PREFÁCIO AO LIVRO ‘PRODUÇÃO DA SOCIEDADE’ DE ALAIN TOURAINE

(Edição revista e corrigida, Paris: Éditions du Seuil, 1993 – 1ª edição 1973)
Prefácio da segunda edição revisada, escrito pelo próprio autor.
(Tradução: José Ivo Follmann, setembro de 2003)

TOURAINE, Alain. Production de la Société. Paris: Éditions du Seuil, 1993

Prefácio da Edição Revisada 1993 (tradução para o português, por José Ivo Follmann)

Faz mais de vinte anos que este livro foi escrito. Ao relê-lo para a necessária depuração de coisas superadas em preparação a esta nova edição, eu o reconheço ao mesmo tempo tão próximo e tão distante que, colocado em comparação com o Crítica de Modernidade que acabo de concluir, me ponho a buscar aquilo que faz a unidade de minha vida intelectual através de seu movimento e talvez de suas mudanças.

Produção da Sociedade foi iniciado em Montreal em 1966 e concluído no início de 1973, em Châtenay Malabry, perto de Paris. Nele também trabalhei em Santiago do Chile e em Los Angeles. Ele pertence ao final do período da industrialização e da modernização, mas também a uma época de grandes conturbações sociais e políticas, de algumas das quais participei pessoalmente, como o movimento de maio de 1968 na França e o fim da Unidade popular e da democracia no Chile. Ele foi concluído em plena ruptura com o otimismo da reconstrução pós-guerra, quando triunfava uma visão puramente crítica das sociedades industriais e em que, paralelamente, as formas extremas, excessivas, da teoria da dependência recusavam, na América Latina, todas as possibilidades de mobilização popular e de reforma política.

Este livro, como todos aqueles que definem uma visão geral da sociedade, deve ser compreendido como interpretação de uma sociedade real e suas mudanças e como um combate contra outras interpretações, bem como um esforço de construção teórica. O seu título indica bastante claramente a sua linha geral: a sociedade – e não somente a sociedade moderna –, ela mesma, se produz, a partir de modelos culturais – o modelo de conhecimento, modelo de acumulação e modelo ético – que são, eles mesmos, ligados a um estado da produção e mais precisamente a um nível de historicidade, isto é, de capacidade de produção da sociedade por ela mesma. Esta interdependência do estado da produção e do trabalho, de um lado, e dos modelos de representação do mundo e do sujeito, de outro lado, é a ideia sobre a qual repousa este livro. É neste sentido que ele pertence evidentemente ao que se pode chamar de pensamento moderno, no qual a condição histórica dos seres humanos é afirmada.

Sua concepção de modernidade não é nem materialista nem idealista pois, se ela associa os modelos culturais e as formas de organização social a um estado da produção, está mostrando também que a organização social é comandada pela representação que os seres humanos fazem de sua própria criatividade em cada nível de modernização econômica e técnica. Esta concepção não define a modernidade pela secularização, mas pela substituição de um sujeito divino, projetado de fora da experiência humana, por um sujeito humano. A sociedade moderna é, antes de tudo, aquela onde o sujeito humano não se define mais por uma elaboração racional em acordo com as leis do universo, mas pela sua própria liberdade e pela sua responsabilidade com relação a si mesmo.

Esta orientação geral torna-se mais clara ainda quando se compreende que este livro combatia em duas frentes, às quais se junta hoje uma terceira. Menos diretamente, mas também tão claramente como Sociologia da Ação, escrito dez anos mais cedo, Produção da Sociedade combate primeiro contra a sociologia funcionalista que se pode chamar também clássica e da qual, durante meus anos de formação, Talcott Parsons, cujos cursos eu havia seguido em Harvard, era o representante mais criativo e mais influente. Para esta sociologia clássica que extrai as suas origens da filosofia política, de Maquiavel a Rousseau, o critério do bem e do mal é a função positiva e negativa de um ator ou de uma situação para a integração da sociedade. Proposição que toma uma forma particular nas sociedades modernas: é boa a conduta que aumenta a racionalidade do funcionamento da sociedade, má ou patológica aquela que atrapalha a obra da racionalização sobre a qual repousa a sociedade moderna. Hoje eu compreendo melhor do que em 1968 o interesse desta sociologia da modernidade e da racionalização que protege eficazmente contra os riscos dramáticos do voluntarismo revolucionário que expandiu regimes totalitários sobre a maior parte da Europa: é mais fácil definir o bem pela razão que pelo espírito de um povo, de uma comunidade ou de uma Igreja; mas eu me mantenho tão em oposição como então à ideia de que valores gerais fazem originar, se diferenciando, normas sociais. Ao contrário, eu acredito que entre as orientações culturais e a organização social estão localizadas as relações de dominação que são inseparáveis da orientação da historicidade, de seus instrumentos e de seus resultados. O que opõe a minha demarche à da escola funcionalista é a afirmação de que a produção da sociedade por ela mesma se realiza através de um conflito central, de sorte que a modernidade está sempre dividida entre adversários dos quais um não é guiado somente pela razão nem o outro somente pela tradição ou pela paixão.

Produção da Sociedade combate essa sociologia funcionalista cuja influência estivera diretamente ligada na Europa ao sucesso dos “trinta gloriosos” e ao triunfo da paz americana; mas ela se opõe também a um pensamento que iria conquistar uma verdadeira hegemonia depois de 1968, sobretudo na França e na América latina, e que constitui o oposto, mas também o complemento ao pensamento funcionalista. Para este pensamento, herdeiro de Nietzsche através de obras tão diversas como Althusser, Poulantzas e Foucault, seu desenvolvimento e influência maiores, a vida social não é senão o discurso da dominação, e o grande movimento de subjetivação, que define nossa modernidade individualista, não é senão a ilusão que disfarça a penetração do poder nos espíritos e nos corpos. Poder-se-ia falar aqui do funcionalismo crítico, já que é a lógica do sistema social que comanda e não a dos atores engajados nos valores culturais ao mesmo tempo que nas relações sociais conflitivas. Esta sociologia puramente crítica tinha uma fraca capacidade descritiva, para além dos estudos clássicos sobre a desigualdade social que não tinha tido necessidade deste quadro ideológico para se desenvolver, e de fato ela destruiu as pesquisas sociológicas mais do que as reorientou. Mas ela tinha fortes razões ideológicas para se expandir. A primeira, a mais positiva, era a de rejeitar o humanismo revolucionário que tinha alimentado os totalitarismos, desde o Arbeit macht frei – o trabalho liberta – inscrito pelos Nazistas na fachada do campo de Auschwitz até o pequeno livro vermelho de Mao, passando pelas declarações de Stalin sobre “o homem, o capital mais precioso”. A caça ao sujeito que devia tomar as formas mais arbitrárias durante os anos setenta e ter as consequências mais dramáticas nutrindo na América latina as guerrilhas fadadas ao fracasso, tinha no início uma função ideológica anti estalinista particularmente saudável num país como a França onde tantos intelectuais, mesmo depois de 1953, 1956 e 1968, permaneciam na dependência da ideologia comunista. A segunda, mais inquietante, correspondia a uma dissociação acelerada entre os intelectuais e o conjunto da sociedade. Enquanto a Europa, a partir dos anos sessenta, estava penetrada pela sociedade de consumo, criada bem mais cedo nos Estados Unidos, e que o liberalismo substituía o voluntarismo, os intelectuais, perdendo o seu papel crítico e reformador, se refugiavam numa contracultura definida pela ruptura – e não pelo conflito – com as orientações dominantes da sociedade. Tendência que estava já visível na escola de Frankfurt, mais animada pela nostalgia da razão objetiva e do Ser que pela análise do afundamento da Alemanha dentro do nazismo, mais antimoderno que capaz de separar a modernidade de suas perversões. O que reduziu durante um tempo a sociologia a um discurso somente crítico, a uma filosofia social de mais a mais afastada das mudanças observáveis e que parou de interessar, quando começou o grande movimento, real este, de destruição e de decomposição do sistema soviético. Contra esta filosofia social dominada pela nostalgia do passado, eu teria desejado que as práticas sociais impusessem na França e nos países vizinhos uma resposta para a qual o meu pensamento teria dado uma interpretação teórica. Esta é a razão para a qual eu me interessei de perto pelo movimento estudantil, americano e sobretudo francês, que devia conduzir o levante de maio 68 e em seguida ao que eu chamei de novos movimentos sociais, os movimentos de mulheres, as lutas regionais ou antinucleares, ao mesmo tempo em que eu reexaminava o movimento operário que eu havia já analisado em A Consciência Operária (1966). Um pouco mais tarde, talvez porque eu havia feito meus inícios de sociólogo na Hungria, que eu havia seguido com paixão a revolução húngara e o outubro polonês de 1956, depois a primavera de Praga em 1968, eu consagrei um estudo aprofundado ao Solidariedade cuja ação preparava e anunciava a queda do sistema soviético na Europa. Durante dez anos, com a ajuda de François Dubet, Michel Wieviorka e, no começo, Zsuzsa Hegedus, eu me consagrei a elaborar e a aplicar um novo método de pesquisa, a intervenção sociológica, para estudar estes movimentos sociais e históricos. Mas no início dos anos oitenta, eu devo reconhecer, não era nem a minha posição nem a dos meus adversários estruturo-marxistas que correspondia melhor ao espírito da época. Por tudo triunfou o liberalismo e o pensamento crítico se radicalizou ou se marginalizou num pós-modernismo que tinha as mesmas qualidades que a teoria crítica das gerações precedentes e um distanciamento ainda maior dos problemas sociais concretos.

Estes caminhos (rodeios) históricos me levaram a um retorno sobre mim mesmo, tornado mais doloroso pela doença e depois a morte de minha mulher que me havia feito viver em sua abertura aos outros e por sua arte de viver. Eu me perguntava mais diretamente que antes como separar todas as visões redutoras da sociedade: como se proteger de um lado do culto da sociedade e da vontade geral, que tinham também tantas vezes, de Rousseau ao leninismo, preparado os Terrores, exercidos em nome da razão e até da liberdade, e como separar, de outro lado, a imagem de uma sociedade inteiramente manipulada, super vigiada, máquina de reproduzir desigualdades e poderes, imagem tão estranha atribuída a uma sociedade, contudo em incessante transformação. Herbert Marcuse e Michel Foucault pensaram que dentro da sociedade moderna o poder cessa de estar no cume da organização social para se expandir por tudo, de sorte que as categorias das práticas do dia a dia dentro de uma sociedade são portadoras de repressão omnipresente, impõem a integração e a conformidade, organizam uma mobilização geral tanto mais eficaz quanto mais conseguir seduzir os homens em vez de somente lhes impor disciplina. Esta ideia é inaceitável: eu recuso a ideia que as categorias do poder se confundam inteiramente com aquelas da prática, que não exista mais questões em torno das quais adversários sociais disputam. Contrariamente eu afirmo com todo empenho em Produção da Sociedade, que existem em cada sociedade questões culturais comuns que formam um sistema de ação histórica, das quais se disputam o controle social pelas classes sociais definidas por seu papel de dominação ou de subordinação. Michel Foucault, me parece, esteve dividido, durante a última parte de sua vida, entre duas posições: às vezes ele tendia a ver em toda a organização social um sistema de super vigilância e de punição, o que o conduzia a não acreditar mais na existência de atores da mudança social e a se juntar a Marcuse que não acreditava na revolta dos excluídos;  mas por vezes, ao contrário, porque havia sido nutrido na tradição europeia de conflitos históricos, ele percebia a resistência e a revolta dos oprimidos e acreditava então na existência de possíveis atores. Quanto a mim que tinha descoberto a realidade social depois da Libertação, quando o movimento operário e os movimentos de libertação nacional agitavam as sociedades industriais e derrubavam os antigos impérios coloniais, eu não tinha nenhuma razão para renunciar à ideia de um conflito central, ideia essa que eu havia recebido da tradição social e intelectual do século XIX. O que me inquietava era sobretudo que este conflito podia conduzir à sua própria repressão, que a classe operária tinha sido demasiadas vezes representada e substituída por seus intelectuais orgânicos que, em nome do povo, da sociedade e da razão, impunham o seu poder não só às minorias dominantes, mas também à própria maioria. Me ficou sempre mais claro que o único fundamento sólido, inexpugnável, do conflito social e assim dos movimentos sociais de oposição era a defesa do indivíduo. Eu carregava com decisão esta ideia comigo, pois eu tinha sido formado em meus estudos por um pensamento liberal hostil ao poder e respeitador da liberdade de consciência acima de tudo. A Declaração dos direitos do homem e do cidadão estava há muito tempo afixada em meu gabinete de trabalho. Mas há uma outra tradição, que exerceu grande impacto em mim, a do cristianismo em que fui educado em que aprendi, de maneira definitiva, a jamais confundir o espiritual com o temporal. Sensibilizou-me sobretudo a ação da Vicaria da Solidariedade, os padres das periferias do Chile e inspiração cristã do Solidariedade, como os testemunhos, religiosos ou não, dos dissidentes russos, pelo muito de sacrifício e de revolta aceitos em nome da liberdade da pessoa humana e que estão no oposto do fundamentalismo religioso que defende o apoderamento total de uma Igreja e de um poder político sobre o indivíduo. Enfim e sobretudo, durante a sua longa doença, eu compreendi que Adriana, distinguida por nenhum título ou obra, era o mais humano dos seres humanos que eu havia encontrado, porque ela tratava os outros e a ela mesma como pessoa, ou como prefiro dizer hoje: como sujeito. Eu jamais cedi ao moralismo atrás do qual se esconde o conformismo social; ao contrário, eu aprendi a reconhecer nos movimentos sociais a defesa do direito de cada um, indivíduo ou grupo social, a escolher e a construir a sua existência, ao mesmo tempo a defender, se quiser, a herança cultural – língua, crenças, mas também criações es esperanças – daqueles dos quais ele se sente descendente. Até que eu identifico por completo o tema do sujeito e do movimento social, porque, desde os movimentos de cidadania e o movimento operário até os movimentos de libertação nacional e o movimento de mulheres, é bem o direito de ser sujeito, de não estar submisso a regras impostas ou a uma consciência alienada, que todos defendem.

Este é o caminho que eu percorri. Afastei-me de Produção da Sociedade, ou fui deixado próximo deste livro? A primeira alternativa aparece de cara; no entanto, eu escolhi a segunda alternativa, não sem reconhecer as mudanças advindas em vinte anos dentro de meu pensamento e de minha sensibilidade, melhor que modificação de meu olhar, o deslocamento do mesmo.

Posso eu hoje em dia dar tanta importância que ontem à construção dos conjuntos societais definidos em termos históricos, desses “sistemas de ação histórica” que correspondem aos modos de produção dos marxistas, tendo sido construído de maneira bem diferente? Cremos nós ainda hoje em dia na sucessão desses tipos societais ou das etapas históricas?  Nós rejeitamos em todo caso a ideia de uma evolução linear, de um progresso contínuo elevando a humanidade, para mais conhecimento, mais recursos técnicos, na direção de maior abundância e mais liberdade. Como se uma sociedade não estivesse definida senão pela sua capacidade de destruir a tradição e de se transformar. Nós conhecemos demasiados recuos ou voltas para trás, recaídas na barbárie, de orgulhos totalitários, de crises econômicas duráveis e fracassos do desenvolvimento econômico para aceitar ainda essa escatologia otimista do progresso. Existem, no entanto, duas maneiras de combater esta filosofia da história. A primeira, a que eu adoto em Produção da Sociedade e à qual permaneci fiel, consiste – sem rejeitar a ideia de progresso que defini como empreendimento crescente da sociedade sobre ela mesma, como a sua historicidade cada vez maior – em colocar o acento na estrutura de cada conjunto societal e, portanto, sobre os problemas específicos de cada um deles, o que substitui o evolucionismo pela análise comparativa dos tipos societais. A segunda é mais radical; ela substitui a ideia de progresso pela ideia de mudança, eliminando todo finalismo da evolução, salvo para reconhecer a complexidade crescente dos sistemas sociais e dos mercados. Muitos adotam hoje essa imagem neoliberal da mudança e, em lugar de compreender as condutas por sua pertença a um tipo de sociedade, têm a tendência de analisá-las como a busca racional de lucro (interesse) ou, mais frequentemente, como a gestão de recursos e de limites organizacionais ou, ainda, como parte de uma política, isto é: de um monitoramento das mudanças sociais. Contra este neoliberalismo hoje dominante, eu sustento particularmente que entramos – que já estamos bastante dentro – numa sociedade pós-industrial que eu chamo programada, definida antes de mais nada pelo lugar central que nelas ocupam as indústrias culturais – educação, saúde, informação -, e que é tão superficial não enxergar a sociedade de consumo dentro da vida social presente, como o seria não ver o reino da mercadoria nos tempos da revolução industrial.

É verdade que em 1973 a minha análise da sociedade pós-industrial se mantinha demasiado prudente, como ela fora nos meus livros precedentes: O Movimento de Maio ou o Comunismo Utópico (1968) e A Sociedade Pós-Industrial (1969). Sob as influências de sociólogos e economistas das grandes organizações e em particular de J. K. Galbraith, eu a definia então sobretudo pelo poder tecnocrático das grandes empresas privadas ou públicas e dos Estados considerados como organizações; é a imposição de um poder em nome da técnica que me impressionava sobretudo. É porque eu dei tanta importância à revolta dos estudantes contra o sistema universitário, o que correspondia também à preparação do movimento de maio em Nanterre no Departamento de Sociologia cuja direção eu assumia, o qual conhecera uma primeira greve no outono de 1967 e onde Daniel Cohn-Bendit defendia, com um talento e uma generosidade remarcáveis, ideias antiautoritárias, dirigidas tanto contra o sistema comunista como contra as instituições francesas. De fato, essa crítica anti tecnocrática, real e ativa, foi um momento de transição. Da mesma maneira que alguns anos mais tarde, o movimento antinuclear, ele também de orientação anti tecnocrática em sua componente mais avançada, como o demonstramos com F. Dubet, M. Wieviorka et Z. Hegedus em A Profecia Antinuclear em 1980, se decompôs rapidamente – não somente na França – para fazer surgir a ecologia política onde a crítica cultural anti industrialista avança sobre a crítica social.

É somente nos anos oitenta, quando o modelo de sociedade de consumo se impôs praticamente sem resistência à maior parte do mundo, que eu compreendi o lugar central que ali ocupava o temor justificado frente a um poder exercido sobre a produção e a difusão dos bens culturais, mais ainda que sobre a dos bens materiais. Hoje em dia, os problemas que levantam as maiores paixões são claramente aqueles que estão ligados ao poder da medicina, à destruição do meio-ambiente, à submissão dos programas de televisão a critérios comerciais, à ruptura entre escola ou universidade e a criação cultural ou a formação de projetos pessoais. A cultura tornou-se uma questão política: os defensores da sociedade de consumo como os seus contestatários falam uns e outros em nome do individualismo, mas os primeiros definem o indivíduo como um consumidor, os segundos como um sujeito construindo e defendendo a sua própria capacidade de ser um ator livre e responsável.

Esta formulação dos problemas da sociedade programada não é ela tão lenta e difícil com o foi, há um século e meio atrás, a descoberta dos da sociedade industrial? É esta analogia que me fez definir o movimento de maio como um comunismo utópico, mas ela é ainda mais útil hoje em dia, quando os novos movimentos sociais, intermediários entre a sociedade industrial e a sociedade programada, desapareceram e quando se formam os novos movimentos de opinião – que adquiram no caso da ecologia uma expressão política – os quais deslocaram o debate político do campo da propriedade e da organização do trabalho para o das indústrias culturais. Nos dois casos, industrial e pós-industrial, o que ficou por muito tempo oculto é a relação de dominação que se pode chamar de relação de classes. Em revanche, o que deve ser de toda forma eliminado – mas que nunca esteve presente no meu pensamento – é a ideia que certas forças sociais são portadoras do sentido da história, devendo então assumi-lo objetivamente. É por isso que eu cessei progressivamente de falar de classes sociais e substituí esse conceito pelo de movimento social, definido como a ação conflitual de um ator dirigente ou popular pelo controle social dos modelos e dos recursos de uma sociedade, isto é, de sua historicidade. No momento em que as classes sociais se definiam por uma herança cultural mais do que por um papel na produção, quando elas estavam separadas por barreiras difíceis ou impossíveis de passar, era normal que os contestatários chamassem à ação, à produção, contra a reprodução dos privilégios. Mas quando a produção, o consumo e as comunicações de massa quebram as velhas hierarquias sociais, quando o dinheiro se torna a medida de quase tudo, o que não elimina os mecanismos de dominação, mas somente os transforma, a contestação chama não mais à economia, mas à personalidade e à cultura, o que restitui vida a pertenças e particularismos que há pouco tempo pareciam não oporem ao progresso outra coisa que a resistência passiva das tradições. É porque o materialismo das antigas reivindicações pré-industriais e mesmo industriais é substituído pelo apelo à identidade, à liberdade e à comunidade também. É porque a ideia de classe social se dissolve, enquanto inversamente é reforçada a de movimento social. Certamente, classes e movimentos devem ficar associados pois um movimento social não é qualquer tipo de ação coletiva, não se reduz em particular a uma crise do sistema de tratamento dos conflitos. Ele coloca em jogo as relações de dominação e, portanto, as orientações culturais das sociedades. Mas é necessário opor movimento social e luta de classes, expressão que não incorporei em meu vocabulário porque ela reenvia a uma necessidade histórica, a leis do desenvolvimento da sociedade, cuja existência eu não reconheço. Produção da Sociedade se situa ainda dentro de uma concepção histórica herdada do século XIX, mas coloca em ação as ideias de historicidade, de modelo ético, isto é: de representação do sujeito, e de movimento social que não cessaram de receber reforços em meus livros posteriores. Na realidade, desde Sociologia da Ação e A Consciência Operária até os dias de hoje, eu não parei de dar um lugar central ao movimento social concebido como um ator histórico, isto é, como defensor do sujeito pessoal e coletivo contra os sistemas de dominação e de gestão. Desde meus primeiros estudos mostrei que o sindicalismo, longe de ter nascido da revolta do proletariado explorado, tinha se tornado um movimento social quando ele defendera a autonomia dos trabalhadores sobretudo qualificados, face à organização do trabalho, e eu falei, para defini-la, de consciência operária antes que luta de classes. O que me afasta de meu livro de 1973, é que ele identificou de forma demasiadamente completa o sujeito com a sua obra criadora e consequentemente à sua produção. Eu creio certamente ainda que essa ligação do sujeito à criação das obras é indispensável e que, se a gente o rejeita, toca-se rapidamente na exaltação de um povo e de uma comunidade e no culto do poder totalitário que ela traz nela mesma. Mas o declínio da sociedade industrial nos tornou também mais sensíveis à alienação do sujeito humano na burocracia, no poder dos Estados e das empresas, no discurso sobre a integração social e na própria exaltação da modernidade. Encontro-me hoje tão sensível ao “desengajamento” do sujeito como aos seus engajamentos, tanto à defesa da liberdade pessoal quanto à responsabilidade social. Sinto, no entanto, ainda mais uma vez, com mais força a permanência de meus temas fundamentais do que as modificações advindas em sua formulação, sem evidentemente subestimar as transformações que se fizeram necessárias pelo prodigioso revertério de situações, de ideias e de sensibilidades que vivemos nos últimos vinte anos. Nós saímos da sociedade industrial durante esse período confuso, mas decisivo que foi aberto em 1969 e que foi concluído em 1989, ano que permanecerá marcado como ano do fim das revoluções e das sociedades nascidas de sua crença na razão histórica. Eu acompanhei de perto esta grande passagem da sociedade industrial, capitalista ou socialista, para um outro tipo de sociedade, como no início do século XIX, nós tínhamos entrado num tipo de sociedade em ruptura com o (tipo) que nos havia dominado desde a Renascença até às revoluções inglesa, americana e francesa. No momento em que eu escrevia Produção da Sociedade, eu tive que opor-me ao materialismo histórico e ao seu determinismo econômico. Hoje em dia, eu recuso com todas as forças o neoliberalismo e a dissolução de todas as estruturas dentro da mudança. Contra o primeiro adversário eu insistia no ator social e na defesa de sua liberdade; contra o segundo eu lembro a existência de relações sociais de dominação inseparáveis dos conjuntos societais, das quais eles constituem uma das estruturas principais. Mas, esses dois combates foram e são travados em nome da mesma concepção de relações do indivíduo e da sociedade. Produção da Sociedade pertence à sociedade industrial de cuja criação acelerada após a Libertação eu gostei, mas, em seu quadro cultural e social, esse livro já buscava compreender as relações entre a produção da sociedade e a libertação do sujeito,  rejeitando ao mesmo tempo a ideia de um sujeito puramente interior, que não poderia se libertar senão como artista que rejeita os limites e as tentações da sociedade burguesa, e  a ideia oposta de um sujeito puramente histórico, identificado com seus trabalhos.

Hoje, ao republicar este livro, eu quero marcar antes de tudo a minha adesão à ideia da historicidade e minha oposição às ideologias que reduzem a vida social a um mercado. Já está mais do que em tempo que redefinamos os enjeux (questões: o que está em jogo) e os atores sociais de nossa sociedade; é urgente que interpretemos a sociedade de consumo não como um bazar, mas como um campo de novas relações de dominação e novas contestações. Eu só me inquieto (me interrogo) pela nossa capacidade de criar as ideias, os movimentos sociais e as formas de intervenção política que devem preencher o que era o conjunto múltiplo que constituiu a esquerda durante a sociedade industrial, o movimento operário e as ideias socialistas, hoje ultrapassados por outros modelos culturais e outros problemas sociais.

O que mais ameaça a humanidade (o mundo) hoje é a dissociação completa entre o mundo objetivo do lucro (do interesse) ou do mercado e o mundo subjetivo das crenças e das comunidades. Eu abordei muito mais diretamente esses problemas na terceira parte de Crítica da Modernidade, mas o Produção da Sociedade, dentro de seu rigor, e mesmo de sua rigidez, é uma chamada vigorosa e necessária a um dever maior da sociologia: compreender os conjuntos históricos, que não são somente situações, que são dramas vividos inventados e interpretados por atores. Tenho receio que nossas velhas terras, sobrecarregadas de história achem demasiado pesado para elas a tarefa de inventar o seu futuro e que elas se contentem em consumir a sociedade na falta de poder produzi-la, substituindo a oposição dos dominantes e dos dominados pela (oposição) da classe média e dos marginais, que suscita uma indignação moral, mas não leva a nenhuma ação de transformação social. Nós sofremos muito por causa das ideologias conquistadoras; não sofremos hoje o mesmo tanto por causa da boa consciência moralizadora e humanitária e de sua generosidade que não mexe em nenhum privilégio e assegura um sono sem pesadelos? Produção da Sociedade foi escrito nas suas partes essenciais logo depois da primeira grande derrocada da sociedade industrial no maio de 68. Um pouco depois, a economia em atraso, nesse caso, em relação às ideias, o fim do sistema monetário internacional, as crises do petrolíferas, o declínio das indústrias tradicionais e o ascenso de novas potências industriais constituíram a Europa e os Estados Unidos – afundados, depois na França, no Vietnam – num período vivido como crise. É então que se acelerou a decomposição do pensamento social, que se passou, em alguns anos, do radicalismo ideológico a um pós-modernismo em ruptura com a história. Breve interregno, rapidamente substituído pelo rápido empurrão de todos os países ocidentais na direção do liberalismo econômico, a limitação do Estado-providência, o recuo ou desaparecimento do movimento operário, até o desabamento do sistema soviético, simbolizado pela queda do muro de Berlim em 1989, marca a vitória aparentemente absoluta do modelo liberal que identifica a democracia a um mercado político aberto e de fato um atributo da livre economia. Não houve ainda tempo, depois deste período de liquidação dos projetos voluntaristas da industrialização, de a sociedade pós-industrial ou programada tomar pé no continente e de nos darmos conta de que a nossa história desde vinte anos foi a de deriva misturada com descobertas, tão incerta quanto a navegação de Cristóvão Colombo, há quinhentos anos, mas que nos fez atravessar o oceano que separa o velho mundo, o da sociedade industrial, do novo mundo, o da sociedade programada. Produção da Sociedade é um farol sobre a costa do continente industrial do qual nos afastamos; vinte anos depois, venho de erguer um outro farol sobre a costa do continente pós-industrial, mas, quando olho na direção do velho farol, reconheço nele a mesma mensagem que no novo. Necessitamos hoje em dia, tanto de imaginar um futuro, quanto de nos lembrar de um passado, para escapar das ilusões e dos delírios de um presente sem rumos e sem sustentos. Produção da Sociedade não só nos informa sobre o que foi a sociedade industrial; ele nos lembra também o que é um pensamento da história e, portanto, o que é um ator histórico, livre e responsável de sua vida pessoal e da vida coletiva.

Mas é verdade que nós não podemos abordar o novo continente com um espírito de conquista. Há muito tempo não acreditamos mais que a força de nossas técnicas crie abundância, liberdade e justiça. Nosso temor está na destruição que toda a produção traz consigo. Às vezes até pensamos que é preciso chegar de novo ao equilíbrio depois de alguns séculos de progresso. Ilusão perigosa e egoísta, porque essa parada no crescimento não serviria senão aos ricos e não deteria os desgastes do progresso. Mas nós aprendemos a não mais confiar cegamente no desenvolvimento das “forças produtivas”, a compreender as tensões e às vezes as contradições entre a organização social racionalizada e a liberdade ou a criatividade individuais e coletivas. É esta inquietude, são estes atormentamentos que faltam no Produção da Sociedade, que está ainda demasiadamente carregado pela confiança no trabalho, na produção, na modernização acelerada da época industrial.

