BRASIL RELIGIOSO, PÓS-MODERNIDADE E PROCESSOS DE IDENTIDADE

Publicado em livro organizado por Carlos A. Gadea e E. Portanova Barros, em 2013.

Capítulo de livro

Artigo publicado como capítulo no livro organizado por C. A. Gadea e E. Portanova Barros. A ‘Questão Pós’ nas Ciências Sociais: crítica, estética, política e cultura. Curitiba: Ed. Appris, 2013, pp. 231-249

Resumo: A realidade complexa da esfera religiosa no Brasil no presente contexto de pós-modernidade, convida para uma reflexão sobre a importância do estudo de processos religiosos de identidade para uma compreensão mais apurada da sociedade. É o que o texto procura fazer pautando, no início, algumas observações empíricas para, num segundo momento, convidar para uma reflexão sobre o processo de secularização e os processos de identidade neste contexto.

Palavras chave: religiões e religiosidades no Brasil; processos de identidade; secularização encantada; pós-modernidade.

Abstract: The brazilian religious sphere´s complex reality in the present context of post modernity, invites to reflect about the importance of the identity’s religious processes for a more focused comprehension on the society. That´s what the text is trying to do, showing, at first, some empirical observations for, secondly, invite to a reflexion about the secularization process and the identity´s processes in this context.

Key words: religions and religiosities in Brazil; identity´s process; enchanted secularization; post modernity.

INTRODUÇÃO

Que significado têm as religiões e religiosidades para o estudo e a compreensão da sociedade em contextos de pós-modernidade? A pergunta não é nova. As respostas são diversas. Sem voltar a todas as respostas existentes, quero propor um passeio reflexivo por dentro do Brasil religioso em seu contexto atual. Partindo de uma pequena “roda de conversa” sobre as atuais estatísticas religiosas no Brasil, na qual são sinalizados diversos alertas e questionamentos empíricos, o texto envereda pela trilha da pergunta sobre a plausibilidade do religioso no mundo atual e da discussão sobre o impacto do processo de secularização para, no final, desembocar na questão dos processos de identidade. Trata-se de um conjunto de questões chaves para os estudos da sociedade em contextos pós-modernos e a pergunta final, que permanece, é: o que podemos colher do estudo sobre os processos de identidade nas manifestações religiosas no Brasil de hoje, para o avanço dos estudos da sociedade e das Ciências Sociais, neste contexto?

Um breve passeio por alguns atalhos empíricos destaca, inicialmente, quatro aspectos: 1) a questão dos hibridismos, bricolagens e arranjos religiosos do convívio na diversidade, com destaque ao modo como as religiões de matriz africana sobreviveram e se afirmaram; 2) a memória com relação à questão das fortes institucionalidades religiosas, mormente do catolicismo; 3) a atenção para o recente confronto de forças dentro da esfera religiosa, destacando a crescente afirmação das forças evangélicas pentecostais e neopentecostais; 4) a importância dos graus diversos de adesão ou envolvimento dos fiéis nas práticas de suas religiões. O texto também retoma a ideia, apoiada na percepção arguta de Martin N. Dreher, de que os comportamentos nas manifestações religiosas, no Brasil de hoje, são comportamentos, ao mesmo tempo, modernos, pré-modernos e pós-modernos. (Dreher, 2005).

O “MUNDO DAS RELIGIÕES” NO BRASIL

O “mundo das religiões” no Brasil é realmente um “mundo”. O fenômeno complexo que envolve crenças religiosas, descrenças, religiões, religiosidades e espiritualidades, mais do que nunca, desafia a pauta de estudiosos e cientistas sociais. As estatísticas fornecidas e conhecidas proporcionam uma aproximação útil, apesar das suas limitações que são amplamente conhecidas e já se tornaram quase paradigmáticas.

O Censo Demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostra uma nítida evolução do quadro estatístico de composições e recomposições na esfera religiosa da sociedade brasileira. São inumeráveis os comentários, nos meios de comunicação e, também, em grande variedade de publicações, dando conta da queda numérica sensível daqueles que se declaram católicos (de 95,2% da população em 1940 para 64,6% em 2010) e do aumento, sempre mais acelerado, daqueles que se declaram evangélicos (de 2,6% da população em 1940 para 22,2% em 2010), bem como aumento grande daqueles que se declaram “sem religião” (de 0,2% da população em 1940 para 8% em 2010), incluindo, neste último grupo, os descrentes ou ateus (que, provavelmente, não passa de 1% da população). A multiplicação do número de religiões que se somam no quadro das “demais” e “diversas” denominações (2% da população em 1940 para 5,2% em 2010), também é pauta nesses comentários e publicações, especialmente no que diz respeito ao paradoxo do pequeno percentual registrado quando se trata de seguidores das religiões da matriz africana (0,3% da população em 2010).

Apesar de limitados, os números falam por si, mas é importante que algumas questões básicas agravantes dos limites sejam mencionadas antes de avançarmos em nosso raciocínio: 1) Qual o efetivo grau de influência que teve sobre as religiões de matriz africana o fato de terem sobrevivido, ao longo de séculos, travestidas e camufladas, sob a sombra de formas e expressões religiosas católicas? Não estaria isto fazendo com que muitos seguidores dessas religiões continuem se identificando oficialmente como católicos? 2) A explosão inusitada da diversificação na esfera religiosa não estaria relacionada com o fato do longo represamento motivado pelos quase quatro séculos de opção religiosa única, tendo o catolicismo religião oficial no Brasil? 3) Qual a origem do acentuado incremento de evangélicos de recorte pentecostal e, sobretudo, neopentecostal, ao longo da segunda metade do século XX, gerando uma transformação radical na esfera religiosa brasileira?

Se estas, por um lado, são questões de recorte mais institucional, é importante, por outro lado, que se esteja muito atento a um aspecto que acontece por dentro e por fora das fronteiras institucionais, que é a crescente cultura de afirmação do sujeito individual. Trata-se de um processo que se acentua desde a segunda metade do século XX e perpassa praticamente todas as sociedades. Os contextos nos quais este processo é gerado e alimentado são, sobretudo, contextos de fragmentação, de incertezas e angústias para o ser humano. São contextos fornecedores de um terreno fértil para o cultivo dos processos religiosos de identidade autogeridos pelos próprios sujeitos.

São questões e apontamentos que ajudam a enriquecer as análises estatísticas com detalhes importantes, ou melhor, com questionamentos e pontos de interrogação… Mesmo que as questões e apontamentos feitos ajudem a ler com mais cuidado as estatísticas, está suficientemente claro que nem as estatísticas, nem as questões e apontamentos mencionados, conseguem dar conta da complexidade da dimensão religiosa na sociedade brasileira, que se desenha nos processos de identidade protagonizados no plano pessoal pelos sujeitos individuais.

ALGUNS ATALHOS EMPÍRICOS

Para quem estuda a sociedade brasileira, no atual contexto que assume também aspectos de pós-modernidade, os registros estatísticos no que diz respeito à dimensão religiosa, por si só, já apresentam grande complexidade apontando para um processo acelerado de diversificação. A sua realidade, no entanto, se faz incontavelmente mais complexa e desafiadora, quando espelhada no registro de episódios ou referências que são paradigmáticos desta dimensão. Trata-se de ingredientes vigorosos nos processos de identidade.  De uma forma singela, convido para uma rápida incursão por quatro atalhos empíricos que me parecem paradigmáticos, para uma compreensão maior dos processos de identidade:

O primeiro atalho empírico pode ser alcançado através de uma referência que é clássica, colhida em João Guimarães Rosa: “Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. (…) Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca.” (Rosa, 1980, p.15). Pode-se dizer que, de certa forma, existe uma mente pós-moderna sabiamente constatada e expressa na estética de alguns autores, romancistas e poetas da modernidade brasileira. O diálogo registrado pelo autor é paradigmático. Registra a cultura do jeitinho, do arranjo pessoal e das bricolagens espontâneas. Trata-se de uma cultura muitas vezes citada e gerada pela necessidade de sobrevivência da própria tradição religiosa, como foi o caso, por exemplo, das religiões de matriz africana. Pode-se levantar com segurança a hipótese de que, se houvesse um registro estatístico dando conta de dupla ou múltipla adesão religiosa, as estatísticas desenhariam um quadro diferente. Religiões como as de matriz africana e outras apareceriam com muito maior expressividade estatística e a informação estaria mais próxima dos verdadeiros processos religiosos de identidade.

O segundo atalho empírico é feito mediante referência a um evento histórico de grande significação que foi a pronunciamento de Dom Sebastião Leme, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, por ocasião da inauguração da estátua do Cristo do Corcovado em 1931, quando assim se expressou, em tom de desafio: “Ou o Estado (…) reconhece o Deus do povo, ou o povo não reconhecerá o Estado!”. (Della Cava, 1975, p.15). A força das instituições religiosas faz efetivamente parte da história política do Brasil. Neste nível os nossos apontamentos podem acolher a busca recorrente e unilateral de atendimento de interesses institucionais, que sempre pesaram sobre a alma brasileira. Muitas manifestações públicas de massa, mobilizando grandes públicos, que são recorrentes hoje em dia, vão nesta linha. Podem ser olhados como demonstrações de força política, ou seja, de ocupação do espaço público. Uma complementação estatística neste sentido seria de fundamental importância para que se pudesse ter informação sobre o grau de consciência dos seguidores de determinada religião com relação ao impacto público esperado de sua instituição.

O terceiro atalho empírico dá conta do episódio do “chute da santa” ocorrido em 12 de outubro de 1995. Trata-se de um episódio, que, muito além de sua ruidosa repercussão midiática e social, tem um alcance simbólico sem igual em termos composição e recomposição da esfera religiosa brasileira. Naquela data, dia da santa católica “Nossa Senhora Aparecida”, culturalmente consagrada no mundo católico como a Padroeira do Brasil, o bispo Sérgio Von Helder da Igreja Universal do Reino de Deus, em um programa matutino, na Rede Record, chamado “O Despertar da Fé”, proferiu insultos e deu chutes na imagem desta santa, em frente às câmaras. O episódio tornou-se conhecido como o episódio do “chute da santa”. Ricardo Mariano (2005) se reporta diversas vezes a este episódio em seus estudos para uma sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. (Mariano, 2005). O “chute da santa” simboliza todo um movimento agressivo para provocar uma inflexão na esfera religiosa brasileira contra o predomínio religioso católico. As estatísticas parecem confirmar o amplo sucesso deste movimento. A prática de combater de forma recorrente, buscando desclassificar, símbolos e práticas religiosos do meio católico ou das religiões de matriz africana, é uma prática usual no meio neopentecostal e gera fortes repercussões nos processos de identidade.

O quarto atalho empírico está relacionado com uma frase que se ouve com muita frequência: “eu sou católico, mas não praticante!” ou, “eu sou espírita, mas não sou de frequentar!”. Ou seja, em termos de adesão ou envolvimento dos fiéis nas práticas de suas instituições religiosas, é notável o convívio ou a justaposição de adesões mais livres (light) e menos comprometidas, de participação e frequência mais rarefeitas, que, em muitas situações é o comportamento da maioria, ao lado de adesões mais densas (hard) e mais comprometidas de participação e frequência mais intensas. Em pesquisa realizada em alguns municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre[1] utilizamos como indicador de adesão densa (hard), a frequência semanal a celebrações em locais de culto e templos. Os resultados foram, no mínimo, curiosos, servindo como um contraponto às estatísticas conhecidas. Nos seis municípios estudados, aproximadamente 29% da população tem alguma participação religiosa semanal. Se olharmos só para estes 29% de frequentadores semanais, a pesquisa nos mostra que, destes, aproximadamente, 48% são de frequência em cultos evangélicos (8% evangélicos históricos e 40% evangélicos pentecostais e neopentecostais), 36% são de frequência em missas ou celebrações católicas, 10% em celebrações de matriz africana e/ou umbandista, 3% em sessões espíritas e 3% em outras celebrações religiosas. (Follmann e outros, 2005). Na atenção ao percentual dos que frequentam semanalmente (29%), cabe, no entanto, chamar a atenção para a importância de se identificar práticas religiosas existentes em nível dos outros 71% da população que não frequentam semanalmente em espaços de acesso público… Dados deste tipo em âmbito nacional certamente trariam um incremento impar na qualidade da informação das estatísticas religiosas. Neste sentido também poderia ser muito útil um levantamento do tempo de exposição a programas religiosos veiculados tanto pela rádio quanto pela televisão.

As questões e apontamentos mencionados no início do texto e estes quatro atalhos empíricos, adjetivados com rápidos devaneios com relação aos Censos Demográficos, devem ser complementados, ainda, com uma observação, que considero fundamental para um desenho mais apurado dos processos de identidade. Trata-se da população denominada “sem religião”. Se nas estatísticas oficiais 8% da população são registrados como “sem religião” e os ateus ou descrentes, somados neste segmento representam provavelmente somente 1%, seria muito importante que se pudesse ter acesso a melhores detalhamentos e informações a respeito das formas de religiosidades e espiritualidades vivenciadas por este grande contingente populacional, inclusive com atenção a religiosidades e espiritualidades praticadas e cultivadas via meios de comunicação, bem como o acolhimento de práticas de autoajuda bem sucedidas.

TRES ATALHOS TEÓRICOS

Este rápido sobrevoo empírico e o conjunto de devaneios e proposições, que o acompanhou, com todos os riscos de superficialidade, fazem perceber que existem traços no Brasil religioso que são importantes para o debate sobre a sua incidência no processo de compreensão da vida humana em sociedade em suas diferentes expressões nestes tempos de pós-modernidade. Sem pretender esgotar o assunto, proponho três atalhos teóricos, retomando reflexões sobre: a “plausibilidade do religioso no contexto pós-moderno”, a “teoria da secularização e a ideia da secularização encantada” e a questão central deste texto que são os “processos de identidade ou processos religiosos de identidade”. Estes atalhos teóricos ajudam a lançar luzes para avançarmos na questão central deste texto: Qual a importância dos processos de identidade em contextos de pós-modernidade, considerando o Brasil religioso nos tempos atuais?

