriz africana. No Brasil não é muito diferente de outros países, porque, de fato, não se conhecem exemplos concretos de total isenção ou neutralidade do Estado frente às diferentes religiões (Mariano, 2005).

Um evento recente foi particularmente perturbador na evolução harmônica das relações do Estado Laico com a esfera religiosa no Brasil. Trata-se do Acordo entre o Estado Brasileiro e a Santa Sé assinado em 2008.  Foi um acordo bilateral solenemente assinado em 13 de novembro de 2008 entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, onde os signatários foram o Presidente Luiz Ignácio Lula da Silva e o Papa Bento XVI. Uma grande polêmica foi gerada com relação a este Acordo do Estado Brasileiro com uma determinada confissão religiosa. Apesar das justificativas apresentadas pelos representantes da hierarquia católica, dizendo que não se tratava de busca de privilégios institucionais e que este direito poderia ser estendido a todas as outras confissões (Rocha, 2009), o fato foi visto como um retrocesso grave, sobretudo, porque nenhuma outra confissão religiosa dispunha dos mesmos instrumentos jurídicos para um acordo internacional semelhante. Só a Igreja Católica tem um “Estado do Vaticano”. Viu-se no Acordo um grande número de entraves para a laicidade, a democracia, o pluralismo religioso. O princípio da laicidade passou a ser defendido por instituições que nem sequer concordam com a laicidade do Estado. Ou seja, religiões que em sua prática, em geral, mais se empenham por transformar o Estado Brasileiro em um Estado Evangélico, acabam defendendo a laicidade, para assegurar direitos nos quais se sentem lesadas.

É neste embate que foi gestada a Lei Geral das Religiões apresentada em 2009, por um Deputado Federal, Pastor da Igreja Universal do Reino de Deus (Igreja Neopentecostal). O teor principal desta Lei é tornar o conteúdo do Acordo em questão, extensivo às outras denominações religiosas. A busca ou defesa da laicidade está associada ao ataque à hegemonia católica e se persegue uma pauta de privilégios e de garantia de mais espaço no âmbito estatal. Segundo a pesquisadora Fischmann (2009) trata-se de uma “tentativa de corrigir um erro incorrigível” e acrescentar mais um erro, aniquilando de fato o campo público com a presença da disputa de grupos de interesses religiosos.

Mesmo que a polêmica faça sentido, existe um avanço importante na proposta da Lei Geral das Religiões, uma vez que supera o cacoete anterior de a Igreja Católica, usar e continuar usando a prerrogativa de seu domínio histórico e de sua força numérica para regulamentar em seu favor determinações genéricas na relação entre o Estado Laico e a esfera religiosa. Os mais prejudicados, em geral, sempre foram aqueles agrupamentos religiosos mais minoritários ou histórica e culturalmente colocados à margem.  Segundo Negrão (2008), este contexto de debates vem apontando uma nova perspectiva muito desafiadora para a compreensão do quadro global das relações entre Estado, sociedade e religião no Brasil.

Considerações finais

Concluindo este breve caminhar através de alguns apontamentos bastante conhecidos, mas carregando em si a pergunta sobre o papel da esfera religiosa em nossa sociedade e o desafio da complexidade sempre mais explícita do “mundo das religiões e religiosidades” em nossa sociedade, permanecem dois convites: Um primeiro diz respeito à não resolvida questão do ensino religioso ou da educação para as relações religiosas; um segundo diz respeito à nossa postura na academia, como cidadãos e cidadãs.

A pluralidade humana, que se expressa nas mais diferentes esferas do convívio social, se expressa, também, de maneira forte, na esfera religiosa. O ensino religioso e a respectiva educação para as relações religiosas nas escolas poderá ser, sem dúvida, um importante espaço para a cultivo da abertura para o viver plural e para evitar o crescimento de fanatismos. Este último, em geral originado de desinformação e cultivo estreito sem abertura de horizontes. O convívio com a pluralidade traz dentro dele três grandes espaços de fecundidade e de desafios: – O espaço do cultivo dos processos pessoais de identidade; – O desafio de um conhecimento mais consistente, valorizando as diversas formas de saber e rompendo velhos paradigmas, para além das disciplinas acadêmicas; – O desafio da cultura do diálogo e do reconhecimento do outro, do diferente.