Eu não quis modificar esse livro escrito no final da primeira metade de minha vida intelectual; contentei-me em torná-lo mais leve, suprimindo as análises que não se tinham revelado fecundas, ou que eu mesmo não tinha tido ocasião de desenvolver. Mas se eu tivesse querido modificar este livro, eu o teria tornado sobretudo mais inquieto, não no sentido cético, não no sentido pós-moderno ou pós-histórico, mas mais sensível às imensas zonas de sombra de dentro das quais se volve o olhar hodierno atraído pelas luzes do consumo. O leitor, no entanto, se ele for atento, encontrará mais sombra e mais protesto em Produção da Sociedade que não o deixem prever algumas fórmulas que parecem emprestadas ao otimismo evolucionista do século XIX. Eu recordo: esse livro nasceu do movimento de maio de 1968 mais do que da grande modernização dos anos cinquenta e sessenta. Mas o essencial a meu ver hoje é o de ver constituir-se, para lá da crise do otimismo ocidental, como para além do esgotamento de um pensamento puramente crítico, e contra as ilusões da sociedade de consumo, novos enjeux (questões: o que está em jogo) e novos atores sociais. Quando eu falei da sociedade pós-industrial desde o final dos anos sessenta, em termos bem diferentes dos de Daniel Bell, muitos consideraram que se tratava de sociologia-ficção. Hoje, nós estamos dentro da sociedade programada e consequentemente nós temos urgentíssima necessidade de categorias que permitam a análise desse novo tipo societal. A sociologia perde a sua razão de ser se ela cessa de compreender a história. Ela foi sempre, desde a sua pré-história, desde Tocqueville e Marx e mais ainda seus grandes fundadores, Durkheim e Weber, uma reflexão, ao mesmo tempo inquieta e confiante, sobre a modernidade. Eu compreendo que em plena crise da historicidade ela se tenha totalmente voltada sobre o estudo de um ator desorientado, privado de sentido, dentro de uma situação onde desaparecia toda a correspondência entre o ator  e o sistema, e dimensiono perfeitamente a importância da obra de Ervin Goffmann, mas considero como mais importante ainda reencontrar o sentido de uma experiência histórica que se transformou tão rapidamente que os antigos instrumentos de descrição e análise parecem ter perdido  toda utilidade. O que impõe restabelecer a comparação com a consciência histórica passada, não para fazê-la reviver, mas para tomá-la como modelo de análise ao mesmo tempo que para libertar-se dela historicamente. Se eu republico, hoje Produção da Sociedade, é para chamar para a reconstrução de uma sociologia do ator histórico sobre o novo continente onde atracamos (abordamos) e onde nós devemos o mais depressa possível aprender a nos orientar, a organizar nossa vida coletiva e a limitar o mais possível as desigualdades e as injustiças que acompanham as grandes descobertas.

IDENTIDADE E MISSÃO NA EDUCAÇÃO SUPERIOR JESUÍTA NA AMÉRICA LATINA: TRINTA ANOS DE AUSJAL, CRESCENDO EM SINERGIA E COMPROMISSO.

(Texto escrito para a Revista CARTA AUSJAL em 2015)

Pe José Ivo Follmann sj (02/03/2015)

INTRODUÇÃO: ALGUNS DESTAQUES GERAIS

A Associação das Universidades Confiadas à Companhia de Jesus na América Latina – AUSJAL, completa neste ano de 2015, o seu 30º aniversário. É uma história que pode ser resumida como sinergia ou esforço conjunto das Universidades e Instituições de Educação Superior Jesuítas, na realização de sua IDENTIDADE e MISSÃO comuns, dentro do contexto diversificado e desafiador latino-americano. Quero, mesmo que em uma perspectiva pessoal bastante limitada, prestar a minha homenagem a esta história e celebrar a grande alegria de poder fazer parte dela.

Os meus contatos mais sistemáticos com AUSJAL iniciaram em 1995 e, de forma crescente, desde aquele ano, a sua proposta foi tomando conta do meu horizonte de engajamento acadêmico. O primeiro texto que conheci foi “Desafios da América Latina: Resposta Educativa da AUSJAL”.[1] Percebi que o texto havia sido o resultado de um longo processo de reflexão, que acompanhara praticamente os primeiros 10 anos de existência desta rede, processo no qual a própria AUSJAL fizera o seu auto-reconhecimento e sua auto-compreensão, enquanto rede de educação superior jesuíta no e para o contexto latino-americano. O texto contribuiu no meu próprio processo de repensar e me reposicionar com relação ao meu engajamento acadêmico, pois, apesar de estar atuando neste meio desde 1973, eu ainda não estava totalmente convencido da total pertinência disso na minha opção jesuíta.

A história da AUSJAL iniciou em 1985, em decorrência de um importante apelo do então Superior Geral Pe Peter Hans Kolvenbach sj, no final de uma reunião internacional de universidades em Roma. Foi um impulso dado, a partir de Roma, para que se criasse isto que é efetivamente a primeira rede universitária na América Latina com uma IDENTIDADE e MISSÃO compartilhadas. A rede se constituiu e, agora, em 2015, celebra os seus trinta anos, depois de uma longa e desafiadora história de sinergia ou compartilhamento de estratégias comuns voltadas para a transformação educativa e social da região ou o compromisso com o desenvolvimento social sustentável.

Na minha leitura pessoal, é importante que situemos o processo de criação e primeiros passos da AUSJAL no horizonte de dois eventos paradigmáticos, aparentemente distantes entre si no tempo, mas tremendamente próximos em significado para as Universidades Jesuítas, no contexto latino-americano.

O primeiro evento é o posicionamento assumido pela Companhia de Jesus, na Congregação Geral[2] de 1974 (CG 32), na explicitação de sua Missão enquanto “serviço da fé e promoção da justiça”, ou mais precisamente: “serviço da fé do qual a promoção da justiça se constitui como exigência absoluta” (CG 32, d.4, n.2).

O Pe Pedro Arrupe sj, então Superior Geral, na presidência da sessão que aprovou o referido decreto (d.4), assim se expressou:

Estamos bem conscientes do que acabamos de votar e aprovar? A partir de agora, a prioridade das prioridades de nossa missão é o serviço da fé e a promoção da justiça. Por causa dessa decisão vamos ter novos mártires na Companhia de Jesus.[3] 

O segundo evento foi o 16 de novembro de 1989, quando na Universidade Centro-Americana de El Salvador, os padres Ignacio Ellacuría, Ignacio Martin-Baró, Segundo Montes, Juan Ramón Moreno, Amando López e Joaquín López foram assassinados por seu compromisso com a paz durante a guerra que assolava El Salvador. Junto com eles foram também assassinadas, a senhora Elba Ramos, que trabalhava na residência e sua filha Celina Ramos.

O Pe Ignacio Ellacuría sj, que era o Reitor da Universidade, um filósofo de grande envergadura e pensador brilhante, enxergava a Universidade em sua dimensão de compromisso social, com consistente radicalidade:

A universidade deve encarnar-se entre os pobres para ser ciência daqueles que não têm ciência, a voz ilustrada dos que não têm voz, o apoio intelectual dos que em sua própria realidade têm a verdade e a razão, mas não contam com as razões acadêmicas que justifiquem e legitimem sua verdade e sua razão.[4]

Este jesuíta dizia que um posicionamento assim exigia vigilância permanente, capacidade intelectual com muita criatividade e indeclinável fervor pela justiça social, com coragem para superar ataques, incompreensões e perseguições.[5]

Ao descrever brevemente o 16 de novembro de 1989 e referir o nome das pessoas assassinadas, naquele ato bárbaro inesquecível, na UCA de El Salvador, o recente documento “La Promoción de la Iustitia en las Universidades de la Compañía”, do Secretariado para a Justiça Social e Ecologia, do Governo Central da Companhia de Jesus, conclui com o seguinte comentário: “As universidades da Companhia os têm como seus próprios mártires, devido ao seu compromisso em prol da “justiça que brota da fé”.[6]

Um processo rico de reflexões sobre o significado e a amplitude desta “justiça” permeou a Companhia de Jesus nas últimas 4 décadas. A história vivida por AUSJAL em seu processo de constituição e consolidação deu-se, em grande parte, no horizonte desse contexto de amadurecimento conceitual. Em suas últimas Congregações Gerais – CG, a partir da CG 32/1974, como já foi mencionado, destacando, na sequência, a CG 34/1995 e a CG 35/2008, a Companhia de Jesus incorporou na explicitação de sua MISSÃO, a complexidade de nossa época.

A partir dessas Congregações a sua formulação pode ser sintetizada nos seguintes termos: A MISSÃO da Companhia de Jesus tem o seu foco central no “serviço da fé do qual a promoção da justiça se constitui como exigência absoluta” (CG 32, d.4, n.2), consubstanciando-se, de modo especial, no “diálogo cultural” e no “diálogo inter-religioso” (CG 34, d.2, n.14-21), na “reconciliação com Deus”, “com os outros” em sociedade e “com a criação” (o meio ambiente)(CG 35, d.3, n. 19-36) e na atenção às “novas fronteiras” para as quais a realidade complexa de nossos dias desafia permanentemente(CG 35, d.1, n.15; CG 35, d.2, n.20-24).[7]

A importância das Universidades e da Educação Superior Jesuíta foi pauta de muitas reflexões e documentos na Companhia de Jesus, neste período. O Superior Geral da Companhia, que mais se destacou nisto, por suas reflexões escritas e faladas sobre a importância desta frente de engajamento apostólico jesuíta, foi, sem dúvida, o Pe Peter Hans Kolvenbach sj. Segundo este Superior Geral:

Todo centro universitário jesuíta de ensino superior é chamado a viver dentro de uma realidade social (…) e a viver para tal realidade social, a iluminá-la com a inteligência universitária, a empregar todo o peso da universidade para transformá-la. Assim, pois, as universidades da Companhia têm razões mais fortes e distintas das outras instituições acadêmicas ou de pesquisa para dirigir-se ao mundo atual, tão acomodado na injustiça, e para ajudá-lo e refazê-lo à luz do Evangelho.[8]

Muitas outras reflexões poderiam ser lembradas, tanto de parte do Governo Geral da Companhia de Jesus, quanto de jesuítas engajados diretamente na vida acadêmica. Pessoalmente quero fazer uma referência a um nome, que marcou profundamente o meu horizonte com relação ao papel das Universidades na América Latina. Trata-se do Pe Xabier Gorostiaga sj.

Com a morte repentina e imprevista do Reitor da Universidade Centro Americana – UCA de Nicaragua, Pe Cesar Jerez, sj, o Pe Gorostiaga sj teve que assumir  o Reitorado desta instituição. O fez contra a sua vontade, como registrou mais tarde em depoimento pessoal, pois não acreditava na possibilidade de transformar este meio em espaço efetivo de promoção da justiça. No entanto, o caminho andado no dia a dia da vida universitária e o papel de Secretário Executivo da AUSJAL, que também desempenhou, transformou-o em aguerrido combatente pela missão transformadora da Universidade no contexto latino-americano, como revela o seu próprio relato escrito. Afirmou um compromisso pessoal por “re-fundar” a Universidade, pelo desenvolvimento humano sustentável e pela democratização do conhecimento como um dos principais eixos de superação da pobreza e de afirmação da cidadania.[9]

O Pe Xabier Gorostiaga sj, como economista acreditava num novo formato da sociedade mundial. É o que denominava de globalização solidária, capaz de exaltar e compreender o pluralismo cultural e étnico e a defesa do meio ambiente.[10]

Sempre foi otimista e mesmo depois das desilusões sofridas com o Governo Sandinista de que participara, mostrava-se esperançoso e a sua crença se resumia em três palavras: humildade, humanismo e humor. Mesmo no meio das maiores crises enfrentadas, manteve sempre viva a consciência do valor da educação e, acentuava que “nisso a universidade tem um papel fundamental.”[11]

Como o leitor percebe, a minha visita às origens da AUSJAL ou, mais propriamente, a minha visita aos meus primeiros contatos com esta rede, foi rápida e parcial. Não poderia ser diferente. Quero, no entanto, encerrar esta “visita” convidando para um olhar renovado sobre os termos da MISSÃO que AUSJAL definiu e assumiu para si:

Fortalecer a articulação em rede de seus associados com a finalidade de estimular a formação integral dos estudantes, a formação contínua dos acadêmicos e colaboradores, na inspiração cristã e identidade inaciana, a investigação que incida em políticas públicas, nos temas que lhe são próprios como universidades jesuítas, e a colaboração com outras redes ou setores da Companhia de Jesus. Tudo isso como realização do trabalho das universidades a serviço da fé, a promoção da justiça e o cuidado do meio-ambiente.[12]

Deixei propositalmente para o final desta introdução, a formulação da MISSÃO da rede AUSJAL. Na visita rápida e parcial realizada, que foi uma caminhada com passo apressado pelos meandros da história originária desta rede, alguns pontos de atenção importantes puderam ser registrados. É uma história rica e complexa e os registros poderiam ser infinitos, mas o que melhor os sintetiza é, sem dúvida, o registro dos termos da MISSÃO.

Concluída a caminhada introdutória, quero, agora, trazer alguns apontamentos sintéticos sobre aspectos da AUSJAL que me envolveram pessoalmente, de modo especial, e que se transformaram dentro de mim em motivos importantes para acreditar nesta rede de redes como um espaço fecundo de manifestação da IDENTIDADE e MISSÃO da Companhia de Jesus no contexto latino-americano, hoje.

1)FORMAÇÃO HUMANÍSTICA DE ORIENTAÇÃO CRISTÃ

O documento “Desafios da América Latina: Resposta Educativa da AUSJAL” (1995) foi efetivamente a primeira grande plataforma oficial desta rede. A primeira grande lição que aprendi e que calou fundo em meu engajamento acadêmico foi a proposta de que todas as Universidades Jesuítas da rede se empenhariam em proporcionar a seus estudantes três grandes eixos comuns de conhecimento humanístico:  1) Formação sobre América Latina; 2) Formação Antropológica; 3) Formação Ética.[13]

Lembro como, naquele momento, há vinte anos, protagonizamos diálogos vigorosos internos à nossa instituição, gerados ao longo do processo de implantação dessa proposta. Os movimentos favoráveis e desfavoráveis que se fizeram sentir e as reflexões fecundas, ajudando a melhorar a percepção interna da própria IDENTIDADE e MISSÃO de uma Instituição de Educação Superior Jesuíta, foram marcantes e salutares.

Hoje, percebo, com alegria, o quanto essa proposta, gestada por AUSJAL, em 1995, e tendo dado os seus primeiros passos efetivos em nossa instituição em 1997, conseguiu a sua consolidação dentro da cultura da Universidade. A proposta se diversificou, dando conta, ao mesmo tempo, do direcionamento inicial, ou seja, os três eixos, das diferentes culturas acadêmicas, com adequações junto às diferentes áreas. Conseguiu, também, atender a exigências da legislação educacional do País, como, por exemplo, as temáticas “Educação das Relações Étnico-Raciais” e “Educação Ambiental”, previstas na legislação para o ensino formal em todos os níveis. Além de algumas disciplinas específicas conforme os Cursos (Carreras), essas temáticas são abordadas, de forma transversal, nos três grandes eixos da formação humanística. Certamente as demais instituições da rede viveram processos semelhantes e podem celebrar os seus resultados.

O objetivo central da proposta de formação humanística era e é ajudar os estudantes a abrirem os horizontes de seus entendimentos especializados e disciplinares para uma compreensão mais ampla de comprometimento com o ser humano, enquanto tal, as exigências éticas envolvidas nisso e a importância de nossa inserção latino-americana no grande movimento da história que vivemos.

O desafio que se impõe hoje à universidade é a formação integral daqueles que buscam na Academia a sua capacitação para o exercício profissional. É um desafio porque, a par das rápidas mudanças que vivemos e da esclerose relativamente fácil de profissões constituídas, a humanidade está, mais do que nunca, à beira da falência humana, decretada por uma ilustração técnico-científica muitas vezes amparada em fundamentos de consistência duvidosa e, até mesmo, defasada no tempo.

Um contexto assim exige a presença de profissionais inovadores e humanamente integrados, capazes de enxergar e criar além dos limites dos pequenos mundos de suas especialidades.

2) AS TRÊS QUESTÕES ORIENTADORAS DO PRIMEIRO PLANO ESTRATÉGICO

Entre os legados deixados pelo Pe Xabier Gorostiaga sj está, sem dúvida, a marca dele  no texto do Plano Estratégico da AUSJAL para os anos 2001 a 2005.[14] Naquele texto estão formuladas três perguntas, como grandes balizamentos para a gestão das universidades:

Em nosso “que fazer” universitário, a primeira pergunta sempre deve ser: Que sociedade queremos? Destacando-se que as universidades existem como um serviço público à sociedade. Não podemos perder isso de vista. Quem se envolve nesse serviço deve, em primeiro lugar, prestar contas à sociedade.

Uma segunda pergunta naturalmente se seguirá: Que sujeitos formar para essa sociedade que queremos? Que educação necessitamos? Destacando-se que, hoje, mais do que nunca, os estudantes necessitam que sejam cultivados, neles, valores que os chamem a serem sujeitos capazes de assumir responsavelmente a construção da sociedade. Eles necessitam, para tal, vivenciar, em nosso meio, uma efetiva formação integral.

E a terceira pergunta consequentemente fará voltar o nosso olhar para as universidades enquanto tal: Que universidade para formar esses sujeitos? Que universidade para ser coerente com a educação proposta e a sociedade buscada? Certamente é necessária uma profunda ressignificação da relação entre universidade e sociedade.

Estas perguntas bem respondidas deveriam ser o conteúdo central do projeto político pedagógico de toda instituição de educação superior. Dentro da MISSÃO da Companhia de Jesus “a sociedade que queremos”, sempre, levará a marca da promoção da justiça socioambiental, ou seja, estará orientada para a construção de sociedade sustentável. Os sujeitos que são formados nas instituições jesuítas deverão ter facilitadas oportunidades e condições para desenvolverem, dentro de si, além das qualidades de excelência acadêmica, valores e atitudes de promoção da justiça socioambiental, nas relações interpessoais (de rejeição dos preconceitos e discriminações), nas relações sociais (de combate às desigualdades sociais) e nas relações com o meio ambiente (de cuidado com os bens da criação).

Isso também redobra em nós a obrigação de ajudar a fazer de nossas instiuições, verdadeiras universidades, no sentido mais radical de fazer delas espaços onde as diversas ciências e saberes interajam com maior fecundidade e vigor, de uma forma aberta ao que é novo ou ao que, muitas vezes, está posto à margem, constituindo-se em espaços de criação interdisciplinar e transdisciplinar e ambientes propícios para a geração e o desenvolvimento de homens e mulheres profissionais competentes, conscientes e decididamente comprometidos com a construção de uma sociedade orientada para o resgate da dimensão humana da existência e da sustentabilidade.

3) RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA – RSU E O COMPROMISSO AMBIENTAL

A minha participação maior na AUSJAL vem sendo através da rede de Responsabilidade Social Universitária – RSU. O conceito formulado pela AUSJAL está inspirado em Vallayes (2006), nos seguintes termos:

A habilidade e efetividade da universidade em responder às necessidades de transformação da sociedade em que está imersa, mediante o exercício de suas funções substantivas: ensino, pesquisa, extensão e gestão interna. Estas funções devem estar animadas pela busca da promoção da justiça, da solidariedade e da equidade social, mediante a construção de respostas exitosas para atender aos desafios implicados em promover o desenvolvimento humano sustentável.[15]

Neste conceito são pautadas cinco dimensões da vida acadêmica. Trata-se de cinco dimensões da universidade que, a rigor, nos proporcionam ângulos suficientes para visualizar a totalidade da vida de uma Universidade. Aprendi, no convívio dentro dos fóruns estabelecidos para implantar e aperfeiçoar o sistema de avaliação da vida acadêmica sob o ponto de vista da RSU, a importância de se estar atento a estas cinco dimensões e o quanto isto faz parte do modo de proceder em uma instituição jesuíta.

Estou sempre mais convencido, que devemos estar atentos, de forma integrada, a essas cinco dimensões: a educativa (a vida acadêmica em seu processo de ensino-aprendizagem), a epistemológica e cognoscitiva (a vida acadêmica em seu processo de produção de conhecimento), a organizacional (a vida acadêmica em sua gestão organizacional e administrativa interna), a social (a vida acadêmica em sua relação com a sociedade), e a ambiental (a vida acadêmica em sua relação com o meio ambiente). A avaliação da vida acadêmica só será efetiva e completa quando conseguirmos dar conta destas cinco dimensões de forma integrada, no próprio processo avaliativo. O impacto ou a presença da academia se dará através destas cinco dimensões. O que a AUSJAL faz para avaliar a Responsabilidade Social Universitária pode ser um modelo inspirador para uma avaliação mais ampla de todo o ‘que fazer’ universitário e de avaliação da excelência acadêmica.

Quero mencionar, no final deste item, duas inserções minhas específicas em grupos e redes da AUSJAL, que ajudaram a ampliar a minha percepção da importância e alcance da RSU.

Em primeiro lugar, acompanhei de perto o Projeto da Pobreza e participei em diversas oportunidades do seu processo de amadurecimento, tanto enquanto proposta de ensino, quanto na proposta da pesquisa. O projeto explicita o compromisso das nossas Universidades em dar a sua contribuição no combate às causas da pobreza no contexto latino-americano, ou seja, em incidir diretamente com sua expertise na promoção da justiça social. A vida acadêmica em sua relação com a sociedade fiel à MISSÃO da Companhia de Jesus, só pode ter isto como pauta primeira. Aprendi que este compromisso pode ser atendido de muitas formas por uma universidade.

Em segundo lugar, os meus contatos e participações recentes junto ao Grupo do Meio Ambiente e Sustentabilidade, também conhecido como Rede de Homólogos Ambientais. Neste fórum avancei na percepção da importância de uma compreensão integrada entre a justiça social e a justiça ambiental. Se, por um lado, as agressões ao meio ambiente físico muitas vezes são um subproduto das desigualdades sociais, por outro lado, é constatação que quem mais é prejudicado pelo meio ambiente físico degradado são aqueles setores da sociedade que mais sofrem devido à desigualdade. Para sermos Universidades Socialmente Responsáveis, dentro da concepção que nos define, precisamos ser agentes de justiça socioambiental e, na esteira disso, promotores da construção de sociedades sustentáveis.

4) INTERDISCIPLINARIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE

Sou muito grato à AUSJAL por me ter proporcionado a participação em todos esses fóruns. Foi nesses espaços que cresceu também a minha convicção sobre a importância radical da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade.

Não é de forma gratuita que o glossário que acompanha do documento de “Políticas e Sistema de Auto-avaliação e Gestão da Responsabilidade Social Universitária na AUSJAL”, conclui com dois conceitos chaves: o de interdisciplinaridade e o de transdisciplinaridade.

Não é necessário transcrever aqui os conceitos ali apresentados, mas vou permitir-me pontuar algumas considerações em relação aos três aspectos até aqui postos e a importância da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade com relação a isto.

Em primeiro lugar, a formação integral, visada diretamente pela proposta de formação humanística, supõe a integração dos saberes e supõe, portanto, também o não-fechamento e a abertura dos saberes, no sentido de se alimentarem mutuamente e, sobretudo, de se deixarem transcender (ultrapassar) na permanente busca do melhor bem para o ser humano e o seu contexto. Isto faz parte do cerne da IDENTIDADE jesuíta. A interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade nasceram com essa vocação, ou seja: por meio delas se busca a integração das disciplinas e de outros saberes de fora das disciplinas, dentro do mesmo sentido aqui exposto, proporcionando formação integral.

Quando a AUSJAL apontou para a importância da presença das três áreas temáticas de formação humanística, acima referidas, em todos os currículos, deu um passo instigante não só em provocar uma real cultura de interdisciplinaridade, mas de promover a cultura transdisciplinar trazendo interrogantes externos para dentro das gramáticas demasiadamente cartesianas dos currículos. A proposta da AUSJAL apontou três interrogantes de importância fundamental: as interrogações antropológicas, as interrogações éticas e as interrogações históricas de cidadãos do mundo situados responsavelmente no continente latino-americano.

Em segundo lugar, na complexidade dos contextos latino-americanos em que as Universidades Jesuítas estão inseridas, as respostas às perguntas “que sociedade nós queremos?” “que tipo de profissionais e cidadãos?” e “que tipo de educação e de universidade nós precisamos, para tal?” só poderão ser colhidas num amplo processo de atenção interdisciplinar e transdisciplinar.

Em terceiro lugar, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade são chaves fundamentais para o sucesso da Responsabilidade Social Universitária – RSU em todas as suas dimensões. Tanto na vida acadêmica em seu processo de ensino-aprendizagem, em seu processo de produção de conhecimento e em sua gestão organizacional e administrativa interna, como a vida acadêmica em sua relação com a sociedade e com o meio ambiente, são fóruns e espaços de incidência onde a cultura interdisciplinar e a cultura transdisciplinar são condições determinantes e definidoras de qualidade e sucesso.

PARA CONCLUIR: PERSPECTIVAS DE FUTURO

A pergunta é: “como vejo AUSJAL como rede de redes das Instituições de Educação Superior Jesuíta em América Latina para os próximos anos”?

Vejo com muita esperança e entusiasmo!… Mas, antes de tentar esboçar uma resposta minha a esta pergunta, quero mais uma vez sublinhar o que já mencionei no início: este artigo foi construído a partir daquelas pontas de AUSJAL nas quais eu pessoalmente estive e estou envolvido. É uma leitura – descrição e reflexão – parcial e muito pessoal. Não foram mencionadas diversas redes e atividades de AUSJAL, tão e mais importantes que as aqui referidas. Procurei honestamente manter-me na maneira estrita como me foi proporcionado perceber, conhecer e envolver-me na proposta de AUSJAL. Neste sentido o texto pode, também, ser lido como a minha manifestação de gratidão, enquanto jesuíta engajado na Universidade e na Promoção da Justiça Socioambiental.

Colocando-me agora em uma perspectiva de futuro, como me foi solicitado, quero concluir este texto, apoiado nas rápidas notas acima apresentadas, com duas considerações finais.

Nós temos um “DNA” acadêmico comum. Podemos resumi-lo como excelência acadêmica com compromisso socioambiental. As nossas instituições devem buscar a excelência e gerar um impacto coletivo pela excelência interconectada e mutuamente cultivada na rede AUSJAL. A qualidade das nossas atividades e ambientes de pesquisa e formação profissional se caracterize por possibilitar, por um lado, excelência e espírito inovador na qualificação profissional e na produção de conhecimento e, por outro lado, cultivo sério de valores e atitudes de compromisso socioambiental, ajudando a formar agentes de construção de sociedades sustentáveis. Isto se dará tanto pelo testemunho institucional, como pelo modo de proceder em todo processo educativo.

O presidente da AUSJAL, Pe Fernando Fernandez Font sj, falando de e para a Universidade Ibero Americana de Puebla demonstrou o seu máximo orgulho de que “ninguém e nada conseguiu nos dobrar em nossos princípios” e a sua alegria e esperança em poder participar de um dos maiores benefícios de um ser humano, o de ajudar a “reconstruir o futuro a partir da educação da juventude” e formar “profissionais com qualidade socialmente pertinente”, os “melhores para o mundo”, a partir da “perspectiva dos pobres”, “do sul para o sul”.[16]  Para ele quem se forma em nossas instituições deverá distinguir-se pelo compromisso responsável pelo outro e pelo futuro da vida  de nosso planeta. É o discurso que afirma que as nossas instituições buscam a excelência na qualidade e ao mesmo tempo o compromisso social e ambiental. É o “DNA” das Instituições de Educação Superior Jesuíta. Não é um discurso solitário. Essas palavras fazem ecoar o discurso de todos os reitores das instituições da AUSJAL e, sobretudo, o discurso do Governo Central da Companhia de Jesus. Um longo caminho já está feito na transformação deste discurso em prática, mas, com certeza, temos ainda muito a caminhar…

Nós temos uma CHAVE de trabalho partilhada muito interessante. As reflexões a partir das avaliações relativas às cinco dimensões consideradas pela Responsabilidade Social Universitária – RSU apontam, particularmente, para uma CHAVE, que ajuda a pensarmos o futuro de AUSJAL. A sinalização central é que o nosso esforço se volte para a produção de conhecimentos e a formação de profissionais comprometidos com a construção de sociedades sustentáveis. Isto deverá ser perceptível em todas as dimensões de nossa vida acadêmica: nos processos de ensino-aprendizagem enquanto tal, nos processos de produção de conhecimento, na gestão organizacional e administrativa interna, nas escolhas feitas com relação aos engajamentos sociais concretos e na maneira como cuidamos do meio ambiente.