PLAUSIBILIDADE DO RELIGIOSO NO CONTEXTO PÓS-MODERNO

Em sua obra O Dossel Sagrado, Peter Berger faz dois movimentos importantes de reflexão. Num primeiro movimento reflexivo, ele nos conduz por questões que relacionam a religião com a construção e a manutenção do mundo, e, num segundo movimento reflexivo, traz aportes fundamentais para o entendimento do processo de secularização e as implicações do mesmo para a plausibilidade da religião. (Berger, 2004)

Este autor tornou-se referência obrigatória na sociologia contemporânea das religiões e na sociologia em geral. Logo no início de sua obra, ele retoma a sua premissa de que a sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo e realça que a religião ocupa um lugar de destaque nesse empreendimento.  Cabe ressaltar a atenção dada por ele à função de legitimação da religião e aos processos de alienação e des-alienação, nos quais a religião também participa.

Peter Berger escreveu esta obra em 1967 (Berger, 2004) e, na época, segundo o seu entendimento, o processo de secularização estava levando a uma fragilização do religioso, decorrência da perda de força de referência das grandes instituições religiosas como garantidoras de uma visão ordenada dos mundos. O pluralismo religioso estaria debilitando a própria religião em sua plausibilidade. O sociólogo brasileiro que mais vigorosamente se alinhou com a tese de fragilização do religioso a partir da secularização, foi Antonio Flavio Pierucci (2004). Chegou a falar da desmoralização das religiões na medida em que vão sendo forçadas a se lançarem em um mercado sempre mais competitivo. (Pierucci e Prandi, 1996).

Estaria a religião fadada a um processo irrecuperável de desmoralização? Ou, pelo contrário, estaria acontecendo, um processo de remoralização do religioso via processos de identidade?

Segundo Ricardo Mariano, o próprio Peter Berger, vários anos depois de ter lançado o seu clássico O Dossel Sagrado, teria rejeitado sua perspectiva teórica pregressa, afirmando ser “falsa a suposição de que vivemos em um mundo secularizado” e que “toda a literatura escrita por historiadores e cientistas sociais, chamada vagamente de ‘teoria da secularização’, está essencialmente equivocada”. (Berger, apud Mariano, 2011, p.241)

De fato, o que se conhece por secularização não pode ser considerado um processo que leva ao fim da religião, mas sim o processo que institui um novo momento na esfera religiosa, onde a religião ganha novos modos de ser e agir, novo dinamismo e formas novas, novo nascimento e nova presença. Enquanto as instituições religiosas se veem diminuídas em sua incidência social e pública, a religião parece restabelecer-se com vigor e vida renovada, em nível dos sujeitos individuais em seus processos religiosos de identidade.

Assim a ação eficaz para a vida, garantidora de uma visão ordenada dos mundos, que era sempre ação precípua das instituições religiosas enquanto empreendimentos humanos através dos quais se estabelece um “cosmos sagrado” (Berger, 2004), tende a ser assumida e assimilada de mais a mais no plano do sujeito individual ou no plano pessoal, fazendo com que, em lugar de grandes “cosmos sagrados” tenhamos uma constelação de “microcosmos sagrados”, refletindo “sínteses pessoais” vividas com profundidade e garantindo, por baixo da aparente fragmentação e caos, a visão ordenada dos mundos consistente e, mais do que nunca, dinâmica. Oneide Bobsin, em recente artigo (2011), acresce um viés interessante de reflexão com a ideia de “humanismo de auto-transcendência”, que inclusive extrapola a própria esfera religiosa propriamente, manifestando-se também pela via de fórmulas bem sucedidas de autoajuda.

A SECULARIZAÇÃO ENCANTADA

A antropóloga Regina Novaes lembrava, em 2005, que vivemos num tempo de “ventos secularizantes”, mas, ao mesmo tempo, devemos estar atentos ao “espírito do tempo”. Segundo esta antropóloga, dá-se, de fato, “um tipo de secularização quando diminui o peso das autoridades religiosas tradicionais e a obrigação de um jovem seguir a religião dos pais”. No entanto, “partilhando das possibilidades culturais desta época, os jovens desta geração estão sendo chamados a fazer suas escolhas em um campo religioso mais plural e competitivo”. (Novaes, in Teixeira e Menezes, 2005, p.16). O “espírito do tempo” de que fala esta antropóloga, tem a ver com a ideia de multiculturalismo, de reconhecimento do diferente, de desmonte da monopolização da cultura e da religião.

Os “ventos secularizantes” misturados com o “espírito do tempo” nos colocam no centro de nosso ponto de reflexão. Talvez para abreviar, pudéssemos falar que vivemos tempos de secularização encantada (Follmann, 2007). A expressão se apoia na “teoria da modernidade religiosa”. (Hervieu-Léger e Champion, 1986). A secularização não pode ser tomada como sinônimo de desencantamento ou de perda da alma humana. Estamos falando de uma secularização que ajuda a restabelecer a verdadeira alma roubada (ou usurpada) pelos racionalismos e racionalidades e, também, sobretudo, por poderios sagrados, que construíram uma superestrutura desconectada com a realidade interferindo na condução da vida humana, da organização social e da natureza, com regramentos ditados por interesses institucionais.

Secularização é um processo que conduz, essencialmente, à afirmação da autonomia das realidades terrestres. Após tempos de distorções e ressecamentos, e como resultado inesperado da modernidade, de mais a mais, desperta a consciência de que essas realidades são complexas e cheias de encanto e de dimensão do eterno. Existe um novo encontro com o religioso, mediado pela liberdade de opção e não pela determinação institucional. Vive-se hoje um tempo muito favorável de libertação dos sujeitos humanos com relação às instituições religiosas, as quais às vezes exerceram e exercem papel de atrofiamento do próprio religioso. Carlos Eduardo Sell e Franz Josef Brüseke (2006) apontam exatamente para isto. Estes dois autores, retomando a contribuição da socióloga francesa, lembram que “o que caracteriza a nossa época não é tanto a indiferença religiosa ou a descrença; mas, acima de tudo, o fato de que as crenças religiosas escapam ao controle das grandes igrejas e das instituições religiosas”. (Sell e Brüseke, 2006, p.189-190).  Trata-se de uma busca do ser humano em pensar-se por si mesmo e diz respeito a um processo de individualização e de subjetivação da vida religiosa.

Às vezes as religiões, no afã de colocar-se a serviço dessa dimensão de encanto, do sentimento de plenitude e de ruptura com o vazio e a angústia frente às incertezas de referência dentro das realidades terrestres, se apropriaram e apropriam de tal modo da mesma, que a sufocam, ressecam ou atrofiam.

OS PROCESSOS DE IDENTIDADE

O presente texto iniciou colocando na roda de conversa algumas aproximações em torno das estatísticas religiosas no Brasil. Não foi algo fortuito, nem casual… Procurou-se sinalizar que o quadro estatístico religioso é uma ponta visível de um enorme ‘iceberg’ constitutivo da complexidade dos processos de identidade que acontecem na sociedade, mediados pela dimensão religiosa. As diferentes questões e uma série de atalhos empíricos, explicitados no início do texto, apontam para dimensões desta complexidade nem sempre suficientemente conhecidas. Destaque especial deve ser dado à simultaneidade de formas modernas, com formas pré-modernas e pós-modernas que caracteriza a esfera religiosa nos atuais contextos de pós-modernidade da sociedade brasileira.

O sujeito religioso no contexto de pós-modernidade, no Brasil de hoje, se movimenta permanentemente em encruzilhadas que são ao mesmo tempo complexas e móveis. Trata-se de um contexto de vias que se movimentam compondo e recompondo cruzamentos e acessos. Todo o ser humano vive e sobrevive na sociedade organizando-se em um projeto de vida, o qual é por ele articulado, com maior ou menor consistência, com maior ou menor condição de autogestão. Quando se perde totalmente a força articuladora própria, pode-se falar que o ser humano está afundado em processos de alienação, tendo que viver ou sobreviver segundo projetos de outrem. Peter Berger, na mesma obra já referida anteriormente, ao falar da alienação contrapõe a ideia de opus alienum à de opus proprium. (Berger, 2004). Parece elementar, mas é tremendamente inspirador.

Quando na minha pesquisa de doutorado trabalhei o conceito de identidade, inspirei-me com a ideia de “encruzilhada” ou de “cruzamento complexo” de vias (sem semáforo), ou, ainda, de “lugar de encontro” e de “cruzamento” de diferentes projetos. Em uma palavra: o conceito nasceu da ideia da interação, ou seja, a identidade é uma constante “costura” que se faz no seio da interação. “Costuras” fazem-se sempre necessárias. (Follmann, 2001).

Segundo Gilberto Velho (1987, p. 26ss), os projetos estão sempre ligados a contextos específicos. Um projeto não é jamais um fenômeno puramente subjetivo. Ele sempre é elaborado em um “campo de possibilidades”. As questões e atalhos empíricos explicitados anteriormente sinalizam para alguns “campos de plausibilidades”. O projeto, segundo o autor, pode ter a inspiração em outro lugar, mas o sujeito do projeto deve fundamentalmente considerar seus contemporâneos com os quais deverá estar em contato para atingir seus objetivos.  Levando essa ideia ao extremo, o projeto, dentro da experiência de fragmentação, que é a experiência diária dos indivíduos em sociedade especificamente em contextos de pós-modernidade, não é nada mais que a tentativa permanente de dar sentido e coerência à sua existência em interação com a complexidade plural que os envolve e atravessa.

A grande fragilização e ameaça constante de fragmentação vivida pelos indivíduos em sociedade e, sobretudo, o vazio e a angústia em contextos onde as referências institucionais perderam força, fazem com que os mesmos busquem alguma referência, que ao mesmo tempo seja suficientemente segura (para a realização do projeto pessoal) e suficientemente independente para que a autonomia pessoal seja preservada. Em uma sociedade na qual a dimensão religiosa exerce um substrato cultural predominante e historicamente consolidado, é fácil de entender que as sínteses religiosas pessoais possam tornar-se as principais formas de se potencializar isto. Elas sempre são construídas mediadas pela complexidade concreta presente na esfera religiosa. Talvez tenhamos uma boa chave de explicação do fenômeno da alta expansão religiosa independente de vinculação institucional. Religiosidade que convive com a secularização e nela, inclusive, se fortalece.

CONCLUSÃO

Para concluir, faço três apontamentos… O apontamento inicial é um convite a retornarmos às estatísticas religiosas apresentadas pelo IBGE. Chama atenção o fato de em alguns Estados da Federação, como Acre, Rio de Janeiro, Rondônia e Roraima e poder-se-ia ainda acrescentar Espírito do Santo e Distrito Federal, que apresentam um elevado percentual de evangélicos, concentram também os percentuais mais elevados de pessoas sem religião. (IBGE, 2012). O crescimento acelerado do percentual de evangélicos se dá, em grande parte, devido ao aumento da incidência do segmento neopentecostal. Este fato vem ao encontro da hipótese de certa proximidade, em determinadas circunstâncias, entre fatores que desencadeiam a busca da solução neopentecostal, com apelo ao sucesso pessoal sem compromisso de participação e vinculação comunitária, e a identificação como sem religião, traduzível, em muitos casos, como religiosidade de “arranjo pessoal”. Ambas são soluções individualizantes e de reforço da subjetividade pessoal. São, a rigor, neste sentido, soluções secularizantes e apontam na direção das principais interrogações teóricas aqui expostas.

O segundo apontamento vem ao encontro da radical importância manifesta na intuição que nos alerta sobre a simultaneidade e justaposição das formas pré-modernas, modernas e pós-modernas no cotidiano da esfera religiosa brasileira em nossos dias. Existe certamente uma acentuada tendência de ampliação na margem de participação das soluções pós-modernas que podem ser visibilizadas mediante os seguintes fatos: – o grande segmento populacional que se diz religioso, mas com nenhuma adesão ou envolvimento institucional mínimo; – a proliferação sem conta de fórmulas de autoajuda e programações religiosas de massa e midiáticas; – a já mencionada coincidência entre contextos de crescimento do segmento neopentecostal e aumento da população que se diz sem religião.

Por fim, o último apontamento retorna à pergunta formulada inicialmente: o que podemos colher do estudo sobre os processos de identidade nas manifestações religiosas no Brasil de hoje, para o avanço dos estudos da sociedade e das Ciências Sociais, neste contexto?  Para abreviar o argumento, me associo ao antropólogo Otávio Guilherme Velho (in Teixeira e Menezes, 2005: p.11-12) para dizer que é fundamental que as ciências sociais e os estudos da sociedade no Brasil, mais do que nunca, se desfaçam de certos ranços que ainda dominam a academia brasileira, para assumir com humildade um olhar mais atento, de forma transdisciplinar, para a dimensão religiosa da sociedade, condição fundamental para uma compreensão em profundidade desta mesma sociedade.

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[1] A pesquisa sobre os Locais de Culto e Templos na Região Metropolitana de Porto Alegre abrangeu os municípios de Canoas, Cachoeirinha, Esteio, Sapucaia do Sul, São Leopoldo e Novo Hamburgo (a pesquisa se estendeu de 1994 a 2004)

ENTREVISTA COM O PROFESSOR DOUTOR JOSÉ IVO FOLLMANN

Artigo publicado em 2017, na Revista Labirinto

Entrevista

Entrevista realizada por Renilda Aparecida Costa, para o Centro Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa sobre o Imaginário Social, Universidade Federal de Rondônia. Dossiê Intolerância Religiosa.

Revista LABIRINTO Ano XVIII Volume 26 (Jan-Mar) 2017 pp. 213-230.

(Observação: a entrevista foi respondida em parte por telefone e em parte por e-mail e nela o entrevistado recorre, em algumas pequenas passagens, a reflexões escritas de sua autoria em outros contextos.)