Vivemos tempos muito favoráveis para o cultivo, daquilo que chamo de “processos de identidade”. No caso, estamos falando de “processos religiosos de identidade” ou “processos de identidade religiosa”. Fico impressionado, no meu dia a dia de professor, com o fato de, no meio universitário, não existir mais aquele temor que existia, por exemplo, no meu tempo de estudante, quando falar de religião era tabu e soava totalmente ridículo falar de suas próprias convicções e opções religiosas. Isto está radicalmente mudado. Os sujeitos assumem muito mais a sua relação com o transcendente ou, também, a sua postura de negação com relação às crenças religiosas, quando é o caso. Existe evidentemente, em tudo isto, o risco da rigidez nos posicionamentos e muita facilidade em resvalar para posições fundamentalistas e intransigentes.

Sempre costumo afirmar que o diálogo inter-religioso é a nossa tábua de salvação. A humanidade estará efetivamente dando a volta por cima quando aprender a dialogar nesta esfera onde, historicamente, se geraram os maiores fanatismos e intolerâncias.

A iniciativa de introduzir o “ensino religioso” nas escolas públicas estatais é uma iniciativa importante, mas infelizmente existe muita imaturidade política em nível governamental em diversos Estados e, sobretudo, um terrível despreparo das escolas e das professoras e professores. Sem um forte investimento no sentido de fazer do “ensino religioso” um efetivo espaço de educação para o pluralismo, estaremos perdendo uma chance ímpar na história deste país. Acredito num ensino religioso que seja uma efetiva “educação para as relações entre as diferentes crenças (descrenças) e práticas religiosas”. Nada melhor do que “sentar” ao redor da mesma mesa os diferentes conhecimentos (e crenças) no domínio religioso, seja pelo ângulo das diferentes ciências da religião, seja pelo ângulo de leituras teológicas e vivências espirituais. O papel da esfera religiosa é um papel chave nas sociedades de hoje, e isto se dá tanto no plano dos processos de identidade das pessoas, quanto no plano dos processos de conhecimento e dos processos de convívio cidadão.

O conhecimento exerce papel importante no processo de identidade religiosa. O que falta muito, em nossa sociedade, é conhecimento com relação ao mundo das religiões e das religiosidades. Infelizmente a história de nossa academia (das Universidades) está carregada por um positivismo obtuso que, de certa forma, entendeu que só o fato de falar da temática religiosa já manchava a pureza da ciência, sendo um assunto reservado às mentes menos esclarecidas. Este tipo de postura reflete uma espécie de “laicidade obscurantista”. Felizmente, existe atualmente um despertamento para o que se poderia denominar de “laicidade lúcida”, quando nossas academias começam a superar este tremendo preconceito, que muito mais do que preconceito é um prejuízo intelectual inominável do qual continuamos sendo vítimas.

Quero, neste sentido, manifestar o meu apreço ao antropólogo Otávio Guilherme Velho, o qual em uma entrevista para a Revista IHU On Line (apud Teixeira e Menezes, 2005) usou a palavra “humildade”. A partir da percepção deste antropólogo é fundamental que as ciências sociais e os estudos da sociedade no Brasil, mais do que nunca, se desfaçam de certos ranços que ainda dominam a academia brasileira, para assumir com humildade um olhar mais atento para a dimensão religiosa da sociedade, condição fundamental para uma compreensão em profundidade desta mesma sociedade.

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Notas:

[1] Para distinguir laicidade de secularização utiliza-se, este artigo, importante relatório governamental canadense sintetizado em obra coordenada por Therrien, S. and others (2005).

[2] Através do Decreto nº 119-A de 07 de janeiro de 1890 redigido por Rui Barbosa o sistema de relação entre Religião e Estado foi transformado radicalmente. O Brasil deixou de ser um Estado confessional para ser um Estado laico, antes mesmo da primeira Constituição da República, redigida em 1891.