As nossas instituições devem sentir-se permanentemente desafiadas a envolver-se nas novas “fronteiras” da humanidade e, sobretudo, a identificá-las, inserindo-as em seu próprio cotidiano. Sabemos que as nossas práticas formativas e de produção de conhecimento só serão efetivas para a construção de sociedades sustentáveis se, por um lado, o nosso modo de proceder institucional for coerente com isto, sabendo administrar sabiamente a sua sustentabilidade econômico financeira como parceira deste processo de construção, e, por outro lado, se estivermos atentos àquelas “fronteiras” que são os pontos mais vitais no processo de justiça socioambiental, ou seja: – o reconhecimento radical dos seres humanos em sua dignidade, independente de raça, religião, cultura ou prestígio social; – o esforço sincero e permanente por encontrar formas de superação das desigualdades e de erradicação das exclusões, da miséria e da pobreza; – o compromisso diuturno no cuidado com o meio ambiente e os bens da criação.

O cultivo de partilha e intercâmbio permanente entre as nossas instituições das boas práticas em todos estes âmbitos, poderá ser um excelente caminho de futuro da AUSJAL, fazendo dela uma rede potencializadora de agentes de construção de sociedades sustentáveis.


[1] AUSJAL. Desafíos de América Latina y Propuesta Educativa de AUSJAL. Colombia: AUSJAL, 1995.

[2] Congregação Geral é órgão máximo legislativo desta Ordem Religiosa, chamada Companhia de Jesus.

[3] Pe Pedro Arrupe na Congregação Geral 32, cfr http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Arrupe (27/02.2015)

[4] Ver in La Promoción de la Iustitia en las Universidades de la Compañía. PROMOTIO IUSTITIAE. Roma: Curia General de la Compañía de Jesús, Secretariado para la Justícia Social y la Ecología, N. 116, 2014/3, p.29 (epígrafe)

[5] Ver in La Promoción de la… p.52

[6] La Promoción de la… p. 7

[7] Reproduz formulação de consenso em texto do Fórum de Reitores das Instituições de Educação Superior dos Jesuítas do Brasil. FORIES. A Promoção da Justiça Socioambiental nas Instituições de Educação Superior Jesuíta. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2015, p.8

[8] Discurso na Universidade de Santa Clara, Califórnia, 2000.

[9] Xabier GOROSTIAGA SJ O legado da experiência. América Central, 1970-2000. Práxis, mediações e opções cristãs. http://servicioskoinonia.org/relat/335p.htm (27/02/2015)

[10] Arquivo J.U. OnLine, 20/7/2001 http://www.unisinos.br/

[11] Ibidem

[12] http://www.ausjal.org/tl_files/ausjal/images/contenido/Documentos/Publicaciones/ Documentos (27/02/2015)

[13] AUSJAL. Desafíos…, 1995, p.50

[14] AUSJAL. Plano Estratégico 2001-2005. Caracas, 2001.

[15] AUSJAL. Políticas y Sistema de Autoevaluación y Gestión de la Responsabilidad Social Universitaria en AUSJAL. Córdoba: EDUCC – Editorial de la Universidad Católica de Córdoba, 2014., p.15

[16] https://www.youtube.com/watch?v=xJUDyxMCFLw (Publicado 28/08/2013). Reitor Pe Fernando Fernández Font sj, palavras proferidas em 24 de agosto 2013, por ocasião da celebração do 30 anos da Universidad Ibero Americana de Puebla.

UMA EM TRES: UMA SOCIOLOGIA EM TRES ABORDAGENS

O texto “Uma em três: uma sociologia em três abordagens” é uma síntese do modelo teórico usado na tese doutoral do autor. Foi usado em aulas de sociologia, como referência básica de abordagem teórica, desde final da década de 1990.

José Ivo Follmann (versão de 02 de outubro de 2003)

1) Três abordagens simultâneas (introdução)

              Em nossas pesquisas sobre a “Identidade dos Católicos no Partido dos Trabalhadores” e sobre as “Comunidades Eclesiais de Base no Estado do Rio grande do Sul” utilizamos uma abordagem teórica tríplice. Foi o próprio processo de pesquisa que foi nos induzindo a esta necessidade teórica, isto é, de tentar captar a realidade em questão, ao mesmo tempo, dentro de uma perspectiva de discussão da produção da historicidade, dentro de uma perspectiva de discussão das lógicas dos campos de atividade e dentro de uma perspectiva de discussão da dinâmica pessoal e identidade. Se, por um lado, o objeto específico de nosso estudo nos conduziu a esta opção teórica, por outro lado, o longo contato que tivemos com estas três produções teóricas, levou-nos, aos poucos, à conclusão sobre a pertinência deste tríplice emprego teórico para um bom tratamento das mais diferentes questões colocadas para a pesquisa sociológica.[1]

              Trata-se de três perspectivas, ligadas a diferentes paradigmas de interpretação da sociedade, implicando também que tenhamos presente e consideremos os pressupostos teóricos com os quais estes paradigmas estão carregados.

              Primeiramente, o ponto de vista da produção da historicidade tem como referência principal a existência do conflito central dentro da sociedade estando em questão a apropriação e gestão de sua historicidade. Este conflito central é marcado por uma lógica, que pode ser denominada de lógica dos movimentos sociais na concepção de movimentos sociais de A.Touraine.

              Em segundo lugar, o ponto de vista das lógicas dos campos de atividade apresenta como referência principal o espaço social onde se realizam a reprodução e a produção da sociedade “distribuídas” pelas diferentes atividades, tendo cada uma sua lógica social própria. No caso concreto dos estudos mencionados, estavam em questão o campo religioso (e o campo político), ou seja, a lógica religiosa (e a lógica política) seguindo concepção de P.Bourdieu.

              Finalmente, o ponto de vista da dinâmica pessoal e identidade apresenta como referência principal a importância das iniciativas ao nível do sujeito individual, apresentando-se este como um lugar de iniciativa coletiva. Em outras palavras, há uma lógica da dinâmica e identidade dos indivíduos que deve ser levada em conta nos estudos sociológicos. Consideramos em primeiro plano autores como J. Remy, G.Bajoit e A Melucci.

O debate está aberto. A rigor ainda não cabem conclusões… É um desses textos em construção, que o autor nunca quer concluir. O esquema sempre ajudou muito nas aulas de sociologia e, mesmo, em palestras com públicos diversos. O livre navegar por diversas perspectivas teóricas é, sem dúvida, um caminho interessante dentro do “fazer sociológico”. O grande desafio que se coloca é o de não se cair na tentação fácil da caricatura dos autores. A nossa intenção sempre foi a de respeitar rigorosamente o lugar epistemológico de cada um. Parafraseando Santo Agostinho[2], quase se poderia dizer: “Respeite o lugar epistemológico dos autores e faça o que quiser!”

2) Produção da historicidade (e lógica dos movimentos sociais)

              Nosso estudo da sociedade pode tomar como ponto de partida e sublinhar em primeiro plano a historicidade, ou seja, a capacidade de produção da sociedade por ela mesma. Isto nos conduz diretamente à concepção de movimentos sociais tal como A. Touraine a trabalha.

              Falar dos movimentos sociais significa, para A. Touraine, falar do coração da vida social. O conceito de movimento social ocupa o centro das atenções, na concepção sociológica deste autor. Isto está intimamente ligado à maneira como ele concebe tanto as relações de classe como a noção de historicidade. “O movimento social, diz ele, é a conduta coletiva organizada de um ator de classe lutando contra seu adversário de classe pela direção social da historicidade dentro de uma coletividade concreta.“(1978: 104)

              As classes sociais, no seu entender, são forças opostas neste conflito central. Na auto-produção da sociedade, é preciso sempre estar atento às relações de classes de que ela é portadora.

              Segundo A. Touraine, é necessário ultrapassar as abordagens reducionistas e unilateriais e, colocando a sociedade sobre seus pés, reconhecer nela a verdadeira realidade das relações de classe.

              Ele entende por relações de classe “os conflitos entre os que detém o poder de dirigir a intervenção da sociedade sobre ela mesma, e os que lutam contra esta apropriação privada da historicidade e particularmente dos instrumentos e dos produtos da acumulação e do investimento.“(1976: 38). A questão central destes conflitos não é outra coisa senão acesso à historicidade e sua apropriação. A historicidade é expressão da capacidade da sociedade de autoproduzir-se tanto em nível de gestão dos recursos quanto em nível de orientação. Em outras palavras, cada sistema de ação histórica (de historicidade) ou cada estado da produção define-se pela maneira própria pela qual o saber, os investimentos e a ética são produzidos dentro de uma sociedade ou são expressão da auto-produção da sociedade por ela mesma.

              Para situar melhor o conceito de movimento social de A. Touraine, se faz necessário notar a dupla dialética assinalada por este autor no que concerne às relações de classe. Para ele, “a classe dirigente se identifica com a historicidade, a assume, dirigindo particularmente os investimentos, mas ela torna-se dominante pelo movimento inverso que a empurra a transformar esta direção em ordenamento e em mecanismo de reprodução e de defesa do mesmo (ordenamento). A classe popular é dominada, não somente por ser direcionada mas sobretudo por sofrer o direcionamento de seu adversário; ela é também contestatária, tanto na medida em que ela se opõe a esta ordem em nome da historicidade enquanto tal, tanto como para sua própria libertação”.(1978: 88-89).

              Esta dupla dialética, em nível de relações de classes, conduz em seu bojo a dinâmica da sociedade que traz confronto e conflito entre movimentos sociais da classe popular e movimentos sociais da classe dirigente (e dominante). Estes movimentos sociais são manifestações efetivas de dois atores de classe fundamentalmente opostos na sociedade.          

              O movimento social popular se evidencia numa sociedade toda vez que se manifesta uma ação coletiva porque carrega no seu projeto “componentes” com os quais a classe popular contesta a apropriação da historicidade em mãos da classe dirigente (e dominante). Os movimentos sociais (de classe popular) não são outra coisa que manifestações concretas deste ator fundamental.

3) Campos de atividade e suas lógicas

              Nosso estudo da sociedade pode tomar como ponto de partida e sublinhar em primeiro plano a idéia de espaço social enquanto dividido em diferentes campos ou subconjuntos.  Estes, a modo de mercados especializados, reúnem agentes e instituições em torno de questões e interesses específicos, isto é, de questões, motivos e projetos específicos. Trata-se dos diferentes campos de atividade, segundo P. Bourdieu.

              Cada campo de atividade se estrutura dentro de uma lógica própria, constituída de relações entre produtores e consumidores dos bens específicos do campo. Dito de outra forma, existem “instâncias objetivamente estabelecidas para assegurar a produção, a reprodução, a conservação e a difusão” dos bens próprios do campo. (P. Bourdieu, 1971: 305).

              A construção que P. Bourdieu faz, por exemplo, do campo religioso, é contribuição importante que constitui instrumento apto para a compreensão dos mecanismos internos à atividade religiosa. Segundo ele, a constituição de um campo religioso leva normalmente a uma “monopolização da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas religiosos”. (1971: 304). Está claro, entretanto, para o autor que, se aqueles que dominam um campo têm os meios de o fazer funcionar em seu próprio proveito, isto é, em proveito de suas disposições e interesses, eles não podem deixar de estar constantemente atentos à resistência dos dominados. Esta resistência é importante para que se possa falar de campo. Se todas as resistências estivessem neutralizadas, estaríamos na presença de um aparelho e não de um campo…  (Igreja católica ao longo da Idade Média era mais aparelho do que campo; quando temos campo a vigilância de que está no poder deve ser maior, para evitar ruídos…)

              O fato do campo estar estruturado dentro de uma lógica própria das relações entre os produtores e os consumidores não quer dizer que estes campos sejam impermeáveis e isolados dentro do espaço social. Bem pelo contrário, é através dos campos de atividade que a sociedade e as relações de classe se produzem e se reproduzem.  O conceito de campo de atividade fornece uma contribuição fundamental para compreender certos aspectos específicos das práticas das classes sociais. Ao nível dos “consumidores” dentro do campo religioso, por exemplo, segundo argumentação de M. Weber, é bem provável que as disposições e interesses religiosos das classes privilegiadas se dêem em termos de “demandas de legitimação” da ordem estabelecida, enquanto no meio das classes desfavorecidas isto ocorra mais provavelmente em termos de “demandas de compensação“.  (Busca de milagres, presenciar milagres, fantasia da melhoria de vida… Ou, vida eterna feliz e recompensada…)

              Continuando no mesmo exemplo do campo religioso, é na busca por garantir o monopólio da gestão dos bens de salvação que o corpo do poder eclesiástico sente-se empurrado, por um lado, a uma constante transação com os leigos e suas demandas religiosas, e, por outro, a uma constante vigilância para eliminar e neutralizar a concorrência de outras forças, como, por exemplo, a força profética. Esta última torna-se, sobretudo, perigosa quando através dos apelos e denúncias éticas ela ameaça transformar as “demandas de compensação” em apelo para o engajamento na construção de uma “nova sociedade” e uma “nova maneira de a Igreja ser”.  (A teologia da libertação, …)

4) Lógica da dinâmica e identidade pessoais

              Nosso estudo da sociedade pode tomar como ponto de partida e sublinhar em primeiro plano o indivíduo-sujeito com sua dinâmica e identidade pessoais

              Para muitos sociólogos, o debate sobre a inter-relação entre indivíduo e sociedade encontra-se ainda muito disperso, porque o sujeito, cujo estatuto sociológico está em questão, carece de uma elaboração teórica apropriada dentro da sociologia. É neste rumo que a proposição teórica que orientou uma pesquisa sobre os jovens, realizada sob a coordenação de G.Bajoit (1993)[3]  foi a da “teoria da construção do sujeito pela gestão relacional de si próprio”.

              Segundo G.Bajoit “os indivíduos selecionam (adotam ou rejeitam) os sentidos culturais (as idéias, as representações, as normas, as opiniões, os valores, os princípios) em função das necessidades da gestão de si mesmo, portanto em função da lógica do sujeito que lhe é própria no momento dado.”(1993) A idéia central da teoria proposta é a definição do sujeito como capacidade de gestão de si mesmo. Esta capacidade “permite ao indivíduo de decidir por ele mesmo, de escolher sua vida, de manter-se dono de seu destino, entre os outros, graças a eles e apesar deles.“(1993). Três recursos psíquicos essenciais são identificados nesta gestão de si mesmo: uma capacidade de reflexão (de acomodação e de distanciamento) graças à qual as tensões existenciais do indivíduo são tratadas; uma capacidade de projeção (de concretização e de escolha identitária) graças à qual ele gera a identidade e seus projetos; e uma capacidade de ação (de identificação e de diferenciação sociais), graças à qual ele elabora suas estratégias face aos outros (indivíduos ou grupo). O ser sujeito reside nesta capacidade de gestão de si mesmo. Numa palavra, o sujeito é a expressão, em cada indivíduo, da execução desta capacidade ou destas capacidades. A “dinâmica afetiva” e a dimensão da “paixão”, etc. são também aspectos fundamentais para a compreensão das ações coletivas e da sociedade. Além de G. Bajoit, tanto J. Remy, [4] quanto A. Melucci apresentam importantes contribuições neste sentido.

              Dentro desta perspectiva que realça a dinâmica e identidade das pessoas, uma das contribuições, sem dúvida, mais conhecidas, hoje, é a de A. Melucci, segundo o qual, entre outras coisas, as pessoas “sempre se adaptam e dão um sentido próprio às condições que determinam suas vidas” (1994: 153). Elas criam “formas próprias de interação no interior das condições estruturais” em que estão inseridas (ver 1994: 153). Assim ao comentar, por exemplo, a noção de sistema, A. Melucci assim se expressa: “existem formas de construir uma realidade coletiva que são aparentemente estáveis, às quais as pessoas podem se referir mas que, por trás desta aparente estabilidade, existe um esforço contínuo de interação e de negociação que é visto enquanto um sistema”. (1994: 158).

5) Observação, à guisa de conclusão…

BIBLIOGRAFIA:

BAJOIT, Guy e FRANSSEN, A. Les Jeunes dans la Compétition et la Mutation Culturelle. Pairs: PUF, 1995.

BAJOIT, Guy. Pour une Sociologie Relationnelle. Paris: PUF, 1992

BOURDIEU, Pierre. “Genèse et Structure du Champ Religieux”, Revue Française de Sociologie, N. XII, 1971, pp.295-334

_______.  Questions de Sociologie. Paris: Minuit, 1980.

_______. Economia das Trocas Simbólicas. Rio de Janeiro: Perspectivas, 1974.

FOLLMANN, J. Ivo. Religion, Politique et Identité. (Tese de doutorado) UCL, Louvain la Neuve, Bélgica, 1993

_______. “O lugar sociológico do sujeito individual”, Revista Estudos Leopoldenses, São Leopoldo – RS, v. 35, n. 155, p.39-58, 1999.

_______. “Identidade como conceito sociológico”, Revista Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo – RS, v. 37, p. 43-66, 2001.

FOLLMANN, J. Ivo, SEGALA, Aldino, SPOHR, Inácio, REDIN, Clarindo, “Comunidades Eclesiais de Base – CEBs no Estado do Rio grande do Sul”, Cadernos Cedope, Série Religiões e Sociedade, São Leopoldo – RS, n. 8, p. 3-50, 1996.

MELUCCI, Alberto. A Invenção do Presente. Movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis: Vozes, 2001.

_______. “A Experiência Individual na Sociedade Planetária”, Revista Lua Nova, N. 38, 1996, pp.199-221.

_______. “Movimentos Sociais, Renovação Cultural e o Papel do Conhecimento” (entrevista de   Alberto Melucci a Leonardo Avritzer e Timo Lyyra), Revista Novos Estudos Cebrap, N. 40, 1994, pp.152-166.

REMY, Jean, L. VOYE e E. SERVAIS. Produire et Reproduire: Une Sociologie de la Vie Quotidienne. (2 vols.) Bruxelles: De Boeck Université, 1991 (1ª ed. 1980)

TOURAINE, Allain. Production de la Société. Paris: Du Seuil, 1993 (1ª ed. 1973)

_______. La Voix et le Regard. Paris: Le Seuil, 1978.

_______. Le Retour de l´Acteur: Essai de Sociologie. (Col. Mouvements), Paris: Fayard, 1984.

______. “Crise ou Mutation”, in N. BIRNBAUM. Au-delà de la Crise. Paris: Du Seuil, 1976.


[1] O mesmo esquema teórico foi adotado em pesquisa sobre: “Religiões e Políticas Sociais: um estudo das práticas de assistência social das religiões no Vale do Rio dos Sinos, 1993-1999” e também está sendo trabalhado na pesquisa atualmente em andamento: “As Contribuições das Grandes Religiões Mundiais para uma Ética e Políticas Sociais na Sociedade Contemporânea”.

[2] Santo Agostinho: “Ame e faça o que quiser!”

[3] O relatório desta pesquisa foi publicado em forma de livro pela PUF em 1995. As citações apresentadas neste texto são extraídas da versão original de 1993.

[4] São fundamentais as recentes discussões sobre a noção de “transação social” desenvolvidas no meio sociológico europeu por J. Remy e diversos outros.

SUPERANDO AS MESMICES: EM BUSCA DE UMA PROPOSTA TRANSDISCIPLINAR

Palestra proferida em setembro de 2006 em Seminário Internacional, UNISINOS.

A tábua de salvação da universidade

P. José Ivo Follmann sj [1]
Secretário para a Justiça Socioambiental
Província dos Jesuítas do Brasil;
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos.

Palestra proferida no III Seminário Internacional sobre Limites e Possibilidades do Direito Moderno – Uma Visão Transdisciplinar, UNISINOS, Setembro de 2006.[2]

São Francisco Xavier, como missionário atuante no Extremo Oriente, em um dos contatos escritos, através de carta,[3] manifestava uma grande ansiedade com relação à acomodação e ao pouco resultado das Universidades Européias, frente às grandes necessidades da humanidade. Ele escrevia que tinha vontade de retornar à Europa e, “se fazendo de louco”, andar pelos corredores dessas Universidades e denunciar, aos gritos, a “insensibilidade e indiferença” delas e dos seus estudantes, com relação ao que a humanidade efetivamente mais estava necessitando. Esse santo, nos limites de sua compreensão, dentro de seu ardor missionário, se referia, evidentemente, à necessidade da evangelização e do anúncio dos valores cristãos para toda a humanidade.

Sem repetir a mesma visão de mundo desse heróico jesuíta do século XVI, hoje, são muitas as vozes que se levantam e que gostariam de “se fazer de louco” para sacudir as Universidades de seu torpor e sua acomodação nas mesmices de uma Academia insensível e indiferente frente aos destinos da humanidade e dos problemas concretos existentes no cotidiano das pessoas e da sociedade.

Talvez devamos dizer que não se trata, tanto, de insensibilidade e indiferença frente aos problemas humanos, mas da própria incapacidade de perceber e reconhecer as potencialidades da Universidade e os múltiplos valores que nela estão escondidos e são mal aproveitados.

O título desta minha participação neste III Seminário Internacional sobre Limites e Possibilidades do Direito Moderno – Uma Visão Transdisciplinar, foi inspirado em uma frase do Professor Ubiratan D’Ambrosio, em recente palestra nesta casa,[4] onde ele disse que “a transdisciplinaridade é o caminho de superação da mesmice.” Quero expressar a minha admiração em relação a toda a equipe que preparou o presente Seminário. Já é o terceiro e, portanto, existe uma história acumulada. Trata-se de uma história que faz parte, também, de um importante processo vivido pela nossa Universidade, sobretudo, desde o ano de 2001, na busca de definir-se como Universidade que faz uma opção institucional pela transdisciplinaridade. Já foram dados vários passos e, talvez, já possamos dizer que a superação da mesmice, ainda que débil e tributária dos rancorosos limites de uma cultura disciplinar secular, está sendo esboçada com firmeza.

Colocando-me na seqüência de minhas contribuições nos Seminários anteriores, onde fui desafiado, por duas vezes consecutivas, a trazer reflexões para uma discussão do conceito de transdisciplinaridade e de sua pertinência no atual contexto acadêmico e profissional, trago para este momento mais três fragmentos ou recortes, que, no meu entender, poderão jogar novas luzes ou interrogações sobre a temática.

Em minha participação no Primeiro Seminário, preocupei-me em propor algumas reflexões sobre o conceito de transdisciplinaridade, diferenciando-o de multi, pluri e interdisciplinaridade, e usei, na oportunidade, diversas imagens para ajudar a definir a essencialidade do conceito.

Desde o Primeiro Seminário, acostumei-me a falar em quatro momentos metodológicos de um mesmo “que fazer” científico: 1) a disciplinaridade; 2) a multi e pluridisciplinaridade; 3) a interdisciplinaridade; 4) a transdisciplinaridade. Com a afirmação da transdisciplinaridade não se está deixando de afirmar a importância da contribuição específica das disciplinas, seja em suas produções isoladas, seja na forma multi ou pluridisciplinar de produção do conhecimento, somando, justapondo ou criando interfaces entre disciplinas, ou, ainda, na forma interdisciplinar, de efetivo diálogo e intercâmbio conceptual e metodológico entre disciplinas. A transdisciplinaridade estará presente em todos esses momentos metodológicos, na medida em que houver uma madura abertura para a integração dos saberes, seja saberes de disciplinas, seja saberes de “interrogantes externos”, que as transcendem.[5] Para Basarab Nicolescu, no qual esta conceituação se apóia, “a transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica, diz respeito àquilo que está, ao mesmo tempo, entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina.”[6]

No Segundo Seminário aprofundei algumas imagens, como: a do “poço”, utilizada freqüentemente por Ubiratan D’Ambrosio; a da “ultrapassagem”, buscada numa reflexão de Dom Helder Câmara; a do “menino que queria conhecer o mundo”, título de um livro de Carlos Rodrigues Brandão.

Retomando sinteticamente: 1) Ubiratan D’Ambrosio, ao falar do conhecimento, utiliza a analogia do poço, “assim, como ao descer num poço a percepção do terreno ao redor vai se tornando mais e mais difícil, o conhecimento especializado pode conduzir a uma falta de percepção do contexto em que tal conhecimento foi produzido.”[7] 2) Dom Helder Câmara um dia, inquieto, exclamou “Ah! Se a sede de ultrapassagem – comum a todos os volantes – levasse volantes e passageiros a aprenderem a ultrapassar-se!” É necessário que saibamos ultrapassar a nós mesmos, constantemente, para não nos tornarmos ultrapassados. A Academia facilmente corre o risco de ser ultrapassada, voltada que está para os seus disciplinamentos e os regramentos internos de seu mundo. Os Acadêmicos correm o risco de ficar à parte do contexto no qual se inserem, movimentando-se de forma paralela e construindo ‘torres de marfim’, à parte, alheios aos grandes debates e embates da humanidade. 3) Carlos Rodrigues Brandão, em um de seus livros no qual retrata a história de Paulo Freire “A história do menino que lia o mundo”,[8] destaca que esse menino que lia o mundo, aprendeu a perder o medo porque começou a entender as coisas e o mundo. Só temos medo frente ao que não entendemos. É preciso saber colocar no background de nossas análises científicas disciplinadas e de alta qualidade e habilidade, o “isso não é tudo”, esses caminhos não são suficientes! É importante repetir permanentemente para nós mesmos: Existem outras percepções, que transcendem a percepção disciplinar.[9]

Hoje vou propor novas aproximações… Os três fragmentos ou recortes que vou sinalizar, aqui, de forma sucinta, pretendem colocar-se numa seqüência das reflexões anteriores, buscando aprofundamentos, através da provocação de novos diálogos. Vou falar de: 1) a “lição de uma Mãe-de-Santo”; 2) a “leitura de um documento dos Jesuítas”; e, 3) o “o triângulo da vida de Ubiratan D’Ambrosio”.[10] Após essas três entradas, aparentemente desencontradas, tentarei, a título de conclusão ou encaminhamento de debate, levantar algumas questões direcionadas para a temática central do presente Seminário.

1. A Lição de uma Mãe-de-Santo

Aproveito para trazer, aqui, a lição que recebi de uma Mãe de Santo.[11] Estava participando de um seminário sobre teologia das religiões de matriz africana. A Mãe de Santo, que era uma das painelistas, acabara de fazer uma reflexão de grande profundidade e, no meu entender, de registro escrito necessário. Perguntei-lhe, no final de sua colocação, por que as religiões de matriz africana, ainda hoje, continuavam resistentes ao registro escrito das grandes lições de vida e fé de seus líderes e, também, de suas reflexões espirituais e religiosas. Ela me respondeu: “Padre Ivo, se a gente escreve, aí vêm outros, leem e saem fazendo bobagem!…” Foi uma resposta inesperada, que já me oportunizou muita reflexão.

Em primeiro lugar: valores e atitudes não se aprendem em livro! Ou seja, existem dimensões no conhecimento que não passam pela simples captação da razão. As formulações da linguagem sempre serão pobres para dar conta delas. Só podem ser colhidas na vivência e no coração. A simples apreensão pela leitura, quando não acompanhada pela acolhida vivencial, proporciona uma falsificação cognitiva. A frase “aí vêm outros, lêem e saem fazendo bobagens!” pode ser entendida também como “aí vêm outros, lêem, acham que sabem e saem fazendo bobagens!

Quantas bobagens fazem professores em sala de aula, porque leram (talvez tudo de sua matéria) e acham que sabem, mas não são capazes de estar atentos à vida de seus alunos ou mesmo à sua própria vida! Quantas bobagens fazem profissionais da lei em seus afazeres jurídicos, porque leram e acham que sabem!

Em segundo lugar: a Academia e as instituições consolidadas não são os únicos espaços de estruturação das áreas de conhecimento ou dos campos de saber. Existem áreas e campos de conhecimento e saber, cujas hierarquias de poder estão situadas fora do meio acadêmico e das instituições consolidadas.

A lembrança da Mãe de Santo nos faz retomar uma imagem que é muito cara a Ubiratan D’Ambrosio. Ele fala das “gaiolas epistemológicas”. As grades das gaiolas epistemológicas só serão, efetivamente, rompidas na medida em que o conhecimento puder ser construído em profundo diálogo com atitudes e valores. Só num processo assim, estaremos formando homens e mulheres com capacidades efetivas e humanas para construir cultura nos lugares onde estiverem atuando, compartilhando conhecimentos, compatibilizando comportamentos e afirmando valores.

No diálogo inter-religioso aprende-se muito. O diálogo inter-religioso já me fez aprender muito. É um processo no qual se aprende, por exemplo, a aceitar que o outro, que antes era talvez simplesmente uma realidade que se tolerava, possa ser alguém em pé de igualdade, sendo, inclusive, referência para nós. Ele ajuda a aceitar a possibilidade de outras hierarquias na produção do conhecimento, para além daquelas que normalmente consideramos válidas. No diálogo inter-religioso experimentamos a ajuda desses outros. Eles nos ajudam a sermos melhores em nossa própria religião. O caminho do diálogo inter-religioso é um bom caminho de aprendizagem para uma cultura transdisciplinar.

Com a licença da Mãe de Santo, permitam-me fazer um pequeno parêntesis, aqui: Em determinada ocasião, numa das muitas participações em encontros que envolvem a temática do diálogo inter-religioso, estávamos reunidos com um grupo grande de seguidores do Movimento Brahma Kumaris. No final daquele evento, alguém nos trouxe uma proposta, que achei muito inspiradora. A pessoa falou em vibrações da paz. Só um minuto! “Convidamos você a fazer esta experiência: a cada hora, interrompa a sua ação e o fluxo do seu pensamento, com a seguinte mensagem: Sou um ser especial, somos seres especiais e com outros seres especiais dançamos e formamos a ‘ciranda da vida’.” (BK) É a idéia do Ano Sabático, em forma de comprimido. Trata-se do momento de retomar a visão do todo. Momento de fazer as pazes conosco mesmos. Fiquei pensando: talvez necessitemos, efetivamente, mais disso. Para que o nosso conhecimento seja mais verdadeiro e para que os nossos conhecimentos nos levem a fazer menos bobagens, esses momentos de encontro conosco mesmos, fazem uma tremenda falta!