(Renilda: R.A.C.) Antes de sua formação como padre, como foi a sua educação na infância? O que destacaria, considerando a temática da intolerância religiosa?

(José Ivo: J.I.F.) A minha educação inicial na infância foi dentro de um mundo de horizontes muito fechados. Filho de uma família numerosa de pequenos agricultores no interior do Rio Grande do Sul, foi uma vida marcada por um cotidiano de duras privações e tendo como único horizonte religioso, o católico. Tudo o mais aparecia e era apresentado como estranho ou mesmo extravagante. Em suma, havia uma uniformidade religiosa em nossas cabeças e não cabiam questionamentos que apontassem para intolerâncias. Ou seja, melhor dizendo: éramos totalmente intolerantes, por nascença…

(R.A.C.) O fato de ter-se formado para padre jesuíta influenciou a uma sensibilização com relação a intolerância religiosa, ou existem outros fatores que pesaram?

(J.I.F.) De fato, eu gostaria de fazer um recorte mais amplo. Inicialmente, enquanto criança, eu tenho na memória, que eu não queria ser padre. Outros irmãos meus estavam se encaminhando para isto. Eu era “do contra”. Queria ser diferente… Mas, por esses acasos da vida, os projetos dos outros foram descontinuados e eu acabei sendo “fisgado” para ser padre, por influência de um tio que era padre. Não vou entrar nesses detalhes. Não vem ao caso… Para mim a esfera religiosa, ou como às vezes prefiro dizer, “o mundo das religiões e das religiosidades”, ocupa um lugar fundamental. Isto talvez possa soar paradoxal se considerarmos todo o movimento de secularização e afirmação de estados laicos e sociedades laicas. A minha percepção tem três fontes, ligadas à minha própria trajetória (ou processos pessoais de identidade, como gosto de dizer); pode-se falar em três grandes escolas de aprendizado: 1) Sou sacerdote católico e, como já mencionei venho de uma família e comunidade de profundo cultivo da tradição religiosa católica, num horizonte bastante fechado. Tive, também, longa formação espiritual dentro da espiritualidade inaciana dos jesuítas, por ser jesuíta. Isto pauta fundamentalmente os meus processos de identidade. (É o aprendizado no recolhimento pessoal.) 2) A minha prática de estudo das religiões, enquanto sociólogo das religiões, pesquisador e orientador de muitos trabalhos de pesquisa nesta área. Dedico-me nas últimas duas décadas, sobretudo, à questão da crescente diversificação na esfera religiosa. (É o aprendizado na prática de pesquisa.) 3) Em minha trajetória passada e também no presente, assumo uma postura de radical prática de diálogo na relação com as demais religiões. (Faço parte de um grupo inter-religioso de diálogo, desde 2002, no qual participam mais de dez segmentos religiosos diferentes.) (É o aprendizado no diálogo com o outro.) São minhas três grandes escolas. Muitos mestres e muitas mestras fizeram e fazem parte destas escolas em minha vida. Nessas escolas aprendi e fui convencido de que a esfera religiosa é uma esfera fundamental, também, nas sociedades de hoje. Reconheço-me também como defensor da laicidade do estado e da sociedade, enquanto espaços públicos, democráticos e de reconhecimento da pluralidade religiosa, inclusive a defesa do direito de não ter crença nenhuma. O fato de ver a esfera religiosa como algo fundamental, portanto, não é um posicionamento contrário à laicidade. Pelo contrário, vejo a laicidade do estado e da sociedade como importante para preservar o reconhecimento desta rica diversidade, sem dar vez às intolerâncias.

(J.I.F.) Voltando diretamente à primeira “escola” e ao cerne da pergunta, devo dizer: Sobre a importância da formação para padre? Com certeza! O fato da formação para padre jesuíta pesou muitíssimo. Foi a minha formação para padre jesuíta que abriu os meus horizontes. Evidentemente dentro desta formação também se agregou a formação sociológica que correu paralelamente. Curiosamente o fato de estar me formando para padre jesuíta e cursar sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, foi uma oportunidade incrível para perceber certas intolerâncias do mundo acadêmico com relação ao tema da religião. Ou seja, despertei muito para uma faceta que posteriormente me ajudaria a cultivar fortemente em mim uma postura crítica com relação a certos limites constrangedores da nossa academia brasileira. Hoje sou um militante da transdisciplinaridade e já repeti muitas vezes que a transdisciplinaridade é a tábua de salvação da universidade.

(J.I.F.) Mas voltando à questão central em pauta, como não houve oportunidade nenhuma durante o meu Curso de Ciências Sociais na UFRGS para estudar temáticas relacionadas com a esfera das religiões na sociedade, quando cursei, logo na sequência, Teologia (e já era professor de sociologia na época), tive oportunidade de introduzir-me em leituras sociológicas sobre religiões e religiosidades. Tive oportunidade de contribuir bem em seminários e aulas sobre “Sociologia das religiões populares no Brasil”.

(J.I.F.) Na verdade, só comecei a aprofundar, de fato, meus estudos de sociologia das religiões, durante o mestrado na PUCSP, sob a orientação do Professor Cândido Procópio Camargo, de saudosa memória. Me considero um privilegiado por carregar em mim uma formação que proporcionou uma riqueza muito grande de contatos, experiências e trabalhos, em contextos muito diversificados. O professor Florestan Fernandes também exerceu um grande impacto em minha trajetória, durante o mestrado, sobretudo no despertamento para uma leitura mais crítica (menos “branca e viciada”) de toda a temática afrodescendente no Brasil.

(J.I.F.) A sensibilização com relação às intolerâncias religiosas foi crescendo em mim e consolidou-se definitivamente durante o meu doutorado em sociologia, realizado em Louvain la Neuve, Bélgica. Tive importantes convivências com colegas do Continente Africano. Fui percebendo o quanto as nossas intolerâncias religiosas (brasileiras) estão profundamente relacionadas ou enraizadas nas intolerâncias raciais, ou seja, no racismo tão forte quanto dissimulado, que impregna a nossa sociedade. A ausência de negros brasileiros nos doutorados da Bégica me chamou muita atenção. Me fez voltar muito comprometido com rever a postura da Universidade em relação à temática dos afrodescendentes e a urgência de pensar em formas de uma maior inclusão deles no meio acadêmico.

(R.A.C.) A profissão de sociólogo e sociólogo da religião foi uma escolha ou uma contingência da vida?

(J.I.F.) Decidi ser sociólogo quando estava cursando filosofia em São Paulo e ao mesmo tempo exercia trabalhos sociais na periferia, particularmente no Bairro Perus, onde eu ajudava a orientar “círculos bíblicos”. Era o período da grande greve na fábrica de cimentos do local. Algumas lideranças daquele movimento grevista participavam dos mencionados círculos bíblicos e eu me ressentia de minha pouca formação sobre movimento operário, vida sindical, relações de trabalho. Os líderes grevistas que participavam dos círculos bíblicos traziam reflexões interessantíssimas relacionando o texto sagrado da Bíblia com o que eles viviam na luta do dia a dia, naquela situação de greve. Foi o que me fez decidir estudar sociologia, para poder também contribuir neste tipo de reflexão, mais tarde… Fazer sociologia acabou sendo uma espécie de exigência para mim, para poder ser um bom jesuíta. Para poder prestar um serviço competente, como padre. A sociologia das religiões foi decorrência, sobretudo, por me ressentir da tremenda ausência do mundo acadêmico e dos sociólogos, no que se refere a estudos sérios sobre a esfera das religiões e o seu significado na sociedade.

(J.I.F.) Os meus estudos de sociologia das religiões se focaram, sobretudo, na religião católica. Eu não quis ser mais um sociólogo a estudar o exótico, só para enriquecer os meus conhecimentos e currículo pessoal, sem compromisso efetivo. Eu quis estudar algo no qual eu estava implicado e queria que meus estudos pudessem efetivamente levar a contribuições práticas.

(R.A.C.) Com uma carreira consolidada como professor pesquisador e, que tem como uma de suas temáticas o diálogo inter-religioso, o senhor acredita que há um crescimento do interesse dos estudantes da pós-graduação com relação à temática religiosa nos estudos?

(J.I.F.) Com certeza, ao longo das últimas décadas houve um grande despertar no meio acadêmico com relação às temáticas religiosas. Talvez a própria dinâmica religiosa na sociedade tenha despertado mais a atenção. Por falar em dinâmica religiosa, o que está claro, ao longo das últimas três décadas, como pude escrever recentemente em alguns textos, é que vivemos um processo acelerado de inflexão nas forças da esfera religiosa: de um Brasil predominantemente católico está-se caminhando para um Brasil onde a força do segmento evangélico pentecostal e neopentecostal e a diversificação religiosa em geral, tendem a conquistar espaços sempre maiores. A explosão da diversidade pode ser vista como reação contra os constrangimentos uniformes anteriores, na história brasileira, de quase quatro séculos de religião católica como religião oficial. Em algumas situações, esta explosão da diversidade assume contornos de pluralismo religioso, ou seja, de convívio e reconhecimento democrático entre as diferentes expressões religiosas. Pode-se dizer que o meio acadêmico, de certa forma, é simpático a isto e passa a se interessar… É claro, a explosão da diversidade, por si só, não gera espírito pluralista ou espírito de convívio democrático. Muitas vezes, também, são geradas radicalizações fundamentalistas. No caso de nossa sociedade brasileira, por exemplo, enquanto reinava o inequívoco predomínio da dominação religiosa católica, como religião oficial do Brasil, havia pouca margem para a percepção da diversidade e de outras forças dentro da esfera religiosa neste país. Havia também pouca percepção da violência simbólica religiosa de parte desta religião dominante com relação às demais expressões religiosas. A partir do momento em que foram geradas condições históricas para uma maior abertura para a diversidade, além de serem proporcionadas melhores condições de percepção da própria diversidade antes oculta e “clandestina”, passou-se também a perceber melhor e explicitar as violências simbólicas existentes. Vivemos ao longo de nossa história um tremendo processo de intolerância religiosa dissimulada e oculta. É compreensível que, presenciemos, na sequência, radicalizações fundamentalistas, sobretudo, de segmentos, por muito tempo, dominados e impedidos de se expressarem. Tem-se assim um movimento duplo contraditório gerado pela diversificação: crescimento do espírito de convívio democrático pluralista, de um lado, e aumento de radicalizações fundamentalistas, de outro.

(J.I.F.) Mas não quero ser entendido mal. As radicalizações fundamentalistas não são tanto de religiões minoritárias contra um antigo domínio religioso. Observamos que o que mais se manifesta hoje são radicalizações fundamentalistas de caráter racista (o nosso problema central é o racismo!), onde as antigas intransigências do mundo católico-europeu frente às tradições religiosas indígenas e africanas aparecem agora pela via de certos grupos neopentecostais radicalizados e fundamentalistas.

(R.A.C.) Tomando este gancho final, o senhor acredita que a ampliação de estudos relacionados a relações raciais e intolerância religiosa podem contribuir na formação humana e profissional?

(J.I.F.) Com certeza. É no conhecimento que reside uma das chaves principais de solução. Conhecimento em geral gera reconhecimento. Como falei no início, eu, por exemplo, nasci e fui criado em minha infância em um mundinho totalmente fechado dentro do horizonte católico e branco. Mal podia imaginar algo de importância e de valor fora disso. Hoje em dia, os meus horizontes são outros. Radicalmente outros! Hoje sei que os africanos trazidos de forma forçada e feitos escravos no Brasil (e foram milhões), no período colonial, foram submetidos a vários “mecanismos de esquecimento de seu passado” e entre estes, se destaca um, que na leitura de hoje seria considerado o mais perverso, que foi o de forçá-los a abandonar as suas tradições religiosas de origem, sendo-lhes imposto o batismo católico, pois a igreja católica era a religião oficial do Império Português e continuou sendo a religião oficial, também no Brasil, no período imperial. De fato, o que se tem no Brasil de religiões de matriz africana são sobrevivências, por resistência, a toda a dominação religiosa católica.
A sobrevivência das tradições religiosas africanas deu-se, sobretudo, através da habilidade e astúcia dos próprios negros escravizados que souberam disfarçar os seus cultos usando símbolos e imagens do catolicismo. Imagens (estátuas) de santos católicos eram usadas como fachada para cultuar os Orixás de origem. (Só saber isto, hoje me enche de orgulho pela criatividade inerente à sociedade brasileira, sobretudo, de herança africana!) Esta invenção criativa foi uma estratégia muito bem-sucedida na preservação de culturas milenares, que estavam sendo colocadas em risco. Ter-me apropriado desta realidade e poder refletir com as pessoas, hoje, sobre o fato de que as religiões de matriz africana são de uma tremenda diversidade e riqueza, me enche de “santo” orgulho… Ter a certeza dentro de mim, que definitivamente, as religiões de matriz africana são sérias e estão ancoradas em tradições muito ricas… Que definitivamente não são simplesmente aquela “macumba” que a gente falava pejorativamente quando criança. Saber que as religiões de matrizes africanas são também diversificadas e respondem a múltiplas tradições de regiões culturais diversas nas origens africanas.

(J.I.F.) Hoje posso dizer que alguma coisa conheço. Já falo com mais liberdade e segurança que o tráfico de africanos escravizados se deu em levas sucessivas entre os séculos XVI e XIX. Os grupos trazidos para o Brasil, nas levas sucessivas, eram provenientes de tradições culturais e religiosas muito diversificadas. Os primeiros a serem trazidos e foram os mais numerosos e eram de tradição Bantu. Bem mais tarde foram trazidos grupos mais influenciados pela tradição Jeje. Por fim africanos escravizados ligados a tradições Yorubá e Nagô trouxeram referências culturais e religiosas ricas e novas. Estes últimos encontraram, no entanto, uma longa caminhada de práticas, adaptadas à nova realidade no contexto brasileiro, cultivadas a partir das tradições anteriormente chegadas.