[3] Inspiro-me em Marcio Goldmann (2015) na utilização do termo “submersão”. Este autor se refere à prática de “submergir” como mecanismo de sobrevivência cultural para depois reemergir, em seus estudos de contra-mestiçagem e contra-sincretismo. O autor trata da relação “afroindígena”, mas podemos fazer ilações para as relações “afrocatólica” (ou “afroeuropéia”) e “espíritocatólica”, etc… O texto inspirador é a sua conferência no concurso para Professor Titular do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ.  http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p641 

[4] Muitos argumentos foram usados para justificar essas “recaídas”. Um deles é uma espécie de substrato cultural indicando a catolicidade como o “mais correto” para o Brasil, dado a sua história; outro também sempre foi o argumento estatístico. O que, no entanto, sempre mais pesou são os “espaços consideráveis nas áreas da saúde, educação, lazer e cultura” (Mariano, 2001, p. 146) que a Igreja Católica continuava e continua ocupando.

PROGRAMA DISCIPLINA RELIGIÕES E RELIGIOSIDADES NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Curso de Ciências Sociais – Bacharelado. Última atualização da disciplina, a partir do primeiro semestre de 2021.

Disciplina oferecida no Currículo da Graduação em Ciências Sociais na Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Competências  

Compreensão da religião como fenômeno sociológico;

Compreensão da importância das religiões e do diálogo inter-religioso nas práticas sociais e profissionais dos professores de sociologia;

Produção transdisciplinar do conhecimento.  

Conhecimentos  

Abordagem sociológica das religiões e da religiosidade no mundo contemporâneo a partir de diferentes perspectivas teóricas e em diálogo com abordagens de outras áreas do conhecimento, com atenção especial à importância destes conhecimentos para o ofício de professor de sociologia. Transdisciplinaridade, ecologia integral e incidência religiosa no campo da justiça socioambiental e da política. O momento brasileiro atual sob o prisma do impacto das presenças religiosas diversa. Religiões, academia e produção do conhecimento.  

Metodologias, técnicas e recursos de ensino/aprendizagem e de avaliação  

Acompanhamento personalizado;

Avaliações individuais e escritas;

Relatórios de pesquisas bibliográficas e etnográficas;

Interação on-line e por e-mail;

Fichas de leitura;

Relatórios individuais;

Execução dos planos de estudo;

Realização de um pequeno texto de reflexão e sistematização pessoal.  


Bibliografia básica  

BOBINEAU, Olivier; TANK-STORPER, Sébastian. Sociologia das Religiões. São Paulo: Edições Loyola, 2007.  

FOLLMANN, José Ivo. O Brasil Religioso, Pós-Modernidade e Processos de Identidade. In C. A. Gadea e E. Portanova Barros. A ‘Questão Pós’ nas Ciências Sociais: crítica, estética, política e cultura. Curitiba: Ed. Appris, 2013, p. 231-249.  

OLIVEIRA, Fabiana. O Campo da sociologia das religiões: secularização versus a “revanche dos deuses”. Revista Internacional Interdisciplinar – INTER Thesis. Florianópolis: PPHICH/UFSC, Vol. 2, n. 2, 2005.

TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata. (Org.). As Religiões no Brasil: Continuidades e Rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006. (Ver também: IHU ON-LINE. A Grande Transformação no Campo Religioso Brasileiro. Revista IHU On-Line. Ano 12, n. 400, 2012.  


Bibliografia complementar  

CUNHA, C.V.; LOPES, P. V. L.; LUI, J. Religião e Política: medos sociais, extremismo religioso e as eleições 2014. Rio de Janeiro: Fundação Böll / ISER, 2017.

FOLLMANN, José Ivo. Blog do Professor José Ivo Follmann.

IHU ON-LINE. A Presença dos espíritos no imaginário da sociedade Brasileira (Entrevista Especial com Faustino Teixeira). Revista IHU OnLine. Ano 19, n. 546, 2019.

IHU ON-LINE. A Grande Transformação no Campo Religioso Brasileiro. Revista IHU On-Line. Ano 12, n. 400, 2012

MARIANO, Ricardo. O crescimento pentecostal no Brasil: fatores internos. Revista de Estudos da Religião – REVER, PUCSP, Ano 8, 2008.
 https://www.pucsp.br/rever/rv4_2008/t_mariano.htm

 
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola (2ª ed.), 2005.

TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (orgs). Religiões no Brasil. IHU On-Line. (Número especial sobre as religiões no Brasil). Ano 4, n.169, 2005.

ATENÇÃO: Para as indicações bibliográficas que não proporcionam links de acesso eletrônico, favor contatar diretamente o professor José Ivo Follmann, por via e-mail.