2. Um Desafio para os Jesuítas

Sem sair da esfera religiosa e do diálogo inter-religioso, faço agora um convite para nos determos brevemente diante de um texto atual que circula no meio jesuítico.[12] Estamos em uma instituição jesuítica, por isso é mais do que oportuna esta nota… Com uma distribuição de alcance restrito, circula no meio jesuíta, um texto intitulado “Globalização e marginalização”, abril de 2006.[13] Ele foi elaborado por uma equipe internacional e intercultural de jesuítas, nomeada pelo Superior Geral, sob a coordenação do Secretariado de Justiça Social, da Companhia de Jesus. Trata-se de um dos textos de trabalho que vêm preparando, de forma longínqua, a Congregação Geral da Ordem, a realizar-se em janeiro de 2008.

Quero trazer duas recomendações que, entre outras muitas, dignas de serem ressaltadas, chamaram a minha particular atenção: a) é recomendável, que cada jesuíta se empenhe em defender ao menos uma cultura, que não seja a sua; b) é recomendável, que cada jesuíta se empenhe em conhecer a fundo ao menos mais uma religião, além da sua própria.

Não se trata, portanto, de ter simplesmente uma atenção e procurar conhecer as outras culturas e religiões e dialogar com as mesmas, mas empenhar-se em defender e empenhar-se em conhecer a fundo. Trata-se de uma provocação grande.

Não é, evidentemente, um documento oficial da Ordem, mas, certamente, ele aporta indicativos muito sérios e pertinentes para a nossa reflexão, para que se possa avançar, de forma efetiva, na construção da transculturalidade e da transdisciplinaridade.

Retomar esta reflexão fará muito bem para a Ordem Religiosa em questão, mas convido a todos aqui presentes, ou aos que tomarem contato com este texto, a deixarem que este desafio os provoque.

Ubiratan D’Ambrosio também falou: “No encontro com o outro tem que ter ética!” Sugerindo, é claro, o respeito pela essencialidade do ser humano. Eu logo fiz o link com a questão de inclusão social, tão falada e talvez tão mal praticada! Nós, em geral, gostamos muito de fazer inclusão. De fazer dos outros objetos de nosso trabalho de inclusão. As coisas começam a se complicar no momento em que temos que dar o passo para o reconhecimento do sujeito do outro que está sendo incluído: aceitá-lo como sujeito de sua própria inclusão. Com muita facilidade nos deixamos cegar por pequenas limitações (maneiras de se comportar não condizentes com o nosso padrão estabelecido, etc), para perpetuar, de forma inconsciente, a condição de objeto do outro a ser incluído.

É muito difícil e, às vezes, quase impossível, a tarefa de enfrentar essa nossa limitação. Precisamos, em primeiro lugar, reconhecer os nossos próprios limites, preconceitos e estereótipos, para podermos aceitar o outro como sujeito, sujeito de inclusão e sujeito também incluído (como nós). Mais difícil, ainda, se faz a tarefa de reconhecer no outro, o qual, na minha cabeça, deve ser incluído, como um possível sujeito de minha própria inclusão. Isto é: como alguém que pode contribuir para que eu seja mais gente!

Talvez as duas recomendações destacadas do texto aqui referido possam traçar novos caminhos para os nossos trabalhos de inclusão social…

3. O “Triângulo da Vida” de Ubiratan D’Ambrosio

Um terceiro apontamento, que gostaria de fazer, diz respeito a uma interrogação pedagógica que me ocorreu ao ouvir o Professor Ubiratan D’Ambrosio apresentar a bela síntese explicitada no que ele denomina de “triângulo da vida”. Trata-se de uma metáfora matemática: o fenômeno da vida sintetizado nos seis elementos de um triângulo, onde os três vértices, – o indivíduo, a natureza e a sociedade (os outros), – estão complexamente “intermediados por instrumentos, comunicação e emoções, trabalho e poder, que foram e são essenciais para o desenvolvimento das civilizações”. Podemos falar em atitudes, conhecimentos e capacidades.

Tendo presente o rico conceito de conhecimento com o qual o palestrante costuma trabalhar, no qual se misturam fecundamente também as dimensões do comportamento e dos valores. Aliás, comportamento e valores são indissociáveis.

Ubiratan D’Ambrosio diz: “Eu acredito que é possível uma sociedade onde a arrogância, a desigualdade e o fanatismo não existam mais. Para tal, nós precisamos de uma dramática mudança nos fundamentos de nossa civilização. As normas e valores universalmente aceitos, assim como os sistemas de criação de valor e trabalho, baseados no ganha/perde e na escassez/abundância, são insustentáveis. Nós precisamos de uma ética, focada na mudança da competição para a cooperação, do seccionamento humano para a interconectividade humana, da dependência humana para a interdependência humana, do medo para o amor, do individualismo para o altruísmo. Esta será a mais significativa mudança em toda a história humana e o início de uma caminhada na direção de uma civilização planetária.” Se consideramos estes desafios isoladamente, parecem simplórios e até ingênuos, mas eles, considerados em seu conjunto, refletem um complexo sistema de conhecimento, ou seja, envolvem modos ou estilos de relacionar-se, de entender, de expor o contexto natural, sócio-cultural e imaginário. Segundo Ubiratan D’Ambrosio, por razões até agora pouco explicadas, a espécie humana deu absoluta prioridade a um dos vértices do triângulo: o vértice do indivíduo.

Nós poderíamos pensar uma “matriz” pedagógica, na qual valores, atitudes e conhecimentos de professor e alunos entrassem em permanente roda de explicitação, no momento do indivíduo, no momento social e no momento natural, ou seja: em relação a si, em relação aos outros, em relação à sociedade e em relação à natureza. Em suma, como fazer para que numa sala de aula aconteça a verdadeira construção da cultura e não simples transmissão?

Para concluir…

Em primeiro lugar, não é necessário dizer que o “desafio da Mãe de Santo” fala por si. “Se a gente escreve, aí vêm outros, lêem e saem fazendo bobagem!” “Aí vêm outros, lêem, acham que sabem e saem fazendo bobagem!” Que saibamos ter todos os nossos sentidos muito abertos para apreender a realidade viva que não consegue estar abarcada nos textos e documentos frios que desfilam na nossa frente. Que, sobretudo, nunca deixemos de voltar a nossa atenção aos sujeitos sobre os quais está escrito nos textos e documentos que manipulamos.

Em segundo lugar, a palavra de ouro é o diálogo. Este supõe radical abertura ao outro, ao diferente, a ponto de chegar a um conhecimento profundo dele e de colocar-se em defesa do mesmo. O conhecimento profundo do outro só é possível quando conseguimos des-absolutizar a nossa posição. A maior prova dessa “des-absolutização” está em colocar-se na defesa do direito de realizar-se plenamente dentro dos ditames de outra cultura, que o outro tem.

Em terceiro lugar: O “triângulo da vida” que Ubiratan D’Ambrosio propõe, deve ser para nós uma chamada para a superação da racionalidade individualista para uma racionalidade planetarista, onde o nosso pensar e o nosso agir estão sempre atentos às conseqüências que este pensar e agir têm na sociedade e na natureza. Para que a nova sociedade, onde arrogâncias, desigualdades e fanatismos não tenham mais vez, seja possível, é necessário que as nossas atitudes, os nossos conhecimentos e as nossas capacidades se revistam sempre mais dessa racionalidade que integra, de forma harmônica, a relação com os indivíduos, a sociedade e a natureza.

Em suma, estas são as três pontuações que queria trazer para o presente Seminário e faço votos que possam ser transformadas em pistas inspiradoras na construção de uma cultura da transdisciplinaridade.

NOTAS

[1] Doutor em Sociologia, Padre Jesuíta, Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNISINOS.

[2] Palestra transcrita e revisada pelo autor.

[3] A prática das cartas era uma prática muito usual na recém criada Companhia de Jesus, no século XVI.

[4] Ubiratan D’Ambrosio. Conhecimento e Valores Humanos. Programa de atualização dos docentes. UNISINOS, Unidade de Apoio de Recursos Humanos, setembro de 2006.

[5] Ver Follmann, J. Ivo; Lobo, Ielbo M. et allii. Transdisciplinaridade e Universidade: uma proposta em construção. São Leopoldo: Edunisinos, 2003, p.10.

[6] Nicolescu, Basarab. Educação e transdisciplinaridade. Brasília: Ed. Unesco Brasil, 2000, p.15.

[7] Conferência realizada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, 08 de maio de 2003. (Ver também D’Ambrosio, Ubiratan. Transdisciplinaridade, São Paulo: Palas Athena, 1997).

[8] Brandão, Carlos R. A história do menino que lia o mundo. São Paulo: ANCA, 2002. (Fazendo Hist. nº7, MST)

[9] Desenvolvemos mais amplamente a descrição destas “imagens” em artigo publicado na Revista Ciências Sociais Unisinos. Vol. 41, N. 1, jan/abril 2005: “O Desafio Transdisciplinar: alguns apontamentos” (p. 53-57) [1] D’Ambrosio, Ubiratan. Knowledge and Human Values. Segundo Congresso Mundial de Transdisciplinaridade

[10] D’Ambrosio, Ubiratan. Knowledge and Human Values. Segundo Congresso Mundial de Transdisciplinaridade. Vila Velha, Vitória, ES, setembro de 2005.

[11] Ialorixá Dolores Senhorinha Dornelles, Associação Africanista Santo Antonio de Categeró, São Leopoldo, RS.

[12] Da mesma Ordem Religiosa, a Companhia de Jesus, da qual faz parte São Francisco Xavier, referido, no início.

[13] Social Justice Secretariat. Globalisation and Marginalisation; our global apostolic response. (Report of the Task Force on Globlisation and Marginalisation). Rome, February 2006.

TRANSDISCIPLINARIDADE, DIÁLOGO E COMPROMISSO SOCIAL: DESAFIOS PARA A RENOVAÇÃO DA ACADEMIA

Palestra proferida em Liverpool, Inglaterra, em abril de 2014.

A tábua de salvação da universidade

P. José Ivo Follmann sj
Secretário para a Justiça Socioambiental
Província dos Jesuítas do Brasil;
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos.

MESA REDONDA: INTERNATIONAL FEDERATION OF CATHOLIC UNIVERSITIES – IFCU; XXV Colloquium of ACISE “Being open to the others” – Liverpool Hope University, 04/23-25/2014

RESUMO:

O artigo propõe uma reflexão sintética sobre o possível papel da educação superior na realização do sonho de sociedades sustentáveis, pautando, para tal, a importância da cultura transdisciplinar, do diálogo e do compromisso social na produção do conhecimento e na formação dos profissionais. As concepções de ‘transdisciplinaridade’ (Basarab Nicolescu) e de ‘ecologia dos saberes’ (Boaventura de Souza Santos) são retomadas na perspectiva de se repensar o sentido da universidade hoje, enriquecendo-as com apontamentos a partir de estudos sobre a importância do compromisso social da universidade e da extensão universitária, através do conceito de responsabilidade social universitária (François Vallaeys). Além de estabelecer uma aproximação sugestiva entre as concepções de ‘ecologia dos saberes’ e de ‘transdisciplinaridade’ e sua importância para a educação superior, hoje, o texto partilha algumas reflexões a partir do cotidiano de ‘que fazer’ universitário. A reflexão é desenvolvida no horizonte dos desafios que a universidade enfrenta dentro do contexto social brasileiro e latino-americano, tendo em vista a sociedade sustentável. O artigo conclui com apontamentos e questionamentos que sugerem a necessária ‘reinvenção’ da universidade na perspectiva do ‘abrir-se para os outros’.

Palavras Chave: Transdisciplinaridade; Responsabilidade Social Universitária; Diálogo

INTRODUÇÃO

Tendo como horizonte, o contexto latino-americano e, especificamente, o contexto brasileiro, e a urgência de se pensar a responsabilidade das universidades para ajudar a garantir o futuro da humanidade mediante sociedades sustentáveis, são dados quatro passos na reflexão: – Horizontes Direcionadores da Universidade e Responsabilidade Social Universitária; – As Cinco Dimensões do ‘Que Fazer’ Universitário; – Transdisciplinaridade e Diálogo de Saberes: Um Atalho Fundamental; – Extensão Universitária, Caminhos de Ruptura do Abismo e ‘Reinvenção’ da Universidade na Perspectiva do ‘Abrir-se para os Outros’.

HORIZONTES DIRECIONADORES DA UNIVERSIDADE E RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA

Hoje em dia, em nosso meio, muitas vezes se ouve dizer que existe uma defasagem grande entre o que a sociedade em geral, o mercado em particular e os governos esperam do sistema de ensino, particularmente da educação superior e quais as condições efetivas existentes neste sistema para uma produção de conhecimentos e formação de profissionais condizentes com as reais necessidades da sociedade. Isto redobra de importância e urgência quando colocamos no horizonte a construção de sociedades sustentáveis, como é o horizonte direcionador da proposta contida neste texto. Ou seja, a questão se centra sobre as condições que as universidades apresentam para dar conta daquilo que deveria ser a sua finalidade como produção de conhecimentos e formação de profissionais condizentes com a construção de sociedades sustentáveis.

Às vezes nos deparamos com comentários que sugerem que existe um verdadeiro abismo, quase intransponível, entre estes dois mundos. Mesmo que sejam conhecidos diversos esforços para superar este abismo, existem muitos outros processos em andamento que acabam aumentando o mesmo.

Como romper este abismo? Como construir pontes efetivas que permitam o trânsito sobre o mesmo? Sem fazer rodeios, entendo que, em primeiro lugar, é necessário que se coloque no centro do horizonte direcionador algumas questões chaves: – Que sociedade humana nós queremos? Queremos efetivamente construir sociedades sustentáveis? – Que tipo de sujeitos (pessoas) deve ser formado, para que este tipo de sociedade se faça possível? – Que educação nós necessitamos e que universidade queremos para sermos coerentes com a educação necessária para os sujeitos e a sociedade buscados?

Se o nosso sonho é com uma sociedade sustentável, isto é: com uma inovação tecnológica permanente e com o estabelecimento de garantias de sustentabilidade social e ambiental, em vista da sobrevivência equilibrada da sociedade e do meio ambiente no presente e no futuro, os cidadãos e profissionais desta sociedade devem passar por um processo de formação condizente e o sistema, no qual este processo formativo se dá, deve ser impulsionador disto. Quando eu falo em Universidade, o faço dentro deste horizonte. Ou seja, só vejo sentido em lutar por uma Universidade que efetivamente se coloque nesta perspectiva.

Tornou-se bastante usual em debates recentes, sobretudo, a partir do incentivo da UNESCO, o conceito de Responsabilidade Social Universitária – RSU. O conceito tem em si uma riqueza muito grande e traz para o centro das atenções a importância de se ver o processo universitário em sua totalidade orgânica e transversalmente integrada. Reproduzo aqui o conceito formulado pela Associação das Universidades Jesuitas de América Latina – AUSJAL, inspirado em Vallayes (2006), nos seguintes termos: “A habilidade e efetividade da universidade em responder às necessidades de transformação da sociedade em que está imersa, mediante o exercício de suas funções substantivas: ensino, pesquisa, extensão e gestão interna. Estas funções devem estar animadas pela busca da promoção da justiça, da solidariedade e da equidade social, mediante a construção de respostas exitosas para atender aos desafios implicados em promover o desenvolvimento humano sustentável.”[i]

AS CINCO DIMENSÕES DO ‘QUE FAZER’ UNIVERSITÁRIO

O sistema de avaliação implantado na AUSJAL para dar conta do conceito de Responsabilidade Social Universitária – RSU está pautado na avaliação de cinco impactos, dando conta de cinco dimensões chave da vida da universidade. Estou sempre mais convencido, em coerência com o que coloquei como horizonte direcionador da Universidade, que devemos estar atentos, de forma integrada, a essas cinco dimensões: a educativa (a vida acadêmica em seu processo de ensino-aprendizagem), a epistemológica e cognoscitiva (a vida acadêmica em seu processo de produção de conhecimento), a organizacional (a vida acadêmica em sua gestão organizacional e administrativa interna), a social (a vida acadêmica em sua relação com a sociedade), e a ambiental (a vida acadêmica em sua relação com o meio ambiente). Trata-se de cinco dimensões da universidade que, a rigor, nos proporcionam ângulos suficientes para visualizar a totalidade da vida de uma Universidade. A avaliação da vida acadêmica só será efetiva e completa quando conseguirmos dar conta destas cinco dimensões de forma integrada, no próprio processo avaliativo. O impacto ou a presença da academia se dará através destas cinco dimensões. O que a AUSJAL faz para avaliar a Responsabilidade Social Universitária pode ser um modelo inspirador para uma avaliação mais ampla de todo o ‘que fazer’ universitário e de avaliação da excelência acadêmica.

Tendo em vista a produção de conhecimentos e a formação de profissionais para a construção de sociedades sustentáveis, é importante que, na avaliação da vida acadêmica, se esteja atento: a) em seus processos de ensino-aprendizagem e de produção de conhecimento, ao compromisso socioambiental, junto à excelência acadêmica e ao espírito inovador e empreendedor; b) em sua gestão organizacional e administrativa interna, à sustentabilidade socioambiental junto à sustentabilidade econômico financeira; c) em sua relação com a sociedade, ao testemunho institucional e práticas de incidência externa no que tange à reconstrução das relações humanas de reconhecimento e valorização dos diferentes (combate ao preconceitos e discriminações) e à busca de formas de combate às desigualdades sociais no que tange ao trabalho e acesso aos bens; d) em sua relação com o meio ambiente, da mesma forma, ao testemunho institucional e às práticas inovadoras na relação sustentável com o meio ambiente.

Uma aventura destas é tremendamente difícil e quase inconcebível dentro das estruturas comuns da academia seccionada em pesquisa, ensino e extensão, seccionada em departamentos, seccionada em faculdades, institutos ou centros. É, também, muito difícil e quase inconcebível dentro de um esquema de produtividade puramente quantitativa e vazia, como vem acontecendo em muitas situações.

Em tais situações, o sistema de avaliação da chamada ‘excelência acadêmica’ deve ser radicalmente revisto, pois está exacerbando uma corrida quantitativa de ‘produtividade científica’, em grande parte inócua e desconectada com o que deveria ser a finalidade central da universidade. É fundamental que avaliação seja realizada no contexto institucional tendo em vista a continuidade, permanência e garantia de futuro e no contexto da relação da instituição com a realidade social e ambiental envolvente tendo em vista a capacidade de interlocução nos processos de produção do conhecimento e de formação de profissionais. O contexto institucional e a sua capacidade de interlocução devem ser identificáveis tanto em relação ao passado, aos valores e saberes acumulados pelas mais diversas vias, como em relação ao futuro, à busca inovadora de soluções para a humanidade em vista de sociedades sustentáveis e universidades que sejam preparadas e propícias para tal. Este deve ser o referencial para adjetivar de forma coerente a excelência acadêmica. Ou seja, se formos coerentes com a busca por eliminar a grande defasagem entre academia e sociedade, em vista de produção de conhecimentos condizente e da formação de profissionais condizente, a avaliação da excelência acadêmica terá que levar em conta, sobretudo, o tipo de processo desenvolvido na academia, a sua efetiva capacidade de abertura e interlocução com as múltiplas formas de saber e o tipo de impacto gerado por este processo no contexto socioambiental.

TRANSDISCIPLINARIDADE E DIÁLOGO: UM ATALHO FUNDAMENTAL

Para que se possa trilhar o caminho complexo aqui sinalizado, muitos passos devem ser dados, a depender dos diferentes contextos e limitações institucionais. Quero, no entanto, destacar um atalho que entendo como fundamental: o cultivo da ‘cultura da transdisciplinaridade’.

Havendo este cultivo, o ambiente estará facilitado e fecundo para que se concebam e se desencadeiem iniciativas acadêmicas (programas, projetos e atividades) de formação profissional e de produção de conhecimento de efetiva incidência no contexto em todos os níveis.

Mas o que é transdisciplinaridade? O que explica toda esta atenção? Por vezes não nos damos conta de que é dentro do processo de interrogações sobre

a defasagem entre a Universidade e o seu contexto, ou sobre a busca de aproximação entre academia e sociedade que se acelerou o processo de gestação da transdisciplinaridade. Fica sempre mais claro que as opções por buscar soluções transdisciplinares são as que criam as melhores condições para acelerar a aproximação entre academia e sociedade. Talvez se possa dizer que é nas soluções transdisciplinares que reside, em grande parte, a salvação para o futuro das próprias universidades e seu sentido na sociedade. Entendo que as práticas transdisciplinares, no cotidiano das instituições de educação superior, – e isto é válido para o sistema educativo em geral, – serão um grande facilitador para superar a lacuna entre os dois mundos, promovendo uma maior aproximação entre o meio acadêmico e as demandas da sociedade.

O mundo acadêmico é o mundo das disciplinas. É, também, muitas vezes, um mundo que sucumbe a certas arrogâncias disciplinares… As certezas disciplinares são reconduzidas à aproximação da verdade na medida em que se instauram processos multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. A rigor, são diferentes ‘movimentos’ metodológicos de um mesmo ‘que fazer’ científico.[ii] O último desses ‘movimentos’, a transdisciplinaridade, não significa um momento ou etapa de superação ou desconsideração da contribuição específica dos outros ‘movimentos’ das disciplinas, seja em suas produções isoladas, seja na forma multidisciplinar de produção do conhecimento, somando, justapondo ou criando interfaces complementares entre disciplinas, ou, ainda, na forma interdisciplinar, de efetivo diálogo e intercâmbio conceptual e metodológico entre as mesmas. A transdisciplinaridade reflete, em si, todos esses ‘movimentos metodológicos’, acrescendo-lhes uma abertura madura para a integração de saberes diferentes, sejam eles saberes de disciplina, combinação de disciplinas ou, ainda, saberes de outras ordens, que transcendem as disciplinas, atuando como “interrogantes externos”.[iii] Para Basarab Nicolescu, no qual me apoio mais diretamente, “a transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica (…) diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina”.[iv]

A transdisciplinaridade nasceu com essa vocação. Por meio dela se busca a integração dos saberes externos aos esquemas internos disciplinares, onde os saberes de fora da academia (buscados nas percepções do cotidiano, nas

percepções artísticas e outras sensibilidades ou criatividades, ou, mesmo, nas tradições sapienciais da humanidade, sem falar nas percepções concretas na prática dentro dos diversos campos, como saúde, lazer, política, trabalho fabril, etc), funcionam como interrogantes externos dentro do processo de produção do conhecimento e do processo educativo.

Pessoalmente tenho uma longa experiência na percepção do papel importante que os saberes religiosos e as sensibilidades dessas tradições podem contribuir no processo de produção do conhecimento. Inclusive o diálogo inter-religioso pode ser considerado como um excelente laboratório testemunhal de prática transdisciplinar.

EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, CAMINHOS DE RUPTURA DO ABISMO E ‘REINVENÇÃO’ DA UNIVERSIDADE NA PERSPECTIVA DO ‘ABRIR-SE PARA OS OUTROS’

Como já foi mencionado, na legislação que rege as universidades brasileiras são destacadas três finalidades chaves das mesmas: o ensino, a pesquisa e a extensão. Esta última finalidade envolve toda função de interface da universidade com o contexto no qual ela está inserida. A academia aparece como ator social, que, além das pesquisas que são desenvolvidas e do ensino que é pautado nos processos de formação dos profissionais, também exerce um papel de incidência direta no meio socioambiental em que se insere, contribuindo no desenvolvimento da sociedade na busca de soluções inovadoras nas relações humanas e na superação das desigualdades, bem como, na relação com o meio ambiente. No exercício deste papel ela oferecerá a seus alunos, espaços de formação profissional mais próxima e comprometida com todo o contexto humano, cultural, social, tecnológico e ambiental, que os envolve.

É urgente que a academia refaça alianças e se reconcilie com um imenso acervo de saberes que foram tornados ausentes por ela mesma. Esta riqueza pode estar fazendo falta para a humanidade. Mencionei a dimensão religiosa, que é portadora de parcela desta multi variada riqueza não suficientemente presente nos processos de produção do conhecimento e formação de profissionais. Mencionei esta dimensão por fazer parte de minha prática

imediata. Muitas outras dimensões, mais ou menos importantes, deveriam ser mencionadas. Como foi observado anteriormente, isto está presente tanto nas tradições sapienciais, como nas percepções na vida do dia-a-dia e em todos os campos de relações.

O sociólogo português Boaventura de Souza Santos (2007) avançou muito no debate sobre transdisciplinaridade, com o conceito de ‘ecologia dos saberes’ resultando da ruptura com a linha abissal criada entre os saberes disciplinados na racionalidade acadêmica (cultivados na ‘razão indolente’) e os demais saberes portadores de riquezas infindas que foram tornadas ausentes no processo de produção do conhecimento e formação de profissionais. A contribuição deste sociólogo consegue radicalizar de forma mais contundente o mesmo conteúdo presente no conceito de transdisciplinaridade, chamando a atenção para este processo de geração das ausências na produção do conhecimento, ou seja, o processo acadêmico acabou gerando perdas para o conhecimento no seio da humanidade contemporânea, que podem vir a ser irreparáveis, se essa linha abissal não for rompida.

Entendo que um caminho privilegiado para a ruptura da linha abissal pode ser a extensão universitária quando desenvolvida de forma transversal envolvendo todas as dimensões da Universidade e não como serviços extensionistas à parte como muitas vezes acontece sem repercutir na vida da própria academia como um todo. Aliás, o próprio Boaventura de Souza Santos, em um texto que se tornou paradigmático, colocado em epígrafe na apresentação do texto do Plano Nacional (Brasileiro) de Extensão, expressou claramente que: “Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino”.[v]

Neste sentido o sistema de avaliação da Responsabilidade Social Universitária, proposto pela AUSJAL pode ser um referente muito apropriado para repensar a extensão universitária transversalmente perpassando todas as dimensões do ‘que fazer’ acadêmico. Eu ousaria propor isto como uma fórmula revolucionária de ‘reinvenção’ da própria universidade, fazendo dela um novo espaço transdisciplinar de produção de conhecimento e de formação profissional, espaço no qual, ao lado dos saberes disciplinados da academia, a riqueza de todos os demais saberes, muitas vezes tornados ausentes, esteja reconhecida de forma ativa.

CONCLUSÃO

Em todo este passeio breve feito pelos meandros da responsabilidade social universitária, da transdisciplinaridade – com breve incursão no conceito de ecologia dos saberes – e da extensão universitária, sempre trilhando o pavimento do cotidiano da academia em sua complexidade, podemos anotar que ‘abrir-se para os outros’ pode ser sugerido como um tema principal na ‘reinvenção’ da Universidade. A extensão universitária, enquanto pulsando em todo organismo vivo da Universidade, é espaço de cultivo da transdisciplinaridade e chave para o sucesso na aproximação da academia com a sociedade, podendo ser vista como condição de inovação nos processos de formação profissional e de produção do conhecimento.

Ao concluir esta reflexão sintética, tenho a consciência renovada da grande distância existente entre o sonho e a realidade. No entanto, os limites só serão superados na medida em que forem dados passos concretos, no dia a dia do ‘que fazer’ acadêmico, perpassando todas as suas dimensões.

REFERÊNCIAS

AUSJAL – Associação das Universidades Jesuítas da América Latina (2010). Políticas e Sistema de Autoavaliação e Gestão da Responsabilidade Social Universitária da Ausjal. São Leopoldo: Edunisinos.

FOLLMANN, J. Ivo; LOBO, Ielbo M. (orgs) (2003). Transdisciplinaridade e Universidade: Uma proposta em construção. São Leopoldo: Edunisinos.

NICOLESCU, Basarab (2000). Educação e Transdisciplinaridade. Brasília: Ed. Unesco Brasil.

SANTOS, Boaventura de Souza (2007). A Crítica da Razão Indolente: Contra a lógica do desperdício da experiência. São Paulo: Cortez.

VALLAEYS, François (2006). Que Significa Responsabilidade Social Universitária. Revista Estudos. São Paulo: ABMES – Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior, Ano 24, N. 36, pp. 35-56.

WEIL, P.; D’AMBROSIO, U.; CREMA, R. (1993). Rumo à nova transdisciplinaridade; sistemas abertos de conhecimento. São Paulo: Ed.Summus.

NOTAS

[i] Ausjal, 2010, p.23
[ii] Não são momentos, nem fases no processo de aquisição do conhecimento, como muito bem detalha Pierre Weil in Weil, P., D’Ambrosio, U. e Crema, R., 1993, p.9-75
[iii] Follmann, J.I., Lobo, I. M. et allii, 2003, p.10.
[iv] Nicolescu, 2000, p. 15..
[v] Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e SESu / MEC. Plano Nacional de Extensão. (Edição Atualizada, 2000/2001

CAMINHOS DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL E ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO

Palestra proferida na UNICAP, Recife, PE, em abril de 2020.