(J.I.F.) Existe, assim, uma diversidade muito grande, proveniente em parte da diversidade de origem, mas, sobretudo, das novas “costuras” e sobreposições e da criatividade dos Babalorixás (Sacerdotes) e/ou Pais de Santo e Yalorixás (Sacerdotisas) e/ou Mães de Santo, em sua vivência religiosa e produção teológica. Apesar da diversidade, são identificáveis grandes linhas de “parentesco espiritual” ou “famílias religiosas” que às vezes ultrapassam os limites de vários Estados. Aprendo muito de orientandas e orientandos meus. Devo um grande aprendizado junto à própria entrevistadora (Renilda Aparecida Costa), quando em sua tese de doutorado traçou um belo contínuum em termos de Batuque, mostrando ligação entre família religiosa de Lages, Santa Catarina e família religiosas de Gravataí, RS…

(J.I.F.) Enfim, hoje prefiro dizer que sei muito pouco sobre toda esta riqueza. Por que falo isto? Porque vejo como importante poder dizer isto assim, com detalhes. É a minha maneira de expressar reconhecimento. Sei o suficiente para ter um profundo reconhecimento. Mas, obviamente, prefiro ouvir os seus próprios teólogos e sacerdotes. Fico muito feliz em poder olhar agora de dentro dos meus setenta anos de idade e perceber quão longa caminhada foi realizada desde aquele pequeno mundo, bem organizado e feliz, mas de horizontes estreitíssimos e tendente a preconceitos e intolerâncias múltiplas, que me amarrava na infância.

(R.A.C.) Como vice-reitor de uma renomada instituição de ensino superior, acredita que há uma preocupação institucional relação a construção de conhecimentos que foram marginalizados como os dos negros e indígenas em detrimento dos conhecimentos eurocêntricos?

(J.I.F.) Não só acredito, mas fui também protagonista para que isto acontecesse e se consolidasse em nossa instituição. Estou nesta Universidade (Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS) desde 1973, como professor, mas foi, sobretudo, depois que aprofundei os meus estudos, ao retornar do doutorado na Bélgica, que não descansei mais em duas causas: trazer para dentro das preocupações e práticas acadêmicas o mundo das “religiões e religiosidades” e me empenhar mais para a inclusão de afrodescendentes e a temática racial e da superação do racismo. A partir de 1999, tive para isto um grande apoio decisivo de uma pessoa que se chama Adevanir Aparecida Pinheiro, hoje doutora em Ciências Sociais, professora da UNISINOS e coordenadora do NEABI. Ela vinha de uma longa militância no meio religioso de recorte afro e do próprio movimento negro. Logo percebi que a contribuição dela e esse apoio estavam sendo decisivos e determinantes, pela própria necessidade de romper certos tabus profundamente contaminados pela “branquidade”, incapaz de perceber os racismos dissimulados existentes em instituições como a nossa, fazendo com que facilmente se sucumba. Aliás ela é estimuladora do debate sobre branquidade e branquitude. Dela aprendi que o principal alvo do processo de educação das relações étnico-raciais deve ser o próprio branco e também em termos de diálogo interreligioso, deve ser o próprio católico. Tudo isto devido a vícios colonialistas profundamente incrustrados e que devem ser desmontados.

(R.A.C.) O senhor acha que a criação da Lei 10.639 de 2003 foi um acerto e poderá efetivamente contribuir para avançar na geração do verdadeiro espírito republicano, para além dos racismos e intolerâncias?

(J.I.F.) Eu diria, é uma iniciativa educacional que acertou no alvo! Atinge o cerne da desigualdade social brasileira. Me lembra muito um professor meu, Octávio Ianni. Ele foi talvez o sociólogo brasileiro que melhor formulou a questão social no Brasil. Ele dizia que para entender a questão social no Brasil é necessário colocar a questão racial no centro da questão social. O Brasil é um país que tem um racismo profundamente institucionalizado. Serão necessários muitos esforços para desmontar isto. Creio que a lei 10639/2003 é uma das melhores iniciativas em termos de políticas públicas. Com certeza o Brasil não será mais o mesmo depois da consolidação da lei da ERER – educação das relações étnico-raciais. Para mim, a lei 10639/2003, foi uma das maiores sacadas em termos de políticas públicas recentes na sociedade brasileira. É fundamental que seja levada a sério. Ela deve ser pensada e aplicada em todos os âmbitos da vida social, não só no sistema educacional. É fundamental que os meios de comunicação também sejam impregnados pela lei da educação das relações étnico-raciais. A política de assistência social e outras políticas devem também estar impregnadas pela lei da educação das relações étnico-raciais. Ela deve contaminar o próprio “ensino religioso”. Quem sabe, um dia se possa pensar uma espécie de “educação das relações religiosas”. Só assim estaremos efetivamente construindo um Brasil democrático e cidadão. Só assim estaremos reabilitando o Brasil na sua verdadeira identidade. (Pois como sempre digo, o Brasil é o resultado de grandes processos de alienação dos quais todos somos vítimas.)

(R.A.C.) O senhor falou em “educação das relações religiosas”… Seria este um caminho para fazer frente aos desafios de superação das intolerâncias religiosas no mundo contemporâneo, e, é claro no Brasil? Gostaria de ouvi-lo sobre como vê isto.

(J.I.F.) No Brasil, a discriminação religiosa está associada à discriminação racial. A nossa sociedade é uma sociedade tremendamente racista. Felizmente hoje isto está sendo enfrentado mais rigorosamente através de uma série de iniciativas educacionais e políticas de ação afirmativa. Mas, além da discriminação racial também deve ser considerado o próprio fator dos “conflitos religiosos” na disputa da verdade religiosa e convencimento dos seguidores. A Igreja Católica, por muito tempo, no Brasil, se considerava como força absoluta no que diz respeito a religião e todas as outras iniciativas eram demonizadas e perseguidas. Hoje, de algumas décadas para cá, a percepção da Igreja Católica mudou significativamente, mas estamos vivendo um novo fenômeno muito visível de parte de Igrejas Evangélicas Pentecostais e Neo-Pentecostais com fortes manifestações de discriminação e intolerância religiosa, sobretudo, como relação às religiões de matrizes africanas. Só existe efetivamente uma boa fórmula para fazer frente às intolerâncias religiosas: é uma boa “educação das relações religiosas”. A iniciativa de introduzir o “ensino religioso” nas escolas é uma iniciativa importante, mas infelizmente existe muita imaturidade política em nível governamental em diversos Estados e, sobretudo, um terrível despreparo das escolas e das professoras e professores. Sem um forte investimento no sentido de fazer do “ensino religioso” um espaço de educação efetiva para o pluralismo, estaremos perdendo uma chance ímpar na história deste país. Estaremos perdendo uma chance ímpar de fazer deste espaço um acelerador da construção da sociedade democrática. Acredito num ensino religioso que seja uma efetiva “educação das relações entre as diferentes crenças /descrenças e práticas religiosas”. Nada melhor do que “sentar” ao redor da mesma mesa os diferentes conhecimentos, saberes e crenças/descrenças no domínio religioso, seja pelo ângulo das diferentes ciências da religião, seja pelo ângulo de leituras teológicas, vivências espirituais e vivências atéias, como ensaio de um verdadeiro laboratório de democracia. Só assim se dará efetivas respostas às intolerâncias religiosas. É claro que isto não é tão simples e óbvio, assim…

(R.A.C.) Se não é tão simples e óbvio, na sua visão quais os motivos que fazem com que a intolerância religiosa esteja recrudescendo no mundo contemporâneo?

(J.I.F.) As intolerâncias religiosas, obviamente, devem ser consideradas dentro de um horizonte mais diversificado. Não podemos simplificar e reduzir à dimensão das relações raciais ou ao racismo. O que eu quero sublinhar é que em nossa realidade brasileira, o melhor atalho para atingir o principal das intolerâncias, está em focar no racismo dissimulado que crassa em nossa sociedade. Sabe-se evidentemente que as religiões sempre devem ficar muito vigilantes para não gerar intolerâncias, por incompreensões ou assimilações muito estreitas da própria doutrina. Muitos fiéis podem ser levados a posicionamentos radicalizados, por uma orientação equivocada ou descuidada (ou, mesmo, intencional) de determinados líderes religiosos. O religioso é um terreno muito propício para radicalismos, pois lida com uma dimensão e valores essencialmente radicais da existência humana. Muito se poderia refletir sobre isto. Reafirmo que tudo tem a ver e pode encontrar boas soluções em uma lúcida e honesta “educação das relações religiosas”.

(R.A.C.) O Diálogo Inter-religioso pode ser um caminho na superação da intolerância religiosa quais as perspectivas contemporâneas?

(J.I.F.) Com certeza. Tenho uma boa experiência neste sentido. Vou iniciar com um exemplo que já repeti muitas vezes. Um dia eu estava participando em um seminário sobre espiritualidade das religiões de matriz africana. Uma Mãe de Santo (Yalorixá), que era uma das painelistas, acabara de fazer uma reflexão de grande profundidade e que, no meu entender, deveria merecer um registro escrito. No final de sua colocação, perguntei-lhe sobre porque as religiões de matriz africana, ainda hoje, continuavam resistentes ao registro escrito das grandes lições de vida e fé de seus líderes e, também, de suas reflexões espirituais e religiosas. Ela me respondeu: “Padre Ivo, vou dizer uma coisa muito certa. Se a gente escreve, aí vêm outros, leem e saem fazendo bobagem!…” Foi uma resposta inesperada, que já me oportunizou muita reflexão. Em primeiro lugar: valores e atitudes não se aprendem em livro! Ou seja, existem dimensões no conhecimento que não passam pela simples captação da razão. As formulações da linguagem sempre serão pobres para dar conta delas. Só podem ser colhidas na vivência e no coração.

(J.I.F.) O diálogo, o sentar em roda e escutar-se mutuamente, de forma informal e amiga, o cultivo da amizade, tudo isto faz com que as barreiras caiam e aprendamos a nos respeitar e a nos reconhecer mutuamente.

(R.A.C.) Na UNISINOS existe o GIRD, do qual o senhor faz parte. Como se deu a constituição desse Grupo Inter-religioso de Diálogo e quais foram os seus objetivos? Como foi a sua atuação?

(J.I.F.) O Grupo Interreligioso de Diálogo do qual eu participo já tem 15 anos. Foi criado em 2002. No início o denominávamos de Grupo de Diálogo Interreligioso. A própria metamorfose do nome tem um significado. Quando o grupo foi criado, em 2002, traçamos o objetivo fundamental, onde dizíamos que seríamos um grupo de líderes religiosos, que se reúnem de forma espontânea, sem exercerem representatividade de sua instituição, com a simples finalidade de cultivar uma relação de conhecimento mútuo das religiões envolvidas. O foco principal está em conhecer e reconhecer coletivamente os processos de identidade de cada uma das religiões “representadas” no grupo e também dos próprios processos religiosos de identidade vividos pelos indivíduos integrantes do grupo. Ao longo dessa história de 15 anos, com reuniões frequentes, em geral, mensais, e, também, realizando celebrações inter-religiosas públicas, em conjunto, muitas manifestações e depoimentos já foram colhidos no sentido de que o próprio grupo está sendo uma escola importante para o crescimento e amadurecimento nas próprias opções religiosas dos integrantes.

(R.A.C.) O senhor falou que o grupo sofreu metamorfoses ou transformação. Como foi este processo? Ele parece que gerou um Programa chamado Gestando o Diálogo Inter-religioso e o ecumenismo – GDIREC, teve vinculação com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU e qual a sua relação com o NEABI?

(J.I.F.) Primeiro o detalhe da mudança de nome de GDIR para GIRD, ou seja, de Grupo de Diálogo Interreligioso para Grupo Interreligioso de Diálogo, é decorrência, nasceu de um amadurecimento interno. Na medida em as nossas reuniões foram acontecendo e nos vimos tratando de diferentes assuntos que envolvem as religiões na sociedade, entendemos que o nosso foco não era propriamente dialogar sobre as nossas diferenças ou semelhanças religiosas, enquanto tal, mas sim, dialogarmos sobre nossas convicções religiosas dentro de temáticas que mobilizavam a todos na sociedade.

(R.A.C.) Mas especificamente, a criação do Programa Gestando o Diálogo Inter-religioso e o ecumenismo – GDIREC, como se deu, o que estava envolvido, qual a metodologia utilizada do formação e consolidação do grupo?

(J.I.F.) É uma história bonita. Vou tentar traçar alguns pontos importantes, para assim, talvez, apontar aspectos da metodologia utilizada no Grupo Inter-Religioso de Diálogo. Parte-se basicamente das experiências vividas entre os líderes religiosos, em seus encontros e nas convivências nos seus locais e templos ou em ações conjuntas diversas. Em nosso entender, trata-se de uma forma genuína de testemunhar e narrar Deus na diversidade e complementariedade de perspectivas, na sociedade de hoje. É uma experiência realizada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, como já sinalizei, ao longo de mais de quinze anos de GDIREC. É uma metodologia que busca a valorização do conhecimento e experiências de cada líder religioso que se faz presente no grupo inter-religioso de diálogo, em reuniões mensais na Universidade com o objetivo de estudar e dialogar sobre a importância de suas manifestações identitárias, cultivando, sobretudo, o reconhecimento mútuo.