O conceito de justiça socioambiental está amparado no paradigma da ecologia integral

Conferência preparada por José Ivo Follmann para: III Seminário de Espiritualidades contemporâneas, pluralidade religiosa e diálogo.

UNICAP, Recife 22-24/04/20 20 (evento postergado). Publicado em E-Book: GILBRAZ, Aragão; VICENTE, Mariano (orgs). Desafios dos Fundamentalismos (Espiritualidades, Transdisciplinaridade e Diálogo – 3). Recife: EdUnicap/OTTR, 2020, pp. 113-133.

CONTEXTUALIZAÇÃO

Talvez possa ser chocante iniciar este texto sobre “caminhos de justiça socioambiental e espiritualidade do cuidado” mostrando imagens que expressam flagrantes injustiças.

É o olhar de uma criança negra, representando milhões de olhares de crianças obrigadas a sobreviver no meio dos dejetos do escandaloso déficit habitacional de nossas periferias. São crianças que crescem dentro de submundo estreito e desumano. É um olhar, que na sua expressão de inocência e encanto, grita por justiça. É um olhar no qual se perfilam milhões de olhares de adultos, já não mais inocentes, mas humilhados, desconfortados, revoltados ou desesperadamente conformados, na dor e na angústia de um “destino” injustificado, interrogando diariamente o mundo do luxo, do desperdício e da indiferença que os esmaga. Uma interrogação que vem do mundo do lixo, da fome e do anseio por atenção e reconhecimento.

No olhar triste e desencantado do líder indígena frente a um dos múltiplos monstros empreendedores, devastadores do seu habitat, se mistura a tristeza e o desespero de centenas de povos originários vítimas de processos genocidas que marcam a história latino-americana, em geral, e brasileira, em particular, ao longo de mais de 500 anos. Aliás, a marca genocida do processo colonizador já perturbou muitas vezes a minha mente. Isto, sobretudo, porque continuamos marcados pela mente colonizadora e grande parte de nosso existir, inclusive, de nossas espiritualidades não consegue se libertar disso. É um olhar que nos interroga com vigor, ao mesmo tempo, fascinante e profundamente perturbador. Um olhar acompanhado pelo grito desesperado dos povos indígenas sendo diariamente violentados em todo território amazônico.

Depois de mais de quinhentos anos não conseguimos, ainda, nos libertar do processo colonizador ou colonialista, que continua habitando as nossas mentes, os nossos comportamentos e impregna os nossos governantes. Parece que na sociedade brasileira, como também acontece em muitas outras sociedades, a própria humanidade e o “bom senso humano” ficaram abafados, reprimidos e esquecidos. O ser humano foi desviado de sua real identidade, se assim se pode dizer. Isso poderia soar como uma frase de efeito poético se não fosse a gravidade geradora de conflito de que é portadora.

Diversas pessoas que iniciaram esta leitura talvez se sintam desconfortadas, como eu mesmo me sinto, em trazer aqui como chamada inicial, um mote tão repetido e tão batido, que é este tema. Mas precisamos ser honestos com a nossa história e a nossa realidade. Dissimular, esquecer, colocar panos quentes, sempre foi o pior caminho. Todos/as sabemos isto. Deixemos que a história nos incomode. Quem for historiador nos perdoará por mais este pequeno pecado…

Um dia, alguém disse que a América Latina seria totalmente outra se os “colonizadores” no século XV e XVI tivessem tido um mínimo de reconhecimento dos seres humanos, das populações e dos povos que habitavam, nesse contexto, e que nela tinham o seu habitat há milênios. Se, ao invés de uma postura de não reconhecimento, de dominação e de espoliação, tivesse ocorrido simplesmente um movimento de aproximação, de intercâmbio, de diálogo e de mútuo enriquecimento, a história seria outra.

Isso soa absurdo, pois não se deve ler o passado com os paradigmas do presente. No entanto, infelizmente, os paradigmas do passado permanecem vivos e a perversidade denunciada, num passado longínquo, continua absurdamente atual, em todos os processos de dominação, exploração e desrespeito aos seres humanos, que, mais do que nunca, se multiplicam em nossa sociedade.

Voltando à imagem da criança negra olhando para nós do meio do lixo, precisamos fazer, também, um recuo histórico. Não vamos comentar os quase quatrocentos anos de escravidão de africanos no Brasil, que marcaram de forma indelével a estrutura social brasileira. A nossa atenção vai focada na maneira como se deu a chamada “abolição da escravatura”, ou seja, a realidade da população negra no imediato pós-escravidão ou pós-abollição. Como os afrodescendentes se viram tratados depois que deixaram de ser escravos? Não se pode dizer que a tragédia foi maior que a sofrida pelos povos indígenas, porque estes, desde a ocupação comandada a partir do tempo de Pedro Álvares Cabral, nas costas brasileiras e anteriormente, por outros aventureiros, em outras costas latino-americanas, até nossos dias, sobrevivem como vítimas de um permanente genocídio. Mas o que se desenhou desde os tempos de pós-escravidão ou pós-abolição, até nossos dias, com relação à maioria negra da população brasileira, é o processo de invisibilidade. Trata-se de uma invisibilidade desenhada no bojo do processo de branqueamento que foi o grande projeto nacional. As políticas de branqueamento, desde o final do Império, com Dom Pedro II, vieram dominando grande parte de nossa história, produzidas e tuteladas, sobretudo, pelas elites dominantes.

Eu gosto muito de um conceito trabalhado por Adevanir Aparecida Pinheiro,[1] que é o conceito de “branquidade”, diferenciando de “branquitude”. Esta autora (2014) retoma estes conceitos que ela já desenvolvera em sua tese doutoral em 2011. Branquidade diz respeito aos sujeitos que negam a importância do conceito de raça enquanto conceito político, não se abrindo para o diálogo sobre essa importância. Por sua vez quando os sujeitos brancos aceitam a importância do conceito de raça enquanto conceito político e interagem de igual para igual, aí sim, segundo a autora, nós podemos falar em branquitude.  Ao contrário de branquitude, a branquidade seria o resultado mais radical e perverso do branqueamento. O seu enraizamento na sociedade é um entrave muito complicado para que se possa implementar uma verdadeira educação das relações étnico-raciais. O primeiro passo para esta educação deverá ser a quebra da prisão da branquidade, para que a branquitude se liberte. Os brancos e brancas pensando, sentindo e vivendo revestidos de branquitude, terão de fato condição de contribuir na recuperação da verdadeira identidade nacional de tríplice referência: indígena, negra e branca.

Não temos como falar de autêntica espiritualidade do cuidado sem desobstruir este tríplice caminho. É necessário limpar os três acessos, as três vertentes, pois sabemos que as melhores contribuições e legados da espiritualidade do cuidado estão nas duas vertentes que historicamente foram obstruídas. E pior, obstruídas por espiritualidades demasiadamente contaminadas por lógicas e racionalidades brancas europeias.

Mas o que tem a ver tudo isto com justiça socioambiental? Tem tudo a ver. A alma da justiça socioambiental é a espiritualidade do cuidado. Se não colocarmos estas referências duras de nossa história no centro de nossa reflexão, a nossa abordagem sobre justiça socioambiental no Brasil será fatalmente manca e sem sentido. Como também a espiritualidade do cuidado não passará de um jogo de máscaras. Por quê? Porque as vítimas centrais das injustiças (socioambientais) estariam ausentes. E, a rigor, as vertentes mais lúcidas da espiritualidade do cuidado não estariam no centro do palco, ou seja, os principais protagonistas da espiritualidade do cuidado continuariam sendo as vítimas centrais (invisíveis) das injustiças.

CONCEITO DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL[2]

Na Laudato Sí (L.S. n. 49), o Papa Francisco, assim se expressou: “hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres”. (Grifos do autor).

No Marco de Orientação da Promoção da Justiça Socioambiental – Marco PJSA, da Província dos Jesuítas do Brasil, temos a seguinte formulação para definir justiça socioambiental:

Todas as ações que têm como objetivo colaborar para a superação das injustiças presentes em nossa herança histórica e reproduzidas pelo atual modelo de desenvolvimento extrativista e financeiro, gerador de desigualdades sociais e de agressões ambientais inomináveis. A rigor, dentro da perspectiva da concepção de ecologia integral, que nos foi apresentada pelo Papa Francisco, em sua Carta Encíclica Laudato Si (LS), existe uma sinalização implícita do conceito de (in)justiça envolvendo o nosso convívio na Casa Comum, em todas as esferas de relações, com o convite para um processo urgente e necessário de reconciliação e construção de relações justas. Trata-se basicamente de todas as relações que o ser humano empreende: as relações com Deus; as interpessoais, de geração, de gênero, étnico-raciais, religiosas, culturais, sociais, políticas, econômicas e, também, com os dons da natureza“. (JESUÍTAS, 2020)

Está muito evidente que, de fato, no chamado do Papa, na Carta Encíclica, está embutido um desafio à realidade humana como um todo, em toda a sua complexidade. Esta é a grande novidade, a grande inovação em termos de Ensino Social da Igreja, que Laudato Sí expressa. A Justiça Socioambiental não pode ser, simplesmente, pautada como conjunto de práticas reativas a situações pontuais, decorrentes dos chamados conflitos ambientais, como muitas vezes o conceito é trabalhado na Academia. Ela é uma intervenção na sociedade como um todo em seu modo de ser e se organizar, incluindo a relação com os dons da criação e, a rigor, a espiritualidade

Estamos vivendo em um mundo estragado (degradado) em todos os aspectos. Isto envolve as pessoas em suas relações, a organização social em suas relações políticas, econômicas e culturais, e, também, o meio ambiente como um todo. É neste mundo como um todo que incide a justiça, que será justiça socioambiental na medida em que tiver no horizonte a complexa inter-relação de tudo. O desafio está em propor um conceito de justiça socioambiental que seja efetivamente operacional abrangendo os diferentes níveis de ação, tanto em nossos processos de produção de conhecimento, como nos processos de tomada de decisão e nos processos da vida do dia-a-dia, no cotidiano.

Muito se avançou, por diversos caminhos e tempos recentes, na reflexão teológica e pastoral focando o cuidado da vida em todas as suas dimensões e sublinhando a ideia de que “tudo está estreitamente interligado”. (L.S. 16). O Patriarca Bartolomeu, referido pelo Papa Francisco (L.S. 6), fala em “túnica inconsútil da criação”. O duplo foco, do cuidado da vida e da inter-relação de tudo, é uma ponte direta para a retomada de elementos centrais nas diferentes tradições teológicas e religiosas que tomam consciência da permanente atualidade de suas intuições ou revelações originárias, apontando para o grande “religar” no “cuidado da alma da humanidade”.

TRÊS ÊNFASES TEMÁTICAS OU DIMENSÕES DA JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL

O Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA,[3] tem buscado enfrentar esse desafio construindo, teórica e empiricamente, um conceito de justiça socioambiental, centrado na atenção a três ênfases temáticas ou dimensões. Em cada uma dessas três dimensões podemos identificar, transversalmente, três posições estratégicas para incidir na realidade ou níveis de incidência na construção da justiça socioambiental. O que para alguns pode parecer, à primeira vista, um artifício complicador, é no entanto, um potencial operativo de fácil manejo na organização consistente de nossas ideias e ações, a rigor de nossa práxis transformadora.  

Falando a linguagem da cultura do cuidado, estamos focados em três grandes cuidados: o cuidado da dignidade humana, o cuidado dos dons da criação e o cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas, diminuição das desigualdades sociais.

  • O Reconhecimento da dignidade do ser humano.

É a dimensão do cuidado da dignidade humana, amparada no reconhecimento. Esta dimensão acontece, na prática, nas relações com o diferente, nas relações étnico-raciais, religiosas, de geração, de origem nacional, de visões de mundo e opções, buscando sempre formas de estabelecer o diálogo, o valor da pluralidade e a inclusão de todos/as.

A justiça começa a ser construída na medida da tomada de consciência de que todos somos habitantes e fazemos parte da Casa Comum e cada um/a tem o direito de ser reconhecido em dignidade nas suas diferenças. Assim são práticas de justiça socioambiental, todas as práticas que reconhecem e cultivam por dentro das diferenças de todas as ordens, a dignidade do ser humano e suas particulares repercussões na vida pessoal e cultivo da própria dignidade em nossa Casa Comum.

  • Cuidado dos dons da criação, da vida e da saúde dos ecossistemas.

É a dimensão do cuidado dos dons da criação. Trata-se da conservação, preservação e usos adequados dos dons naturais, em vista do cuidado dos ecossistemas saudáveis e da vida para o futuro do planeta terra e de seus habitantese atenção especial ao nosso modo de ser, viver e trabalhar e à diversidade da vida nos diferentes biomas de cada território.

A justiça socioambiental, nesta dimensão, se expressa através de práticas com relação aos dons da criação, que podem ser percebidas nos diferentes níveis de participação social, indo desde uma radical revisão das práticas na produção do conhecimento, das tomadas de decisão e do tratamento harmonioso e equilibrado dos dons da criação, no seu cultivo e uso no dia-a-dia. Estão em pauta, neste ponto, as repercussões destas práticas do bom equilíbrio e harmonia das condições da nossa Casa Comum.

  • O Ordenamento das políticas, da sociedade e da economia em vista da diminuição das desigualdades sociais.

É a dimensão do cuidado do ordenamento socioeconômico e das políticas públicas. Nesta terceira dimensão está fundamentalmente em questão a diminuição das desigualdades, das exclusões sociais e da pobreza, pela busca do acesso universal aos direitos básicos de trabalho, assistência social, previdência, segurança, saúde, moradia, educação, alimentação e nacionalidade. A rigor, o que está em pauta, são os grandes e pequenos processos decisórios na sociedade em seus ordenamentos políticos e econômicos e na condução das políticas públicas. Estão em pauta bons resultados de tudo isto, para um convívio harmônico e inclusivo em nossa Casa Comum.

Assim, com o foco na ideia de que tudo está interligado nesta nossa Casa Comum, são práticas de justiça socioambiental, práticas econômicas e políticas pautadas no atendimento aos direitos sociais e humanos básicos, no reconhecimento da dignidade do ser humano e no cuidado dos dons da criação como dimensões básicas no Cuidado da Casa Comum.

Três posições estratégicas ou níveis de incidência na promoção da justiça socioambiental

Tentando pensar na prática o nosso compromisso com a promoção da justiça, nesta perspectiva de amplitude socioambiental, faço um convite para buscarmos atalhos operacionais. Podemos, neste sentido, distinguir três níveis concretos, como diferentes instâncias ou posições estratégicas na realização da justiça ou da justiça socioambiental. As práticas de justiça devem expressar-se no nível da produção do conhecimento, no nível das tomadas de decisão, e, sobretudo, no nível cotidiano de nosso ser, viver e agir, no dia-a-dia.[4]

Em nível de produção do conhecimento, através do reconhecimento das diversas formas de saber e de percepção da vida e das coisas, muito para além dos simples conhecimentos disciplinados pelo mundo acadêmico, destaca-se a busca da superação da linha abissal que separa, por um lado, conhecimentos academicamente valorizados e, por outro lado, saberes excluídos do mundo racional-científico. Destaca-se a valorização da diversidade na percepção da realidade. Nos aspectos relacionados à Igreja, o convite é absorver com humildade os conhecimentos populares e tradicionais em nossas práticas religiosas, através da consolidação de uma “Igreja em Saída”. Em suma, é uma proposta de buscar valorizar uma “ecologia dos saberes”, de modo geral e, em particular, nas práticas de Igreja.

No nível da tomada de decisões, a postura de cultivo aberto e não excludente do conhecimento, respeitando o lugar de fala de cada um e de cada uma, imprimindo práticas cada vez mais democráticas é, sem dúvida, aporte fundamental para um maior acerto na gestão, dando conta de autêntica e ampla cultura de participação e de reconhecimento da dignidade dos sujeitos envolvidos nas decisões, na política, na economia e na organização social, cultural e institucional. Neste sentido, sugere-se caminhar para formas inovadoras de implementar e avaliar as políticas públicas, formas estas embasadas em indicadores mais sustentáveis e na busca de uma sociedade equitativa e justa, em termos políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais.

Enfim, no nível das práticas do cotidiano, estamos no chão do cuidado por dentro das práticas pessoais e coletivas no dia-a-dia. É o campo do cotidiano, o campo da singeleza e simplicidade do dia-a-dia, do cuidado e da justiça, na vida como ela acontece. O espaço e o tempo de profundo sedimentar do cuidado da nossa Casa Comum, no testemunho vivo do reconhecimento do outro dentro de suas especificidades culturais, religiosas, entre outras, por mais diferentes que possam ser frente às nossas. Aqui, sem dúvida, todos/as somos chamados/as a uma conversão socioambiental radical e profunda em nossas práticas cotidianas, sejam elas pessoais ou institucionais.

A PRÁTICA DA JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL COMO ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO[5]

Penso que, sempre tendo presente as três ênfases ou dimensões em pauta (o ser humano em sua dignidade, o convívio com os dons da criação e o ordenamento socioeconômico e das políticas púbicas) e as três posições ou níveis de incidência (produção do conhecimento, influência nos processos de decisão e o modo de ser na vida cotidiana), a humanidade, em geral, e a sociedade brasileira, em particular, necessitam urgentemente centrar-se na cultura do cuidado e desfazer-se da tragédia da cultura da indiferença.[6] A atenção central deve ser colocada na dimensão relacional e na interligação de tudo dentro do convívio humano, nas relações interpessoais, na sociedade e em relação aos dons da natureza.

Este é o chão concreto de realização da prática da justiça e, mais especificamente, a prática da justiça socioambiental. Precisamos estar cuidadosamente atentos à prática da justiça socioambiental em todo complexo convívio humano. Este estar “cuidadosamente atentos” é o que, aqui, também chamo de espiritualidade do cuidado. É denominada assim porque tem em seu centro o permanente cuidado da dignidade humana e da vida em todas as suas manifestações.

Em outras palavras, é uma espiritualidade que perpassa o cuidado da dignidade humana, o cuidado dos bens da criação e o cuidado do ordenamento social e econômico de inclusão e igualdade. Estes cuidados podem ser exercidos tanto em nível de produção do conhecimento, de influência nas tomadas de decisão e no modo de ser, viver e agir dentro do cotidiano.

Precisamos de uma espiritualidade que nos mude, radicalmente, em nossas práticas. Que nos faça retomar o verdadeiro caminho da justiça. Leonardo Boff, em “Reflexões de um velho teólogo e pensador” (2018) nos aponta que:

“A singularidade de nosso tempo reside no fato de que a espiritualidade vem sendo descoberta como dimensão do profundo do ser humano, como o momento necessário para o pleno desabrochar de nossa individuação e como espaço da paz no meio dos conflitos e desolações sociais e existenciais”. (BOFF, 2018, p.166)

A espiritualidade é geradora de mudança interior. O autor nos lembra um pensamento radical do grande líder religioso oriental Dalai Lama: “Espiritualidade é aquilo que produz dentro de nós uma mudança”! (“Se não produz em você uma transformação, não é espiritualidade”!). O autor comenta esta frase, afirmando que existem mudanças e mudanças. O ser humano é um ser de mudanças, pois nunca está pronto. No entanto, há “mudanças que não transformam sua estrutura de base” e há mudanças que são verdadeiras transformações “capazes de proporcionar um novo sentido à vida ou abrir novos campos de experiência e de profundidade, rumo ao próprio coração e ao Mistério de todas as coisas. Não raro é no âmbito da religião que ocorrem tais mudanças. Mas nem sempre”. (BOFF, 2018, p.165-166)

Esta manifestação pelo valor da espiritualidade, como força regeneradora, está amparada no próprio grito do autor, que nos diz: “vamos criar juízo e aprender a ser sábios e a prolongar o projeto humano, purificado pela grande crise que seguramente nos acrisolará”. (BOFF, 2018, p. 158). Acrescenta:

Incentivam-nos as escrituras judaico-cristãs: “Escolhe a vida e viverás” (Dt 30,28), e Deus se apresentou “como o apaixonado amante da vida” (Sb 11, 24). Andemos depressa, pois não temos muito tempo a perder. (BOFF, 2018, p. 159)[7]

É um pequeno grito que se soma a infinitos outros gritos, que se levantam em todos os recantos da terra, fazendo coro ao grande e insondável mistério de amor do “grito regenerador” de Jesus Cristo. As três perguntas originárias retornam e reboam: “Onde estás”? “Onde está o teu irmão”? “Como está a criação”?[8]

A Espiritualidade, que hoje nos é solicitada, é a disposição de nossos corações para buscar os melhores caminhos para a construção de sociedades geradoras de vida; refazer-nos em nossa capacidade de reconhecer o outro em sua dignidade; de nos indignarmos frente às desigualdades escandalosas e inaceitáveis e à situação desumana, vivida, por muitos irmãos e irmãs; de cuidar da vida e dos dons da criação, impelidos pelo amor a toda a vida que pulsará neste planeta terra, no futuro. É a disposição de sermos no cotidiano: cultivadores/as de justiça socioambiental.

INTERROGAÇÕES E DESAFIOS DENTRO DO MOMENTO CONJUNTURAL VIVIDO

Qualquer leitura de nossa realidade hoje não resiste às evidências de flagrantes atentados à justiça socioambiental e de debilidades na prática de uma espiritualidade do cuidado. Vou propor um pequeno exercício de ordenar de forma sistemática algumas dessas evidências. Obviamente, dentro do espaço que temos, não será possível passar de uma simples “chuva de ideias” ou “chuva de percepções”, que proponho ordenar a partir de três perguntas amplas. É uma provocação  para o exercício pessoal de cada um e de cada uma e para a continuação do nosso diálogo.

  • Como está o conhecimento, no Brasil?
  • (Cuidado da dignidade humana). Após mais de duas décadas de esforços mais ou menos sucedidos pela instituição de políticas educacionais renovadas, inclusivas, inovadoras e abertas ao diálogo, assiste-se no Brasil nos dias de hoje a uma guinada brusca à “direita”. Trata-se de verdadeira guerra de ideias entre a denúncia contra a “ideologia de gênero” e a afirmação da diversidade e da liberdade de opções, que parecia consolidada na sociedade. Alguns Ministérios do atual Governo são os principais vetores do combate à “ideologia de gênero”, associando-a ao que é denominado por eles de “marxismo cultural” e, em consequência, um combate acirrado contra o mundo intelectual e cultural que ao longo das últimas décadas teria se alimentado nessas “ideologias perversas”. Este combate vem acompanhado por uma sutil promoção de uma espiritualidade e religião alienante cultivada por determinadas lideranças neopentecostais de grande poder mobilizador.
  • (Cuidado do meio ambiente natural). Com relação ao que nós denominamos cuidado do meio ambiente natural, imperam, hoje no Brasil, propostas explícitas de “combate a esse cuidado”, através de duas ideias chaves: 1) Os “recursos naturais” (sic) devem ser explorados intensivamente para gerar riqueza e o Estado deve garantir que isto possa acontecer; 2) Os defensores do meio ambiente são orquestrados por interesses do “comunismo” ou por interesses de organismos que querem internacionalizar a Amazônia, ou seja, apossar-se dos recursos naturais da Amazônia, em prejuízo aos interesses nacionais.
  • (Cuidado da sociedade). O que é notável em nível de concepções com relação ao meio ambiente natural, assume formas mais alarmantes com relação à própria sociedade e seu ordenamento político e econômico. Trata-se do cultivo do preconceito que dissemina a ideia de que a corrupção é algo endêmico no meio político e que os únicos que podem salvar a sociedade são os empresários geradores de trabalho e emprego. Predomina a ideia da naturalização das desigualdades e todos os defensores de políticas que busquem facilitar uma diminuição das desigualdades sociais, são rotulados como “comunistas”, seguidores do “marxismo cultural” e inimigos dos “cidadãos de bem”.
  • (Anotação sobre espiritualidade). Mas nem tudo são trevas… É impressionante o que a pandemia (da Covid-19)[9] conseguiu desencadear em termos de criatividade e disseminação do conhecimento. Pessoalmente me vejo diariamente surpreendido e impactado pelas incontáveis formas com que muitas pessoas, – em número crescente, pois isto é contagiante, – procuram socializar os seus conhecimentos e seus dons artísticos, de forma gratuita, muitas vezes movidos pelo esforço solidário de passar conhecimentos, boas ideias e bons momentos de lazer para os outros, em suma, de cuidar dos outros. A pandemia estimulou a espiritualidade do cuidado em nível de conhecimento. Independentemente da pandemia, nos últimos anos, talvez em grande parte como resposta ao alerta com relação aos riscos obscurantistas vigentes, estão se constituindo e reforçando importantes redes e iniciativas de educação popular para rearticular uma produção de conhecimento autêntica e democrática, amparada nisso que alguns denominam, por exemplo, no contexto amazônico, de “cuidadania”.
  • Como está o empenho da incidência cidadã nos rumos do Brasil?
  • (Cuidado da dignidade humana). A reconstrução cidadã do Brasil, após o longo período da ditadura militar, chegou a um patamar importante na promulgação da Constituição de 1988 que foi considerada a “constituição cidadã”. Nas décadas que se seguiram, muitos esforços, com sucessos e fracassos, foram realizados para regulamentar aquelas conquistas de 1988. No entanto, nos últimos anos, houve uma radical quebra em tudo isso. Os acirramentos ideológicos tomaram conta. Tornou-se inviável qualquer busca de diálogo construtivo. Nas últimas eleições presidenciais (2018), a indústria de “fake News” mostrou-se, sobretudo, como um instrumento poderoso, e talvez tenha sido o fator decisivo. A cultura das “fake”, crescentemente difundida nas redes sociais, desconsidera, ao extremo, todo e qualquer cuidado para com a dignidade das pessoas que são os alvos, ou seja, as vítimas.  Isto virou “cultural” ou seja, é um comportamento bastante generalizado em termos de “debate público” e de veiculação de ideias.
  • (Cuidado do meio ambiente natural). Isto também se revela quando se trata de pensar políticas com relação às terras indígenas, por exemplo. É repetidamente afirmado que aquilo que é defendido por certas lideranças no meio indígena, em geral de grande reconhecimento nacional e internacional, são ideias falsas atreladas a interesses estrangeiros. Busca-se, então, “libertar” os indígenas deste atrelamento e, em nome de uma política “de ajudar os indígenas a serem como nós”, pretende-se implementar uma legislação facilitadora da ocupação de terras reservadas aos povos indígenas para a exploração do capital ou para a implementação de grandes empreendimentos do próprio Estado.
  • (Cuidado da sociedade). Se voltarmos o nosso olhar para a sociedade enquanto tal e seu ordenamento político e econômico, teremos como constatações centrais o seguinte: O governo atual, que se elegeu em grande parte impulsionado pela disseminação de “fakes”, se caracteriza por: 1) Apoiar-se na ideia de que foi democraticamente eleito contando com o apoio dos “cidadãos de bem”; 2) Dar claras demonstrações de total desrespeito aos valores republicanos; 3) Orientar-se por uma política econômica falaciosa amparada num extrativismo selvagem e financeirização incerta; 4) Desarticular e desmontar ostensivamente políticas públicas e sociais duramente conquistadas a partir de várias gerações.
  • (Anotação sobre espiritualidade). Em termos de ordenamento político e econômico da sociedade, nestes tempos de pandemia sanitária, o Brasil vive um verdadeiro “pandemônio” de instabilidade e incertezas cotidianas. No meio desse “pandemônio”, podemos, no entanto, vislumbrar a prática da espiritualidade do cuidado de parte de muitas pessoas e grupos. Trata-se do cuidado vigilante para que as coisas não desandem de vez e o prejuízo seja grande demais para a população. É um cuidado que, em geral, não tem cor partidária e pode expressar-se tanto em manifestos junto aos órgãos de legislação pública e de decisão dos rumos do país, como, também, em campanhas e mobilizações de apoio imediato, para com as maiorias pobres mais necessitadas de alimentos e cuidados de higiene e saúde. Esta novidade ou expressão “inusitada” de cuidado certamente também é visível em algumas lideranças empresariais.
  • Como está o jeito de viver no dia-a-dia, no Brasil?
  • (Cuidado da dignidade humana). O cotidiano brasileiro está habitado por contrastes marcados pela naturalização de agressões à dignidade humana de toda ordem. Parece que a relação entre a casa grande e a senzala, do longo período de escravidão negra no Brasil, nos marcou de forma indelével. O desconforto de enormes favelas formando cinturões desumanos sem medida, cercando (de forma ameaçadora) o conforto e o luxo de conjuntos de prédios, palácios e mansões, parece constituir-se na marca registrada da maioria das grandes cidades do Brasil. Desenha-se, com naturalidade, na mente das pessoas um convite sutil a assumir esta realidade como algo dado e imutável: umas pessoas parecem estar merecendo mais do que as outras. A desconstrução desta naturalização da desigualdade é o grande desafio da ciência. No entanto, conforme já mencionamos acima, no início deste título, o Brasil está vivendo um clima de combate acirrado contra o mundo intelectual e cultural, pois este, ao mostrar a origem não natural das desigualdades, estaria alimentando “ideologias” ofensivas aos “cidadãos de bem”.
  • (Cuidado do meio ambiente natural). Existe uma distância enormemente abissal entre o cotidiano ou a vida do dia-a-dia das pessoas que vivem no submundo urbano e o das pessoas que vivem em situação mais ou menos confortável em seus apartamentos e casas, sem falar do “supermundo” das mansões de luxo. A naturalização da desigualdade é alimentada e reforçada diariamente através deste impacto visível da desigualdade nas condições habitacionais e de vida. Por dentro da percepção do déficit habitacional e da crescente realidade dos moradores de rua, que são dois grandes desafios para o cotidiano e a relação (in)justa dos seres humanos com o seu meio natural, a interrogação mais atenta deve ser dirigida ao mundo do desperdício que passa por dentro do modo de viver cotidiano em nossas casas, de menor ou maior conforto.
  • (Cuidado da sociedade). Tentar entender o impacto sobre o cotidiano, do que está acontecendo no Brasil hoje, nos alerta mais uma vez em relação às terríveis desigualdades. A pandemia, que assola o país, neste semestre, colocou esta questão a nu. Não se encontrou fórmula de “isolamento social” cabível num contexto tão desigual. Como forçar a ficar em casa pessoas que só encontram um pouco de liberdade e dignidade, na rua ou fora de casa? Não se tem registro de políticas afirmativas que realmente estivessem focadas nesta situação de desigualdade. Todas as políticas mais bem sucedidas no combate à Covid-19 estavam focadas na população que têm condições de um cotidiano e vida do dia-a-dia mais ou menos confortável. A principal preocupação repetidamente manifesta pelo poder executivo central do país, foi em chamar os trabalhadores a saírem de casa para trabalhar e ganhar o seu sustento. O empenho honesto e sincero por preservar a vida dessas pessoas e proporcionar lhes um mínimo de proteção nas condições limitadas e desumanas em que vivem, foi praticamente inexistente. O momento seria de tomarmos consciência, como nação, do tremendo problema de déficit habitacional em que o país está imerso. A pandemia trouxe muitos legados. Que este desafio do déficit habitacional também seja um legado.
  • (Anotação sobre espiritualidade). Uma espiritualidade do cuidado em nosso cotidiano deve estar marcada pela consciência permanente dos contrastes abissais existentes no habitat da população brasileira. É importante povoar o nosso próprio habitat dessa consciência, refletindo-se tanto no cuidado e atenção às pessoas que conosco vivem e que nos procuram, como cuidando do bom uso de tudo, evitando desperdício e favorecendo reaproveitamentos. Que as crianças e jovens que crescem em nosso meio possam beber de nossas vidas e de nosso testemunho, uma autêntica “cultura do cuidado”, ou seja: espiritualidade do cuidado.

PALAVRAS PARA (NÃO) CONCLUIR

No início desta fala eu referia o olhar da criança negra nos interrogando de dentro dos dejetos, do lixo e do submundo da periferia e referia, também, o olhar do líder indígena impactado tristemente pela presença de múltiplos monstros empreendedores, devastadores do seu habitat. São olhares que nos interrogam. A espiritualidade do cuidado é uma espiritualidade que se deixa interrogar por esses olhares e por muitos outros necessitados do cuidado.  

REFERÊNCIAS

BOFF, Leonardo. Reflexões de um velho teólogo e pensador. Petrópolis: Vozes, 2018.

CIRNE, Lúcio Flávio Ribeiro. O Espaço da Coexistência: uma visão interdisciplinar de ética socioambiental. São Paulo: Ed. Loyola, 2013.

FRANCISCO, Papa. Laudato Sí. (Carta Encíclica do Sumo Pontífice). São Paulo: Paulus/Loyola, 2015.

FOLLMANN, J. I. O ‘Cuidado Da Casa Comum’ Como Caminho De Espiritualidade E Justiça. Revista Convergência. Rio de Janeiro, Vol. LIV, n. 523, 2019a, pp. 58-69

FOLLMANN, J. I. Justiça Socioambiental e Vida Religiosa Consagrada. Revista Convergência. Rio de Janeiro, Vol. LIV, n. 526, 2019b, pp. 50-60.

JESUÍTAS. Marco de Promoção da Justiça Socioambiental: Marco PJSA. Rio de Janeiro: Companhia de Jesus, Província do Brasil, 2ª Ed. Reformulada e atualizada, Publicação provisória PDF, maio de 2020.

PINHEIRO, A. A.. O Espelho Quebrado da Branquidade: Aspectos de um Debate Intelectual, Acadêmico e Militante. 1. ed. São Leopoldo: Casa Leiria, 2014.


NOTAS

[1] Professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, doutora em Ciências Sociais, coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas – NEABI.

[2] Os textos deste sub-título e do próximo reproduzem diversos excertos do Marco da Promoção da Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil, em sua nova edição provisória (JESUÍTAS, 2020), também já presentes em artigo de minha autoria publicado na Revista Convergência em 2019. (FOLLMANN, 2019b)

[3] Trata-se de um “Observatório em Rede” da Província do Brasil, Companhia de Jesus, com núcleo articulador em Brasília, DF. www.olma.org.br 

[4] São os mesmos “atalhos operacionais” assumidos também pelo Marco da PJSA já mencionado.

[5] Na segunda parte deste subitem são reproduzidos excertos de artigo publicado na Revista Convergência. (FOLLMANN, 2019a)

[6] Destaco, no momento presente, a eleição do Papa Francisco (2013) e a surpreendente viagem dele à Ilha de Lampedusa, sul da Itália, alguns meses depois de assumir como Líder Máximo da Igreja, onde ele denunciou a “globalização da indiferença”. Destaco também os recorrentes apelos deste Papa por uma “Igreja em saída”.

[7] CIRNE, 2013, p.191-197, com o subtítulo “ética ambiental e espiritualidade” fala em uma verdadeira conversão do ser humano. Refere dois caminhos paradigmáticos importantes na tradição cristã: a herança espiritual de Francisco de Assis, conhecida sobretudo pelo famoso “Cântico das Criaturas”, que expressa o louvor ao Deus altíssimo, a humanidade que se faz irmã das criaturas e o respeito e admiração por todo o mundo criado; e a herança dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, no qual o próprio Princípio e Fundamento apresenta um caminho de vida no qual Deus, o ser humano e o ambiente (o mundo) estão intimamente inter-relacionados; encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus é o grande horizonte na “oração para alcançar o amor” dos Exercícios Espirituais Inacianos.

[8] “Onde estás”? Foi assim que Deus interpelou Adão. (Gn 3,9).[8]  “Onde está o teu irmão”? Foi assim que Deus interpelou Caim. (Gn 4,9). “Como está a criação”? Assim interpela Deus a humanidade, não deixando que ela esqueça seu mandato de cuidar de tudo. (Gn. 1, 26-31; 2, 15). No que se refere a Gn. 2, 15 e, especialmente, Gn. 1, 26-31, em termos teológicos “o ser humano na criação” está abordado de forma muito detalhada e profunda por CIRNE, 2013, p. 82-89.

[9] Este texto foi concluído no auge dos efeitos, no Brasil, da pandemia da COVID-19, que mexeu com toda a humanidade no primeiro semestre de 2020.

TRANSDISCIPLINARIDADE, DIÁLOGO E COMPROMISSO SOCIAL: DESAFIOS PARA A RENOVAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR

Palestra proferida na Liverpool Hope University, em abril de 2014

A tábua de salvação da universidade…

FEDERAÇÃO INTERNACIONAL DE UNIVERSIDADES CATÓLICAS – FIUC
XXV Colóquio da ACISE
“Abrir-se para os outros”
Liverpool Hope University, 23-25/04/2014

José Ivo Follmann

Resumo:

O artigo propõe uma reflexão sintética sobre o possível papel da educação superior na realização do sonho de sociedades sustentáveis, pautando, para tal, a importância da cultura transdisciplinar, do diálogo e do compromisso social na produção do conhecimento e na formação dos profissionais. As concepções de ‘transdisciplinaridade’ (Basarab Nicolescu) e de ‘ecologia dos saberes’ (Boaventura de Souza Santos) são retomadas na perspectiva de se repensar o sentido da universidade hoje, enriquecendo-as com apontamentos a partir de estudos sobre a importância do compromisso social da universidade e da extensão universitária, através do conceito de responsabilidade social universitária (François Vallaeys). Além de estabelecer uma aproximação sugestiva entre as concepções de ‘ecologia dos saberes’ e de ‘transdisciplinaridade’ e sua importância para a educação superior, hoje, o texto partilha algumas reflexões a partir do cotidiano de ‘que fazer’ universitário. A reflexão é desenvolvida no horizonte dos desafios que a universidade enfrenta dentro do contexto social brasileiro e latino-americano, tendo em vista a sociedade sustentável. O artigo conclui com apontamentos e questionamentos que sugerem a necessária ‘reinvenção’ da universidade na perspectiva do ‘abrir-se para os outros’.

Introdução

Tendo como horizonte, o contexto latino-americano e, especificamente, o contexto brasileiro, e a urgência de se pensar a responsabilidade das universidades para ajudar a garantir o futuro da humanidade mediante sociedades sustentáveis, são dados quatro passos na reflexão: – Horizontes Direcionadores da Universidade e Responsabilidade Social Universitária; – As Cinco Dimensões do ‘Que Fazer’ Universitário; – Transdisciplinaridade e Diálogo de Saberes: Um Atalho Fundamental; – Extensão Universitária, Caminhos de Ruptura do Abismo e ‘Reinvenção’ da Universidade na Perspectiva do ‘Abrir-se para os Outros’.

Horizontes direcionadores da Universidade e Responsabilidade Social Universitária

Hoje em dia, em nosso meio, muitas vezes se ouve dizer que existe uma defasagem grande entre o que a sociedade em geral, o mercado em particular e os governos esperam do sistema de ensino, particularmente da educação superior e quais as condições efetivas existentes neste sistema para uma produção de conhecimentos e formação de profissionais condizentes com as reais necessidades da sociedade. Isto redobra de importância e urgência quando colocamos no horizonte a construção de sociedades sustentáveis, como é o horizonte direcionador da proposta contida neste texto. Ou seja, a questão se centra sobre as condições que as universidades apresentam para dar conta daquilo que deveria ser a sua finalidade como produção de conhecimentos e formação de profissionais condizentes com a construção de sociedades sustentáveis.

Às vezes nos deparamos com comentários que sugerem que existe um verdadeiro abismo, quase intransponível, entre estes dois mundos. Mesmo que sejam conhecidos diversos esforços para superar este abismo, existem muitos outros processos em andamento que acabam aumentando o mesmo.

Como romper este abismo? Como construir pontes efetivas que permitam o trânsito sobre o mesmo? Sem fazer rodeios, entendo que, em primeiro lugar, é necessário que se coloque no centro do horizonte direcionador algumas questões chaves: – Que sociedade humana nós queremos? Queremos efetivamente construir sociedades sustentáveis? – Que tipo de sujeitos (pessoas) deve ser formado, para que este tipo de sociedade se faça possível? – Que educação nós necessitamos e que universidade queremos para sermos coerentes com a educação necessária para os sujeitos e a sociedade buscados?

Se o nosso sonho é com uma sociedade sustentável, isto é: com uma inovação tecnológica permanente e com o estabelecimento de garantias de sustentabilidade social e ambiental, em vista da sobrevivência equilibrada da sociedade e do meio ambiente no presente e no futuro, os cidadãos e profissionais desta sociedade devem passar por um processo de formação condizente e o sistema, no qual este processo formativo se dá, deve ser impulsionador disto. Quando eu falo em Universidade, o faço dentro deste horizonte. Ou seja, só vejo sentido em lutar por uma Universidade que efetivamente se coloque nesta perspectiva.

Tornou-se bastante usual em debates recentes, sobretudo, a partir do incentivo da UNESCO, o conceito de Responsabilidade Social Universitária – RSU. O conceito tem em si uma riqueza muito grande e traz para o centro das atenções a importância de se ver o processo universitário em sua totalidade orgânica e transversalmente integrada. Reproduzo aqui o conceito formulado pela Associação das Universidades Jesuitas de América Latina – AUSJAL, inspirado em Vallayes (2006), nos seguintes termos: “A habilidade e efetividade da universidade em responder às necessidades de transformação da sociedade em que está imersa, mediante o exercício de suas funções substantivas: ensino, pesquisa, extensão e gestão interna. Estas funções devem estar animadas pela busca da promoção da justiça, da solidariedade e da equidade social, mediante a construção de respostas exitosas para atender aos desafios implicados em promover o desenvolvimento humano sustentável.”

As cinco dimensões do “que fazer universitário”

O sistema de avaliação implantado na AUSJAL para dar conta do conceito de Responsabilidade Social Universitária – RSU está pautado na avaliação de cinco impactos, dando conta de cinco dimensões chave da vida da universidade. Estou sempre mais convencido, em coerência com o que coloquei como horizonte direcionador da Universidade, que devemos estar atentos, de forma integrada, a essas cinco dimensões: a educativa (a vida acadêmica em seu processo de ensino-aprendizagem), a epistemológica e cognoscitiva (a vida acadêmica em seu processo de produção de conhecimento), a organizacional (a vida acadêmica em sua gestão organizacional e administrativa interna), a social (a vida acadêmica em sua relação com a sociedade), e a ambiental (a vida acadêmica em sua relação com o meio ambiente). Trata-se de cinco dimensões da universidade que, a rigor, nos proporcionam ângulos suficientes para visualizar a totalidade da vida de uma Universidade. A avaliação da vida acadêmica só será efetiva e completa quando conseguirmos dar conta destas cinco dimensões de forma integrada, no próprio processo avaliativo. O impacto ou a presença da academia se dará através destas cinco dimensões. O que a AUSJAL faz para avaliar a Responsabilidade Social Universitária pode ser um modelo inspirador para uma avaliação mais ampla de todo o ‘que fazer’ universitário e de avaliação da excelência acadêmica.

Tendo em vista a produção de conhecimentos e a formação de profissionais para a construção de sociedades sustentáveis, é importante que, na avaliação da vida acadêmica, se esteja atento: a) em seus processos de ensino-aprendizagem e de produção de conhecimento, ao compromisso socioambiental, junto à excelência acadêmica e ao espírito inovador e empreendedor; b) em sua gestão organizacional e administrativa interna, à sustentabilidade socioambiental junto à sustentabilidade econômico financeira; c) em sua relação com a sociedade, ao testemunho institucional e práticas de incidência externa no que tange à reconstrução das relações humanas de reconhecimento e valorização dos diferentes (combate ao preconceitos e discriminações) e à busca de formas de combate às desigualdades sociais no que tange ao trabalho e acesso aos bens; d) em sua relação com o meio ambiente, da mesma forma, ao testemunho institucional e às práticas inovadoras na relação sustentável com o meio ambiente.

Uma aventura destas é tremendamente difícil e quase inconcebível dentro das estruturas comuns da academia seccionada em pesquisa, ensino e extensão, seccionada em departamentos, seccionada em faculdades, institutos ou centros. É, também, muito difícil e quase inconcebível dentro de um esquema de produtividade puramente quantitativa e vazia, como vem acontecendo em muitas situações.

Em tais situações, o sistema de avaliação da chamada ‘excelência acadêmica’ deve ser radicalmente revisto, pois está exacerbando uma corrida quantitativa de ‘produtividade científica’, em grande parte inócua e desconectada com o que deveria ser a finalidade central da universidade. É fundamental que avaliação seja realizada no contexto institucional tendo em vista a continuidade, permanência e garantia de futuro e no contexto da relação da instituição com a realidade social e ambiental envolvente tendo em vista a capacidade de interlocução nos processos de produção do conhecimento e de formação de profissionais. O contexto institucional e a sua capacidade de interlocução devem ser identificáveis tanto em relação ao passado, aos valores e saberes acumulados pelas mais diversas vias, como em relação ao futuro, à busca inovadora de soluções para a humanidade em vista de sociedades sustentáveis e universidades que sejam preparadas e propícias para tal. Este deve ser o referencial para adjetivar de forma coerente a excelência acadêmica. Ou seja, se formos coerentes com a busca por eliminar a grande defasagem entre academia e sociedade, em vista de produção de conhecimentos condizente e da formação de profissionais condizente, a avaliação da excelência acadêmica terá que levar em conta, sobretudo, o tipo de processo desenvolvido na academia, a sua efetiva capacidade de abertura e interlocução com as múltiplas formas de saber e o tipo de impacto gerado por este processo no contexto socioambiental.

Transdisciplinaridade e diálogo: um atalho fundamental

Para que se possa trilhar o caminho complexo aqui sinalizado, muitos passos devem ser dados, a depender dos diferentes contextos e limitações institucionais. Quero, no entanto, destacar um atalho que entendo como fundamental: o cultivo da ‘cultura da transdisciplinaridade’.

Havendo este cultivo, o ambiente estará facilitado e fecundo para que se concebam e se desencadeiem iniciativas acadêmicas (programas, projetos e atividades) de formação profissional e de produção de conhecimento de efetiva incidência no contexto em todos os níveis.

Mas o que é transdisciplinaridade? O que explica toda esta atenção? Por vezes não nos damos conta de que é dentro do processo de interrogações sobre a defasagem entre a Universidade e o seu contexto, ou sobre a busca de aproximação entre academia e sociedade que se acelerou o processo de gestação da transdisciplinaridade. Fica sempre mais claro que as opções por buscar soluções transdisciplinares são as que criam as melhores condições para acelerar a aproximação entre academia e sociedade. Talvez se possa dizer que é nas soluções transdisciplinares que reside, em grande parte, a salvação para o futuro das próprias universidades e seu sentido na sociedade. Entendo que as práticas transdisciplinares, no cotidiano das instituições de educação superior, – e isto é válido para o sistema educativo em geral, – serão um grande facilitador para superar a lacuna entre os dois mundos, promovendo uma maior aproximação entre o meio acadêmico e as demandas da sociedade.

O mundo acadêmico é o mundo das disciplinas. É, também, muitas vezes, um mundo que sucumbe a certas arrogâncias disciplinares… As certezas disciplinares são reconduzidas à aproximação da verdade na medida em que se instauram processos multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. A rigor, são diferentes ‘movimentos’ metodológicos de um mesmo ‘que fazer’ científico. O último desses ‘movimentos’, a transdisciplinaridade, não significa um momento ou etapa de superação ou desconsideração da contribuição específica dos outros ‘movimentos’ das disciplinas, seja em suas produções isoladas, seja na forma multidisciplinar de produção do conhecimento, somando, justapondo ou criando interfaces complementares entre disciplinas, ou, ainda, na forma interdisciplinar, de efetivo diálogo e intercâmbio conceptual e metodológico entre as mesmas. A transdisciplinaridade reflete, em si, todos esses ‘movimentos metodológicos’, acrescendo-lhes uma abertura madura para a integração de saberes diferentes, sejam eles saberes de disciplina, combinação de disciplinas ou, ainda, saberes de outras ordens, que transcendem as disciplinas, atuando como “interrogantes externos”. Para Basarab Nicolescu, no qual me apoio mais diretamente, “a transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica (…) diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina”.

A transdisciplinaridade nasceu com essa vocação. Por meio dela se busca a integração dos saberes externos aos esquemas internos disciplinares, onde os saberes de fora da academia (buscados nas percepções do cotidiano, nas percepções artísticas e outras sensibilidades ou criatividades, ou, mesmo, nas tradições sapienciais da humanidade, sem falar nas percepções concretas na prática dentro dos diversos campos, como saúde, lazer, política, trabalho fabril, etc), funcionam como interrogantes externos dentro do processo de produção do conhecimento e do processo educativo.

Pessoalmente tenho uma longa experiência na percepção do papel importante que os saberes religiosos e as sensibilidades dessas tradições podem contribuir no processo de produção do conhecimento. Inclusive o diálogo inter-religioso pode ser considerado como um excelente laboratório testemunhal de prática transdisciplinar.

Extensão universitária, caminhos de ruptura do abismo e ‘reinvenção’ da universidade na perspectiva do ‘abrir-se para os outros’

Como já foi mencionado, na legislação que rege as universidades brasileiras são destacadas três finalidades chaves das mesmas: o ensino, a pesquisa e a extensão. Esta última finalidade envolve toda função de interface da universidade com o contexto no qual ela está inserida. A academia aparece como ator social, que, além das pesquisas que são desenvolvidas e do ensino que é pautado nos processos de formação dos profissionais, também exerce um papel de incidência direta no meio socioambiental em que se insere, contribuindo no desenvolvimento da sociedade na busca de soluções inovadoras nas relações humanas e na superação das desigualdades, bem como, na relação com o meio ambiente. No exercício deste papel ela oferecerá a seus alunos, espaços de formação profissional mais próxima e comprometida com todo o contexto humano, cultural, social, tecnológico e ambiental, que os envolve.

É urgente que a academia refaça alianças e se reconcilie com um imenso acervo de saberes que foram tornados ausentes por ela mesma. Esta riqueza pode estar fazendo falta para a humanidade. Mencionei a dimensão religiosa, que é portadora de parcela desta multi variada riqueza não suficientemente presente nos processos de produção do conhecimento e formação de profissionais. Mencionei esta dimensão por fazer parte de minha prática imediata. Muitas outras dimensões, mais ou menos importantes, deveriam ser mencionadas. Como foi observado anteriormente, isto está presente tanto nas tradições sapienciais, como nas percepções na vida do dia-a-dia e em todos os campos de relações.

O sociólogo português Boaventura de Souza Santos (2007; 2009) avançou muito no debate sobre transdisciplinaridade, com o conceito de ‘ecologia dos saberes’ resultando da ruptura com a linha abissal criada entre os saberes disciplinados na racionalidade acadêmica (cultivados na ‘razão indolente’) e os demais saberes portadores de riquezas infindas que foram tornadas ausentes no processo de produção do conhecimento e formação de profissionais. A contribuição deste sociólogo consegue radicalizar de forma mais contundente o mesmo conteúdo presente no conceito de transdisciplinaridade, chamando a atenção para este processo de geração das ausências na produção do conhecimento, ou seja, o processo acadêmico acabou gerando perdas para o conhecimento no seio da humanidade contemporânea, que podem vir a ser irreparáveis, se essa linha abissal não for rompida.

Entendo que um caminho privilegiado para a ruptura da linha abissal pode ser a extensão universitária quando desenvolvida de forma transversal envolvendo todas as dimensões da Universidade e não como serviços extensionistas à parte como muitas vezes acontece sem repercutir na vida da própria academia como um todo. Aliás, o próprio Boaventura de Souza Santos, em um texto que se tornou paradigmático, colocado em epígrafe na apresentação do texto do Plano Nacional (Brasileiro) de Extensão, expressou claramente que: “Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino”. Neste sentido o sistema de avaliação da Responsabilidade Social Universitária, proposto pela AUSJAL pode ser um referente muito apropriado para repensar a extensão universitária transversalmente perpassando todas as dimensões do ‘que fazer’ acadêmico. Eu ousaria propor isto como uma fórmula revolucionária de ‘reinvenção’ da própria universidade, fazendo dela um novo espaço transdisciplinar de produção de conhecimento e de formação profissional, espaço no qual, ao lado dos saberes disciplinados da academia, a riqueza de todos os demais saberes, muitas vezes tornados ausentes, esteja reconhecida de forma ativa.

Anotação conclusiva

Em todo este passeio breve feito pelos meandros da responsabilidade social universitária, da transdisciplinaridade – com breve incursão no conceito de ecologia dos saberes – e da extensão universitária, sempre trilhando o pavimento do cotidiano da academia em sua complexidade, podemos anotar que ‘abrir-se para os outros’ pode ser sugerido como um tema principal na ‘reinvenção’ da Universidade. A extensão universitária, enquanto pulsando em todo organismo vivo da Universidade, é espaço de cultivo da transdisciplinaridade e chave para o sucesso na aproximação da academia com a sociedade, podendo ser vista como condição de inovação nos processos de formação profissional e de produção do conhecimento.

Ao concluir esta reflexão sintética, tenho a consciência renovada da grande distância existente entre o sonho e a realidade. No entanto, os limites só serão superados na medida em que forem dados passos concretos, no dia a dia do ‘que fazer’ acadêmico, perpassando todas as suas dimensões.

A TRANSDISCIPLINARIDADE NOS LIMITES E POSSIBILIDADES DA ACADEMIA.

Publicado em forma de capítulo no livro “O Movimento entre os Saberes: a Transdisciplinaridade e o Direito”, em 2015

A tábua de salvação da universidade…

José Ivo Follmann

>>> Este texto constituiu capítulo do livro O Movimento entre os Saberes: a Transdisciplinaridade e o Direito, organizado por Sandra Regina Martini; Bárbara Josana Costa. Porto Alegre: Editora Visão, 2015. <<<

Palavras iniciais

O título do texto está diretamente ancorado em minhas inserções como painelista dentro das diversas edições do “Seminário Internacional sobre Limites e Possibilidades do Direito Moderno – Uma Visão Transdisciplinar” do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

Recolho, aqui, alguns excertos das “falas” realizadas desde a primeira edição desse Seminário (2001) até a sua quinta edição (2010), introduzindo novos elementos e novas iluminações. O tom coloquial do texto está relacionado com esta origem de “falas” no contexto de participações em painéis de um Seminário.

O rompimento com a indiferença

Na última de minhas participações no referido Seminário cheguei a dizer que eu me via quase “no limite de minhas possibilidades”, dentro desta temática, mas que isto não me deixava indiferente e acomodado. Na oportunidade, eu tomei isto como mote para a minha fala, e dizia que devíamos ampliar as possibilidades para eliminar os limites… E retomei a ideia da convicção de que a própria proposta do Seminário, em suas diversas edições, vinha demonstrando ser um espaço de tomada de consciência de novos horizontes em nossas possibilidades e ajudava a não nos acomodarmos na indiferença da rotina acadêmica.

Por ocasião do evento, que era a quinta edição do Seminário, estava sendo prestada uma homenagem ao Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho . A homenagem estava significando, na minha percepção, um ambiente humano e profissional tremendamente favorável para o avanço necessário nesse “rasgar de horizontes” ou busca de novos horizontes. Nós estávamos diante de alguém que com suas múltiplas contribuições, era exemplo de rompimento com a indiferença.

Lembrei uma frase proferida pelo Dr. Jacinto, que muito me chamara a atenção. O ilustre homenageado em uma de suas falas pretéritas, repetira, de forma muito enfática, o seguinte: “O oposto de amor não é o ódio, mas a indiferença”.

Relatei que, um pouco antes do evento, eu havia celebrado a missa em nossa capela universitária e me deparara com o texto bíblico que faz a narrativa do encontro entre um Jovem Rico e Jesus. A frase que eu queria relembrar era: “Como é difícil um rico entrar no Reino dos Céus”! Trata-se de uma narrativa certamente conhecida de muitos. O que está registrado é que os discípulos reagiram escandalizados, frente ao Mestre, dizendo: “Mas, então, Mestre, quem poderá se salvar”? Ou seja: Como assim? Até agora sempre nos foi ensinado o contrário. Foi-nos ensinado que os ricos são os abençoados… Jesus conclui: “Para os homens isto parece impossível, mas para Deus tudo é possível”. Eu concluíra minha reflexão, depois da leitura do texto, dizendo: Ser rico, no sentido bíblico, significa ser indiferente frente à sorte dos outros. Deus não é indiferente para com os seres humanos. Para nós, também, tudo será possível na medida em que não formos indiferentes para com os outros. Fizera esta reflexão, porque havia lido a frase do Dr. Jacinto, pensando neste momento que teríamos aqui.

Disse, também, no início, daquela minha fala que seria muito mais do meu gosto poder fazer silêncio, naquele momento, um profundo silêncio para saborear bem tudo o que acabara de ouvir e perceber com a homenagem feita ao Dr. Jacinto e seu trabalho. Na vida em geral, aprendemos muito mais dos exemplos de vida do que das reflexões e elaborações teóricas, por mais que elas sejam sistematizadas e tornadas didáticas.

As possibilidades “humanísticas” no limite da “positivística”.

Naquela noite fiz uma primeira provocação ao dizer: O Direito Moderno tem na “positivística” o seu limite, e tem na “humanística” as suas possibilidades… No Direito Moderno, se, por um lado, a “positivística” cresceu muito, não se pode dizer o mesmo da “humanística”, que, com certeza, não cresceu o que poderia ou deveria ter crescido.

Provocação feita, a minha fala naquela noite, prosseguiu: É muito arriscado fazer uma afirmação destas. Posso fazê-lo, no entanto, por não ser do meio. Tenho a prerrogativa de ser estranho no ninho. Vou tomar a liberdade de nem mesmo tentar explicar o que quero dizer com “positivística” e com “humanística”. Prefiro deixar as imaginações de cada um e cada uma trabalharem. Seria muito interessante se pudesse ter tempo para narrar alguns exemplos concretos no sentido de aprofundar esta provocação…

Muitas vezes já ouvimos manifestações que nos fazem refletir sobre a sociedade moderna, como uma sociedade que perdeu a sua “alma”. Pois, falando em Direito Moderno, é a mesma impressão que nos vem. Como leigo na Área das Ciências Jurídicas e na Prática do Direito, partilho a sensação de que, também, neste meio, em grande parte, se perdeu a “alma”.

Obviamente, isto não é algo generalizável, pois, se fosse, não estaríamos podendo prestar homenagens merecidas como a desta noite, onde estamos na presença de alguém que sempre cultivou e alimenta a “alma” do Direito e a “alma” da humanidade. Nem eu poderia estar me arriscando a falar sobre isto desta forma um tanto “desajeitada”…

O puro formalismo legal torna o tratamento, muitas vezes, “desalmado”, reduzindo as ações e práticas, do exercício jurídico do legislador, ao plano do simples cumprimento formal de uma lei insuficientemente contextuada.