(J.I.F.) O Grupo Inter-Religioso de Diálogo – GIRD, foi criado em 2002, dentro de um quadro mais amplo de atividades que visam o cultivo do diálogo interreligioso e do ecumenismo, amparadas no Programa GDIREC, na Universidade. Como já sinalizei a mudança de nome de GDIR para GIRD se deve à percepção do próprio grupo em se caracterizar enquanto a participação de líderes de religiões diversas que se reúnem em diálogo e reflexão sobre diferentes temas, práticas e atividades. O grupo nasceu da própria demanda de líderes de diferentes expressões religiosas, externando o seu interesse em participar, na Universidade, da reflexão a partir dos resultados das pesquisas sobre os locais de culto e templos e sobre as práticas sociais religiosas, desenvolvidas por esta. O Grupo é constituído, hoje, por integrantes de mais de dez religiões ou denominações religiosas diferentes, e, ao longo de sua história, além de suas reuniões mensais, foi protagonista de diversas atividades e participações, tendo sido, sobretudo, principalmente referência e estímulo para os demais projetos gerados no contexto do GDIREC, como foram a assessoria ao “Ensino Religioso” na rede de escolas da região e mapeamento dos locais e templos de culto religioso na região.
O Programa GDIREC hoje não existe mais e está absorvido em uma atividade mais ampla na linha dos debates sobre teologia pública dentro do contexto da programação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, mas o Grupo Interreligioso de Diálogo – GIRD, prossegue e está abrigado hoje como um projeto dentro do NEABI – Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas. Aliás é importante anotar que, na UNISINOS, os líderes religiosos integrantes do GIRD foram os que mais impulsionaram e ajudaram a criar condições para que o próprio NEABI fosse instituído. Havia uma percepção clara de que muitas das intolerâncias existentes tinham a ver com racismo. Os líderes religiosos se empenharam no sentido de que na Universidade fosse facilitado um espaço ou órgão de reflexão e estudos de aprofundamento e disseminação do conhecimento sobre a história e cultura da África e afrodescendentes. O retorno do GIRD ao NEABI é tremendamente simbólico hoje. Quase se poderia dizer: é o filho que acolhe o pai, num momento em que o pai ficou só, de certa forma, e sem a referência de seu programa fundacional.

(R.A.C.) O que mais o senhor gostaria de partilhar, levando em conta o seu engajamento militante e intelectual na causa da luta contra as intolerâncias religiosas?

(J.I.F.) Eu gostaria de aproveitar o momento para me posicionar. Ou seja, como eu vejo o meu engajamento enquanto cristão diante de tudo isto e também, considerando, que além de cristão, sou um sacerdote jesuíta e ao mesmo tempo um cientista social ou sociólogo. Eu, em primeiro lugar, quero destacar que gostaria de me auto-definir como cristão e como tal um “secular encantado” “sociólogo encantado”, pela via cristã. Para mim o ser cristão significa viver a presença de Deus em todas as coisas. A história do cristianismo, apesar de originalmente ter essa marca secular (de secularização, de presença profundamente encarnada na história, nas realidades seculares), pode, no entanto, ser lida como uma história de sucessivos processos de forte sacralização da própria fé cristã. Hoje vivemos em um momento na história da humanidade em que se manifesta sempre mais algo que se poderia denominar de “secularização encantada”. Falamos até aqui mais de intolerâncias e diálogos. Me causa muita dor perceber intolerâncias de origem religiosa e, sobretudo, intolerância de marca cristã…

(J.I.F.) Acho importante agregar esta outra concepção, que é a “secularização encantada”. A expressão talvez não seja totalmente adequada porque sugere certas conotações, que não têm nada a ver com o que se quer dizer. Entre estes diferentes encantamentos “seculares” se encontra de uma forma nova o próprio cristianismo em seu estado mais original. Busco uma vivência cristã desobstruída das múltiplas sacralizações construídas ao longo da história. E, sobretudo, uma vivência cristã que ultrapassa as próprias fronteiras (limites) dos cristianismos institucionalizados e de todas as outras tradições religiosas instituídas ou formas de organizar socialmente diversos seguimentos religiosos.

(J.I.F.) Em segundo lugar, gostaria de dizer que me vejo como um cristão engajado pela justiça. Ser cristão sempre significou e significa este comprometimento. Isto não é de hoje. O cristão por definição (em seguimento à encarnação de Deus na história) é denúncia de tudo o que está degradando as relações e é comprometido com a construção de outro mundo possível. Outras relações sociais são possíveis. Outras relações ambientais são possíveis. Hoje sou um dedicado divulgador de uma concepção ampla de justiça socioambiental, construída sobre uma tríplice base de relações justas. Vivemos em uma casa comum e para que esta casa não caia em ruínas com o tempo, é fundamental que as relações justas sejam permanentemente cultivadas. São relações justas envolvendo o reconhecimento profundo da dignidade de todos os seres humanos, acima de raízes étnico-raciais, de crenças religiosas, das diferentes gerações, gênero, visões de mundo e opções, buscando sempre formas de estabelecer o diálogo, o valor da pluralidade e a dinâmica da reconciliação; são relações justas envolvendo a efetivação de políticas de superação das desigualdades sociais e acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, saúde, moradia, educação e alimentação; e são relações justas envolvendo a conservação e preservação dos “dons da criação” ou bens naturais, em vista de um ecossistema saudável e de vida para o futuro do planeta terra e seus habitantes. Estas diferentes esferas de relações, permanentemente cultivadas com atenção e justiça, são o caminho de busca da sustentabilidade, ou seja, de sociedades sustentáveis. O mundo cristão, ao longo da história, tem grandes dívidas com relação a isso. Muitos equívocos, muitos males, muitos pecados, muitas infidelidades aos princípios fundantes do Cristianismo estão escancarados na história. É necessária uma permanente busca de renovação. Tenho plena consciência de que, mesmo que isto seja da própria essência do ser cristão, existe uma necessidade permanente de atualização e correção de rota, porque nós humanos somos limitados e frágeis. Trata-se de preocupações que não podem estar alheias ao “que fazer” científico de um cientista social ou sociólogo, como eu, que carrega consigo ou é puxado pelo compromisso com a promoção da justiça. Ou como reza o nosso lema central: O serviço da fé só acontece na sua autenticidade cristã, mediante promoção da justiça.

POR ONDE CAMINHAM AS RELIGIÕES E RELIGIOSIDADES, HOJE: NOTAS PARA UMA REFLEXÃO SOBRE A “SECULARIZAÇÃO ENCANTADA”.

Publicado em forma de capítulo do livro “O Luteranismo no Contexto Religioso Brasileiro”, em 2007

Importante recorte provocando o conceito de “secularização encantada”

Conferência proferida na abertura do
V Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana,
Escola Superior de Teologia – EST, São Leopoldo, RS, 17-18 de abril, 2007.

Publicado, como primeiro capítulo no livro organizado por Wilhelm WACHHOLZ. O Luteranismo no contexto religioso brasileiro. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2007, pp.9-26. (A presente publicação não reproduz as notas de pé de página).

José Ivo Follmann sj

Não é minha intenção dar conta da complexidade incomensurável da esfera religiosa tal como ela se expressa hoje, muito menos poderia atrever-me a esboçar os caminhos da identidade evangélico-luterana, dentro dessa complexidade, como seria de se esperar no contexto de um Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana. Proponho, de forma singela, sem pretensão, retomar a pergunta sobre a questão da secularização, mediante recurso a algumas aproximações, que estão em pauta, com maior ou menor visibilidade, no que diz respeito ao mundo das religiões e religiosidades, hoje. Trata-se de apontamentos que querem contribuir, por um viés próprio, no traçado do pano de fundo do tema central do Simpósio.

1) As Ciências da Religião e a “secularização encantada”

O Prêmio Nobel da Química de 1977, Ilya Prigogine, em uma de suas obras de maior repercussão, elaborada em co-autoria com Isabelle Stengers, “A Nova Aliança” (1984) apela para um “reencantamento do mundo”, numa espécie de resposta, – ou, talvez, retorno em outro plano, – às reflexões de Max Weber, sobre o processo que o fez cunhar, em outra época, a célebre expressão: “desencantamento do mundo”
.
Não se trata, evidentemente, de um desejo de mistificação e, muito menos, de uma busca do retorno da magia. Não se trata de um retorno ao animismo. Segundo os autores, a “antiga aliança” animista está morta e bem morta. O apelo assume posição pela derrubada das fronteiras artificiais existentes no processo de conhecimento humano, na busca de uma reaproximação do ser humano com a natureza, pois o nosso mundo também não é o da “aliança moderna”… Hoje presenciamos uma “nova aliança”. “Chegou o tempo de novas alianças, desde sempre firmadas, durante muito tempo ignoradas, entre a história dos homens, de suas sociedades, de seus saberes, e a aventura exploradora da natureza”. (Prigogine, I; Stengers, I., 1984, p.226)

A ciência moderna, de certa forma, se constituiu contra a natureza, pois negava-lhe a complexidade, pretendendo reduzi-la a leis acessíveis. (Prigogine, I; Stengers, I., 1984, p.4-5) A ciência não é só manipulação da natureza, mas é também e, sobretudo, esforço para compreendê-la. (p.203) “A natureza recusa exprimir-se na linguagem que as regras paradigmáticas supõem, e a crise (…) explode com tanto mais força, quanto era cega a confiança”. (p.221)

O relatório da Comissão Gulbenkian para a Reestruturação das Ciências Sociais, em 1996, comenta: “Se isto põe um problema grande aos estudiosos das ciências naturais, ainda maior é aquele que coloca aos cientistas sociais. Transpor o reencantamento do mundo para uma prática razoável e eficaz não será fácil. Mas parece-nos ser uma tarefa urgente para os cientistas sociais.” (Wallerstein e outros, 1996, p.110)

É, sobretudo, tarefa urgente e não menos complicada para quem se dedica ao estudo das religiões. A referência ao “reencantamento do mundo”, no âmbito do debate sobre as Ciências, em geral, e as Ciências Sociais em particular, quer ser o horizonte principal no qual pretendo me mover ao longo deste texto.

O campo científico, ao longo de seu processo histórico, no afã de afirmação da idéia de objetividade, muitas vezes confundida com “neutralidade”, acabou sendo um dos principais protagonistas do “desencantamento do mundo”. Isto, sobretudo, em se tratando da busca de uma “neutralidade” impossível. Cabe ao mesmo campo científico ajudar na tarefa do “reencantamento”, ou da re-humanização do mundo. Prigogine e Stengers (1984, p. 13) falam em um isolamento clerical da comunidade científica. Trata-se de uma analogia certeira! As teologias e as racionalidades institucionais religiosas não estão isentas do desencantamento provocado pela racionalidade científico-tecnológica, pois elas também tiveram e continuam tendo efeitos perversos com relação ao sentimento do crente e à vivência religiosa, esvaziando-a ou canalizando-a por desvios às vezes desérticos e sufocantes.

Otávio G. Velho em entrevista para o IHU OnLine (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p.11-12) ao se referir à relação religião e ciências sociais, fala em uma nova percepção das “esferas da vida social” e a sua importante inter-relação. Infelizmente ainda nos deparamos com cientistas imaturos, construindo mundos exclusivos, cheios de falsos moralismos e – poderíamos dizer – até arrogantemente imbecis, tentando eliminar realidades sociais ou aspectos das realidades sociais, por “decreto”, para não perderem os seus pequenos domínios e poderes. Segundo este antropólogo, na mesma entrevista, ainda existe muito preconceito. Ele conclui: É urgente que se parta para uma atitude de maior modéstia e humildade.

No mesmo conjunto de entrevistas do IHU On Line, a antropóloga Regina Novaes nos lembra que vivemos tempos de “ventos secularizantes” mas, ao mesmo tempo, devemos estar atentos ao “espírito do tempo” (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p. 16).

Segundo esta antropóloga, dá-se, de fato, “um tipo de secularização quando diminui o peso das autoridades religiosas tradicionais e a obrigação de um jovem seguir a religião dos pais”. No entanto, “partilhando das possibilidades culturais desta época, os jovens desta geração estão sendo chamados a fazer suas escolhas em um campo religioso mais plural e competitivo”. O “espírito do tempo” de que fala Regina Novaes, tem a ver com a idéia de multiculturalismo, de reconhecimento do diferente, de des-monopolização da cultura e da religião.

Os “ventos secularizantes” misturados com o “espírito do tempo” nos colocam no centro da questão de nossa presente reflexão… Pode-se, talvez, dizer que vivemos em tempos de “secularização encantada” ou “secularização crente”. Isto faz parte do que Danièle Hervieu-Léger, em publicação conjunta com Françoise Champion, aponta como “o processo de reorganização permanente do trabalho da religião numa sociedade estruturalmente impotente para satisfazer as expectativas que lhe são necessárias suscitar para existir enquanto tal”. (1986, p.227). A secularização não pode ser tomada como sinônimo de desencantamento ou de perda da alma humana. Estamos falando de uma secularização não secularista, uma secularização que ajuda a restabelecer a verdadeira alma roubada (ou usurpada), pelos racionalismos e racionalidades e também, sobretudo, por poderios sagrados, que construíram uma superestrutura desconectada com a realidade interferindo na condução da vida humana, da organização social e da natureza, com regramentos ditados por interesses institucionais.

Secularização é um processo que conduz, essencialmente, à afirmação da autonomia das realidades terrestres. Após tempos de distorções e ressecamentos, como efeito perverso da modernidade, de mais a mais, desperta a consciência de que essas realidades são complexas e cheias de encanto e de dimensão do eterno. Existe um novo encontro com o religioso, mediado pela liberdade de opção e não determinação institucional. Às vezes as religiões, no afã de colocar-se a serviço dessa dimensão de encanto e do eterno, nas realidades terrestres, se apropriaram e apropriam de tal modo dessa dimensão, que a sufocam, ressecam ou atrofiam.

Associo-me àqueles que, hoje, estão na busca por acertar melhor o foco da competência das Ciências da Religião. Este foco está, sobretudo, na questão da crença, enquanto tal. Uma das contribuições de maior relevância e pertinência para a sociologia das religiões em geral, mas, sobretudo, para a sociologia das religiões no Brasil, apesar de ainda pouco assimilada neste meio, é a “teoria da modernidade religiosa” de Danièle Hervieu-Léger, cujas bases foram lançadas já em 1986, na obra já citada, escrita com a colaboração de Françoise Champion, “Vers un Nouveau Christianisme”. É contribuição, sobretudo, pertinente para a sociologia das religiões no Brasil, pois traz chave importante para dirimir o impasse entre os afirmadores do retorno do sagrado e os afirmadores da secularização secularista. Na mesma obra está sinalizada, também, a importância e urgência de uma “sociologia do crer”, o que, sem dúvida, é uma novidade promissora para a sociologia das religiões.