“Indiferença desalmada” versus “indiferença inaciana” (atualização em 13/04/2019)

Toda esta reflexão faz despertar em mim um recado forte que vem de minha “alma inaciana”, pois sou um jesuíta cultivado na espiritualidade de Santo Inácio de Loyola. Em outras palavras, ao longo e ao lado de minha formação profissional, como sociólogo, bebi muito das águas da espiritualidade e pedagogia inacianas. Sinto-me estimulado a ressaltar alguns aspectos chaves, que estão inspirados nessa espiritualidade, cuja origem se situa, historicamente, antes, ou, nas vésperas dos grandes movimentos da modernidade. São luzes importantes que, talvez, possam ajudar a ampliar as possibilidades que estão postas em questão na reflexão aqui em pauta.

No Paradigma Pedagógico Inaciano são conhecidos cinco passos (ou momentos) fundamentais: – o estar atento ao contexto; – o reviver as experiências; – o aprofundamento na reflexão; – a ação coerente com os passos precedentes; – a avaliação de todo o procedimento. (Também ocupa um lugar importante algo que se denomina “indiferença inaciana”, que é o oposto da “indiferença desalmada”). (Atualização em 13/04/2019)

Dentro do tema aqui em pauta, chamo a atenção para os três primeiros passos ou momentos, ou seja: Em primeiro lugar, a tradição inaciana nos ensina que devemos ter sempre uma grande atenção ao contexto. Em segundo lugar, trata-se, entretanto, não de contexto simplesmente externo ou visto friamente, de fora, mas de um contexto com vida. Contexto no qual se dão as experiências humanas. Em terceiro lugar, o ato de reviver pessoalmente as experiências nos dá as bases necessárias para que a nossa reflexão – a aplicação dos nossos conhecimentos teóricos – seja realmente um momento que leve em conta radicalmente o ser humano envolvido, dando-nos maiores garantias de acertarmos na ação. Uma reflexão, por mais competente que seja em termos de conhecimento da legislação e de sua formalidade processual, pode levar a tremendos limites, se não estiver ancorada neste mergulho experiencial no contexto. (Inacianamente pensando devemos saber cultivar boa dose de indiferença frente a nossas seguranças técnicas calculadas e focar toda energia e atenção à causa humana envolvida). (Atualização em 13/04/2019)

Por um momento o meu pensamento retornou à reflexão bíblica apontada inicialmente: O que é ser rico? É ser indiferente frente à sorte dos outros. Deus não é indiferente para com os seres humanos. Para não corrermos o risco da indiferença para com os seres humanos, em nosso “que fazer” profissional é necessário que a formação para esta profissão nos proporcione condições de enxergar para além dos estreitos limites disciplinares. A transdisciplinaridade é uma chave importante para tal.

Uma formação demasiadamente “positivística” pode gerar profissionais “desalmados” ou indiferentes frente à realidade humana. Santo Inácio nos fala de outra forma de indiferença. A indiferença inaciana é proposta na perspectiva da indiferença com relação às próprias comodidades e seguranças pessoais, sempre com a atenção focada no bem maior da humanidade e dos outros. (A transdisciplinaridade tem parentesco íntimo com a “indiferença inaciana” na medida em que nos ajuda a ser de certa forma indiferentes frente à “segurança” de nossas conclusões técnicas). (Atualização 13/04/2019)

Transversalidade com foco

Para os nossos ouvidos, a imagem do “transitar” ou da transversalidade sempre soa como uma imagem rica e carregada de sentido. Aliás, dentro das Ciências Humanas – eu sou da Sociologia – se quisermos efetivamente ser cientistas, precisamos transitar constantemente entre as muitas pequenas “igrejinhas” ou perspectivas teóricas ou subdisciplinas que vão se afirmando dentro da própria disciplina. Pessoalmente, aprendi a trabalhar sociologicamente sendo fiel a três perspectivas diferentes, sem desautorizar as suas lógicas e ditames próprios, mas transitando constantemente de uma a outra. Me refiro à sociologia francesa, em cujo poço bebi mais, a partir dos meus mestres na Bélgica, onde são destacadas três grandes perspectivas teóricas que, a rigor, se complementam e repelem, mutuamente. Assumi o desafio de, sem desrespeitar o locus epistemológico de cada uma, fazer o meu estudo doutoral, transitando livremente por dentro das três perspectivas. Confesso que foi uma experiência intelectual bem reconfortante e de muitos frutos. É importante saber transitar entre as diferentes disciplinas, mas devemos, sobretudo, saber, também, transitar entre os diferentes posicionamentos teóricos.

Além disso devemos, ainda, ter presente as vivências do nosso cotidiano e do cotidiano alheio. Um dia, ao falar do sujeito intelectual ou das pessoas intelectuais – e poderíamos considerar os/as profissionais do Direito – fiz um exercício bem rasteiro, tentando chamar a atenção sobre as diferentes condições pessoais, no seu dia-a-dia. Eu dizia que é preciso dar-nos conta que essas pessoas são sujeitos concretos, de carne, osso, nervos etc., homens ou mulheres que pensam, sentem, se animam, desanimam, se entusiasmam, deixam-se tomar pelo cansaço e aborrecimento, amam, odeiam, estão “de bem com a vida”, se sobrecarregam de preocupações e problemas, vivem “correndo atrás da máquina”, “botam os pés pelas mãos”, revelam sabedoria, manifestam paz e tranquilidade, avaliam, calculam, são “ignorantes”, são conhecedoras, são volúveis, são corretas e honestas, são desonestas, estão financeiramente bem arrumadas, vivem buscando o seu ganha-pão, fazem negócios, têm coragem, são sonhadoras, desesperam-se, têm medo, são de descendência europeia, são afrodescendentes, descendem de povos indígenas ou de orientais, são solidárias, não são solidárias, são religiosas e crentes, são ateias, bebem do agnosticismo, são “hetero”, “homo” ou “trans”, são casadas, não são casadas, não são nem uma ou nem outra coisa. A pessoa intelectual – ou, então, profissional do Direito – pode ser tudo isso. Existem intelectuais – ou profissionais do Direito – em todos os “estados” de vida possíveis. É necessário que estejamos muito atentos às situações e dinâmicas pessoais dos intelectuais – ou profissionais do Direito. Estar atento significa saber transitar por dentro das diferentes situações, vivências e “humores”. É necessário que cada pessoa saiba estar muito atenta aos “humores”, circunstâncias e vivências do cotidiano. Isto vale tanto em relação a si próprio, como em relação aos demais.

Não adianta, no entanto, sermos perfeitos técnicos multi e interdisciplinares, perfeitos “malabaristas do trânsito” entre as disciplinas e posicionamentos teóricos ou, mesmo, “bons farejadores do cotidiano”. Se isto não estiver acompanhado e embebido numa postura ética, que tem a sua centralidade na pessoa humana, facilmente podemos ser reduzidos à máquina da indiferença e ao formalismo. Corremos o risco de não superar o mero nível de uma enganosa cordialidade ou afabilidade, que pode continuar sendo portadora de indiferenças cruéis… A transdisciplinaridade aponta, também, para a importância da atenção aos valores orientadores da existência humana e consagrados no convívio social. Os profissionais do Direito precisam ser transdisciplinares, tanto no sentido de terem uma postura de livre transitar sobre os limites disciplinares, os limites dos posicionamentos teóricos e os limites dos movimentos do cotidiano, como no sentido de estarem imbuídos de valores éticos que transcendem estas diferentes lógicas. Ou seja, no sentido de terem uma visão integral da pessoa humana. Aliás, é nisto reside que a grande diferença entre a formação de profissionais de verdade e a formação de meros técnicos da profissão. Estes últimos, podendo ser, talvez, muito competentes, mas humanamente vazios, “desalmados”, como referi acima.

A imagem do poço, como uma ilustração útil

Em diversas das minhas falas, lembrei a imagem do poço. Ubiratan D’Ambrosio, Matemático e Educador, em suas reflexões sobre a transdisciplinaridade traz, muito repetidamente, essa imagem: a imagem do poço e do horizonte que se estreita para quem desce para o fundo do mesmo. Para esse autor,

“assim, como ao descer num poço a percepção do terreno ao redor vai se tornando mais e mais difícil, o conhecimento especializado pode conduzir a uma falta de percepção do contexto em que tal conhecimento foi produzido”. (D’Ambrosio: 2001, p.76)

Na profundidade do “poço” certamente é usufruída enorme riqueza centrada especialmente em determinado ponto específico da realidade complexa. O aprofundamento e detalhamento levam a caminhos infindos e apaixonantes, mas se esta paixão não estiver partilhada e referida a um horizonte mais amplo de construção de soluções para a humanidade e para a sobrevivência de todo o ecossistema do qual fazemos parte, sofre sério risco de esterilidade humana e científica.

No estreitamento dos horizontes, ao descer no “poço”, o que tende a desaparecer mais rapidamente é o ser humano, é a vida que acontece no entorno. Corre-se o risco de estar na contramão do imperativo da centralidade do ser humano. É necessário que ao descer no “poço” – as descidas no “poço” são fundamentais e necessárias -, quem desce esteja imunizado contra o risco da esterilidade humana e científica…

Hoje em dia torna-se sempre mais visível e gritante o aumento de situações e constatações de que o “ser humano está-se desumanizando em sua prática de ser humano”. Esta desumanização tem a ver com a perda de conhecimento de si mesmo e, consequentemente, de suas responsabilidades cidadãs.

A imagem do zoológico…

Já fazem quase quinze anos em que me deparei com um livro organizado pelo Instituto de Resultados em Gestão Social, de Belo Horizonte, no qual colhi uma alegoria muito expressiva, falando do degradante desastre da falta de identidade humana. São analogias bastante rasteiras. Elas são, no entanto, muito do meu gosto e são muito expressivas. Diz o texto:

(…) o Homem costuma partir para a engenharia do viver como um Animal que parece só ter uma certeza: a negação do Homem como animal Homem. Então, com indesejável frequência, ele se alimenta como uma hiena, marca seu espaço como um leão, tenta se proteger como um cágado, repete outros como papagaio, é traiçoeiro como escorpião, esconde-se da realidade como avestruz, ameaça como cascavel, aproveita-se da fraqueza de outros como abutre e acaba passando a vida como um pato que na Água não consegue nadar como peixe, no ar não consegue voar como pássaro e no solo não consegue correr nem como galinha”. (Romano Filho; Santini; Ferreira: 2002, p.25)

Necessitamos de homens e mulheres que saibam sentir-se maiores do que os limites que os cercam e que tenham a coragem de recusar-se a aceitar a realidade na qual estão mergulhados, simplesmente como dada e imutável. Eu falava acima de limites disciplinares, limites de posicionamentos teóricos e limites dos movimentos do cotidiano.

A rigor, quem for atento à pessoa humana, à dignidade da pessoa humana, quem for radicalmente voltado ao valor da vida humana, sempre irá para além das compreensões disciplinares, dos posicionamentos teóricos e dos rumores do cotidiano. Ele não se reduzirá a ser mais ou menos transgressor disciplinar, a ser mais ou menos habilidoso em transitar entre as diferentes disciplinas e posicionamentos teóricos, a ser mais ou menos malabarista do cotidiano. A sua transdisciplinaridade, própria do ser um profissional de verdade, sempre o levará a transcender as suas aptidões e malabarismos, para buscar uma ancoragem firme em valores éticos de respeito à dignidade humana e o sincero empenho em construir sociedade onde todos e todas possam viver com dignidade. Tenho a certeza de que no entender da maioria dos que leem o presente texto, é nisto que reside o ser profissional de verdade.

A importância de ultrapassar-se

Dom Helder Câmara um dia, inquieto, exclamou “Ah! Se a sede de ultrapassagem – comum a todos os volantes – levasse os volantes e passageiros a aprenderem a ultrapassar-se”! É uma imagem muito expressiva no contexto de nossa reflexão. A imagem da ultrapassagem, no sentido de manifestação de Dom Helder não tem nenhuma conotação de convite à irresponsabilidade no trânsito. Independente da mensagem expressa na frase de Dom Helder, a analogia do trânsito é infeliz e muito limitada. Ela nos coloca, no entanto, com vigor, na luta contra a irresponsabilidade da acomodação no medo.

Concentremo-nos em nossa reflexão. Se ultrapassar a outros pode ter o conteúdo simbólico de superar medos, quanto maior deve ser o medo e a necessidade de superá-lo, quando nos propomos a ultrapassar a nós mesmos!? A mesma coragem na incerteza que muitos motoristas irresponsáveis demonstram e que muitas vezes resulta em desastrosas desumanidades, deveria poder ser percebida na ruptura com a acomodação humana irresponsável em nossas zonas de conforto, ultrapassando-nos a nós mesmos, com a busca responsável do maior bem. Ultrapassar a nós mesmos significa ultrapassar as zonas de conforto de disciplinas, de posicionamentos teóricos dogmatizados e, inclusive, de vícios e rotinas do cotidiano acomodado.

Para sair da analogia do trânsito, trago aqui o exemplo de um autor conhecido. Carlos Rodrigues Brandão (2005), em livro publicado há mais de dez anos, no qual retrata a história de Paulo Freire – (História do menino que lia o mundo) -, destaca que este menino que lia o mundo, aprendeu a perder o medo, porque começou a entender as coisas e o mundo. Nós só temos medo frente ao que não entendemos. Aplicando para o nosso momento, a nossa reflexão, podemos dizer que nós estamos presos e acomodados facilmente em nossas seguranças e pensar em deixá-las para trás, pensar em ultrapassar-nos nos faz medo, porque não conhecemos ou entendemos/dominamos o que vem pela frente, o incerto.

É necessário saber colocar no background de nossas análises científicas disciplinadas, mesmo que elas sejam, como muitas vezes são, de alta qualidade e habilidade, o imperativo: “Isto não é tudo”! Estes caminhos não são suficientes! Outras percepções importantes, que transcendem a percepção disciplinar, que transcendem os posicionamentos teóricos e os “trilhos” do cotidiano acomodado, são possíveis e necessárias.

É necessário que o imperativo da busca por ultrapassar-nos constantemente para não nos tornarmos ultrapassados, impere em nossa prática profissional do dia a dia. A Academia facilmente corre o risco de ser ultrapassada quando tende a voltar-se sobre os seus disciplinamentos e regramentos internos de seu mundo correndo à parte do contexto no qual ela se insere e/ou correndo ao lado e à revelia dos grandes debates e embates da humanidade. Às vezes a Academia corre o risco de continuar a construir “torres de marfim”, aparentemente inacessíveis, inexpugnáveis, mas, sobretudo, inúteis.

Nos dias de hoje, a Academia felizmente está, de mais a mais, despertando, mas é preciso que este processo se acelere. Acredito que um caminho acelerador é a aposta na transdisciplinaridade. Chego a dizer que nela reside o futuro da Academia, ou, que é a “tábua de salvação” da Academia.

Mas, o que é transdisciplinaridade?

É necessário fazer uma pequena nota sobre o próprio conceito de transdisciplinaridade… Para o meu conforto, ou, talvez, a minha comodidade, acostumei-me a falar em quatro “movimentos” metodológicos complementares, de um mesmo “que fazer” científico, explicitando a transdisciplinaridade como um desses “movimentos”.

O mundo acadêmico é o mundo das disciplinas. É também, muitas vezes, um mundo que sucumbe a certas arrogâncias disciplinares… Segundo Ubiratan D´Ambrósio (2003), “faz-se necessário o rompimento da arrogância da certeza disciplinar”. Para este educador, a disciplina traz consigo um critério de certeza arrogante, não deixando espaço para um entendimento que transcenda o aparente. As certezas disciplinares são reconduzidas à aproximação da verdade na medida em que se instauram processos multi ou pluridisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. A rigor, está-se falando, aqui, de diferentes “movimentos” metodológicos complementares de um mesmo “que fazer” científico. O último desses “movimentos”, a transdisciplinaridade, não significa um momento ou etapa de superação ou desconsideração da contribuição específica dos outros “movimentos” das disciplinas, seja em suas produções isoladas, seja na forma multi ou pluridisciplinar de produção do conhecimento, somando, justapondo ou criando interfaces complementares entre disciplinas, ou, ainda, na forma interdisciplinar, de efetivo diálogo e intercâmbio conceptual e metodológico entre as mesmas. A transdisciplinaridade reflete em si todos esses “movimentos” metodológicos, acrescendo-lhes uma abertura madura para a integração de saberes diferentes, sejam eles saberes de disciplina ou combinação de disciplinas ou, ainda, saberes de outras ordens, que transcendem as disciplinas, atuando como “interrogantes externos”. (Follmann; Lobo: 2003, p.10.)

Para Basarab Nicolescu, no qual me apoio mais diretamente,

“transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica (…) diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina”.(Nicolescu: 2000, p.15 )

No sentido transdisciplinar, a produção de conhecimento e todo processo de educação e de formação profissional, supõem a integração dos saberes e supõem, também, a abertura e o não-fechamento dos saberes, no sentido de se alimentarem mutuamente e, sobretudo, de se deixarem transcender/ultrapassar na permanente busca do melhor bem para o ser humano e o seu contexto. A transdisciplinaridade nasceu com essa vocação, ou seja: por meio dela se busca a integração dos saberes, onde os saberes de fora da Academia, encontrados nas percepções do cotidiano, nas percepções artísticas, e outras sensibilidades ou mesmo nas crenças religiosas e tradições sapienciais da humanidade e nos imperativos éticos consagrados no convívio social, funcionam como interrogantes externos dentro do processo de produção do conhecimento e do processo de educação e formação profissional.

Palavras finais: rebuscando arquivos do século XVI

São Francisco Xavier, como missionário atuante no Extremo Oriente, em um dos contatos escritos, através de carta, manifestava uma grande ansiedade com relação ao comodismo egoísta e ao resultado pífio das Universidades Europeias, frente às grandes necessidades da humanidade. Ele escrevia que tinha vontade de retornar à Europa e, “se fazendo de louco”, andar pelos corredores dessas Universidades e denunciar, aos gritos, a “acomodação e indiferença” delas e dos seus estudantes, com relação ao que a humanidade efetivamente mais estava necessitando. Esse santo, nos limites de sua compreensão, dentro de seu ardor missionário, se referia, evidentemente, à necessidade da evangelização e do anúncio dos valores cristãos para toda a humanidade.

Sem repetir a mesma visão de mundo desse jesuíta heroico do século XVI, hoje, são muitas as vozes que se levantam e que gostariam de “se fazer de louco” para sacudir as Universidades de seu torpor e sua acomodação nas mesmices de uma Academia insensível e indiferente frente aos destinos da humanidade e dos problemas concretos existentes no cotidiano das pessoas e da sociedade.

Talvez devamos dizer que não se trata, tanto, de insensibilidade e indiferença frente aos problemas humanos, mas da própria incapacidade de perceber e reconhecer as potencialidades da Universidade e os múltiplos valores que nela estão escondidos e são mal aproveitados.

Referências bibliográficas:

BRANDÃO, C.R. Paulo Freire, o menino que lia o mundo: uma história de pessoas, de letras e de palavras. SP.: UNESP, 2005.
D’AMBROSIO, U. Transdisciplinaridade. S. Paulo: Palas Athena, 2001.
FOLLMANN, J. I.; LOBO, I. M. (orgs). Transdisciplinaridade e Universidade: uma proposta em construção. São Leopoldo: Edunisinos, 2003.
NICOLESCU, B. Educação e transdisciplinaridade. Brasília: Ed. Unesco Brasil, 2000.
ROMANO FILHO, D.; SARTINI, P.; FERREIRA, M. M. (orgs.). Gente cuidando das Águas. Belo Horizonte: Instituto de Resultados em Gestão Social / Mazza Edições 2002.
WEIL, P.; D’AMBROSIO, U.; CREMA, R. Rumo à nova transdisciplinaridade; sistemas abertos de conhecimento. São Paulo: Ed.Summus, 1993.

DIALOGANDO COM OS CONCEITOS DE INTERDISCIPLINARIDADE E DE TRANSDISCIPLINARIDADE: CAMINHOS PARA O FUTURO DAS INSTITUIÇÕES EDUCACIONAIS.

Publicado como artigo na Revista INTERTHESIS, em 2013.

A tábua de salvação da universidade…

José Ivo Follmann

Artigo publicado na Revista INTERTHESIS, UFSC a partir de palestra proferida no Seminário Internacional: Interdisciplinaridade no Ensino, na Pesquisa e Extensão – SIIEPE, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Florianópolis, 23-25 de outubro de 2013.

Abrindo janelas…

A maneira como vou iniciar a minha participação neste evento, talvez soe estranha e provocativa. Hoje tenho consciência de que, apesar de ter quarenta anos de atuação no meio acadêmico, não preciso esforçar-me muito para, às vezes, nele parecer estranho. Isto, talvez, se deva ao fato de estar marcado por uma trajetória religiosa e de militância no campo religioso, fazendo com que me transforme, às vezes, numa espécie de profanador do espaço sagrado da Academia… Ser estranho é fácil, mas a minha humilde pretensão aqui é poder ser provocativo…

Antes de entrar no debate das questões que me foram colocadas, vou falar do povo nas ruas do Brasil, vou falar do Papa Francisco e vou falar de uma Mãe de Santo.

Iniciemos com as “manifestações de junho” e suas repercussões na Academia… Quando as “manifestações de junho” aconteceram, os políticos, a sociedade e a academia se sentiram pegos de surpresa. Vou ater-me à academia. Nós, da academia, fomos surpreendidos. E falo isto enquanto sociólogo… Ouviram-se muitos comentários. Obviamente, também, muitos acadêmicos e professores participaram das manifestações. Não poderia ser diferente. No entanto, será que a academia deixou-se interrogar pelas manifestações? Muitos talvez digam que sim. Muitos talvez digam que não. Alguns disseram: “A Academia fez a sua parte. Fez reflexões em sala de aula. Aconteceram mesas de debate com professores. Houve elaboração de muitos papers”. Outros disseram: “A Academia fez-se ausente. Lavou as mãos. Só faturou academicamente em cima dos eventos. Entendeu que é problema dos políticos e da sociedade”.

Em formaturas que eu presidi no início deste semestre (agosto, 2013) eu repeti diversas vezes as seguintes palavras, revestidas de empáfia característica: “A partir das ‘manifestações de junho’ deste ano, um dos muitos comentários que se ouviu foi: ‘Depois desses eventos o Brasil não voltará mais a ser o mesmo; a sociedade brasileira não voltará mais a ser a mesma’… E eu acrescento: ‘A universidade brasileira não poderá mais ser a mesma; as profissões não poderão mais ser as mesmas; a profissão de vocês não poderá ser mais a mesma!’…” Fiquei sempre muito satisfeito e até impressionado com o efeito evidente que este discurso repercutia nos rostos concordes do público e dos novos profissionais em festa. Passada a euforia daqueles momentos de discurso impactante, já me perguntei, muitas vezes, sobre a verdadeira efetividade daquelas palavras. Uma nova Universidade é possível? Quais devem ser as características desta nova Universidade?

Depois de aberta esta primeira janela, vou para outra… Olhemos agora para dois homens com o nome Francisco, talvez até inspirados no mesmo Francisco… Falo do Papa Francisco, falo do jesuíta Francisco Xavier e falo do grande inspirador de muitos, Francisco de Assis.

No século XVI, Francisco Xavier, em uma de suas cartas, enquanto missionário jesuíta atuante no Extremo Oriente, manifestava uma grande ansiedade com relação às universidades europeias devido à sua acomodação e pouca eficácia frente aos desafios urgentes da humanidade .(1) No seu ardor missionário cristão, ele escrevia que tinha vontade de retornar à Europa e, “se fazendo de louco”, andar pelos corredores dessas universidades para, aos gritos, denunciar a sua insensibilidade e indiferença e o carreirismo egoísta, alimentado pela mera busca de títulos, de parte de seus estudantes.

Mais de quatro séculos depois, surpreendentemente, a dois meses atrás, o Papa Francisco, em uma importante entrevista para a Revista Civilta Cattolica e, com ela, para uma Rede de Periódicos no mundo todo, ao se dirigir aos jesuítas e ao mundo intelectual em geral, falou de três palavras chaves fundamentais: diálogo, discernimento e fronteiras, e estabeleceu uma analogia ousada e muito perspicaz: “Assedia-nos sempre o perigo de viver como em laboratório. (…) Os laboratórios me causam medo, porque no laboratório os problemas são dissecados e levados para casa, fora de seu contexto, para domesticá-los, para dar-lhes um verniz. Não se pode levar as fronteiras (da realidade complexa) para casa, é necessário viver nas fronteiras e ser audazes”.

Deixando no ar este questionamento, quero abrir uma terceira janela para concluir esta introdução prévia… Trago à cena a lição de vida que recebi de uma Mãe de Santo (2) , que já serviu para muitos momentos de reflexão. Estava participando de um seminário sobre espiritualidade e religiões de matriz africana. A Mãe de Santo, que era uma das painelistas, acabara de fazer uma reflexão de grande profundidade e que, no meu entender, deveria merecer um registro escrito. No final de sua colocação, perguntei-lhe sobre porque as religiões de matriz africana, ainda hoje, continuavam resistentes ao registro escrito das grandes lições de vida e fé de seus líderes e, também, de suas reflexões espirituais e religiosas. Ela me respondeu: “Padre Ivo, vou dizer uma coisa muito certa. Se a gente escreve, aí vêm outros, leem e saem fazendo bobagem!…” Foi uma resposta inesperada, que já me oportunizou muita reflexão.

Em primeiro lugar: valores e atitudes não se aprendem em livro! Ou seja, existem dimensões no conhecimento que não passam pela simples captação da razão. As formulações da linguagem sempre serão pobres para dar conta delas. Só podem ser colhidas na vivência e no coração. A simples apreensão pela leitura, quando não acompanhada pela acolhida vivencial, proporciona uma falsificação cognitiva.

Abertas estas três janelas, temos um ambiente bastante iluminado (ou não) para apresentar os pontos que queremos introduzir na participação nesta mesa de diálogo. Partindo, em um primeiro momento, de um questionamento amplo sobre a defasagem existente entre academia e sociedade, faço, em um segundo momento, breve reflexão sobre a importância e pertinência da inter e transdisciplinaridade para ajudar a dirimir esta defasagem, dentro da discussão proposta, realçando para tal a importância do papel da extensão universitária. Num terceiro momento são apresentados alguns desafios, oportunidades e perspectivas dentro do tema da institucionalização da inter e transdisciplinaridade no meio acadêmico, com a apresentação de alguns exemplos concretos.

A defasagem entre o meio acadêmico e a sociedade

Hoje em dia, em nosso meio, muitas vezes se ouve dizer que existe uma defasagem grande entre o que a sociedade em geral, o mercado em particular e os governos esperam do sistema de ensino, particularmente da educação superior e o que são as condições efetivas existentes neste sistema e nesta educação superior para uma produção de conhecimentos e formação de profissionais condizentes com as reais necessidades.

Às vezes nos deparamos com comentários que sugerem que existe um verdadeiro abismo, quase intransponível, entre estes dois mundos. Mesmo que sejam conhecidos diversos esforços para terminar com este abismo, existem muitos outros processos em andamento que acabam aumentando o mesmo.

É estranho que isto seja tão forte no Brasil onde existe uma dimensão dentro da definição oficial da universidade, que tem a finalidade de reduzir essa defasagem e de aproximar a academia e a sociedade, que é a dimensão da extensão universitária. Na definição da universidade brasileira está evidenciada a intenção de, através da extensão, aproximar o ensino e a pesquisa do contexto no qual eles se realizam. Onde a produção do conhecimento e a formação de profissionais sejam condizentes com as demandas da realidade social.

O contexto atual sinaliza, com vigor, para diversas sensibilidades ou pautas sociais, entre as quais está com destaque a questão da sustentabilidade socioambiental, e o apelo para a contribuição do sistema de ensino neste sentido. Mas o que tem a ver isto com a reflexão sobre interdisciplinaridade e transdisciplinaridade aqui proposta? Tem tudo a ver, pois é dentro do processo de aproximação ou de busca de aproximação entre academia e sociedade que se acelerou o processo de gestação da própria interdisciplinaridade e, sobretudo, da transdisciplinaridade. E são as opções por buscar soluções inter e transdisciplinares que criam as melhores condições para acelerar a aproximação entre academia e sociedade.

Talvez se possa dizer que é nas soluções inter e transdisciplinares que reside, em grande parte, a salvação para o futuro das próprias universidades e seu sentido na sociedade.

Em suma, entendo que as práticas inter e transdisciplinares, no cotidiano das instituições de educação superior e do sistema educativo em geral, serão um grande facilitador para superar a lacuna entre os dois mundos e propiciar alinhamento deste sistema para a sustentabilidade socioambiental.

Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade

Estou transgredindo um pouco a solicitação da coordenação do evento, ao introduzir junto ao conceito de interdisciplinaridade, o conceito de transdisciplinaridade. Esta transgressão, que espero não ser grave, deixa-me mais à vontade e ajuda a conectar mais facilmente com a reflexão sobre extensão universitária, cujo viés, no meu entendimento, é essencial para a minha participação nesta mesa.

Alguns colocam a segmentação disciplinar do conhecimento e a sua departamentalização como frutos perversos da modernidade. Isso está, talvez, na origem de uma das maiores crises geradas pela própria modernidade. Trata-se de um efeito perverso porque, em sua concepção original, encontramos a função de complementaridade entre os diferentes aportes, mas quem alimentava esse ideal não se deu conta de que os pequenos mundos do saber, criados e cultivados em compartimentos, também implicariam em recantos de poder e de competição. Esses recantos passaram a negar a importância e a pertinência dos demais recantos do saber e, até mesmo, se chegou a questionar a própria legitimidade da interação e relação produtiva com eles. Sem falar do quase interdito que passou a vigorar com relação às contaminações do saber com elementos considerados espúrios ao mundo dos saberes disciplinados (das disciplinas).

O mundo acadêmico é o mundo das disciplinas. É, também, muitas vezes, um mundo que sucumbe a certas arrogâncias disciplinares… Segundo Ubiratan D´Ambrósio, “faz-se necessário o rompimento da arrogância da certeza disciplinar”.(3) Para este educador, a disciplina traz consigo um critério de certeza arrogante, não deixando espaço para um entendimento que transcenda o aparente. As certezas disciplinares são reconduzidas à aproximação da verdade na medida em que se instauram processos multi ou pluridisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. A rigor, são diferentes “movimentos” metodológicos de um mesmo “que fazer” científico.(4) O último desses “movimentos”, a transdisciplinaridade, não significa um momento ou etapa de superação ou desconsideração da contribuição específica dos outros “movimentos” das disciplinas, seja em suas produções isoladas, seja na forma multi ou pluridisciplinar de produção do conhecimento, somando, justapondo ou criando interfaces complementares entre disciplinas, ou, ainda, na forma interdisciplinar, de efetivo diálogo e intercâmbio conceptual e metodológico entre as mesmas. A transdisciplinaridade reflete em si todos esses “movimentos” metodológicos, acrescendo-lhes uma abertura madura para a integração de saberes diferentes, sejam eles saberes de disciplina ou combinação de disciplinas ou, ainda, saberes de outras ordens, que transcendem as disciplinas, atuando como “interrogantes externos”. (Follmann, J. I., Lobo, I. M. et allii , 2003, p.10). Para Basarab Nicolescu, no qual me apoio mais diretamente,“a transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica (…) diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina.” (Nicolescu, 2000, p.15)(5)

Isto não é novidade e nem inovação que esteja extrapolando das orientações fundamentais da própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei 9394/96), pois esta já orienta para a busca de saberes, que são externos e transversais às disciplinas, dentro da produção do conhecimento e dos processos educativos.

No sentido transdisciplinar, a produção de conhecimento e o processo educativo supõem a integração dos saberes e supõem, também, a abertura e o não-fechamento dos saberes, no sentido de se alimentarem mutuamente e, sobretudo, de se deixarem transcender (ultrapassar) na permanente busca do melhor bem para o ser humano e o seu contexto. A transdisciplinaridade nasceu com essa vocação, ou seja: por meio dela se busca a integração dos saberes internos e externos aos esquemas disciplinares, onde os saberes de fora da academia (buscados nas percepções do cotidiano, nas percepções artísticas e outras sensibilidades ou mesmo nas tradições sapienciais da humanidade), funcionam como interrogantes externos dentro do processo de produção do conhecimento e do processo educativo.(6) É quando a extensão universitária passa a fazer parte de todo o processo educativo da instituição acadêmica.

No processo de extensão universitária, a atitude transdisciplinar tem mais condições objetivas de aflorar. Uma atitude transdisciplinar implica exercer a madura abertura aos interrogantes externos e ao conhecimento produzido fora do seu campo de domínio teórico, intradisciplinar e disciplinar. Exige ser humilde e cooperativo frente aos diferentes saberes, reconhecendo as limitações das disciplinas ou de seu campo de domínio teórico-técnico diante da realidade da complexidade. A atitude transdisciplinar nos convida ao exercício da coragem para recusar-se a simplesmente aceitar como dado imutável a realidade na qual se está inserido. As pessoas com atitude transdisciplinar são pessoas mais abertas àquilo que está além da sua área de conhecimento e aplicação, portanto tendem a apresentar mais facilidades de trabalhos em equipes multi e interdisciplinares. É convicção que a universidade que fez uma opção pela transdisciplinaridade deve, de forma permanente, buscar incluir em seu modo de proceder, em todos os níveis, a atitude transdisciplinar.

Desafios, oportunidades e perspectivas

Com o objetivo de tomar parte da roda de diálogo sobre os novos e velhos desafios, oportunidades e perspectivas para as propostas de interdisciplinaridade e de transdisciplinaridade dentro do processo de reprogramação do sistema educacional brasileiro, proponho aqui alguns apontamentos contemplando obstáculos, processos críticos e estruturas para os quais devemos estar atentos.

Nível dos obstáculos e sua superação

Vou direto ao ponto: no meu entender o principal obstáculo para todo e qualquer avanço inter e transdisciplinar é a ausência de foco estratégico direcionado para a superação da defasagem entre o meio acadêmico e a sociedade.

Sem este foco estratégico toda e qualquer iniciativa inter e transdisciplinar corre o risco de ser inócua para uma verdadeira transformação do meio acadêmico. Pode-se até desenvolver iniciativas pontuais e produzir belos eventos trazendo à discussão esta temática. Podem-se enriquecer currículos e produzir papers e artigos. O meio acadêmico, no entanto, permanecerá o mesmo, enriquecido por uma nova performance discursiva.

Para prevenir este risco faz-se necessário que se coloque no centro de toda discussão três perguntas chaves: 1) A primeira questão, em nosso “que fazer” universitário, sempre deve ser: Que sociedade nós queremos? 2) Uma segunda questão naturalmente se seguirá: Que sujeitos formar para essa sociedade que queremos? 3) A terceira questão, consequentemente, fará voltar o nosso olhar para as universidades enquanto tal: Que educação nós necessitamos? E, dentro desta questão: Que universidade para ser coerente com a educação necessária para os sujeitos e a sociedade buscados? (Follmann, 2008, p.322)

Se o nosso sonho é com uma sociedade sustentável, isto é: com uma inovação tecnológica condizente com os avanços internacionais e com o estabelecimento de garantias de sustentabilidade social e ambiental, em vista da sobrevivência equilibrada da sociedade e do meio ambiente no presente e no futuro, os cidadãos e profissionais desta sociedade devem passar por um processo de formação condizente e o sistema no qual este processo formativo se dá deve ser impulsionador disto.

Aliás, o sociólogo Boaventura de Souza Santos, numa frase, que está em epígrafe, na apresentação do texto do Plano Nacional de Extensão, expressa, em certo sentido, o que aqui está pontuado: “Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino”. (7)

Em nível de processos críticos, alguns apontamentos

O processo crítico central é o da avaliação da vida da academia e seus resultados. A academia aqui é concebida como espaço de produção de conhecimento e espaço de formação profissional. Trata-se de um espaço constituído de muitas instâncias e dimensões que devem estar em sinergia com as duas finalidades definidoras.

O que deve ser avaliado, em todas as instâncias e em todas as dimensões, é o grau de excelência acadêmica na produção de conhecimento e na formação profissional. E se formos coerentes com a busca por eliminar a grande defasagem entre Academia e sociedade, a avaliação da excelência acadêmica terá que levar em conta, sobretudo, o tipo de impacto na sociedade gerado pelo processo de produção de conhecimento e pela formação profissional.

É com esta finalidade que eu estou inserindo, nesta minha participação, uma reflexão especial sobre a importância da extensão universitária. Introduzi o conceito de transdisciplinaridade junto com o conceito de interdisciplinaridade porque entendo que a transdisciplinaridade é o verdadeiro pulmão de vida da extensão universitária e traz legitimidade na participação desta nos processos de produção de conhecimento e formação profissional. Aliás, a transdisciplinaridade não é só pulmão de vida da extensão universitária, mas ela pode ser também considerada como provocada e alimentada pela mesma dimensão da vida universitária.

Acostumei-me, ao longo dos últimos anos, a pautar o conceito de extensão universitária a partir de um conceito de responsabilidade social universitária – RSU. Mais precisamente a partir de uma experiência de avaliação que está em vigor na Associación de las Universidades Jesuítas de América Latina – Ausjal. Esta rede de universidades instituições de ensino superior vem assumindo, de alguns anos para cá, como uma das referências centrais para o seu sistema de avaliação, o conceito de responsabilidade social universitária – RSU, nos seguintes termos:
“A habilidade e efetividade da universidade em responder às necessidades de transformação da sociedade em que está imersa, mediante o exercício de suas funções substantivas: ensino, pesquisa, extensão e gestão interna. Estas funções devem estar animadas pela busca da promoção da justiça, da solidariedade e da equidade social, mediante a construção de respostas exitosas para atender aos desafios implicados em promover o desenvolvimento humano sustentável.” (Ausjal, 2010, p.23)

Este conceito foi formulado a partir, sobretudo, das contribuições de François Vallaeys (2006), o qual, quando a serviço do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, lançou importantes luzes para a sua operacionalidade. A rede de RSU da Ausjal trabalha o conceito no horizonte amplo de cinco impactos a serem considerados: o educativo, o epistemológico-cognoscitivo, o social, o organizacional e o ambiental.

Uma avaliação atenta destes cinco impactos é caminho fecundo na busca das respostas adequadas às grandes questões postas e, particularmente, às três perguntas que formulamos em relação a “que universidade nós necessitamos”. O horizonte dos cinco impactos referidos é o horizonte de todo projeto político pedagógico de uma universidade, que busca a excelência, e, as perguntas formuladas, bem respondidas, são o conteúdo central para o mesmo.

De fato, as três perguntas que formulamos acima dentro da questão “que universidade nós necessitamos”, só assumem o sentido radical, na medida em que as concebemos em sua transversalidade no horizonte dos cinco impactos aqui pautados:

(Impacto educativo ou de ensino-aprendizagem). A vida universitária gera um impacto direto na formação dos estudantes que dela participam. Influencia no seu modo de entender e interpretar o mundo e na sua relação com a transcendência, consigo mesmo e com os outros, com a sociedade e com todo o meio ambiente. Gera formas de comportamento e de atribuição de valores com relação à vida, ao exercício profissional e ao papel cidadão com vistas à sustentabilidade socioambiental. Por isto é importante que a universidade procure exercer com cuidado
“a gestão socialmente responsável da formação acadêmica e pedagógica, propiciando experiências vivenciais, iniciativas inter e transdisciplinares, interinstitucionais, bem como a reflexão crítica sobre as experiências e iniciativas.” (Ausjal, 2010, p. 26)

É fundamental que o estudante seja estimulado a buscar a excelência em seus estudos. Esta excelência só será completa no compromisso socioambiental. Se o ambiente no qual se dá esta busca estiver contaminado por processos elitistas, excludentes, egoístas e carreiristas, haverá grandes dificuldades para o encaminhamento de um bom “casamento” entre a busca da excelência e o compromisso socioambiental, como algo assimilado no “DNA” do processo educativo.

(Impacto epistemológico-cognoscitivo). A universidade é espaço privilegiado de cultivo de saberes e produção de conhecimentos e inovações tecnológicas. Sobre este privilégio paira uma forte hipoteca social que clama por uma condução responsável. É necessário
“evitar a fragmentação do saber, favorecer a articulação entre tecnociência e sociedade, promover a democratização da ciência e influir na definição e seleção dos problemas da agenda científica da universidade priorizada para o desenvolvimento sustentável e equitativo da sociedade.” (Ausjal, 2010, p.27)

Da mesma forma como no processo educativo, o espaço do cultivo de saberes e da produção de conhecimentos e inovações tecnológicas, quando preservado dos exclusivismos carreiristas, facilitará uma busca da excelência com compromisso socioambiental.

(Impacto social). O impacto sobre a sociedade gerado pela universidade não acontece só pelos profissionais e lideranças que ela forma ou pelos novos conhecimentos e inovações por ela gerados. Ele acontece, também, diretamente, enquanto a universidade é um ator social e uma referência presente na sociedade. Neste sentido, a universidade
“deve promover o progresso por meio de suas ações, gerar capital social, vincular a educação dos estudantes à realidade exterior e atuar como interlocutora para a solução dos problemas.” (Ausjal, 2010, p. 27)

São as ações sociais diretas, através de programas e projetos sociais, que poderão oferecer as condições mais favoráveis para que, na interlocução com o concreto da vida social, a excelência acadêmica não se desgarre e se descaracterize dentro do círculo fechado da academia.

(Impacto organizacional). A cultura organizacional da instituição universitária é o espelho daquilo que esta quer realizar através de sua missão na sociedade. Existem impactos na vida de cada um dos integrantes da comunidade interna a serem considerados. Estes impactos deixam marcas na vida das pessoas, podendo influir, profundamente, na qualidade de todo o resto. Neste sentido a instituição
“deve visar à gestão socialmente responsável da própria universidade, de maneira coerente com os princípios institucionais (…), num ambiente que favoreça a inclusão, a participação e a melhoria contínua.” (Ausjal, 2010, p.27)

A gestão interna da instituição sempre será o espelho da busca da excelência acadêmica somada ao compromisso com a sustentabilidade socioambiental. Ou seja, em sua organização, ao mesmo tempo em que se prima pela qualidade dos serviços, se oferecem os melhores exemplos de inclusão social e de cuidado com o meio ambiente.

(Impacto ambiental). Como as demais organizações, as universidades, no exercício de suas atividades cotidianas, geram impactos ambientais que afetam a sustentabilidade em nível global. Neste sentido, a universidade, também,
“deve contribuir para criar uma cultura de preservação e proteção do ambiente e visar a gestão socialmente responsável dos recursos ambientais disponíveis, em favor das gerações atuais e futuras.” (Ausjal, 2010, p.27)

Da mesma forma como, em nível das ações sociais diretas, expressas nos programas e projetos de extensão, assim também todo o cuidado ambiental desenvolvido pela instituição em seu entorno, oferecerá condições mais favoráveis para uma excelência acadêmica comprometida com a sustentabilidade socioambiental.

A partir destes cinco impactos nós temos condições de questionar o conceito de excelência acadêmica. Ou melhor, temos condições de ressignificar o conceito de excelência acadêmica. Existe, neste sentido, dentro do próprio quadro da Ausjal, uma proposta explícita de repensar o conceito de excelência acadêmica, pontuando o seguinte: Quando os estudantes se reconhecem dentro de um ambiente que dá, claramente, a sua contribuição científica e técnica na busca de respostas aos problemas socioambientais enfrentados, eles se sentirão também mais instigados para um preparo profissional excelente e engajado. Torna-se muito difícil colar o compromisso social e o engajamento cidadão em profissionais que, ao longo de toda a sua formação, foram motivados para a excelência com a finalidade puramente de competição do mercado, como infelizmente frequentemente é praticado… Em um texto voltado para a educação na América Latina, o jesuíta Luiz Ugalde, ex-presidente da Ausjal, sublinha que os profissionais preparados por nossas universidades devem dar conta dos quatro “C”, isto é: devem ser conscientes, competentes, compassivos e comprometidos (Ugalde, 2013). Para universidades comprometidas com a sustentabilidade socioambiental, este é o conceito de excelência acadêmica que fará sentido.

O que Luiz Ugalde sintetiza com as quatro palavras se coloca na radical contracorrente da busca egoística do sucesso, que às vezes contamina certos processos instituídos:
“Aquele que doa a sua vida, ainda que pareça perdê-la, está ganhando. Este mistério da vida é a alma de nossa educação que busca formar homens e mulheres ‘para os demais’ e ‘com os demais’.” (Ugalde, 2013, p. 2)

Um profissional consciente é aquele que alimenta uma atitude de exame, avaliação, autocrítica, transformação e aperfeiçoamento. Trata-se de alguém que desenvolve conscientemente a sua liberdade para decidir e usá-la responsavelmente. Alguém que reconhece a dignidade das outras pessoas. Ama a sua própria realização e a dos outros, pois entende que os demais não são seus objetos, mas pessoas igualmente chamadas a realizar-se num grande coletivo onde ele também está incluído.

Além de consciente, o profissional deve também ser competente. Aliás, ele buscará ser profundamente competente, na medida da sua consciência. O profissional bem qualificado tem mais chances de ter uma ação exitosa. Ser competente significa ter o conhecimento suficiente para proporcionar um serviço com êxito e segurança. Ser competente significa não defraudar os que buscam os bons serviços dessa competência. A incompetência é uma fraude e um risco para os demais.

Uma terceira característica é a solidariedade ou compaixão. Fala-se do profissional capaz de “sentir com”, “sofrer com”, ou seja, de ser solidário com os outros. O profissional compassivo é aquele que reconhece e ama a vida do outro como a sua própria e se solidariza com suas necessidades. É um profissional cuidador, corresponsável e sensível para ver e responder às necessidades dos outros, padecendo com eles e sendo-lhes solidário.

Um profissionalismo assim cultivado, com consciência, competência e compaixão solidária, implicará um profundo compromisso com a realidade. O profissional que formamos deve ser um profissional comprometido com a vida, com a humanidade e com a sustentabilidade do planeta. O compromisso soma consciência e compaixão (solidariedade) com competência para atuar efetivamente na realidade, buscando a causa dos males e a construção de instituições e estruturas de solução. O profissional comprometido busca, com criatividade, novas possibilidades para todos, partindo de uma visão crítica com relação a tudo o que mutila e estraga a sociedade humana e o meio ambiente.

Os processos interdisciplinares e, sobretudo, os transdisciplinares dão as melhores chaves para uma percepção dos principais requisitos desta forma de conceber a excelência acadêmica e sua avaliação. Uma aventura destas é tremendamente difícil e quase inconcebível dentro das estruturas comuns da Academia seccionada em pesquisa, ensino e extensão, seccionada em departamentos, seccionada em faculdades ou centros. É também tremendamente difícil e quase inconcebível dentro de um esquema de produtividade puramente quantitativa e vazia, como vem acontecendo em muitas situações.

Como rever os arranjos organizacionais vigentes?

Sob este pequeno sub-título vou tomar a liberdade de pontuar alguns fragmentos de processos vividos na universidade onde trabalho há mais de quarenta anos.

(Mexendo nas estruturas organizacionais)

O processo vivido pela Unisinos, desde meados da década de 1990, dentro de um processo de planejamento estratégico, com diversos momentos consecutivos, mas buscando um permanente alinhamento, tem a pretensão de propor, entre muitas outras coisas, uma ruptura definitiva com a cultura departamentalizante. Parte-se do entendimento de que um dos maiores problemas que a vida universitária costuma enfrentar é a departamentalização do saber e tudo o que nisto está implicado. A opção pela transdisciplinaridade ganhou força dentro deste contexto, fazendo parte, assim, de todo um processo, que a instituição vive, nos últimos quase vinte anos, no qual devem ser destacadas, pela sua repercussão interna e externa: a extinção dos departamentos (1995) e a extinção dos centros (2003). Trata-se de iniciativas que não foram fáceis e, com certeza, ainda não estão suficientemente assimiladas na vida da própria Unisinos, pois esta vinha de uma história estruturando-se rigidamente em departamentos, muitos deles bastante bem dinamizados. O mesmo também deve ser dito da posterior estrutura de centros, os quais acabaram sendo grandes “departamentões” ou, até, pequenas universidades, sendo colhidos pelo decreto do desmonte, no auge de sua consolidação e promissores planos de futuro.

(Revisitando a história sob o ponto de vista da idéia transdisciplinar)

Um grupo de trabalho dentro do processo de planejamento estratégico empreendeu uma revisitação de projetos e grupos na universidade nos quais havia sinais de abertura interdisciplinar ou transdisciplinar Em nossa revisitação à Universidade um aspecto muito revelador empolgou o grupo: a existência do Instituto Anchietano de Pesquisa – IAP, que é um instituto anterior à própria Unisinos, hoje integrado na Universidade, mas com vínculo direto à mantenedora. Este instituto pauta, desde a sua origem, grande parte de suas atividades por uma clara atitude transdisciplinar. Na outra ponta também deve ser destacada a recente criação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, acontecida em 2001. Trata-se de um instituto com perspectiva claramente transdisciplinar, e vem-se afirmando como um espaço criativo de encontro dos diferentes saberes, na promoção de eventos, grupos de estudo e publicações diversas. Este grupo de trabalho produziu em 2003 uma publicação coletiva, envolvendo as diferentes áreas de conhecimento: “Universidade e Transdisciplinaridade: uma proposta em construção”. (Follmann, J.Ivo; Lobo, Ielbo (orgs), 2003)

(O esforço por instituir uma linguagem institucional)

Outro grupo de trabalho, “grupo de linguagem organizacional”, foi também decisivo em avançar na implantação da “cultura da transdisciplinaridade” retomando, entre outros conceitos, o conceito de transdisciplinaridade, a partir de uma constatação de que existem diversos empregos diferentes do mesmo na própria universidade e a necessidade de se pautar melhor uma mesma linguagem institucionalmente reconhecida, uma vez que se trata de opção da instituição. O grupo apresenta a seguinte formulação: A transdisciplinaridade é uma forma de entender e organizar o conhecimento que se traduz no reconhecimento e integração de saberes oriundos de diferentes perspectivas teóricas, correntes, escolas e tendências dentro das disciplinas e outras fontes de saber não reconhecidas academicamente (tradições míticas, filosóficas, religiosas; artísticas, bem como, o saber popular). (…) A abordagem transdisciplinar é um caminho diverso do caminho da competição e da formação de guetos e recantos de poder. Ao mesmo tempo, considera a contribuição das disciplinas e declara legítimas as metodologias clássicas sem promover a perda das identidades que constituem a diversidade universitária. A transdisciplinaridade tem o compromisso de dar vida e renovar as disciplinas, metodologias e identidades, propondo uma nova ordem, mais complexa e, portanto, adequada à realidade.(8)

(Estruturas curriculares proporcionando formação integral)

Mas não bastam mexidas na estrutura organizacional e de linguagem. As mexidas mais fundas devem ser na própria sala de aula e no processo ensino-aprendizagem. O grande desafio que se impõe à universidade é a formação integral daqueles que buscam na academia a sua capacitação para o exercício profissional. É um desafio porque, a par das rápidas mudanças que vivemos e do esclerosamento relativamente fácil de profissões constituídas, a humanidade está, mais do que nunca, à beira de danos irreparáveis, causados por uma ilustração tecnocientífica muitas vezes amparada em fundamentos de consistência duvidosa. Tal contexto exige a presença de profissionais humanamente integrados, capazes de enxergar e criar, além dos limites dos pequenos mundos de suas especialidades.

Refletindo sobre o processo do cultivo da ideia de transdisciplinaridade na universidade em que trabalho, alimentei a convicção de que o passo mais importante dado para isso foi anterior à própria discussão deste conceito na instituição. Foi quando a instituição estabeleceu um conjunto de conteúdos em cada currículo de curso com o objetivo de promover o que foi chamado de “formação humanística”. Isso foi e continua sendo efetivamente uma semente fecunda para a cultura da transdisciplinaridade, dentro do “que fazer” universitário. O objetivo central da proposta de formação humanística era e é o de ajudar os estudantes, de todos os cursos, a abrirem os horizontes de seus entendimentos especializados e disciplinares para uma compreensão mais ampla de comprometimento com o ser humano, enquanto tal, para as exigências éticas envolvidas nisso e para a importância de nossa inserção latino-americana no grande movimento da história que vivemos.

A transdisciplinaridade supõe, entre outras coisas, sobretudo, a predisposição das disciplinas no sentido de se deixarem interrogar, permanentemente, de fora. As atividades de formação humanística podem ser entendidas, neste sentido, como um conjunto de “interrogantes externos”, na medida em que apontam para três horizontes de importância fundamental: as interrogações antropológicas, as interrogações éticas e as interrogações históricas de cidadãos do mundo, responsavelmente situados no continente latino-americano.

(Trazendo a extensão para dentro do espaço de ensino-aprendizagem)

Às vezes, ouvimos, com razão, comentários de que as oportunidades de uma verdadeira extensão universitária são muito restritas e se torna inviável pensar a extensão como um processo efetivamente integrado na formação de todos os estudantes e muito menos de pensá-la como partícipe ou integrada nos processos de pesquisa e de produção do conhecimento.

Com todas as facilidades tecnológicas e de comunicação existentes hoje, deveríamos sentir-nos mais desafiados a trazer (ou levar) a extensão universitária para dentro das salas de aula e para dentro dos nossos laboratórios de pesquisa. É evidente que é totalmente impossível e mesmo impróprio pensar em proporcionar a todos os estudantes contatos presenciais com diferentes problemáticas dentro do processo socioambiental, mas isto não nos pode eximir de cuidar ao máximo para proporcionar este contato com aquilo que a tecnologia e as facilidades de comunicação hoje proporcionam. Repensar a extensão universitária significa, sobretudo, repensar a sala de aula e o processo de ensino-aprendizagem e o conceito de laboratório. Significa impregnar esses ambientes (ou processos) com a cultura da transdisciplinaridade.

Anotações conclusivas…

Vou concluir de uma forma parecida com o que fiz em uma recente palestra no VII Congresso Nacional de Ensino Religioso, na Universidade Federal de Juiz de Fóra, MG, trazendo três pequenas anotações: uma primeira traz em seu centro a palavra humildade, uma segunda traz em seu centro a palavra conversão e a terceira faz culminar a nossa reflexão com a palavra amor. Peço licença para ser coerente com o que acabo de dizer sobre a importância da transdisciplinaridade: humildade, conversão e amor são posturas humanas repletas de muito saber e, com certeza, um ótimo condimento dentro do processo de produção de conhecimento.

Quero, neste sentido, manifestar o meu apreço ao antropólogo Otávio Guilherme Velho (2005), o qual em uma entrevista para a Revista IHU On Line usou a palavra “humildade”. A partir da percepção deste antropólogo é fundamental que as ciências sociais e os estudos da sociedade no Brasil, mais do que nunca, se desfaçam de certos ranços que ainda dominam a academia brasileira, para assumir com humildade um olhar mais atento, de forma transdisciplinar, para a dimensão religiosa da sociedade, condição fundamental para uma compreensão em profundidade desta mesma sociedade.

Dando agora um salto da lembrança de um cientista social como é Otávio Guilherme Velho, para um meio religioso, num grupo de meditação dentro do Movimento Brahma Kumaris onde um dia estive presente. Alguém, no final, chamou a atenção de todos para: “Só um minuto!”… “Convidamos você a fazer esta experiência: a cada hora, interrompa a sua ação e o fluxo do seu pensamento, com a seguinte mensagem: Sou um ser especial, somos seres especiais e com outros seres especiais dançamos e formamos a ‘ciranda da vida’.” (BK) É a idéia do Ano Sabático, em forma de comprimido, pensei comigo… Trata-se do momento de retomar a visão do todo. Momento de fazer as pazes conosco mesmos. Momento de conversão: de fazer convergir a nossa dispersão, o nosso todo disperso… Fiquei pensando: talvez necessitemos, efetivamente, mais disso. Para que o nosso conhecimento e os nossos processos de produção de conhecimento sejam mais verdadeiros, precisamos de humildade e de conversão.

Tanto o movimento de humildade (o de se esvaziar das próprias certezas), quanto o movimento de conversão (o de no silencio contemplativo fazer convergir no próprio ser, toda multiforme grandeza que o habita) são condições fundamentais para exercer o trabalho de produção de conhecimento e de formação de profissionais com amor. Onde há amor, a vida é gerada, a vida é cultivada e a vida é cuidada. Ela se torna vida em abundância.

Para encerrar faço reverência à Mãe de Santo, que me introduziu e digo: “É necessário que coloquemos os condimentos da humildade, da conversão e do amor na produção do conhecimento e formação de profissionais para que os nossos conhecimentos nos levem a fazer menos bobagens e os profissionais que ajudamos a formar façam menos bobagens”.

Notas:

  1. Francisco Xavier, missionário jesuíta, dentro da visão de mundo por ele refletida, falava nos valores cristãos que deveriam chegar a todo o mundo. (As cartas eram usuais no governo da Ordem dos Jesuítas).
  2. Ialorixá Dolores Senhorinha Dornelles, Associação Africanista Santo Antonio de Categeró, São Leopoldo, RS.
  3. Ubiratan D’Ambrósio, 2003, em conferência no Seminário de Formação Docente, na Unisinos.
  4. Não são momentos, nem fases no processo de aquisição do conhecimento, como muito bem detalha Pierre Weil in Weil, P., D’Ambrosio, U. e Crema, R., 1993, p.9-75
  5. O conceito de transdisciplinaridade é objeto de debate desde quando foi empregado pela primeira vez por J. Piaget. Um Centro de importante referência internacional é o CIRET (Centre International de Recherches et Ètudes Transdisciplinaires), fundado na França em 1987. No Brasil existem diversos Centros, destacando-se o CETRANS da USP (Centro de Estudos Transdisciplinares) e o IEAT da UFMG (Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares).
  6. (Para muitos o conceito de transdisciplinaridade ainda não amadureceu suficientemente para um uso produtivo na Academia e preferem restringir os limites mais avançados da mesma para a proposta de interdisciplinaridade, concentrando nela a necessária abertura ao diálogo e inovação epistemológica.)
  7. Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e SESu / MEC. Plano Nacional de Extensão. (Edição Atualizada, 2000/2001).
  8. Grupo “Linguagem Organizacional”, Unisinos

Referências bibliográficas

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