Carlos Eduardo Sell e Franz Josef Brüseke, em recente obra publicada (2006), apontam exatamente para isto. Estes dois autores, retomando a contribuição da socióloga francesa, lembram que “o que caracteriza a nossa época não é tanto a indiferença religiosa ou a descrença; mas, acima de tudo, o fato de que as crenças religiosas escapam ao controle das grandes igrejas e das instituições religiosas”. (p.189-190).

A “secularização encantada” ou “secularização crente” pode ser, em grande parte, compreendida dentro do contexto daquilo que Danièle Hervieu-Léger (com Françoise Champion) denomina de “modernidade psicológica” (1986, p.201). Trata-se de uma busca do homem em pensar-se por si mesmo e diz respeito a um processo de individualização e de subjetivização da vida religiosa. Deve ser destacado que se trata de um individualismo religioso que está absorvido no chamado individualismo moderno. Faz parte do individualismo moderno!

2) A esfera religiosa no Brasil: refletindo a partir de dados estatísticos

O Brasil, historicamente, foi e continua sendo um país cristão ou, mais especificamente, católico. A identidade evangélico-luterana no Brasil é uma identidade, portanto, dentro de um contexto católico. Assim como em outros países, hoje, no entanto, vem-se perdendo, no Brasil, a referência religiosa unívoca no processo de construção da identidade. Em alguns contextos brasileiros, dizer que o Brasil é um país católico, já não soa mais tão evidente como soava em outros tempos.

Em um texto que publiquei recentemente (Follmann, J.I., 2006) reproduzi diversas tabelas estatísticas mostrando recortes específicos referentes à esfera religiosa em números, a partir do último Censo realizado pela Fundação IBGE (2001). Nessa publicação, em um dos quadros, comparei, por exemplo, as Unidades da Federação, classificando-as segundo tendências mais acentuadas pelo percentual apresentado em cada um dos três “grupos” religiosos mais numerosos: os católicos, os evangélicos e os “sem religião”. A comparação levou a apontar, de certa forma, para o horizonte de cenários religiosos diferentes. Usei o artifício de destacar os Estados que apresentam uma média percentual superior à média nacional de presença populacional em cada um destes “grupos” e apontando os cinco Estados com percentual mais elevado, obteve-se o seguinte resultado: um primeiro cenário tendendo para a manutenção do “Brasil católico”, onde o carro chefe é constituído dos Estados do Piauí, Ceará, Paraíba, Maranhão e Alagoas; um segundo cenário tendendo gradativamente para um “Brasil evangélico”, onde o principal contexto puxador está nos Estados de Rondônia, Espírito Santo, Roraima, Rio de Janeiro e Goiás; e, um terceiro cenário tendendo gradativamente para um “Brasil sem religião”, onde os Estados de Rio de Janeiro, Rondônia, Pernambuco, Bahia e Espírito Santo são os maiores impulsionadores. Ou seja, existe uma importante sinalização para um Brasil com três horizontes religiosos claramente diferenciados manifestos nas tendências estatísticas. Talvez pudéssemos falar, ainda, de outros cenários como o de um “Brasil espírita”, de um “Brasil de religião de matriz africana” e de um “Brasil umbandista”, mas as estatísticas que o IBGE nos proporciona, pouco contribuem para isto.

Se olharmos, agora, especificamente, para o Estado do Rio Grande do Sul, veremos que esta distribuição não é tão evidente. Apesar de sempre pensarmos este Estado mais como evangélico, devido, sobretudo, à forte presença histórica da identidade evangélico-luterana, ele continua, pelas estatísticas, mais próximo do “Brasil católico”.

Fica patente que o Estado do Rio Grande do Sul permanece um estado eminentemente cristão, pois 90% dos gaúchos se dizem cristãos (a maioria deles sendo católicos). Mas será que esta é, de fato, a realidade do mundo das religiões tal como se apresenta no RS hoje? As estatísticas nos mostram que o percentual de católicos no RS está acima do percentual nacional e que o percentual evangélico está abaixo do percentual nacional. Sem falar dos sem-religião, cujo percentual está, nesse Estado, muito abaixo do percentual nacional. Esse quadro, no entanto, tende aceleradamente a mudar, não, certamente, pela via evangélico-luterana, mas pela via evangélico-pentecostal. Como devemos ler os dados do mundo das religiões, dentro do contexto em que vivemos?

Na mesma publicação aqui referida (Follmann, J.I., 2006), foram apresentados resultados estatísticos de uma recente pesquisa que realizamos, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Chamam a atenção dados colhidos em seis municípios já pesquisados (Cachoeirinha, Canoas, Esteio, São Leopoldo, Novo Hamburgo e Sapucaia do Sul), que totalizam uma população de 1.050.347 habitantes, onde as pessoas, que freqüentam semanalmente algum culto ou celebração religiosa, somam um número aproximado de 291.336, ou seja: 28% da população.

O fato de uma adesão religiosa mais forte, de freqüência semanal, estar visível em 1/4 da população nos seis municípios em questão, sugerindo um índice relativamente grande de manifestação pública freqüente de fé, pode ser lido, também, pelo inverso, mostrando que quase 3/4 da população tendem a uma religiosidade mais frágil em termos institucionais.

A existência de 3/4 da população que revela não freqüentar, regularmente, alguma religião, sinaliza que estamos numa sociedade onde a adesão religiosa institucional é majoritariamente muito frágil. Este fato, de 3/4 da população não apresentar uma freqüência religiosa pública assídua deve ser anotado e merece a nossa atenção. Deve-se observar, ainda, que mais da metade dos que se manifestam como freqüentadores cristãos semanais, são de recorte pentecostal ou neo-pentecostal.

O que chama a atenção, também, na mesma pesquisa, é a grande multiplicação de locais de culto e templos nas últimas décadas e grande concentração dos mesmos nas categorias das religiões de matriz africana e de umbanda, por um lado, e do pentecostalismo e neo-pentecostalismo, por outro. De um total de 1327 locais de culto e templos cadastrados, 442 são de religiões de matriz africana ou umbandista e 435 são pentecostais ou neo-pentecostais. É reconhecido que é exatamente nestes dois conjuntos ou “grupos” religiosos que se dá uma maior proximidade e valorização dos sujeitos crentes em suas necessidades imediatas.

Vivemos no Brasil, como em outros países, contextos da aceleração das desigualdades, retratados na crescente opulência de uma minoria privilegiada, por um lado, e numa crescente privação e insuficiência de atendimentos da maioria, por outro lado. Trata-se de um terreno tremendamente propício à multiplicação de buscas de soluções ou, então, à adesão desesperada a fórmulas individuais ou coletivas de fuga e absenteísmos ou de violência e agressividades.

O Brasil tem uma vocação histórica à diversidade e ao convívio com o diferente. Esta vocação desemboca, hoje, num terreno cultural amplamente propício e ajuda a acelerar, de modo particular, a multiplicação e diversificação religiosa.

A multiplicidade de ofertas religiosas e a liberdade de escolha manifesta um processo de modernização, liberalização e democratização. É o que nos refere Marcelo Camurça em entrevista já mencionada (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p.14). Para este sociólogo, estamos assistindo ao crescimento de um individualismo subjetivista. Dentro da lógica de discussão deste nosso texto, podemos falar na secularização que se dá pela via da secularização encantada ou secularização crente, na medida em que existe, apesar do grande risco de um individualismo subjetivista cego, uma libertação em relação aos poderes institucionais tradicionais e a busca autônoma do sentido profundo do existir humano e da afirmação da crença.

Voltemos, mais uma vez, a nossa atenção para os três cenários tendenciais construídos, acima, a partir das estatísticas religiosas no Brasil. É notável a coincidência de alguns estados, sobretudo, entre os “cinco mais” do cenário evangélico e os “cinco mais” do cenário sem religião: Rio de Janeiro, Rondônia e Espírito Santo. Este fato vem ao encontro da hipótese de certa proximidade, em determinadas circunstâncias, entre fatores que desencadeiam a busca da solução neopentecostal – a forma religiosa do cenário evangélico de maior expansão – e a identificação como sem religião (traduzível, em muitos casos, como religiosidade de “arranjo pessoal”)… Ambas são soluções individuais, sem implicar em compromisso de comunidade. São, a rigor, neste sentido, soluções secularizantes.

Danièle Hervieu-Léger nos reporta às categorias do “peregrino” e do “convertido”, duas categorias importantes integrando o público de freqüência religiosa pública, pouco assídua ou nula. (Hervieu-Léger, D., 1999). O “peregrino”, por um lado, é o religioso em movimento e fluidez nos conteúdos de crença, construídos e desconstruídos permanentemente, batendo nas mais diversas portas, lembrando de certa forma o fenômeno, que outros, como Marcelo Camurça (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p.14), denominam de “dupla pertença religiosa”. O “convertido”, por outro lado, é o religioso em movimento, fruto de uma escolha individual, calcada em alto grau de autonomia do sujeito crente.

Retomando o comentário acima sobre as freqüências religiosas semanais nos seis municípios, por nós pesquisados, em que referíamos que mais da metade dos freqüentadores semanais cristãos são de recorte pentecostal e neo-pentecostal, é importante que sinalizemos que em quatro dos municípios, quase a metade do total de freqüentadores semanais é do “grupo” pentecostal ou neo-pentecostal.

Já não podemos mais, obviamente, falar que a identidade evangélico-luterana como a das demais Igrejas Cristãs, se constrói em um contexto de referência externa eminentemente católica. Essas identidades devem ser vistas em contraposição ou em relação as crescentes soluções de “arranjo pessoal”, por dentro e por fora da pregação com apelos baseados no Evangelho de Jesus Cristo.

Hoje, em torno de 15% da população mundial, se diz “sem religião”. No Brasil, apesar de ainda estar muito aquém do índice mundial, o mesmo índice também cresceu muito na última década. No Estado do Rio de Janeiro dá-se, neste quesito particular, uma aproximação com a média mundial. Se, no entanto, considerarmos que muitos, dos que se dizem “sem religião”, vivem de fato revestidos de religiosidades privadas de caráter pessoal e que existe certa aproximação entre estas religiosidades de “arranjo pessoal” e o fenômeno neopentecostal, que explode na esteira de algumas lideranças carismáticas ou agentes bem treinados, devemos dizer que, certamente, o número dos brasileiros “sem religião”, ou seja, sem vínculo e compromisso com uma instituição religiosa, é muito mais elevado do que os números que as pobres estatísticas nos podem fazer imaginar. São brasileiros que, na prática, se secularizaram, ou seja, se des-institucionalizaram religiosamente, vivendo um claro processo de secularização, mas trata-se de uma secularização crente ou encantada.

Podemos falar numa clara des-institucionalização religiosa no Brasil. Esta se dá, sobretudo, pela via da des-catolização, de forma particular, no contexto dos Estados aqui mostrados como “cenário evangélico” e “cenário sem-religião”… Trata-se de um evidente desmantelamento do monopólio religioso. A des-catolização, isto é, o fato de podermos visualizar outros “Brasis” com coloração religiosa diversa, no caso brasileiro, como em outros lugares, mostra que estamos em um caminho de secularização. Mas não se trata só de des-monopolização… Podemos falar, também, em des-luteranização, em des-episcopalização, em des-presbiteranização, em des-metodização, uma vez que o cenário do “Brasil evangélico” é crescentemente um cenário pentecostal e neopentecostal. Trata-se da substituição de soluções de compromisso comunitário, por soluções individualizadas.

3) A Mídia e a imagética como mediação da secularização.

As estatísticas referidas não dão conta de fenômenos religiosos particularmente importantes e que já mereceram muita atenção em diversos estudos. Refiro-me, especificamente, à crescente presença dos evangélicos na política; ao crescente impacto da Renovação Carismática Católica; à fantástica multiplicação de novas formas coletivas de viver religião; e à crescente ampliação no uso dos meios de comunicação de massa para veicular conteúdos e práticas religiosas; além do crescente número de pessoas, que se declaram “sem-religião”, como já foi comentado.

Não podemos, evidentemente, dar conta de todos estes ricos aspectos e que apontam, de uma forma ou de outra, para interfaces com o processo de secularização. Entendemos, contudo, ser importante apontar aqui, mesmo que seja só de passagem, toda a questão envolvida com a perda de controle dos poderes religiosos sobre os bens religiosos que passam a ser de domínio público.

É um aspecto da realidade religiosa que merece particular atenção. A grande facilidade que existe, hoje, no domínio dos meios de comunicação e no poder de veicular idéias, práticas e conteúdos, faz com que se acelere o processo de “apropriação pública” das coisas sagradas. Isto está facilitado, sobretudo, pelo avanço do diferentes meios de comunicação.

Um exemplo típico é o amplo uso de referências religiosas nas tele-novelas brasileiras, sobretudo, da Rede Globo, reproduzindo ao sabor de ditames obviamente mercadológicos de conquista de públicos, tradições ou inovações religiosas do agrado dos telespectadores consumidores.

O mesmo deve ser dito da multiplicidade de páginas eletrônicas (ou sítios web) veiculando idéias, símbolos e conteúdos de crenças religiosas ou mágicas ao sabor da inspiração ou criatividade dos indivíduos.

Não precisamos, no entanto, reportar-nos aos sofiscados meios eletrônicos de comunicação e informação que estão sempre mais presentes e atuantes… Quem é que ainda não se deparou com “maços” de santinhos, ou pequenos folhetos com orações e outros objetos, em portas de templos católicos, sendo passados de mão em mão, carregando consigo uma corrente mágica de poder sagrado? Trata-se de um sagrado profano ou que fugiu do controle daqueles que sempre acharam que tinham o poder de atribuir-lhe poder sagrado, ou não.

4) Testemunhando diferentes processos identitários no esfera religiosa

Colocando-nos num outro plano de leitura e de abordagem da esfera religiosa e sempre buscando aproximações ao foco de nossa reflexão, devemos dizer que presenciamos diferentes processos identitários que tomam direções opostas e até incompatíveis.

Ao mesmo tempo em que se multiplicam as iniciativas de cultivo das identidades religiosas dentro de um processo de diálogo, existem também os levantes fundamentalistas com suas intolerâncias e intransigências, na linha do conflito, da agressividade, do combate mútuo e do anti-diálogo.

Ao lado destas duas formas mais “sólidas” (hard) de identidade religiosa, é grande, no entanto, a presença das formas mais “suaves” (soft) de identificação. Trata-se, obviamente, neste último caso, da maioria. Estas últimas sucumbem muito mais facilmente aos ditames do mercado e outras imposições culturais do momento.

O cultivo das identidades religiosas dentro de um processo de diálogo também acontece em clara contradição contra os processos competitivos e de busca de fiéis – quase a qualquer preço – que caracterizam determinadas iniciativas religiosas. Pessoalmente tendo a concordar com os autores – Antonio Flavio Pierucci e outros – que percebem, nestes mecanismos mercadológicos de competição e busca de fiéis, uma íntima relação com um processo de desmoralização da esfera religiosa enquanto tal. Se isto, por um lado, é verdade, uma cuidadosa observação de outros mecanismos visíveis na esfera religiosa, sempre mais acentuados nas últimas décadas, podem estar consubstanciando uma espécie de re-moralização desta mesma esfera na sociedade. Entre estes mecanismos deve ser destacado o amplo processo de diálogo inter-religioso desencadeado no mundo todo através das mais diversas iniciativas. Só a cultura do diálogo e o diálogo inter-religioso têm condições de fazer com que a própria secularização crente ou secularização encantada, da qual viemos falando, se faça em consonância com a dinâmica renovadora das instituições religiosas.

O diálogo proporciona sempre um ambiente propício para o conhecimento e reconhecimento dos outros, dos diferentes, sendo ao mesmo tempo importante oportunidade para o cultivo e a afirmação da própria identidade religiosa. O diálogo inter-religioso, quando bem cultivado, em todas as faixas etárias, certamente poderá livrar as nossas sociedades de muitas perigosas fobias. Triste seria se, na ausência ou fragilização de diálogo, o “mundo das religiões e religiosidades” não passasse de um melancólico cacoete ou reforço da violência e agressividade, quando não o seu estimulador.

Tratar-se-ia, neste último caso, do naufrágio do sublime no mar do embrutecimento e da violência, ou seja, no afã sacralizador fundamentalista estaria embutido o veneno acelerador do secularismo.

5) Educação, secularização e religião: em busca da construção de uma nova área de conhecimento…

Segundo Giumbelli entrevistado para IHU OnLine (Teixeira, F.; Menezes, R. 2005: p. 18-20), a busca em relação à adequação de uma política do ensino religioso nas escolas públicas, é uma questão relevante no estudo do campo religioso, hoje, no Brasil. A colocação deste especialista, está pautada, sobretudo, na reflexão sobre os momentos que sucedem a era da totalidade na cultura brasileira (ou seja, do monopólio dentro da esfera religiosa) que não deve significar o recrudescimento das disputas na afirmação de minorias ou de minorias em busca de serem maioria.

Estamos hoje, no Brasil, muito distantes daquilo que foi este país no tempo do Padroado onde Estado e Igreja católica viviam um grande consórcio de poder sobre a mente do povo. Também não conseguiu fazer história, no Brasil, a figura do Estado laico. A contribuição da socióloga francesa mais uma vez se faz lúcida, também para a nossa realidade. Segundo Danièle Hervieu-Léger (1999), necessitamos, hoje, de uma “laicidade mediadora”. Carlos Eduardo Sell e Franz Josef Brüseke, retomando esta idéia de Hervieu-Léger, comentam que, “em vez de um Estado neutro e indiferente às religiões” necessitamos de “um Estado cooperativo, que promova, em união com as diversas famílias espirituais, a produção de referências éticas, a preservação da memória e a construção do tecido social”, enquanto que “as próprias religiões devem promover entre si o diálogo cooperativo e ecumênico”. Não cabe ao Estado negar o estatuto religioso, mas “deve começar a reconhecer a contribuição que as diferentes famílias religiosas em diálogo podem oferecer para a vida pública”. (2006: p.190-191)

A educação tem, neste sentido, um papel fundamental a exercer. A educação para a cultura do diálogo apresenta-se como uma das formas privilegiadas de regenerar as próprias religiões e religiosidades em sua contribuição moral nas sociedades e como forma de ajudar a construir a cultura plural e democrática, caminho de redenção da humanidade, nos dias de hoje. O “mundo das religiões e religiosidades” tem uma vocação histórica e, talvez, seja um dos caminhos mais fecundos, na atualidade, dentro do empenho da humanidade em prol da reconstrução de seu mundo.

O ensino religioso só terá sucesso, no entanto, se puder ser mediado por um fecundo processo de produção do conhecimento. A Área de Conhecimento RELIGIÃO é muito referida e muito propalada por quem protagoniza a discussão sobre o ensino religioso. Trata-se, todavia, de um grande desafio. Gostaria de concluir com a idéia de que, hoje, de mais a mais, é necessário que se congreguem os melhores esforços para sentarem-se numa mesma rodada de conversa e de reflexão Cientistas das mais diferentes disciplinas, nas Áreas Humanas, junto com Líderes Religiosos e pessoas crentes das mais diversas denominações e instituições religiosas, para, num fórum único, construir esta importante Área de Conhecimento no modo transdisciplinar de ser e fazer. Só assim o ensino religioso também poderá protagonizar um processo harmônico de convívio fecundo e fecundante entre as religiões e o processo de secularização encantada ou crente.

Bibliografia

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FOLLMANN, José Ivo. “O Mundo das Religiões e Religiosidades: alguns números e apontamentos para uma reflexão sobre novos desafios”. In: SCARLATELLI, Cleide da Silva; STRECK, Danilo; FOLLMANN, J. Ivo (orgs). Religião, Cultura e Educação. São Leopoldo: Edunisinos, 2006, pp. 11-28.
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PIERUCCI, Antonio Flavio. O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2003.
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PIERUCCI, Antonio Flavio; PRANDI, Reginaldo. A realidade social das religiões no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996.
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WALLERSTEIN, Immanuel e outros. Para abrir as Ciências Sociais (Comissão Gulbenkian para Reestruturação das Ciências Sociais). São Paulo: Editora Cortez, 1996.

RADICALIZAÇÕES FUNDAMENTALISTAS NA CONTRAMÃO DO PLURALISMO RELIGIOSO.

Publicado como capítulo do livro “Cartografias do Sagrado e do Profano: Religião, Espaço e Fronteira”, em 2014.

Capítulo de livro

I Simpósio Regional Sul da Associação Brasileira de História das Religiões Cartografias do sagrado e do profano: religião, espaço e fronteiras.
Associação Brasileira de História das Religiões – ABHR
Escola Superior de Teologia – EST,
São Leopoldo, RS 17 a 19 de outubro de 2013.
(Trabalho Apresentado no ST nº 2 – Religiões e Religiosidades na Atualidade: Linearidades e Rupturas)

Publicado como capítulo no livro organizado por BOBSIN; SHAPER; ROBIN. Cartografias do Sagrado e do Profano: religião, espaço e fronteira. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2014, pp. 119-129. (Esta publicação não reproduz as notas de pé de pagina).

José Ivo Follmann

Resumo: Dentro de contextos de pluralismo religioso crescente, como é o contexto brasileiro, a persistência e recrudescimento de radicalizações fundamentalistas merecem a nossa atenção. O artigo ensaia uma reflexão sociológica sobre algumas tendências de linearidades e rupturas na esfera religiosa buscando lançar interrogações sobre o fenômeno de radicalizações no contexto pluralista religioso brasileiro. Pontuando diferentes pontos de vista, que acolhem lógicas da apropriação e gestão de sua historicidade, lógicas dos campos de atividade e lógicas dos sujeitos e de seus processos de identidade, diversas hipóteses são levantadas emprestando um colorido especial à constatação geral da existência de radicalizações fundamentalistas religiosas dentro do contexto do aparente indiferentismo pluralista na sociedade brasileira contemporânea.
Palavras-chave: fundamentalismos religiosos; pluralismo religioso; sociologia das religiões.

Abstract: In contexts of growing religious pluralism, like the Brazilian context, the persistence and renewal of fundamental radicalisms deserves our attention. The article essays a sociological reflection about some tendencies in continuities and ruptures in the religious sphere for questions about radicalizations in the Brazilian pluralistic religious context. Punctuating different points of view, with attention to the logics of the appropriation and management of historicity, with attention to the logics of social fields and with attention to the logics of subjects and of identity´s processes, different hypotheses are defined, giving a special coloring to the general perception about the existence of religious fundamental radicalisms in the context of apparent pluralistic indifference in Brazilian contemporary society.
Key-words: religious fundamentalisms; religious pluralism; sociology of religions.

Palavras introdutórias…

Vou iniciar com uma referência que pode ser considerada como clássica no repertório da literatura brasileira. É recorte de um diálogo colhido da obra de João Guimarães Rosa. Trata-se de uma citação muitas vezes referida. Pode ser considerada paradigmática: “Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. (…) Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca.” (Rosa, 1980, p.15). O diálogo registra a cultura do jeitinho, do arranjo pessoal, das bricolagens espontâneas, do sincretismo, da abertura ao diálogo. Trata-se de uma cultura muitas vezes citada e gerada pela necessidade de sobrevivência da própria tradição religiosa, como foi o caso, por exemplo, das religiões de matriz africana. A alma religiosa brasileira parece ter sido forjada dentro de uma dinâmica e cultura de sincretismo e de diálogo.

Esta maneira estranha de iniciar uma reflexão sobre a temática dos fundamentalismos religiosos ou das radicalizações fundamentalistas na esfera religiosa, é proposital, pois parece reforçar a ideia de que este tema é algo que está na contramão, não só do contexto atual de pluralismo religioso, mas de traços culturais profundos na cultura brasileira.

No mundo, a temática dos fundamentalismos religiosos retomou grandes espaços nos meios de comunicação e na opinião pública, nos primeiros anos deste milênio, especificamente, a partir de diversos acontecimentos, destacando-se o atentado ao World Trade Center – WTC, Nova York, em 2001. No Brasil, talvez, longe do grande embate entre os radicalismos religiosos muçulmanos, do Médio Oriente, e a reação do Ocidente cristão, deve-se colocar em relevo outros fatores para entendermos mais profundamente a presença de radicalizações fundamentalistas, neste contexto.

Ao escolher o título do presente ensaio, apesar de centrar-me no contexto brasileiro, estou sinalizando para um enfoque mais amplo tentando lançar questões que nos façam interrogar sobre o momento atual de indiferentismo pluralista aparente e o lugar das radicalizações fundamentalistas neste contexto. Radicalizações fundamentalistas na contramão do pluralismo religioso é um ensaio de reflexão sociológica sobre algumas tendências de linearidades e rupturas na esfera religiosa. Pontuando diferentes pontos de vista, que acolhem lógicas da apropriação e gestão de sua historicidade, lógicas dos campos de atividade e lógicas dos sujeitos e de seus processos de identidade, diversas hipóteses são levantadas emprestando um colorido especial à constatação geral da existência de radicalizações fundamentalistas religiosas dentro do contexto de pluralismo ou, melhor, de indiferentismo pluralista na sociedade brasileira contemporânea. Este indiferentismo pluralista é, em grande parte, aparente e resultado de dissimulação.

O Brasil vive hoje, de algumas décadas para cá, um contexto intenso e crescente de afirmação da diversidade religiosa e do pluralismo em suas manifestações. Não cabe aqui entrar em detalhes sobre este fenômeno. Deixo-o como referência oculta (mas fortemente presente) na elaboração desta reflexão.

Entendo que a discussão da problemática das radicalizações fundamentalistas religiosas poderá ganhar novos e relevantes aportes com um esforço analítico-interpretativo a partir de uma contribuição sociológica tríplice com a qual aprendi a lidar desde o tempo em que escrevi a minha tese doutoral há vinte anos. (Follmann, 2001)

Primeiramente, o ponto de vista da produção da historicidade (Touraine, 1993; 1978) tem como referência principal a existência do conflito central dentro da sociedade, estando em questão a apropriação e gestão de sua historicidade. Este conflito central sempre estará expresso sob muitas formas, a depender das características do processo histórico vivido.

Se olharmos para o mundo ocidental hoje em sua globalidade, algumas manifestações de fundamentalismos religiosos assumem um sentido todo especial. Nos processos históricos vividos pelos povos, na dinâmica da constituição das diferentes sociedades e de suas relações de convívio e de confronto, os fundamentalismos religiosos exerceram, muitas vezes, papel definidor importante. Também devemos estar atentos aos papéis de alienação e de acomodação política, exercidos muitas vezes pelas práticas religiosas fundamentalistas ao longo de toda a história.

Em segundo lugar, o ponto de vista das lógicas dos campos de atividade (Bourdieu, 1971) apresenta como referência principal o espaço social onde se realizam a produção e reprodução da sociedade, “distribuídas” pelas diferentes atividades, tendo cada uma sua lógica social própria. No caso concreto dos fundamentalismos está em questão o campo religioso e sua relação com outros campos na produção e reprodução da sociedade. Essa chave de leitura pode trazer elementos particularmente relevantes para o entendimento dos processos históricos dos campos religiosos, que são, em grande parte, processos de sucessivos fundamentalismos religiosos.

É muito interessante o grande esforço que está sendo feito, a partir das mexidas no Vaticano, pela Igreja Católica Romana no sentido de recuperar a sua força moral na sociedade mundial, que veio sendo bastante abalada por uma série de questões internas vindas a público nas últimas décadas.

Finalmente, o ponto de vista da dinâmica pessoal dos indivíduos apresenta como referência principal a importância das iniciativas em nível de sujeito individual, apresentando-se este (o sujeito) como um lugar de iniciativa coletiva. Em outras palavras, há uma lógica da dinâmica pessoal dos indivíduos (Bajoit, 1992; Follmann, 2007) que deve ser levada em conta no estudo sociológico dos fundamentalismos religiosos, sobretudo, nas fórmulas seguras de vida que proporcionam para os indivíduos um mundo que aparece sempre mais caótico e incerto. Foi também e continua sendo importante o papel dos fundamentalismos religiosos como imperativos e mecanismos legitimadores de iniciativas carentes de suficiente amparo e respaldo dentro da lógica humana, cultural, política, econômica e social vigente.

Continua jogando um papel fundamental a segurança de referência buscada junto a heróis, lideranças, personalidades, guias religiosos, neste sentido. Também devemos estar atentos ao papel avassalador de destruição exercido por certas pregações fundamentalistas sobre as seguranças individuais.

O esquema desta tríplice referência ajudou-me muito, sempre, tanto nas aulas de sociologia e em palestra com públicos diversos envolvendo diferentes temas, como, sobretudo, na construção de referenciais teóricos nos processos de pesquisa.
O livre navegar por diversas perspectivas teóricas é, sem dúvida, um caminho interessante dentro do “que fazer” sociológico. O grande desafio que se coloca é o de não se cair na tentação fácil de aplicação direta de esquemas teóricos concebidos, às vezes, em contextos estranhos às temáticas em questão. A nossa intenção, no entanto, sempre foi a de respeitar rigorosamente o lugar epistemológico de cada um dos pontos de vista teóricos. Parafraseando Santo Agostinho , quase se poderia dizer: “Respeite o lugar epistemológico dos autores e faça o que quiser!”

Três marcas histórico-culturais

Olhando especificamente para o contexto brasileiro sempre nos ajuda quando lembramos referências concretas que fazem parte do nosso processo histórico e impregnam a estrutura e a cultura da sociedade brasileira.

Além da referência cultural característica, feita no início deste texto, e, talvez, na contramão disto, quero chamar a atenção, especificamente, para três outras marcas características ou “marcas histórico-culturais” envolvendo a área das religiões e religiosidades no Brasil. Entendo por marcas histórico-culturais na área das religiões e religiosidades, eventos ou registros que apontam para movimentos definidores das principais características neste meio e que se constituem, de certa forma, como matrizes orientadoras do entendimento.

A primeira marca característica ou marca histórico-cultural deve ser buscada no evento histórico de grande significação que foi a pronunciamento de Dom Sebastião Leme, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, por ocasião da inauguração da estátua do Cristo do Corcovado em 1931, quando assim se expressou, em tom de desafio: “Ou o Estado (…) reconhece o Deus do povo, ou o povo não reconhecerá o Estado!”. (Della Cava, 1975, p.15). A força das instituições religiosas faz efetivamente parte da história política do Brasil.

Neste nível os nossos apontamentos podem acolher a busca recorrente e unilateral de atendimento de interesses institucionais, que sempre pesaram sobre a alma brasileira. Muitas manifestações públicas de massa, que são recorrentes hoje em dia, mobilizando grandes públicos religiosos, vão nesta linha. Podem ser olhados como demonstrações de força política, ou seja, de ocupação do espaço público. Trata-se de um desafio muito grande e, certamente, muito difícil de administrar, no horizonte de um Estado laico, como oficialmente é o nosso.

A grande interrogação que se impõe: até que ponto as lideranças religiosas, neste nível, conseguem administrar os seus serviços religiosos, sem sucumbir à tentação do uso político de sua força, em desrespeito ao espírito republicano e à laicidade do Estado? O recente e polêmico “Acordo Brasil – Santa Sé” e a reação justa, mas igualmente polêmica, no sentido de criação de uma “Lei Geral das Religiões”, são exemplos do quão distante estamos de um convívio religioso pluralista harmonioso e sem contaminação política dentro do Estado laico. Também não se deve descartar a sempre presente cultura do oportunismo de Governos, que à revelia da laicidade do Estado, lançam mão de apoio a práticas religiosas fundamentalistas que lhes facilitam o exercício do poder sobre massas politicamente alienadas.

A segunda marca característica ou marca histórico-cultural pode ser registrada a partir do episódio do “chute da santa” ocorrido em 12 de outubro de 1995. Trata-se de um episódio, que, muito além de sua ruidosa repercussão midiática e social, tem um alcance simbólico sem igual em termos de composição e recomposição da esfera religiosa brasileira. Naquela data, dia da santa católica “Nossa Senhora Aparecida”, culturalmente consagrada no mundo católico como a Padroeira do Brasil, o bispo Sérgio Von Helder da Igreja Universal do Reino de Deus, em um programa matutino, na Rede Record, chamado “O Despertar da Fé”, proferiu insultos e deu chutes na imagem desta santa, em frente às câmaras. O episódio tornou-se conhecido como o episódio do “chute da santa”.

Ricardo Mariano (2005) se reporta diversas vezes a este episódio em seus estudos para uma sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. O “chute da santa” simboliza todo um movimento agressivo para provocar uma inflexão na esfera religiosa brasileira contra o predomínio religioso católico.

A história do Brasil está carregada de manifestações de desrespeito e de agressão das religiões dominantes (maiormente de integrantes do meio católico, sobretudo, no passado) contra as religiões de matriz africana, contra as práticas espíritas e de outras expressões minoritárias. Hoje, presenciamos, em muitos lugares e meios, uma prática, usual no meio neopentecostal, de combater, de forma recorrente, símbolos e práticas religiosas católicas ou de religiões de matriz africana, buscando desclassificá-las e deslegitimá-las. Assiste a uma verdadeira demonização das práticas dos outros em determinados contextos. É uma prática que gera fortes repercussões nos processos de identidade.

A terceira marca caraterística ou marca histórico-cultural pode ser alcançada em diversas situações no papel exercido pela figura do Pai de Santo e Mãe de Santo. Recentemente assistimos no Brasil à passagem do Papa Francisco e uma das percepções evidentes é a de que existe no mundo de hoje, mas talvez mais carregadamente, no Brasil, uma grande busca de referências pessoais, de líderes ou heróis que sirvam de horizonte de apoio dentro de um mundo dilacerado e sempre mais desencontrado.

A permanente referência a um santo de devoção e proteção pessoal (no meio católico popular) ou a um Orixá ou Espírito Ancestral (no meio de matriz africana) ou, sobretudo, a grande acolhida e apreço tributado a lideranças religiosas de destaque (Mestres e Guias Espirituais das mais diferentes origens e tradições) e sua força mobilizadora, ao mesmo tempo em que são reveladores de um traço cultural, são, sobremodo, características culturais que se reforçam na contemporaneidade brasileira e mundial, num contexto de perda de referenciais sólidos. O reverso também é verdadeiro e pode ser profundamente avassalador, quando a personagem ou liderança de referência total, decepciona, fazendo com que a pessoa fique com a sensação de ter sido traída pela única referência na qual ainda acreditava.

Levantando hipóteses e questões

Seguindo a tríplice entrada sugerida, apresentam-se, para nós, três importantes conjuntos de questões no que tange à temática “fundamentalismos religiosos” ou “radicalizações fundamentalistas” no mundo religioso. A rigor, poderíamos levantar uma grande hipótese englobante, sugerindo que existem três grandes veios alimentadores principais das radicalizações fundamentalistas na esfera das relações religiosas: conforme as circunstâncias históricas, sociais, políticas e culturais as radicalizações fundamentalistas religiosas podem ser alimentadas e reforçadas pelas diferentes forças geradoras do conflito central da sociedade, ou podem ser alimentadas e reforçadas pelas estratégias internas à própria esfera religiosa na disputa pelos espaços de influência, ou, ainda, podem ser alimentadas ou reforçadas pela própria dinâmica pessoal de busca de seguranças nos processos individuais de identidade.

1) As radicalizações fundamentalistas religiosas podem ser alimentadas e reforçadas pelas diferentes forças geradoras do conflito central da sociedade

Na maioria dos casos as radicalizações fundamentalistas religiosas são arma da contraofensiva dos fracos e oprimidos, de grupos ou, mesmo, povos ou etnias, historicamente dominados, jogados no ostracismo e à margem, acumulando ressentimentos através dos tempos. Fazendo analogia à “Revanche de Deus” (Kepel, 1995), pode-se definir como revanche política dos deuses… No reverso, no entanto, assistimos, às vezes, também, ao uso aberto de discursos fundamentalistas religiosos para afirmar e reafirmar o poder dominante, na tentativa de legitimá-lo contra o levante dos historicamente dominados.

Estes fenômenos, no entanto, não são gerados do nada. Seria, aliás, muito difícil entender isto, sem um olhar mais apurado sobre a história. O papel da religião ou das religiões na história dos povos e, sobretudo, o papel exercido pelas religiões dominantes enquanto identificadas com os processos de dominação política, econômica e cultural, que marcaram época, pode ser considerada a chave principal de explicação do que está acontecendo hoje em termos de radicalizações fundamentalistas de uso político. Em muitas situações as religiões dominantes exerceram papéis decisivos enquanto apoiadoras dos processos de dominação política, econômica e cultural.

2) As radicalizações fundamentalistas religiosas podem ser alimentadas e reforçadas pelas estratégias internas à própria esfera religiosa na disputa pelos espaços de influência

Enquanto reinava o inequívoco predomínio da dominação religiosa católica, como religião oficial do Brasil, havia pouca margem para a percepção da diversidade e de outras forças dentro da esfera religiosa neste país. Havia também pouca percepção da violência simbólica religiosa de parte desta religião dominante com relação às demais expressões religiosas. A partir do momento em que foram geradas condições históricas para uma maior abertura para a diversidade e o pluralismo religioso, além de serem proporcionadas melhores condições de percepção da própria diversidade antes oculta e “clandestina”, passou-se também a presenciar radicalizações fundamentalistas de afirmação, nesta esfera.

Faz parte do comportamento normal dentro de um campo de forças sociais que aqueles grupos, que são minoritários, quando têm condições favoráveis, tendam a afirmar com mais radicalidade as suas convicções e seus fundamentos. Isto, no entanto, torna-se mais evidente quando grupos que antes eram minoritários passam a ter força e se embebem de estratégias de disputa do poder de hegemonia dentro da esfera.

3) As radicalizações fundamentalistas religiosas podem ser alimentadas ou reforçadas pela própria dinâmica pessoal de busca de seguranças nos processos individuais de identidade

Num mundo fragmentado e repleto de incertezas, as certezas religiosas continuam proporcionando segurança para a vida individual das pessoas em seu cotidiano. Quanto mais inquietantes se fazem as incertezas, maior tendem a se tornar as radicalizações fundamentalistas, na afirmação de certezas religiosas. Quanto mais vazias as existências humanas se mostram, mais apelo têm aquelas personalidades e lideranças que assumem uma postura íntegra e coerente, tornando-se referências seguras, que, de certa forma, pairam como portos seguros por cima de todo o lamaçal de desencontros e incertezas. Facilmente podem tornar-se referências para entregas pessoais radicais.

Esta é uma chave que ajuda a entender o fenômeno do aprofundamento das intolerâncias dentro de um contexto de aparente indiferentismo pluralista. Perceber que existem práticas de ignorar a verdade do outro ou, mesmo, de desprezá-la agressivamente, pode parecer chocante nos dias de hoje, mas se colocarmos isto na perspectiva da auto-proteção ou da busca de segurança pessoal dentro de um mundo fragmentado e incerto, faz sentido. Cabe, também, mais uma vez sublinhar o efeito avassalador que pode decorrer na trajetória de uma pessoa, quando ela se sentir iludida ou perder a confiança nesta sua referência exclusiva.

Conclusões…

Após referir, na introdução deste ensaio, um recorte de diálogo registrado por João Guimarães Rosa, que retrata a cultura religiosa da bricolagem, do sincretismo e do diálogo, e deixando como referência oculta (mas fortemente presente) todo o contexto de explosão da diversidade religiosa vivida no Brasil de hoje, construí o texto num percurso de três etapas: Inicialmente retomei três referenciais teóricos de dentro da sociologia para mostrar a possibilidade de trabalhar sociologicamente a questão das radicalizações fundamentalistas destacando diferentes enfoques. Em seguida fiz uma pequena incursão na história e cultura religiosa do Brasil, destacando, a partir do tríplice olhar teórico, três marcas histórico-culturais características nesta realidade. Num terceiro momento, levantei algumas hipóteses e questões para aprofundamento.

Formulei, a rigor, uma grande hipótese englobante, subdividida em três hipóteses ou sub-hipóteses, alinhadas dentro de cada um dos três recortes teóricos. Segundo esta hipótese, a depender das circunstâncias históricas, sociais, políticas e culturais, os alimentadores principais das radicalizações fundamentalistas assumem matizes diferentes: 1) Elas podem ser alimentadas e reforçadas pelas diferentes forças geradoras do conflito central da sociedade; 2) Elas podem ser alimentadas e reforçadas pelas estratégias internas à própria esfera religiosa na disputa pelos espaços de influência; 3) Elas podem ser alimentadas ou reforçadas pela própria dinâmica pessoal de busca de seguranças nos processos individuais de identidade.

A minha intenção, com este texto, foi a de levar em frente um debate que está aberto. A rigor, trata-se de um texto que visa ampliar o leque de hipóteses, não cabendo ainda cultivar muitas expectativas de conclusões, a não ser a da gostosa sensação de uma busca que se amplia… Trata-se de um desses textos em construção, que, como autor, eu nunca quero concluir.

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